Fazia a mala, contrafeito, banhado
em lágrimas e sufocado pelos soluços que lhe estrangulavam a alma, num aperto
muito difícil de suportar. Afligia-o ver-se apartado dos amigos, da escola que
frequentava desde os três anos, ainda criança acabada de sair dos cueiros.
Pesava-lhe já a distância terrível que o afastaria dos avós que idolatrava e
com quem ficava inúmeras vezes, por estes disporem do tempo e da paciência sem
limites e que não raras vezes faltava aos pais. E no meio do desespero dos seus
oito anos, Pedro tentava esconder um pouco este turbilhão, esta angústia mal
disfarçada que o desgastava, mas que lhe lembrava também o seu egoísmo por
saber que os seus pais sofriam tanto ou mais do que ele.
Tinham perdido o emprego devido à
situação económica do país. Era esta a explicação que ouvira a seu pai uma
série de vezes. O pai era engenheiro civil e, neste momento, as obras não
apareciam com facilidade. A firma onde trabalhava faliu, por falta do que
fazer. A mãe era professora e se antes vivia a situação precária de ser
contratada anualmente, nunca sabendo como iria ser o próximo ano, rapidamente
se encontrou numa situação insustentável. Ficou sem escola. De nada adiantava
os alunos reconhecerem-lhe competência e ter já uma experiência considerável.
Os dezassete anos de dedicação e empenho, as horas de trabalho em casa para a
escola e que ninguém, além da família, sequer imagina ser possível, não foram
suficientes para lhe manter o lugar.
Durante uns meses, os pais
foram-se aguentando e tentaram encontrar trabalho no país, ainda que longe de
casa, mas nada apareceu.
Um dia, o pai chegou a casa mais
silencioso do que o habitual. Jantou sem pronunciar palavra como quem medita
cuidadosamente por ter que fazer uma escolha árdua e que envolvia toda a
família.
Finalmente, a mudez foi quebrada.
Com um suspiro que descobria o seu pesar, Jorge, num murmúrio nervoso e
embargado, disse que tinha arranjado trabalho.
- Que bom! Parabéns! E chegas com
essa cara de quem viu grande tragédia? – Interrogou a esposa.
- Em Luanda. Só me contratam se
estiver disposto a mudar-me para Luanda. Dão-me casa, o salário é bastante
aliciante, mas em Luanda! Fiquei de pensar e de dar uma resposta o mais célere
possível, preferencialmente amanhã, porque os candidatos são muitos. Eu era o
mais experiente e qualificado para o trabalho.
A notícia que o pai de Pedro
trouxe abalou-os. Até o canário se calou ao ouvir semelhante! O facto de ter
trabalho era positivo, mas o resto…
Esta família nunca tinha pensado
em deixar o país, em largar as raízes que sempre conheceram e que faziam parte
deles.
- Não podemos continuar nesta
situação, Jorge. – Disse a mãe de Pedro. É difícil. Custará imenso, mas surgiu
uma oportunidade que temos de agarrar, mesmo que isso signifique mudar de vida.
Acompanhar-te-ei sempre. Somos uma família e é isso que é suposto fazermos:
apoiarmo-nos uns aos outros, incondicionalmente.
- Tiraste-me um peso enorme das
costas. Temia que fosse insuportável para ti a ideia de deixarmos tudo, assim
tão repentinamente. A vantagem é que temos passagens de avião gratuitas a cada
seis meses, para mim e familiares. Desta forma, a separação será mais
facilmente suportável. Irei na frente para tratar de tudo, para me certificar
de que tu e o Pedro terão o conforto mínimo necessário. Dentro do possível, é
claro, não podemos esquecer que estamos a falar de Angola.
Ainda não tinha terminado a frase
e já a sua testa se enrugava de novo, mostrando alguma apreensão. Olhou para a
Luísa e acenou com a cabeça para o Pedro.
- E tu filho, não dizes nada? -
Perguntou.
- Eu … eu não queria ir, mas se é
a única forma de teres trabalho… também não quero deixar-vos. O lugar dos
filhos é junto dos pais.
