Sentado na esplanada, fumava um
cigarro atrás do outro, enquanto bebericava as cervejas que iam e vinham
consoante a sede e gula daquele que observava todos os outros do alto de uma
superioridade saloia que fazia sentir, como se de um rei se tratasse perante os
seus súbditos. Estes assim o sentiam e sabiam do seu feitio zombeteiro que lhe
permitia pairar sobre tudo e todos com um ar de aparente indiferença algo
ofensiva. Sentia-se de facto melhor do que os outros, mais experiente, mais
sabido, mais viajado e escutava as conversas com disfarçado desinteresse,
enviando, pontualmente, algumas das suas alfinetadas que despoletavam sorrisos
e gargalhadas, quando o visado não se encontrava na plateia.
Tinha ar de galã de província e
exibia a mesma postura de há trinta ou quarenta anos. De calça clara,
ligeiramente arregaçada, deixava antever a meia branca caída em desuso há
muito, contando, por entre fumaças, mais uma das suas histórias das quais ele
próprio era o protagonista, o herói que soube contornar o que parecia
inevitável. Enfim, era o representante típico do chico-esperto português, o que
usa e abusa do desenrasque, nem que para tal precise de recorrer a métodos
pouco ortodoxos e ilegais. Todos o sabiam e todos o aceitavam com uma bonomia
incompreensível. Talvez a sua aceitação serena, sem quaisquer indícios de
contestação fosse uma sábia maneira de evitar confrontos e conflitos
desnecessários com a vizinhança. Já diz o adágio: Não custa viver; custa saber
viver. E aqueles habitantes sabiam, incontestavelmente, viver. Toleravam-no;
riam-se com ele e também dele, mas sabiam distinguir o trigo do joio e até se
ouvia dizer: “Ele pensa que me engana; mas as manhas daquela raposa velha
conheço eu bem!”; “é mula de estrada…”, acrescentava outro. E assim iam
colecionando as histórias do Parreira, fingindo acreditar que tudo se tinha
passado exatamente assim, numa cobardia generosa, sábia e, sobretudo
apaziguadora.
O Parreira assemelhava-se a um réptil
que rasteja despercebido e ataca sem se esperar. Hibernava também. No inverno, ninguém
o encontrava. Refugiava-se do ar gélido e agreste da serra, na sua toca. Talvez
aproveitasse o tempo para selecionar os ditos que contaria no verão e escolher
as vítimas das suas próximas diatribes. Mas o Parreira fazia falta. Sem ele, o
lugar perdia o pitoresco e a graça e vale mais cair em graça do que em
desgraça. Com as desgraças alheias, o Parreira podia bem, porque como é sabido,
a tragédia torna-se muito próxima da comédia, quando bem aproveitada. Uns
riam-se com o génio inventivo do autor e o sentido de oportunidade, enquanto outros
remoíam o descaramento ousado, guardando na alma o rancor que lhe devotavam.
- O Pires não paga a ninguém – deixou
escapar entredentes o Parreira.
- E como é que sabes disso? –
Interrogou o Coelho, homem avisado e que não gostava que se sujasse o nome de
ninguém sem certezas.
- Ontem, passei lá e um dos
fornecedores, lamentando-se de mais uma viagem que fez em vão, por não
encontrar o Pires, que não queria ter de lhe pagar, levou-lhe a máquina do café
e disse à Alzira, a cozinheira, que só a devolve quando vir o dinheiro que o
patrão lhe deve. Se lá passarem para almoçarem e no fim quiserem um cafezinho
já sabem, não há!...
A gargalhada foi generalizada. Uns
acharam piada à solução encontrada pelo fornecedor, outros por inveja desejavam
que o Pires se desse mal nos negócios e os demais por acharem que a atitude
desonesta de não se pagar o que se deve é merecedora de punição e, como tal,
não só aprovavam o feito do fornecedor, como ainda o louvavam. Na realidade,
uma terra não se reconhece a si própria sem a inveja do vizinho, sem o escárnio
por despeito do habitante que se considera mais merecedor de honras do que o
seu congénere. Esse pecado ou defeito permite que o homem se sinta menos mal
consigo mesmo e aceite melhor os seus fracassos, conseguindo conviver consigo
próprio durante toda a sua vida. O insucesso do vizinho é um bálsamo e um
tónico para a alma do invejoso. Já que ele próprio não consegue ser
bem-sucedido, pelo menos que ninguém que lhe seja próximo o consiga também.
Assim, esconde-se da própria incompetência e inércia e finge-se superior e
melhor do que todos. Se porventura, durante a noite, a almofada lhe segredar a
sua incapacidade, ele tapa os ouvidos para não saber dos murmúrios verdadeiros
trazidos pela noite, antes que alguém mais os possa ouvir também.
O próprio Parreira já tinha aberto e
fechado vários negócios que não correram bem, mas para todos os efeitos fechara
portas, porque já estava cansado, pretendia mudar de ramo, enfim, descansar um
pouco e gozar a vida. Todos sabiam que não era isso, mas ninguém o contrariava.
Todos se interrogavam sobre o seu modo de vida. O que faria? Viveria às custas
da mulher? Teria negociatas ilícitas? Aventavam alguns. No entanto, ninguém o
confrontava abertamente, ninguém o achincalhava como ele acabara de fazer com o
Pires. Por isso mesmo a pacatez reinava no sossego da aldeia. Gabavam-lhe a
esperteza de ter desencantado aquela mulher culta, com um bom emprego e um bom
salário, justificando o feito com a lábia conhecida do Parreira e da falta de
beleza e da timidez exacerbada de sua mulher. Só o Parreira para tal
atrevimento! Casara bem, resmoneavam entre dentes, mas também tem que lhe
aguentar a feiura!
Não se lembrava, o Parreira, de que
não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe e que inusitadamente a vida
gosta de pregar umas partidas. Nunca ninguém percebeu exatamente o que se tinha
passado, mas dizia-se que a doutora se cansou de sustentar o Parreira e as suas
vigarices. Sem aviso prévio, pôs-lhe as malas à porta. Nem os três filhos lhe
valeram!
Acomodava-se agora, como podia, num
barracão de uma das suas terras, mas desengane-se quem pensou que poderia ver o
velho verme derrotado e cabisbaixo. Como era seu costume, entre as bafaradas
gulosas e sôfregas que arrancava ao cigarro, deixava cair com displicência:
- Agora estou na paz do Senhor! Só me
faz falta o meu mais pequenino, a quem sou mais chegado. Sempre que posso vou buscá-lo
para jantarmos os dois. É a despesa que tenho, porque a luz, tiro-a direta do
poste em frente ao barraco e água do furo!...
Continuou impávido, de sorriso nos
lábios, com ar de pensador e de poeta.
Nina M.
Sem comentários:
Enviar um comentário