Seguidores

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Um Novo Mundo e o Homem Novo



Fazia a mala, contrafeito, banhado em lágrimas e sufocado pelos soluços que lhe estrangulavam a alma, num aperto muito difícil de suportar. Afligia-o ver-se apartado dos amigos, da escola que frequentava desde os três anos, ainda criança acabada de sair dos cueiros. Pesava-lhe já a distância terrível que o afastaria dos avós que idolatrava e com quem ficava inúmeras vezes, por estes disporem do tempo e da paciência sem limites e que não raras vezes faltava aos pais. E no meio do desespero dos seus oito anos, Pedro tentava esconder um pouco este turbilhão, esta angústia mal disfarçada que o desgastava, mas que lhe lembrava também o seu egoísmo por saber que os seus pais sofriam tanto ou mais do que ele.
Tinham perdido o emprego devido à situação económica do país. Era esta a explicação que ouvira a seu pai uma série de vezes. O pai era engenheiro civil e, neste momento, as obras não apareciam com facilidade. A firma onde trabalhava faliu, por falta do que fazer. A mãe era professora e se antes vivia a situação precária de ser contratada anualmente, nunca sabendo como iria ser o próximo ano, rapidamente se encontrou numa situação insustentável. Ficou sem escola. De nada adiantava os alunos reconhecerem-lhe competência e ter já uma experiência considerável. Os dezassete anos de dedicação e empenho, as horas de trabalho em casa para a escola e que ninguém, além da família, sequer imagina ser possível, não foram suficientes para lhe manter o lugar.
Durante uns meses, os pais foram-se aguentando e tentaram encontrar trabalho no país, ainda que longe de casa, mas nada apareceu.
Um dia, o pai chegou a casa mais silencioso do que o habitual. Jantou sem pronunciar palavra como quem medita cuidadosamente por ter que fazer uma escolha árdua e que envolvia toda a família.
Finalmente, a mudez foi quebrada. Com um suspiro que descobria o seu pesar, Jorge, num murmúrio nervoso e embargado, disse que tinha arranjado trabalho.
- Que bom! Parabéns! E chegas com essa cara de quem viu grande tragédia? – Interrogou a esposa.
- Em Luanda. Só me contratam se estiver disposto a mudar-me para Luanda. Dão-me casa, o salário é bastante aliciante, mas em Luanda! Fiquei de pensar e de dar uma resposta o mais célere possível, preferencialmente amanhã, porque os candidatos são muitos. Eu era o mais experiente e qualificado para o trabalho.
A notícia que o pai de Pedro trouxe abalou-os. Até o canário se calou ao ouvir semelhante! O facto de ter trabalho era positivo, mas o resto…
Esta família nunca tinha pensado em deixar o país, em largar as raízes que sempre conheceram e que faziam parte deles.
- Não podemos continuar nesta situação, Jorge. – Disse a mãe de Pedro. É difícil. Custará imenso, mas surgiu uma oportunidade que temos de agarrar, mesmo que isso signifique mudar de vida. Acompanhar-te-ei sempre. Somos uma família e é isso que é suposto fazermos: apoiarmo-nos uns aos outros, incondicionalmente.
- Tiraste-me um peso enorme das costas. Temia que fosse insuportável para ti a ideia de deixarmos tudo, assim tão repentinamente. A vantagem é que temos passagens de avião gratuitas a cada seis meses, para mim e familiares. Desta forma, a separação será mais facilmente suportável. Irei na frente para tratar de tudo, para me certificar de que tu e o Pedro terão o conforto mínimo necessário. Dentro do possível, é claro, não podemos esquecer que estamos a falar de Angola.
Ainda não tinha terminado a frase e já a sua testa se enrugava de novo, mostrando alguma apreensão. Olhou para a Luísa e acenou com a cabeça para o Pedro.
- E tu filho, não dizes nada? - Perguntou.
- Eu … eu não queria ir, mas se é a única forma de teres trabalho… também não quero deixar-vos. O lugar dos filhos é junto dos pais.
- Obrigado, Pedro, por compreenderes. Sei que não será fácil para nenhum de nós, mas juntos conseguiremos ultrapassar as dificuldades e tudo correrá pelo melhor. Poderemos vir cá duas vezes por ano e quem sabe se os avós vão lá fazer uma visita?!
