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sábado, 30 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 367

 

Viajar de autocarro

            Amanhã, repetirei a insanidade que cometi em 2009 com um grupo de amigas, noutra escola: ir a Paris de autocarro com muitos alunos a reboque.

            Nessa altura, apenas existia o Rodrigo. Era um bebé de vinte meses e eu era mãe de primeira viagem, que o deixava pela primeira vez, durante uma semana, e de coração contrito. Ele sempre teve o seu génio e teimosia, mesmo pequenino. Aos vinte meses, o Rodrigo já falava bem, mas os cinco dias que por lá andei, ele recusou-se a falar comigo por telefone. Tinha um bebé de vinte meses, que dia após dia, zangado com a mãe ausente, recusava falar-lhe! Eu dizia incrédula às colegas: “o meu filho não me quer falar”! Felizmente, numa atividade destas a ocupação é sempre muita, mas a cada anoitecer interrogava-me se ele falaria comigo, nesse dia… Eu… Mortinha de saudades… Nada. Zero. Irredutível.

Quando cheguei, só queria pegar nele ao colo, encostá-lo a mim e enchê-lo de beijos. Fi-lo com dificuldade… Não me queria! O meu filho castigava-me pela minha ausência! Pacientemente, tive de comprá-lo com o carro de bombeiros que lhe tinha trazido de uma loja da Disney, depois de muito o namorar…

Desta vez, o castigo não se repetirá. Já são dois filhos e ambos mais crescidinhos e, como tal, já não se apoquentam tanto com as ausências maternas. Também não vai uma Lurdes Martins, a mulher que dorme “super bem” (palavras suas) em autocarros e que levou panados para uma semana inteira, pelo que insistia em oferecê-los a cada refeição, para ver se os arrumava de uma vez, mas já ninguém os podia ver à frente!... Como vês, Lurdes, a viagem ainda nem começou e já me lembro de ti… Desgraçadamente, apesar da idade, ainda não aprendi a dormir bem em bancos de transportes coletivos pouco ou nada reclináveis… Se pensar muito nisso, fico a achar que sou pouco ajuizada…

Porém, Paris é sempre Paris! A cada regresso é um maravilhamento! Uma cidade que nos deixa arrebatados pela sua beleza, pela sua sumptuosidade, pela sua cultura. A cidade para onde rumavam os intelectuais do princípios e meados do século XX. Não havia quem não passasse por Paris! Nem tudo era fácil, no entanto. Muitos deles viviam numa certa indigência, passavam fome, vivam em pequenos quartos, em bairros miseráveis e levavam uma vida boémia e bastante promíscua. Oscar Wilde, Gertrude Stein, Ernest Hemingway, Guilherme S. Burroughs, Henry Miller, Anaïs Nin, James Joyce, Samuel Beckett, Julio Cortázar, Vladimir Nabokov, Edith Wharton e Eugène Ionesco, Picasso, Ducham, Klein, Chagall, Modigliani, são alguns dos grandes que por lá passaram. Referir também o nosso Eça de Queirós, que lá morou, enquanto cônsul português.

Voltar à bela Paris é ficar imbuído deste espírito, desta efervescência e deste pasmo, ainda que um pouco tomada pelos vendedores ambulantes (o preço da modernidade) não desiludirá, certamente. Diz-se que não há duas sem três, cá vai a minha terceira vez, mas Paris é sempre lugar onde se deseja voltar.

 

Nina M.