- Obrigado, Pedro, por
compreenderes. Sei que não será fácil para nenhum de nós, mas juntos
conseguiremos ultrapassar as dificuldades e tudo correrá pelo melhor. Poderemos
vir cá duas vezes por ano e quem sabe se os avós vão lá fazer uma visita?!
Pedro, entristecido, saiu. Nem
sabia muito bem onde ficava Angola, mas foi descobrir na Internet.
Tinha passado um mês desde que o
pai tinha dado a notícia e já há um mês se encontrava em Luanda. Agora chegava
a vez de Pedro e de Luísa se juntarem a Jorge, para um novo recomeço.
O avô Artur e a avó Maria
tinham-lhe dito, pacientemente, que por mais penoso que fosse, seria pior para
ele ficar afastado dos pais. Aí sim, as saudades seriam infernais. Quando desse
conta, já estaria de regresso para os visitar durante quinze dias. E seria
temporário, não para toda a vida! O pai teria que lá ficar três anos, mas
depois regressaria à sede da empresa!
O Pedro assentiu, mas não deixava
de se sentir morrer. Era essa a palavra. O menino, tal como se conhecia, morria
naquela despedida, para dar lugar a outro que desconhecia e que teria que
descobrir.
Após uma longa viagem, chegaram ao
destino. No aeroporto Quatro de Fevereiro, o pai aguardava-os
ansiosamente. Assim que viu a Luísa e o Pedro na porta de desembarque, desatou
a gesticular e a correr com imensa pressa, como se o tempo que lhes restava não
fosse suficiente para acalmar a saudade.
Após um longo abraço e um beijo
sentido, encaminhou-os para o jipe que a empresa lhe dispôs como carro de
serviço.
- Vamos. Estais a precisar de
descansar, porque a viagem foi longa e cansativa. Tenho tudo preparado. Acho
que vais gostar do teu quarto, Pedro, mas não quero revelar nada para ser
surpresa.
O aeroporto distava 30 minutos da
nova casa de Pedro que observava atentamente tudo em seu redor, num misto de
curiosidade e espanto. A cidade era maior do que tinha imaginado. Quando ouviu
falar em África, a única coisa que lhe ocorria ao pensamento eram os meninos
escanzelados, famintos, de olhos enormes e escuros. Não quis afligir ninguém e
guardou, por isso, os seus pensamentos, mas assim que soube que iria para
África tolheu-se com a ideia de passar fome e ter que viver numa palhota, sem
eletricidade, água canalizada, eletrodomésticos e outros aparelhos a que a
civilização ocidental o habituou e sem os quais se sentia incapaz, infeliz e,
sobretudo, desconfortável.
Diante dos seus olhos, avistava
uma cidade enorme, com largas avenidas, reclamos luminosos, bons carros,
enfim…tudo aquilo a que estava habituado no seu país. Suspirou aliviado.
- Papá, temos televisão?
- Sim, Pedro. Poderás ter tudo a
que estavas habituado. Angola é um país de fortes contrastes. Há gente muito
rica, mas também há gente muito, muito pobre, sobretudo nas povoações mais
longínquas, afastadas dos grandes centros. Porém, não tens com o que te
preocupar. Não nos faltará nada. Na realidade, sou bem pago para aqui estar.
Quando chegaram à nova casa, Pedro
pôde verificar que o pai tinha razão. Tinham-lhe arranjado uma casa de um piso
só, mas espaçosa. A sala era grande e estava bem mobilada. O sofá preto
contrastava com as paredes brancas e as carpetes em tons de vermelho e preto.
Pedro gostou especialmente da luminosidade. Ele gostava do sol, da luz natural
e toda a casa era envolvida por essa claridade. Tinha umas enormes vidraças que
davam acesso ao jardim.
- Anda ver o teu quarto – disse o
pai.
Pedro ficou sem palavras. Abraçar
o pai foi a forma que encontrou para extravasar a sua alegria.