Pedro, entristecido, saiu. Nem sabia muito bem onde ficava Angola, mas foi descobrir na Internet.
Tinha passado um mês desde que o pai tinha dado a notícia e já há um mês se encontrava em Luanda. Agora chegava a vez de Pedro e de Luísa se juntarem a Jorge, para um novo recomeço.
O avô Artur e a avó Maria tinham-lhe dito, pacientemente, que por mais penoso que fosse, seria pior para ele ficar afastado dos pais. Aí sim, as saudades seriam infernais. Quando desse conta, já estaria de regresso para os visitar durante quinze dias. E seria temporário, não para toda a vida! O pai teria que lá ficar três anos, mas depois regressaria à sede da empresa!
O Pedro assentiu, mas não deixava de se sentir morrer. Era essa a palavra. O menino, tal como se conhecia, morria naquela despedida, para dar lugar a outro que desconhecia e que teria que descobrir.
Após uma longa viagem, chegaram ao destino. No aeroporto Quatro de Fevereiro, o pai aguardava-os ansiosamente. Assim que viu a Luísa e o Pedro na porta de desembarque, desatou a gesticular e a correr com imensa pressa, como se o tempo que lhes restava não fosse suficiente para acalmar a saudade.
Após um longo abraço e um beijo sentido, encaminhou-os para o jipe que a empresa lhe dispôs como carro de serviço.
- Vamos. Estais a precisar de descansar, porque a viagem foi longa e cansativa. Tenho tudo preparado. Acho que vais gostar do teu quarto, Pedro, mas não quero revelar nada para ser surpresa.
O aeroporto distava 30 minutos da nova casa de Pedro que observava atentamente tudo em seu redor, num misto de curiosidade e espanto. A cidade era maior do que tinha imaginado. Quando ouviu falar em África, a única coisa que lhe ocorria ao pensamento eram os meninos escanzelados, famintos, de olhos enormes e escuros. Não quis afligir ninguém e guardou, por isso, os seus pensamentos, mas assim que soube que iria para África tolheu-se com a ideia de passar fome e ter que viver numa palhota, sem eletricidade, água canalizada, eletrodomésticos e outros aparelhos a que a civilização ocidental o habituou e sem os quais se sentia incapaz, infeliz e, sobretudo, desconfortável.
Diante dos seus olhos, avistava uma cidade enorme, com largas avenidas, reclamos luminosos, bons carros, enfim…tudo aquilo a que estava habituado no seu país. Suspirou aliviado.
- Papá, temos televisão?
- Sim, Pedro. Poderás ter tudo a que estavas habituado. Angola é um país de fortes contrastes. Há gente muito rica, mas também há gente muito, muito pobre, sobretudo nas povoações mais longínquas, afastadas dos grandes centros. Porém, não tens com o que te preocupar. Não nos faltará nada. Na realidade, sou bem pago para aqui estar.
Quando chegaram à nova casa, Pedro pôde verificar que o pai tinha razão. Tinham-lhe arranjado uma casa de um piso só, mas espaçosa. A sala era grande e estava bem mobilada. O sofá preto contrastava com as paredes brancas e as carpetes em tons de vermelho e preto. Pedro gostou especialmente da luminosidade. Ele gostava do sol, da luz natural e toda a casa era envolvida por essa claridade. Tinha umas enormes vidraças que davam acesso ao jardim.
- Anda ver o teu quarto – disse o pai.
Pedro ficou sem palavras. Abraçar o pai foi a forma que encontrou para extravasar a sua alegria.
O menino adorava futebol e o pai tinha forrado uma das paredes do quarto com um papel especialmente concebido para ele. Tinha alguns dos melhores jogadores do mundo, bem a seu lado: Ronaldo, Messi, Drogba, Essien…
A cama era uma bola de futebol e a secretária tinha as cores do seu clube. Sobre ela, o pai colocou uma playstation 4 e um portátil.
- Obrigado, papá.
- Ainda bem que gostaste. Amanhã irei mostrar-te a tua escola. Sabes que as aulas estão quase a começar. Será uma forma de fazeres amigos.
- Posso experimentar a minha consola?
- Sim. – Disseram os pais em uníssono.
- Acho que exageraste, Jorge. Não havia necessidade de tanta coisa!