 

quarta-feira, 27 de março de 2024

São tão difíceis as despedidas

São tão difíceis as despedidas
Algumas tão indesejadas
Que por pequenas que pareçam
São pequenas mortes anunciadas

Será então necessário
Acreditar na ressurreição
É somente pela vida
Que se dá na alma a redenção

Nunca tanto é necessária
A fé num bem maior
Acreditar que voltar à vida
É possível com amor

segunda-feira, 25 de março de 2024

Não se é o que se pensa

Não se é o que se pensa
Sempre aquém, nunca além
Quem pensa nem tudo vive
Quem pensa nem tudo tem

Se por pensar matar
Não faz o matador
Sentir só o que se sente
É saber-se um ator

Sente no palco da vida
Sujeito às humanas sensações
Se a condição da alma é ser volátil
Passeia-se nas emoções

Há de haver contudo
Algo que seja a raiz
Algo imutável se sente
O ser não o contradiz

Assim se fixa a essência
Na alma em busca de si 

sábado, 23 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 366

O populismo da nova direita radical

               Deparei-me, hoje, com um artigo jornalístico sobre o CHEGA e os deputados que elegeu. O partido é considerado um partido populista da nova direita radical, à luz do que se vai vendo por essa europa fora, desde logo a começar pelo VOX, da vizinha Espanha.

            Afirma-se como um partido liberal-conservador, ainda que os termos nos pareçam antitéticos. É um partido liberal no que à economia diz respeito, o que significa que pretende um Estado mínimo, na sociedade portuguesa. Para estas eleições, o partido deixou cair o aniquilamento da Escola Pública e a extinção do Ministério da Educação, assim como do SNS, no entanto, entre os seus deputados e apoiantes há quem continue a defender estas bandeiras. Questiono-me se quem votou neste partido tem esta consciência, se sabe que um dos objetivos passa por acabar com a educação gratuita e pública. Quem quiser que os filhos aprendam, pois que pague pelo serviço e se não o puder fazer, paciência, voltar às taxas imensas de analfabetismo deve ser algo positivo, na perspetiva destes senhores. Isto e ter de pagar por todo e qualquer serviço médico. Para ele são funções soberanas do estado, apenas isto: “defesa, segurança, justiça, finanças públicas, política externa e arbitragem/regulação”. O CHEGA implantou-se através da retórica do seu líder e da flexibilidade ideológica do mesmo. Quem esteve atento aos debates das últimas eleições, viu um Ventura bem mais comedido nas suas posições. Quando lhe interessa capitalizar votos junto dos abstencionistas, dos ressabiados com a democracia e dos salazaristas rançosos que ainda existem, radicaliza o seu discurso, enquanto continua a hastear a bandeira do combate à corrupção, através de um discurso disruptivo e segregador entre um povo moralista e virtuoso e uma elite corrupta e vergonhosa. Obviamente, todos os casos políticos mais escusos que vão surgindo, o partido tenta capitalizar e aumentar a desconfiança do cidadão comum nas instituições democráticas.

Para além desta bandeira, o partido hasteia outras: pode ler-se no seu programa o “primado da moral”. A expressão causa-me arrepios, porque me lembra de imediato a polícia da moral e dos bons costumes. Dentro deste ponto, surge a criminalização do aborto e da eutanásia, que não aparece assim escrito no programa, mas é claro como a água, quando se lê que defende “a inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases e dimensões, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes”. Só por aqui se sente o cheiro a ranço e à hipocrisia de que acusa os outros. O aborto sempre existiu e a sua proibição e criminalização não os impediu. Só o faz quem quer, sendo também dada aos médicos a possibilidade de serem objetores de consciência, mediante o posicionamento filosófico que tenham sobre a questão, que vai para além da consideração de haver vida, mas antes se há pessoa e só existe pessoa havendo consciência de si, o que é impossível existir até à data-limite estipulada para poder interromper voluntariamente a gravidez. Peter Singer explica-o melhor do que eu. Pessoalmente, julgo que seria incapaz dessa decisão, mas o facto de pensar assim, apenas me vincula a mim e não tenho o direito de impor a minha visão aos outros. Diz-se também defensor da família tradicional portuguesa. Ora, não sei se as pessoas estão lembradas do que isso significa exatamente. Implica que apenas sejam reconhecidas famílias tradicionais aquelas em que há um casamento religioso, filhos, um chefe de família que garante o provimento do lar e uma mãe doméstica e esposa que se anula, porque o máximo da realização pessoal a que pode aspirar é o cumprimento desses três papéis. Entretanto, se a mulher quer ser dona de si, ter a sua profissão e até poder nem ser mãe ou nem se casar, não interessa para nada. Deve ter sido para isso que a mulher nasceu. Resta esperar que não seja contemplada com uma madre seca, porque isso seria, em última análise, a anulação de toda a sua feminilidade, porque se não pode procriar, não serve para o mundo, quando muito servirá de objeto sexual para a satisfação do homem. Também não tenho nada contra a mulher que escolhe por gosto esta forma de vida, caso sinta esse apelo. Somente a ela diz respeito, dentro da sua liberdade individual. Só não quero que me imponham nem a mim nem às mulheres futuras uma vida que não desejam.