O menino adorava futebol e o pai
tinha forrado uma das paredes do quarto com um papel especialmente concebido
para ele. Tinha alguns dos melhores jogadores do mundo, bem a seu lado:
Ronaldo, Messi, Drogba, Essien…
A cama era uma bola de futebol e a
secretária tinha as cores do seu clube. Sobre ela, o pai colocou uma
playstation 4 e um portátil.
- Obrigado, papá.
- Ainda bem que gostaste. Amanhã
irei mostrar-te a tua escola. Sabes que as aulas estão quase a começar. Será
uma forma de fazeres amigos.
- Posso experimentar a minha
consola?
- Sim. – Disseram os pais em
uníssono.
- Acho que exageraste, Jorge. Não
havia necessidade de tanta coisa!
- Deixa. Se é difícil para nós,
imagina para ele. Quis tornar as coisas mais fáceis e criar um espaço onde
possa sentir-se reconfortado, porque os primeiros tempos serão difíceis. Sabes
como é chegado aos teus pais e a falta que irá sentir deles. Com o portátil
poderá entrar em contacto com eles quando quiser, na sua privacidade. O Pedro
começa a definir a sua identidade e devemos respeitar esse espaço.
- Tens razão. Não é nada fácil.
Mas sei que acabaremos por nos adaptar.
- Conto com isso, Luísa.
Ainda faltavam quinze dias para o
início do novo ano letivo e o Pedro aproveitou para fazer praia, ficou a
conhecer melhor a cidade e surpreendia-se com as coisas que ia descobrindo, com
a nova cultura e costumes. Frequentaria uma escola privada, pois os pais valorizavam
imenso a sua educação e, infelizmente, a escola pública em Angola ainda tinha
um longo caminho a percorrer para poder oferecer qualidade, quer nas suas
infraestruturas, quer nos meios humanos.
O Pedro não entendia por que razão
não se melhorava a educação, uma vez que todas as crianças têm direito a ela. A
educação deveria ser para todos e não um bem precioso que só o dinheiro de
alguns pode comprar. Era a primeira vez que iria frequentar uma escola privada.
No seu país, apesar de haver algumas coisas erradas, a escola pública
funcionava razoavelmente bem.
Amanhã seria o grande dia. Iria
para a escola pela primeira vez.
Acordou cedo, com um nervosinho
fino que lhe causava uma espécie de cócegas na barriga. Ao contrário do
habitual, o seu pequeno-almoço não foi só composto por leite e torradas.
Estavam presentes os frutos exóticos que naquele país eram de época e
abundavam: a manga, o abacate, a papaia…
Terminou rapidamente a refeição
como se estivesse atrasado ou com uma pressa imensa, insuportável. Como o
vitelo que se aproxima do matadouro e prevê a morte, mas que nada pode fazer,
também Pedro previa algo de negativo, mas tinha uma urgência incontida em
enfrentar esse receio de uma vez.
O trajeto até à escola pareceu-lhe
uma eternidade, apesar de ficar a dez minutos de sua casa, para quem vai a pé.
Nesse primeiro dia, como Pedro ainda não tinha amigos, o pai levou-o até à
escola, antes de ir para o trabalho. Quando chegaram, já o Pedro saía da
viatura, quando o pai lhe atirou, em tom mais forte:
- Boa sorte, filho. Vais ver que no
fim do dia estarás cheio de amigos novos.
Pedro olhou para trás, sorriu,
levantou a mão e dirigiu-se para o portão da escola.
Quando entrou no recinto escolar,
sentiu todos os olhares cravados em si e intimidou-se. Olhavam-no seriamente e
comentavam. Pedro verificou, de relance, que era o único menino branco e
deduziu que os sussurros dos colegas enquanto o olhavam se refeririam ao tom da
sua pele e ao facto de ser imigrante naquele país. De facto, era complicado ter
tez clara num país de intenso e constante sol. A mãe tinha-o besuntado de
protetor solar antes de sair de casa, com medo que apanhasse um escaldão,
durante o recreio. Deu por si a pensar que na natureza tudo é harmonioso e
perfeito. Aí estava a explicação lógica para a cor de pele mais escura dos
africanos.