- Deixa. Se é difícil para nós, imagina para ele. Quis tornar as coisas mais fáceis e criar um espaço onde possa sentir-se reconfortado, porque os primeiros tempos serão difíceis. Sabes como é chegado aos teus pais e a falta que irá sentir deles. Com o portátil poderá entrar em contacto com eles quando quiser, na sua privacidade. O Pedro começa a definir a sua identidade e devemos respeitar esse espaço.
- Tens razão. Não é nada fácil. Mas sei que acabaremos por nos adaptar.
- Conto com isso, Luísa.
Ainda faltavam quinze dias para o início do novo ano letivo e o Pedro aproveitou para fazer praia, ficou a conhecer melhor a cidade e surpreendia-se com as coisas que ia descobrindo, com a nova cultura e costumes. Frequentaria uma escola privada, pois os pais valorizavam imenso a sua educação e, infelizmente, a escola pública em Angola ainda tinha um longo caminho a percorrer para poder oferecer qualidade, quer nas suas infraestruturas, quer nos meios humanos.
O Pedro não entendia por que razão não se melhorava a educação, uma vez que todas as crianças têm direito a ela. A educação deveria ser para todos e não um bem precioso que só o dinheiro de alguns pode comprar. Era a primeira vez que iria frequentar uma escola privada. No seu país, apesar de haver algumas coisas erradas, a escola pública funcionava razoavelmente bem.
Amanhã seria o grande dia. Iria para a escola pela primeira vez.
Acordou cedo, com um nervosinho fino que lhe causava uma espécie de cócegas na barriga. Ao contrário do habitual, o seu pequeno-almoço não foi só composto por leite e torradas. Estavam presentes os frutos exóticos que naquele país eram de época e abundavam: a manga, o abacate, a papaia…
Terminou rapidamente a refeição como se estivesse atrasado ou com uma pressa imensa, insuportável. Como o vitelo que se aproxima do matadouro e prevê a morte, mas que nada pode fazer, também Pedro previa algo de negativo, mas tinha uma urgência incontida em enfrentar esse receio de uma vez.
O trajeto até à escola pareceu-lhe uma eternidade, apesar de ficar a dez minutos de sua casa, para quem vai a pé. Nesse primeiro dia, como Pedro ainda não tinha amigos, o pai levou-o até à escola, antes de ir para o trabalho. Quando chegaram, já o Pedro saía da viatura, quando o pai lhe atirou, em tom mais forte:
- Boa sorte, filho. Vais ver que no fim do dia estarás cheio de amigos novos.
Pedro olhou para trás, sorriu, levantou a mão e dirigiu-se para o portão da escola.
Quando entrou no recinto escolar, sentiu todos os olhares cravados em si e intimidou-se. Olhavam-no seriamente e comentavam. Pedro verificou, de relance, que era o único menino branco e deduziu que os sussurros dos colegas enquanto o olhavam se refeririam ao tom da sua pele e ao facto de ser imigrante naquele país. De facto, era complicado ter tez clara num país de intenso e constante sol. A mãe tinha-o besuntado de protetor solar antes de sair de casa, com medo que apanhasse um escaldão, durante o recreio. Deu por si a pensar que na natureza tudo é harmonioso e perfeito. Aí estava a explicação lógica para a cor de pele mais escura dos africanos.
Ao entrar na sala de aula, sentou-se sozinho, ao fundo, num lugar disponível. A professora apresentou-se à turma, mais especificamente, ao Pedro, uma vez que tinha sido professora dos restantes nos dois anos anteriores. Pedro estava agora no terceiro ano. A professora explicou-lhe que o seu processo ainda não tinha chegado à escola e que gostaria que ele próprio se apresentasse aos colegas.
Pedro levantou-se e disse o seu nome, idade e que tinha vindo de Portugal, porque os pais ficaram sem trabalho e o único que o seu pai conseguiu arranjar foi aqui em Luanda, através de uma empresa portuguesa e que, portanto, ficaria cá pelo menos os próximos três anos. Acrescentou que a sua mãe era também professora, mas de meninos mais crescidos e que ainda não tinha conseguido nada, mas que esperava poder vir a dar aulas em Luanda, enquanto por lá permanecessem.