            Depois, evidentemente, vem a oposição ao que designam de “marxismo cultural”, vulgo cultura “woke”, que incorre, devo dizer, em muito excesso e parvoíce também, quando tentam impor a sua visão de mundo a uma maioria. O que é para uns é para outros. Se querem sentir-se cães, gatos, periquitos, não binários ou o diabo é lá com eles, mas não me queiram obrigar a olhar para uma pessoa e concordar que é um cão nem usar a parvoíce da linguagem inclusiva que é só a destruição do nosso maior património cultural: a nossa língua! Nem o “senhoras e senhores” (que não passa de uma redundância estúpida, sem qualquer fim literário) me apanham quanto mais o “todes”, “amigues” e outras sandices! No entanto, não haverá questões de maior relevo a serem tratadas?! Tanta polémica com as casas de banho e balneários… Não se arranjam simplesmente umas casas de banho e balneários só para essas pessoas, mantendo-se as masculinas e femininas? Pronto. Caso resolvido. A verdade é que prefiro também uma casa de banho só para mulheres, mas não me oponho a que haja uma casa de banho específica para quem se sente diferente. E sim, já estive em países em que são mistas.

Quanto à imigração… Pois bem, precisamos de gente nova, porque somos, juntamente com a Itália, o país mais envelhecido da Europa, para além de que somos nós mesmos um país de emigrantes. Há uma espécie de obrigação moral para com o acolhimento de outros. Concordo que deve haver uma maior regulação e acompanhamento, até para evitar as máfias que se criam e a escravização de pessoas em torno da imigração ilegal. Defender isto não é o mesmo que fazer dos imigrantes o inimigo ou o alvo a abater.

Estas são as bandeiras defendidas pelo partido que elegeu cinquenta deputados, cinquenta anos depois de abril. Nos seus quadros, tem inúmeros dissidentes do PSD, gente de uma ala mais liberal, no que à economia diz respeito, mas preferir o Ventura à Iniciativa Liberal é o que não consigo entender, em gente que é oriunda de um partido que, na sua génese, tal como está escrito defende “o direito à diferença” e que é “estruturalmente avesso a qualquer tipo de xenofobia”. Também há dissidentes socialistas e democratas-cristãos. Para mim, é um fenómeno incompreensível. Não se pense que os acólitos do Ventura são gente sem formação. Encontram-se jornalistas, advogados, professores… Mais incompreensível se torna aos meus olhos. Fico fulminada ao ver tantas mulheres dentro deste partido estruturalmente patriarcal e machista! Aliás, nem sei o que lá andam a fazer! De acordo com o modelo da família tradicional, deveriam estar em casa a cerzir meias ou a tricotar… É uma pena que não leiam programas eleitorais ou que não os saibam interpretar. Em alternativa, será estupidez natural incorrigível. O pior é que terá vindo para ficar, basta olhar para o panorama europeu. Esperemos que não cresça e que alguns dos seus votantes ganhem juízo.

Nina M.