Ao entrar na sala de aula,
sentou-se sozinho, ao fundo, num lugar disponível. A professora apresentou-se à
turma, mais especificamente, ao Pedro, uma vez que tinha sido professora dos
restantes nos dois anos anteriores. Pedro estava agora no terceiro ano. A
professora explicou-lhe que o seu processo ainda não tinha chegado à escola e
que gostaria que ele próprio se apresentasse aos colegas.
Pedro levantou-se e disse o seu
nome, idade e que tinha vindo de Portugal, porque os pais ficaram sem trabalho
e o único que o seu pai conseguiu arranjar foi aqui em Luanda, através de uma
empresa portuguesa e que, portanto, ficaria cá pelo menos os próximos três
anos. Acrescentou que a sua mãe era também professora, mas de meninos mais
crescidos e que ainda não tinha conseguido nada, mas que esperava poder vir a
dar aulas em Luanda, enquanto por lá permanecessem.
Após esta breve apresentação, a
professora Ana deu as boas-vindas ao Pedro, dizendo que esperava que ele fosse
muito feliz e tivesse muito sucesso na sua nova terra e sugeriu que os outros
alunos fizessem o mesmo, pelo que disseram todos em tom frouxo e pouco
animador: “Bem-vindo, Pedro!”
Durante a aula, a professora
começou por fazer revisões da matéria do ano anterior. Pediu que os meninos
lessem, fez perguntas sobre o texto lido, algumas perguntas de gramática,
trabalharam a matemática, para reverem a tabuada e as contas e também o estudo
do meio. O Pedro, que era bom aluno, estava sempre de dedo levantado, pronto a
responder, o que começou a suscitar algumas reações menos positivas nos novos
colegas.
- Olha só para ele! Tem a mania
que sabe tudo! Devia errar esta. – Diziam alguns, maldosos.
- Só porque é branco e europeu,
acha-se o maior. – Acrescentavam outros.
A hora do recreio chegou e nenhum
dos seus novos colegas se aproximou para brincar com ele. O pai tinha-o
prevenido para essa possibilidade e disse-lhe que se tal acontecesse seria
normal, pois quem chega, deve fazer um esforço por se integrar. Aconselhou-o a
ser ele a tomar a iniciativa de ir falar com os colegas. Pensando nisto, Pedro
abeirou-se de um dos colegas e perguntou-lhe onde morava, pois queria ver se
arranjava companhia para vir a pé para a escola, caso contrário, sozinho, os
seus pais não o deixavam vir, ou então se sabia de algum outro menino que
morasse para os seus lados.
António encarou-o com frieza e
disse-lhe calmamente, para que as suas palavras penetrassem no mais recôndito
canto do seu coração:
- Não falo com colonialistas
emproados e voltou-lhe as costas, afastando-se.
Pedro sentiu o chão abrir-se
debaixo dos seus pés e o seu coração ficou injuriado e a sua alma apertada.
Sentiu-se estrangulado, insignificante e os seus lindos olhos verdes pareciam
um mar, prontos a extravasar e a alagar o que se lhe entrepusesse.
Não vou chorar. Não vou chorar,
pensava para si, enquanto engolia em seco e apertava os olhos para evitar que
uma lágrima mais rebelde caísse.
Refugiou-se a um canto e
permaneceu assim, triste e sozinho, até entrar novamente para a aula.
A professora tinha observado de
longe o que se tinha passado e pensava numa forma de solucionar o problema, mas
por enquanto iria estar atenta e acompanhar o comportamento dos alunos.
Na segunda metade da aula, o Pedro
esteve mais circunspeto, sorumbático e não se mostrou participativo.
- Estou a ver que o puseste no
lugar, António. – Disse o Santiago entre dentes. É assim mesmo. Estes tipos
pensam que vêm para cá mandar em tudo. Esse tempo já lá vai!
Quando a aula terminou, a
professora disse à turma que tinha um trabalho de casa diferente para os
discentes. Chamou o António e o Santiago e disse-lhes:
- Vocês vão anotar, para amanhã,
todas as razões que vos levam a não serem simpáticos com o Pedro. Podem colher
a opinião dos vossos colegas de turma. E tu, Pedro, vais apontar todos os
motivos pelos quais não te deveriam tratar dessa forma. Agora podem sair e bom trabalho.