Após esta breve apresentação, a professora Ana deu as boas-vindas ao Pedro, dizendo que esperava que ele fosse muito feliz e tivesse muito sucesso na sua nova terra e sugeriu que os outros alunos fizessem o mesmo, pelo que disseram todos em tom frouxo e pouco animador: “Bem-vindo, Pedro!”
Durante a aula, a professora começou por fazer revisões da matéria do ano anterior. Pediu que os meninos lessem, fez perguntas sobre o texto lido, algumas perguntas de gramática, trabalharam a matemática, para reverem a tabuada e as contas e também o estudo do meio. O Pedro, que era bom aluno, estava sempre de dedo levantado, pronto a responder, o que começou a suscitar algumas reações menos positivas nos novos colegas.
- Olha só para ele! Tem a mania que sabe tudo! Devia errar esta. – Diziam alguns, maldosos.
- Só porque é branco e europeu, acha-se o maior. – Acrescentavam outros.
A hora do recreio chegou e nenhum dos seus novos colegas se aproximou para brincar com ele. O pai tinha-o prevenido para essa possibilidade e disse-lhe que se tal acontecesse seria normal, pois quem chega, deve fazer um esforço por se integrar. Aconselhou-o a ser ele a tomar a iniciativa de ir falar com os colegas. Pensando nisto, Pedro abeirou-se de um dos colegas e perguntou-lhe onde morava, pois queria ver se arranjava companhia para vir a pé para a escola, caso contrário, sozinho, os seus pais não o deixavam vir, ou então se sabia de algum outro menino que morasse para os seus lados.
António encarou-o com frieza e disse-lhe calmamente, para que as suas palavras penetrassem no mais recôndito canto do seu coração:
- Não falo com colonialistas emproados e voltou-lhe as costas, afastando-se.
Pedro sentiu o chão abrir-se debaixo dos seus pés e o seu coração ficou injuriado e a sua alma apertada. Sentiu-se estrangulado, insignificante e os seus lindos olhos verdes pareciam um mar, prontos a extravasar e a alagar o que se lhe entrepusesse.
Não vou chorar. Não vou chorar, pensava para si, enquanto engolia em seco e apertava os olhos para evitar que uma lágrima mais rebelde caísse.
Refugiou-se a um canto e permaneceu assim, triste e sozinho, até entrar novamente para a aula.
A professora tinha observado de longe o que se tinha passado e pensava numa forma de solucionar o problema, mas por enquanto iria estar atenta e acompanhar o comportamento dos alunos.
Na segunda metade da aula, o Pedro esteve mais circunspeto, sorumbático e não se mostrou participativo.
- Estou a ver que o puseste no lugar, António. – Disse o Santiago entre dentes. É assim mesmo. Estes tipos pensam que vêm para cá mandar em tudo. Esse tempo já lá vai!
Quando a aula terminou, a professora disse à turma que tinha um trabalho de casa diferente para os discentes. Chamou o António e o Santiago e disse-lhes:
- Vocês vão anotar, para amanhã, todas as razões que vos levam a não serem simpáticos com o Pedro. Podem colher a opinião dos vossos colegas de turma. E tu, Pedro, vais apontar todos os motivos pelos quais não te deveriam tratar dessa forma. Agora podem sair e bom trabalho.
Quando Pedro saiu da escola, completamente só, sua mãe já o aguardava. Fariam o trajeto a pé. Assim que o viu, Luísa percebeu que o dia não lhe tinha corrido bem.
- Então, Pedro? O que se passou para estares tão triste?
- Estes meninos não gostam de mim. Detestam-me! Ninguém quer falar comigo. Ninguém se aproximou. E eu tentei… fiz como o papá me tinha aconselhado e dei o primeiro passo. Antes tivesse ficado quieto…
-Vá lá, filho, não te apoquentes, vais ver que daqui a dois ou três dias, mudam de ideias. Vamos comer um gelado, para ver se te animas um pouco e esqueces agora o sucedido.
Mal chegaram a casa, o Pedro contactou os avós pela Internet, o seu porto seguro. Queria ouvir a avó, porque ela sabia sempre como o sossegar.
- Avó?!
- Sim, amor. Diz, gostaste da escola e dos teus amigos?
- Eles é que não gostaram de mim. Ninguém me fala e também ninguém quer brincar comigo porque sou branco e chamaram-me uma coisa que eu nem sei o que significa.