 

 

segunda-feira, 18 de março de 2024

E se no vazio da noite escura e eterna

E Se no vazio da noite escura e eterna
Não me lembrar mais dos rostos
Da minha vida
Nem das encruzilhadas dos caminhos e
De todas as interseções
Que me fizeram a vida
Que me fez mais do que eu quis
E depois de vivida e percorrida
Tendo-a como minha
Sentir que a perdi...
Se esse escuro de noite
Sem estrelas nem luar
Apagar a memória dos passos
Dos gestos do modo de andar
Às vezes de coxear na vida
Roubar-me de mim e dos outros
Há outros que importam
Outros significativos e outros essenciais
Assim, sem permissão
Num apagão vil
Num aviltamento de alma
Se no vazio da noite escura e eterna
Já não souber de mim e a angústia
Ocupar o espaço imenso do ser
Sem saber sequer que é angústia
Ou outra coisa qualquer
O fim

domingo, 17 de março de 2024

Desconhecimento

Quem seria
Sem o olhar doce
A cobrir-me a face
De ternuras?

Sem os olhos rasos
D'água
Se me falas de amor
E das suas amarguras?

O toque de desejo
Num abraço apertado
Um anseio uma urgência
Que se afaga com um beijo

Quem seria na ausência
No vazio e no escuro
A viver na emergência
De um sonho sem futuro

Não sei de que matéria
Se fazem as sensações
Talvez poeiras cósmicas
As que invadem corações

sábado, 16 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 365

 