Quando Pedro saiu da escola,
completamente só, sua mãe já o aguardava. Fariam o trajeto a pé. Assim que o
viu, Luísa percebeu que o dia não lhe tinha corrido bem.
- Então, Pedro? O que se passou
para estares tão triste?
- Estes meninos não gostam de mim.
Detestam-me! Ninguém quer falar comigo. Ninguém se aproximou. E eu tentei… fiz
como o papá me tinha aconselhado e dei o primeiro passo. Antes tivesse ficado
quieto…
-Vá lá, filho, não te apoquentes,
vais ver que daqui a dois ou três dias, mudam de ideias. Vamos comer um gelado,
para ver se te animas um pouco e esqueces agora o sucedido.
Mal chegaram a casa, o Pedro
contactou os avós pela Internet, o seu porto seguro. Queria ouvir a avó, porque
ela sabia sempre como o sossegar.
- Avó?!
- Sim, amor. Diz, gostaste da
escola e dos teus amigos?
- Eles é que não gostaram de mim.
Ninguém me fala e também ninguém quer brincar comigo porque sou branco e
chamaram-me uma coisa que eu nem sei o que significa.
- Ó Pedro, mas não podes desistir.
Lembras-te do Luís, do menino mulatinho que veio para a tua turma o ano
passado? Também vos custou aceitá-lo.
- Mas ó avó, eu fui o primeiro a
falar com ele!
- Pois foste. E depois foram os
outros. Contigo vai acontecer o mesmo. Alguém irá falar contigo e depois desse,
todos os outros meninos também te tratarão bem.
- Pode ser que tenhas razão…
amanhã volto a contar-te como correu. Agora tenho que ir porque a mamã está a
chamar-me para jantar.
- Fica bem, Pedro e vais ver como
tudo se resolve.
Durante o jantar, Pedro pouco
comeu. As contrariedades do dia tiraram-lhe o apetite. Os pais olhavam-no
apreensivos, quando ele cortou o silêncio.
- O que é um colo… colo…
- Colonialista? - Perguntou o pai?
- Sim. Foi o que um menino me
chamou hoje. Disse que não falava com colonialistas… e eu nem sei o que isso é!
O pai explicou-lhe que Angola já
tinha pertencido a Portugal há muitos anos atrás e que, por isso, os angolanos
sabiam falar português. Disse-lhe que o termo era pejorativo e que se refere
àqueles que se apropriam de uma terra que não é sua e a transformam numa
colónia do seu país.
- E nós fizemos isso, pai?! Quis
saber o Pedro.
- Sim, mas há muitos séculos atrás,
no tempo das conquistas e descobertas e até chegamos a traficar o povo negro
como escravos para o Brasil.
- Mas isso é horrível! – Disse o
Pedro espantado.
- Tens razão. Hoje assim é
entendido, mas naquela época não havia consciência dos direitos humanos… havia
até quem achasse que o negro não tinha alma! A situação tornou-se insustentável
mais tarde, séculos depois, aquando da guerra colonial. Quando os angolanos e
outros povos africanos quiseram a independência e o Estado Português não lha
quis dar. Por essa altura, já outros países europeus tinham concedido e
reconhecido a independência das suas ex-colónias. Por fim, estalou a guerra. E
com ela muitos mortos, muitos feridos, desnecessariamente! E o povo, em
Portugal, não tinha a exata noção da mortandade, por causa da ditadura. Não
havia liberdade de imprensa ou de expressão, então, as notícias não chegavam
com exatidão e veracidade.
- Eu acho que eles tinham razão. A
terra era deles. Se eles já cá moravam, deveríamos tê-los respeitado. – Afirmou
a criança.
- Agora percebes a antipatia pelo
português branco, Pedro? – Interrogou o pai.
- Sim, mas desta forma já sei como
responder amanhã, na aula, e contou o trabalho de casa que a professora Ana
tinha sugerido.