- Ó Pedro, mas não podes desistir. Lembras-te do Luís, do menino mulatinho que veio para a tua turma o ano passado? Também vos custou aceitá-lo.
- Mas ó avó, eu fui o primeiro a falar com ele!
- Pois foste. E depois foram os outros. Contigo vai acontecer o mesmo. Alguém irá falar contigo e depois desse, todos os outros meninos também te tratarão bem.
- Pode ser que tenhas razão… amanhã volto a contar-te como correu. Agora tenho que ir porque a mamã está a chamar-me para jantar.
- Fica bem, Pedro e vais ver como tudo se resolve.
Durante o jantar, Pedro pouco comeu. As contrariedades do dia tiraram-lhe o apetite. Os pais olhavam-no apreensivos, quando ele cortou o silêncio.
- O que é um colo… colo…
- Colonialista? - Perguntou o pai?
- Sim. Foi o que um menino me chamou hoje. Disse que não falava com colonialistas… e eu nem sei o que isso é!
O pai explicou-lhe que Angola já tinha pertencido a Portugal há muitos anos atrás e que, por isso, os angolanos sabiam falar português. Disse-lhe que o termo era pejorativo e que se refere àqueles que se apropriam de uma terra que não é sua e a transformam numa colónia do seu país.
- E nós fizemos isso, pai?! Quis saber o Pedro.
- Sim, mas há muitos séculos atrás, no tempo das conquistas e descobertas e até chegamos a traficar o povo negro como escravos para o Brasil.
- Mas isso é horrível! – Disse o Pedro espantado.
- Tens razão. Hoje assim é entendido, mas naquela época não havia consciência dos direitos humanos… havia até quem achasse que o negro não tinha alma! A situação tornou-se insustentável mais tarde, séculos depois, aquando da guerra colonial. Quando os angolanos e outros povos africanos quiseram a independência e o Estado Português não lha quis dar. Por essa altura, já outros países europeus tinham concedido e reconhecido a independência das suas ex-colónias. Por fim, estalou a guerra. E com ela muitos mortos, muitos feridos, desnecessariamente! E o povo, em Portugal, não tinha a exata noção da mortandade, por causa da ditadura. Não havia liberdade de imprensa ou de expressão, então, as notícias não chegavam com exatidão e veracidade. 
- Eu acho que eles tinham razão. A terra era deles. Se eles já cá moravam, deveríamos tê-los respeitado. – Afirmou a criança.
- Agora percebes a antipatia pelo português branco, Pedro? – Interrogou o pai.
- Sim, mas desta forma já sei como responder amanhã, na aula, e contou o trabalho de casa que a professora Ana tinha sugerido.
Os pais sentiram-se mais tranquilos, pois perceberam que a professora estava atenta e a tentar solucionar o problema. Só lhes restava aguardar, confiantes de que tudo correria bem.
No dia seguinte, inexplicavelmente, o Pedro estava mais calmo e não se mostrava desagradado por ter de ir para a escola, até parecia algo ansioso e apressado. Sentes-te preparado para enfrentar novo desafio, Pedro? – Perguntou o pai.
- Sim. Hoje vai ser mais fácil, porque não serei surpreendido como ontem e terei a oportunidade para lhes mostrar que estão a ser injustos comigo.
- Boa, filho. É assim mesmo. – Disse a mãe. - Prova aos teus colegas que o racismo é um sentimento ilógico, discricionário e sem sentido. Lembras-te do que aconteceu com aquele menino, o Luís, da tua turma do ano passado? Os teus colegas perceberam que não estavam a ser justos ao discriminá-lo só por ser diferente. Aliás, o mundo seria bem aborrecido se fôssemos todos iguais. O direito à diferença e o respeito por esta tornam o mundo um lugar mais aprazível e menos monótono. O encontro de culturas e vivências distintas é positivo. É com esta troca de saberes e respetiva aprendizagem que o Homem evolui.
- Sim, mamã. Tentarei passar a mensagem.
Quando entraram na sala de aula, a professora questionou se tinham feito os trabalhos de casa. Todos disseram que sim.
A professora sugeriu que o António, o Santiago e o Pedro viessem para a frente. Sentou o António e o Santiago juntos, do lado esquerdo e o Pedro do lado direito, para se dar início ao frente a frente. A professora seria a moderadora.