Panorama nacional
No rescaldo das eleições, o país preocupou-se e o comentário político diário não ajuda a serenar os ânimos. De certa forma, estranho o espanto. A votação espartilhada já era esperada. Não previa que o CHEGA alcançasse os 19,4 de votação, mas conseguiu-os, talvez junto dos ressentidos e de uma parte da anterior abstenção. Representam cerca de um milhão de eleitores e estes não serão todos, com certeza, racistas, xenófobos e fascistas.
Certo é que eles têm cerca de cinquenta deputados no hemiciclo e é certo também que que Luís Montenegro terá de dialogar e negociar com Ventura, medida a medida. O acordo parlamentar está fora de questão: Não é não. Esta situação que parece de quase ingovernabilidade, na realidade, se fosse num país de democracia verdadeiramente solidificada, que olha mais ao bem comum do que à partidarite crónica e aguda, seria resolvida com boa vontade. A AD e o PS juntos apresentam 63,81% dos votos. Para mim, a mensagem passa cristalina: os portugueses querem partidos e gente moderada à frente do destino do país (o que me deixa satisfeita). Significa que os cidadãos eleitores estão a dizer a ambos que deveriam deixar as partidarites e olhar aos reais interesses do país. Para isso, o novo governo e o maior partido da oposição deveriam conseguir entender-se e chegar a um pacto de regime relativamente a três áreas fundamentais: saúde, educação e justiça, para ver se não andamos constantemente em experiências que não chegam a ser avaliadas. Se os partidos não conseguirem dialogar e chegar a consensos, isso dirá muito sobre a faceta democrata e a (ir)responsabilidade de cada um. Este cenário é comum na Europa. Por exemplo, o sistema eleitoral alemão faz com que seja difícil que um só partido forme governo. Têm de, obrigatoriamente, formar coligações. Para que a composição de maiorias não seja comprometida pela presença de partidos pequenos e até minúsculos, existe a cláusula de exclusão, a barreira de 5%. Neste momento, o governo alemão é formado por três partidos: os partidos Social-Democrata (SPD), Os Verdes e Liberal Democrático (FDP). Atualmente, o governo do Luxemburgo é uma coligação do Partido Socialista dos Trabalhadores de Luxemburgo (LSAP), Partido Democrata (DP) e o Partido Verde. A Bélgica é governada por uma coligação de sete partidos, de várias orientações, incluindo liberais, socialistas, verdes e democratas-cristãos, dirigida por De Croo, que pertence ao partido liberal-democrata flamengo. A Dinamarca é governada pelos sociais-democratas, pelos liberais e (o partido centrista) Os Moderados, numa coligação dirigida pela social-democrata Mette Frederiksen. Poderia continuar com os exemplos. Uma pesquisa rápida mostra-nos que a Bulgária, a Chéquia, a Estónia, a Irlanda, a croácia, a Grécia, entre outros, são também governos de coligação. Se os partidos rivais de outros países conseguem pôr-se de acordo, por que razão Portugal não há de fazer o mesmo? A pluralidade é o melhor para um estado democrático saudável, desde que se tenha o verdadeiro sentido da política: o serviço público em prol do bem comum e isso implica deixar de lado egos partidários que não cabem mais num parlamento que se quer desempoeirado e moderno. Ficou claro que grande parte dos portugueses quer uma viragem e quer responsabilidade no hemiciclo. O partido que deixa o Governo tinha uma maioria e foram os seus desmandos que atirou o país para a crise política e a necessidade de eleições. Creio que é preciso que os partidos se mentalizem para a nova realidade: os portugueses, finalmente, perceberam que as maiorias são prejudiciais. Criam vícios e governos surdos, demasiadamente afastados do país real. É preciso que os parlamentares saiam das suas bolhas e vejam com olhos de ver o país em que vivem. Quando os ouço falar das opções políticas tomadas e da situação do país, parece-me que vivem num lugar que eu desconheço e que não é a mesma nação que a minha!
As eleições não foram inventadas para satisfazer partidos, mas para que o povo soberano expresse a sua vontade. O dever do hemiciclo é cumpri-la. Assim se vive em democracia e os partidos serão julgados, futuramente, pelo seu comportamento. Parece-me ainda que se o Partido Socialista quiser realmente evitar uma ação preponderante e decisiva do CHEGA nas decisões para o país, só pode tomar um caminho e esse será o do entendimento, caso contrário, poderá ser responsabilizado por ter contribuído e fomentado a instabilidade governativa, por um lado e, por outro, promover um papel de relevo do partido que tanto criticam, para que as medidas preconizadas por quem agora chegou possam ser implementadas.
Acompanharemos os desenvolvimentos.
Resta-me deixar uma palavra de apreço aos jornalistas que fizeram greve, algo que não é usual na classe. Vivem tempos complicados e um país precisa de bom jornalismo de investigação, que contribua para o bom funcionamento das instituições democráticas. Seria uma perda irreparável o desaparecimento de certos órgãos de comunicação social. O ideal seria encontrar uma solução que não implicasse a injeção de dinheiros públicos, pois, por um lado, ficaria sempre a pairar a nuvem negra da tentativa do controlo dos meios de comunicação e, por outro, a injeção de capital público em empresas privadas tem a sua bizarria. No entanto, a existência de uma imprensa capaz e livre é absolutamente indispensável. Não sei o que a sociedade poderá fazer como coletivo, mas sei que tem o dever de agradecer aos que, mesmo sem salários, têm continuado a trabalhar com o profissionalismo de sempre. Bem-haja!
Nina M.

sábado, 9 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 364

 

Ser Mulher

Quem me conhece sabe que não atribuo grande importância a certas datas convencionadas para se celebrar certas efemérides. O Dia dos Namorados, por exemplo, não passa de um artifício comercial. Mesmo as datas de significado profundo e simbólico da cultura ocidental começam a ser banalizadas e transformadas em mera oportunidade de negócio.

É o que fazem com o Natal. Se para os crentes se celebra a data de nascimento de Jesus (ainda que ninguém saiba, na verdade, o dia certo em que Ele terá nascido, mas como já se celebrava, de forma pagã, o solstício, a Igreja acabaria por adotar esta data para fixar o nascimento do Deus-Menino), para os não crentes deveria ser, no mínimo, a festa da família. O Natal é a festividade mais bonita do ano, desde logo, porque se celebra o nascimento e este é sempre símbolo de esperança e de renovação. Ver esta simbologia adulterada por gastos exagerados e supérfluos, numa avidez de consumo inexplicável, mata o espírito natalício. Natal é família, reunião, amor e paz. Tudo o resto se dispensa.