Os pais sentiram-se mais
tranquilos, pois perceberam que a professora estava atenta e a tentar
solucionar o problema. Só lhes restava aguardar, confiantes de que tudo
correria bem.
No dia seguinte,
inexplicavelmente, o Pedro estava mais calmo e não se mostrava desagradado por
ter de ir para a escola, até parecia algo ansioso e apressado. Sentes-te
preparado para enfrentar novo desafio, Pedro? – Perguntou o pai.
- Sim. Hoje vai ser mais fácil,
porque não serei surpreendido como ontem e terei a oportunidade para lhes
mostrar que estão a ser injustos comigo.
- Boa, filho. É assim mesmo. – Disse
a mãe. - Prova aos teus colegas que o racismo é um sentimento ilógico,
discricionário e sem sentido. Lembras-te do que aconteceu com aquele menino, o
Luís, da tua turma do ano passado? Os teus colegas perceberam que não estavam a
ser justos ao discriminá-lo só por ser diferente. Aliás, o mundo seria bem
aborrecido se fôssemos todos iguais. O direito à diferença e o respeito por
esta tornam o mundo um lugar mais aprazível e menos monótono. O encontro de
culturas e vivências distintas é positivo. É com esta troca de saberes e
respetiva aprendizagem que o Homem evolui.
- Sim, mamã. Tentarei passar a
mensagem.
Quando entraram na sala de aula, a
professora questionou se tinham feito os trabalhos de casa. Todos disseram que
sim.
A professora sugeriu que o
António, o Santiago e o Pedro viessem para a frente. Sentou o António e o
Santiago juntos, do lado esquerdo e o Pedro do lado direito, para se dar início
ao frente a frente. A professora seria a moderadora.
Meninos, ontem, eu pude constatar
que a turma não recebeu bem o novo aluno. Devem ter as vossas razões, mas acho
que é importante sabermos o que pensam e também aquilo que o Pedro tem para vos
dizer.
António e Santiago, porque
mostraram mais animosidade em relação ao novo aluno e enquanto porta-vozes da
turma, queiram explicar o vosso comportamento. Têm o uso da palavra.
Os amigos entreolharam-se e o
António, o mais expedito, começou a explicação:
- O novo aluno é branco e
português. A professora sabe melhor do que nós do que esse povo foi capaz de
nos fazer ao longo de vários séculos de história. Não podemos aceitar que
regressem a este país e sejam bem recebidos para se apoderarem de tudo
novamente. E ainda por cima têm a mania de que são melhores do que o preto:
mais inteligentes, trabalhadores, poupados, enfim, só qualidades! Agora, só
porque o país deles está em crise, vêm para cá e ainda nos tiram postos de trabalho!
O que tens a dizer sobre isto,
Pedro?
- Eu gostaria de explicar que nem sabia o
significado de colonialista. Tive de perguntar aos meus pais que me contaram o
que aconteceu e o que essa palavra significa. Começo por pedir desculpa em nome
dos portugueses que cometeram essas atrocidades com as quais eu não me
identifico e recrimino. Quero também acrescentar que isso foi já há tanto tempo
que não vejo motivo para me odiarem. Os meus antepassados, talvez, mas eu? Nem
sabia o significado de colonialista! Não fui cúmplice de nada!
Quanto aos postos de trabalho que
possam ser retirados aos angolanos, parece-me uma falsa questão. Primeiro, a
empresa para a qual o meu trabalha é portuguesa e ele espera regressar ao nosso
país assim que o autorizarem e, depois, ele está cá a formar engenheiros
angolanos que possam, mais tarde, dar continuidade ao seu trabalho, já com
experiência suficiente para resolver situações mais complicadas que possam
surgir! Assim sendo, está a formar trabalhadores angolanos e não a roubar-lhes
o emprego!
Para finalizar, gostaria de dizer
que não se deve fazer um juízo de valor sobre alguém só porque se é diferente.