Meninos, ontem, eu pude constatar que a turma não recebeu bem o novo aluno. Devem ter as vossas razões, mas acho que é importante sabermos o que pensam e também aquilo que o Pedro tem para vos dizer.
António e Santiago, porque mostraram mais animosidade em relação ao novo aluno e enquanto porta-vozes da turma, queiram explicar o vosso comportamento. Têm o uso da palavra.
Os amigos entreolharam-se e o António, o mais expedito, começou a explicação:
- O novo aluno é branco e português. A professora sabe melhor do que nós do que esse povo foi capaz de nos fazer ao longo de vários séculos de história. Não podemos aceitar que regressem a este país e sejam bem recebidos para se apoderarem de tudo novamente. E ainda por cima têm a mania de que são melhores do que o preto: mais inteligentes, trabalhadores, poupados, enfim, só qualidades! Agora, só porque o país deles está em crise, vêm para cá e ainda nos tiram postos de trabalho!
O que tens a dizer sobre isto, Pedro?
 - Eu gostaria de explicar que nem sabia o significado de colonialista. Tive de perguntar aos meus pais que me contaram o que aconteceu e o que essa palavra significa. Começo por pedir desculpa em nome dos portugueses que cometeram essas atrocidades com as quais eu não me identifico e recrimino. Quero também acrescentar que isso foi já há tanto tempo que não vejo motivo para me odiarem. Os meus antepassados, talvez, mas eu? Nem sabia o significado de colonialista! Não fui cúmplice de nada!
Quanto aos postos de trabalho que possam ser retirados aos angolanos, parece-me uma falsa questão. Primeiro, a empresa para a qual o meu trabalha é portuguesa e ele espera regressar ao nosso país assim que o autorizarem e, depois, ele está cá a formar engenheiros angolanos que possam, mais tarde, dar continuidade ao seu trabalho, já com experiência suficiente para resolver situações mais complicadas que possam surgir! Assim sendo, está a formar trabalhadores angolanos e não a roubar-lhes o emprego!
Para finalizar, gostaria de dizer que não se deve fazer um juízo de valor sobre alguém só porque se é diferente. Para isso, é preciso conhecer bem a pessoa, para se poder avaliar o seu comportamento e atitudes. Eu também preferia estar em Portugal ao pé da minha família e dos meus amigos, como sempre estive! E os meus pais desejam regressar assim que seja possível!
- Muito bem, alguém quer acrescentar alguma coisa? Não? Então, dou o debate por encerrado e vou pedir, como trabalho de casa, uma reflexão sobre aquilo que ouviram e que deverão trazer por escrito.
O resto da aula decorreu dentro da normalidade. Quando chegou a hora do recreio, Pedro afastou-se dos colegas e, desta vez não tentou qualquer reaproximação, mas foi surpreendido por uma mão que lhe pousava sobre o ombro. Era o António.
- Desculpa, acho que exagerei, ontem. Queria dizer-te que moro apenas a alguns quarteirões de ti e se ainda quiseres a minha companhia para vir para a escola, amanhã, posso passar por tua casa. Fica-me em caminho.
Boquiaberto, Pedro aceitou a sugestão, num misto de espanto e incredulidade.
 De seguida, António disse-lhe que lhe faltava um jogador para a equipa dele e que dava jeito um tipo rijo.
- Queres substituir o Serafim que está a faltar?
- Claro! - Disse o Pedro satisfeito.
A professora assistia a tudo e sorria. Compreendia que o seu propósito tinha sido alcançado.
No dia seguinte, de manhã, António cumpriu a promessa e foi chamar o Pedro a casa. Os pais do menino nem acreditavam no que estava a acontecer. Felizes, pensaram somente que era mais um problema resolvido.
A caminho da escola, disse-lhe o António:
- Sabes, escrevi o texto que a professora pediu em verso.
- Olha, eu também! E intitulei o poema de Novo Mundo. – Respondeu o Pedro.
- Caramba! Que coincidência! O meu chama-se Homem Novo.
 E desataram ambos a rir.
Chegados à escola, já dentro da sala, no início da aula, a professora pediu que lessem os trabalhos e voltou a colocar o António e o Pedro frente a frente.
O António começou:

 Homem Novo
Meu colega, companheiro,
Fui injusto sem razão.
Peço-te perdão, ligeiro,
Meu amigo, meu irmão.

O colonialismo acabou.
Sou um livre passarinho!
Se o ódio não terminou,
Sigamos outro caminho!

Esqueçamos nossas diferenças
Somos os dois da mesma raça:
Humana, débil carcaça!

Homens de frágeis crenças,
Vencei a vontade lassa!
Erguei, dos escombros, nova massa!

De seguida, foi a vez do Pedro ler a sua reflexão.
- Também fiz em verso - disse.
- Vamos todos ouvir, podes começar. – Sugeriu a professora.





Novo Mundo
Quisera eu um mundo
Que um arco-íris tivesse…
Cheio de cor, bem fecundo,
Onde a felicidade acontece!

Quisera eu um mundo
Pleno de flores diferentes,
De um céu azul profundo,
Sem diferença entre as gentes!

Quisera eu um mundo
Onde o cristão e o pagão
Soltassem um sorriso lá do fundo,
E fraternalmente dessem a mão!

Quisera eu um mundo
Mesclado de cores:
          Onde o Branco e o preto, juntos,
          Formassem um jardim de flores.
          
            Quisera eu um mundo
            Que o racismo desconhecesse.
           Perante tal injustiça sucumbo,
           De dor imensa estremeço.

          E com o meu e o teu querer,
          Agreguemos as vontades.
         Veremos a irmandade crescer
         entre todas as idades.

No fim, a turma aplaudiu ambos de pé. E este foi o começo de uma bela amizade, daquelas que perduram no tempo e não se extinguem. Uma amizade que começou com a discordância e a diferença, mas que foram superadas pelo respeito e pela tolerância. Uma amizade que floresceu, porque o amor superou o ódio. Uma história para ser contada de geração em geração, para que todo o Homem entenda que é feito da mesma massa e do mesmo sentir, independentemente da cor, raça, religião ou cultura. Todo o Homem é apenas Homem, em tudo igual ao seu semelhante!

 Nina M.

Sem comentários:

Enviar um comentário