Acontece o mesmo com o Dia da Mulher. Não preciso que me felicitem nesse dia por ser mulher, porque não tive qualquer responsabilidade no assunto, pelo que não tenho o hábito de sair para comemorar a data. No entanto, o Dia da Mulher tem um significado importante. Lembra as vítimas de incêndio, na sua maioria mulheres, que lutavam por melhores condições laborais, numa fábrica. O Dia da Mulher serve para lembrar que continua a ser necessário combater as desigualdades vigentes numa sociedade, desde sempre, patriarcal. Todos reconhecem a importância fundamental do papel da mulher. A maioria das famílias, talvez, assente num matriarcado forte e esforçado. Eu sou oriunda de uma família de mulheres assinaláveis, mas que a sociedade sempre remeteu para o anonimato. A minha tia Lavínia e a minha tia Luzia (bela como uma atriz de cinema, na sua juventude) foram criadas de servir, no Porto, para criar os filhos que lhes fizeram, tendo sido, depois abandonadas. Ser mãe solteira era um sacrilégio e a sociedade, em vez de responsabilizar o macho que abandonava a prole, culpava e abandonava a mulher que não soube ser firme no propósito com que nasceu: manter a virgindade até ao dia do casamento. Uma canalhice! Um reconhecimento do direito à sexualidade masculina e a proibição de uma vivência plena da sexualidade feminina. Um abuso de poder para mero controlo da mulher. Bem dizia Torga que, na sua viagem pela europa, quando conheceu uma belga, esta lhe dizia que a mulher portuguesa guardava a honra num sítio muito estranho! E tantas outras que mesmo casadas eram abandonadas e maltratadas. Outras, escravas de trabalho, varonis, feitas da dureza vinda das agruras da vida. Não havia tempo para fragilidades. Perdiam-se filhos como se tem uma constipação e o papel da mulher, apesar de muitas vezes ser ela a manter uma casa em pé, não era reconhecido. Ser doméstica e trabalhar na lavoura ou ser criada de servir era o destino mais certo das pobres e eram analfabetas ou quase, porque a escola não era necessária. A minha tia enviuvou cedo, aos quarenta anos, e criou os quatro filhos sozinha. A minha avó Matilde, tecedeira, serviço que acumulava com a casa e o cultivo do quintal, era também a parteira (não remunerada, entenda-se) da freguesia. Mulher de poucos sorrisos como convém ou, então, seriam as dificuldades da vida que não permitiam sorrir mais. Não me lembro de qualquer ralhete que a minha avó me tivesse dado… Coitada, ela e o avô António, comigo pela mão e a candeia na outra, pelo caminho afora, em direção à casa de ambos, para que deixasse os pais dormir. Certamente, depois, tornou-se hábito, porque tenho memória de mim, a acordar na cama deles, sozinha, chamar e ninguém responder e eu a achar que tinha sido esquecida. Levantei-me e vesti-me, mas a saia, nesse dia, apertava atrás e as mãozitas de cinco anos não atinavam com os colchetes. Meti-me ao caminho, a segurar a saia atrás com uma mão… Valeram-me as primas, já moçoilas. Não sei se foi a Nelita se a Rosa (que partiu cedo, de ataque cardíaco) que me viram na triste figura e sozinha e me perguntaram “ó Sónita! O que estás a fazer aqui sozinha?” Lá lhes expliquei a história… A avó e o avô não responderam, já deviam ter ido para a casa da minha mãe… E uma delas foi avisar a avó (que também era delas) para que ela não entrasse em cuidados com o meu desaparecimento. Apertaram-me a saia, pois claro! Maldita saia! Nunca gostei dela… Acastanhada de rosas miudinhas…