Para isso, é preciso conhecer bem a pessoa, para se poder avaliar o seu
comportamento e atitudes. Eu também preferia estar em Portugal ao pé da minha
família e dos meus amigos, como sempre estive! E os meus pais desejam regressar
assim que seja possível!
- Muito bem, alguém quer
acrescentar alguma coisa? Não? Então, dou o debate por encerrado e vou pedir,
como trabalho de casa, uma reflexão sobre aquilo que ouviram e que deverão
trazer por escrito.
O resto da aula decorreu dentro da
normalidade. Quando chegou a hora do recreio, Pedro afastou-se dos colegas e,
desta vez não tentou qualquer reaproximação, mas foi surpreendido por uma mão
que lhe pousava sobre o ombro. Era o António.
- Desculpa, acho que exagerei,
ontem. Queria dizer-te que moro apenas a alguns quarteirões de ti e se ainda
quiseres a minha companhia para vir para a escola, amanhã, posso passar por tua
casa. Fica-me em caminho.
Boquiaberto, Pedro aceitou a
sugestão, num misto de espanto e incredulidade.
De seguida, António disse-lhe que lhe faltava
um jogador para a equipa dele e que dava jeito um tipo rijo.
- Queres substituir o Serafim que
está a faltar?
- Claro! - Disse o Pedro
satisfeito.
A professora assistia a tudo e
sorria. Compreendia que o seu propósito tinha sido alcançado.
No dia seguinte, de manhã, António
cumpriu a promessa e foi chamar o Pedro a casa. Os pais do menino nem
acreditavam no que estava a acontecer. Felizes, pensaram somente que era mais
um problema resolvido.
A caminho da escola, disse-lhe o
António:
- Sabes, escrevi o texto que a
professora pediu em verso.
- Olha, eu também! E intitulei o
poema de Novo Mundo. – Respondeu o
Pedro.
- Caramba! Que coincidência! O meu
chama-se Homem Novo.
E desataram
ambos a rir.
Chegados à escola, já dentro da
sala, no início da aula, a professora pediu que lessem os trabalhos e voltou a
colocar o António e o Pedro frente a frente.
O António começou:
Homem Novo
Meu colega, companheiro,
Fui injusto sem razão.
Peço-te perdão, ligeiro,
Meu amigo, meu irmão.
O colonialismo acabou.
Sou um livre passarinho!
Se o ódio não terminou,
Sigamos outro caminho!
Esqueçamos nossas diferenças
Somos os dois da mesma raça:
Humana, débil carcaça!
Homens de frágeis crenças,
Vencei a vontade lassa!
Erguei, dos escombros, nova massa!
De seguida, foi a vez do Pedro ler
a sua reflexão.
- Também fiz em verso - disse.
- Vamos todos ouvir, podes
começar. – Sugeriu a professora.
Novo Mundo
Quisera eu um mundo
Que um arco-íris tivesse…
Cheio de cor, bem fecundo,
Onde a felicidade acontece!
Quisera eu um mundo
Pleno de flores diferentes,
De um céu azul profundo,
Sem diferença entre as gentes!
Quisera eu um mundo
Onde o cristão e o pagão
Soltassem um sorriso lá do fundo,
E fraternalmente dessem a mão!
Quisera eu um mundo
Mesclado de cores:
Onde o Branco e o preto, juntos,
Formassem um jardim de flores.
Quisera eu um mundo
Que o racismo desconhecesse.
Perante tal injustiça sucumbo,
De dor imensa estremeço.
E com o meu e o teu querer,
Agreguemos as vontades.
Veremos a irmandade crescer
entre todas as idades.
No fim, a turma aplaudiu ambos de
pé. E este foi o começo de uma bela amizade, daquelas que perduram no tempo e
não se extinguem. Uma amizade que começou com a discordância e a diferença, mas
que foram superadas pelo respeito e pela tolerância. Uma amizade que floresceu,
porque o amor superou o ódio. Uma história para ser contada de geração em
geração, para que todo o Homem entenda que é feito da mesma massa e do mesmo
sentir, independentemente da cor, raça, religião ou cultura. Todo o Homem é
apenas Homem, em tudo igual ao seu semelhante!
Nina M.
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