A minha mãe foi a única dos irmãos a estudar. Era a mais nova e contou com a ajuda da família dos Ferreira Gomes (sim, da família do bispo exilado por se opor ao Salazar), o Dr.  Alberto, senhorio da minha avó, que na altura fazia uma quinta em Bustelo, Penafiel. Mais tarde, com um dos irmãos dele, o Dr. Joaquim, que era da Polícia Judiciária e que a alojou no Porto para ir de comboio para Aveiro, onde fez o Magistério Primário.  A minha mãe foi a primeira a quebrar o grilhão da ignorância a que as mulheres eram votadas, com muito sacrifício dos pais que eram pobres, dos irmãos mais velhos que apoiavam e da família Ferreira Gomes que também o tornou possível. Queria ser professora. A minha madrinha, filha da minha tia, que é (era) só tia, terá sido a segunda. Formou-se, já a trabalhar, em educação de infância. De seguida, nas gerações seguintes, já os filhos que quiseram estudar,  puderam-no fazer sem grandes dificuldades.

Olhar para o passado de Portugal e para a minha história familiar é avaliar o quanto se mudou e o quanto se evoluiu. Porém, saber que há ainda muito por cumprir. Lembro-me de o meu médico me dizer, quando soube que ia frequentar um curso via ensino, já em 1993, que era uma boa profissão para as mulheres. Não precisaria de fazer noites como as enfermeiras ou até mesmo médicas, porque depois com filhos era uma chatice… Nunca mais esqueci isto. Não porque estivesse de acordo. O curso surgiu porque era o que me permitia a ligação à Literatura. Ainda nesse tempo se achava que havia cursos mais ou menos apropriados às mulheres… Convinha que não a impedisse de estar em casa, à mercê dos filhos e do marido.

Assinale-se o Dia da Mulher, mas que a simpatia não se quede por aí. Reconheça-se o valor das mulheres que o têm, deem-lhes as mesmas condições que são oferecidas aos homens, não as penalizem por serem mães nem as diminuam porque são mulheres. Tratem-nas como seres iguais em direitos e deveres. Quanto a elas, que nada as diminua nem ofenda a sua dignidade, independentemente do trajeto que escolherem, desde que para elas faça sentido.

 

Nina M.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Sou mulher

Sou mulher
Por acaso ou talvez não

Uso salto, bota alta ou sapatilha
Saia curta ou comedida
Raramente comprida
Consoante a disposição

Uso decote com decoro
Não porque se impõe
Antes por exigência estética

Gosto de calças justas ou largas
Batom pouco pronunciado
Gosto do lápis verde sobre os olhos
A iluminar-lhes a cor
Gosto da máscara de pestanas

Sou de elegância simples
(A elegância é sempre simples)
Pauto pelo comedimento

Gosto de me sentir bonita
Com discrição
Sou mulher, assim,
Porque assim sou

Mãe quando quis
Por tanto querer
Mãe que cuida, mas não se anula
Mãe doméstica e mãe profissional

Mãe que gosta de escrever
Sem jeito e paciência
Para bordados nem costura
Mãe que gosta de ler

Mulher de poucas lamúrias
De olhar doce ou endurecido
Indiferente ou divertido
Dependendo  da ocasião

Mulher pouco sujeita à opinião
Mesquinha e ao juízo fácil
Mulher de alma funda
E de seus mistérios

Inquieta e falha
Humana









sábado, 2 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 363

 

Caminhar e aprender

A semana foi imensamente corrida. Desde quarta-feira acompanho alunos em visita de estudo. Primeiro, ao teatro; depois, nos dois dias seguintes, a Lisboa. Gosto de proporcionar estas experiências aos miúdos, se entendo que eles são merecedores e, talvez, para alguns, fique a experiência de uma vida.

Para muitos, foi a primeira vez que foram a Mafra e a Lisboa e puderam ver ao vivo e a cores alguns dos monumentos mais emblemáticos do país. Visitaram o Convento de Mafra, a começar na basílica e a terminar no palácio, puderam percorrer os corredores com séculos de História, os mesmos que foram percorridos por alguns reis e rainhas do país e apreciar a sua grandeza.

Gosto particularmente das saídas que aliam a descontração à aprendizagem e percorrer a cidade de Lisboa em busca dos locais já referenciados no século XIX, n’Os Maias, pisar o mesmo chão que Fernando Pessoa, ver alguns dos seus objetos pessoais e manuscritos é um privilégio. Talvez eu aprecie mais a atividade do que os próprios alunos, mas seja como for, tenta-se que aprendam de forma mais lúdica. Viram representada a peça Memorial do Convento e que lhes fornece um bom resumo do que é a obra. Os momentos representados em palco são os mais importantes e também objeto de análise na sala de aula. Já vi três obras-primas de Saramago em palco e é importante observar como os caminhos da arte se cruzam. A literatura a originar a representação, mas poderia ser canto ou bailado ou uma amálgama de tudo isso. Nos passeios literários pela capital, os miúdos relembraram a grande obra de Eça, já estudada no ano anterior, até porque o guia foi muito preciso e competente. Talvez até tenha pecado um pouco por excesso, dado o cansaço que os alunos revelavam. Seja como for, foram dois dias de aprendizagem e de consolidação de conteúdos, de forma mais descontraída e atrativa.

Na Casa Fernando Pessoa, o guia mostrava-se algo espantado com o facto de os alunos fazerem tantos quilómetros para usufruírem destas experiências, sobretudo quando ficou a saber que a visita era paga pelos próprios. Esclareci que para alguns encarregados de educação, a visita constituía um esforço financeiro. Parecia incrédulo e felicitou-nos pela iniciativa. Respondi que tentávamos que eles aprendessem de maneira diferente, que tentávamos proporcionar-lhes atividades culturais às quais, de outra forma, não teriam acesso, enfim, tentávamos dar-lhes um pouco de mundo, porque a escola também serve para dar mundo. Olhou-me sério, nos olhos, sorriu e respondeu: “sem dúvida”.

A primeira vez que fui a Lisboa também foi numa visita de estudo, na disciplina de História, e nunca mais esqueci. Estive nos Jerónimos, na Torre de Belém e na Assembleia da República. Faltou palmilhar pela baixa lisboeta, mas a experiência foi marcante, tal como será para muitos alunos que agora levei. Quem sabe não ficam contagiados pelo bichinho e passam a valorizar o turismo cultural.

Depois, o Agrupamento de Escolas Dr. Mário Fonseca tem alunos que sabem estar à altura de cada vez que saem. No Museu Soares dos Reis, os responsáveis pelas salas sorriam ao verificar o interesse dos garotos bem como a sua postura. Quando assim é, tudo é mais fácil e aprazível. Pelo meio, ainda se vivem algumas aventuras. Creio que jamais esquecerão que tiveram de agarrar num carro a pulso para o estacionar devidamente e, assim, o autocarro conseguir passar. Lembrarão também a pousada com vista sobre o tejo, a maluqueira do professor que os desafiou a irem ver o nascer do sol, junto ao Cristo-Rei, de Almada. Nascer do sol pouco viram e ao Cristo não puderam subir… Não esquecerão os quilómetros que fizeram a caminhar, nem o autocarro que quase arrancou um sinal, e levou uma esplanada, rebentando o para-choques! Eu e a minha colega Cidália devemos ter qualquer sexto sentido com os motoristas, quando organizamos as visitas. Este senhor conhecia minimamente os trajetos e era desenrascado, mas consegue ser mil vezes pior do que eu a gerir o tempo e quase nos fazia perder a peça de teatro. Só não deu para chegar à meta e no regresso, os últimos cem metros tiveram de ser feitos a pé, porque mais um minuto de caminho poderiam representar seiscentos euros de multa. Há que retirar malas e terminar o trajeto em fila indiana, até chegarmos à escola.

Aprendizagem com situações inusitadas à mistura, mas como diz o ditado: tudo fica bem quando termina bem e, como disse aos meus alunos de décimo segundo, esta terá sido a última visita que lhes organizei.

Aos colegas que nos acompanharam, um enorme bem-haja pela excelente companhia!

 

Nina M.