Uma mão cheia de tudo e outra
cheia de nada
Nunca o Homem ocidental viveu tão bem.
Efetivamente, apesar da pobreza que ainda há, vive-se na era do conforto, da
tecnologia e da abundância. Uma opulência ambiciosa que não se satisfaz
facilmente e coage o ser humano a ser estupidamente escravo em prol de uma vida
burguesa tão farta quanto desnecessária.
A receita é antiga, mas continua na ordem do dia,
num mundo onde o capitalismo selvagem vigora e onde se cria a falsa ilusão de
necessitarmos do que, na verdade, não precisamos. Nunca foi tão fácil a
comunicação e, no entanto, nunca interagimos pessoalmente tão pouco! Quase
parece cinismo existir um vírus que impeça os abraços, as conversas e a atenção
que, na verdade, já pouco existiam e que, subitamente, as pessoas valorizam.
Talvez aconteça que alguns dos velhos atirados para o hospital, reféns da
COVID, sem as visitas que os familiares reclamam sejam os mesmos que seriam lá
deixados para a família poder ir de férias descansada… Demasiado desacreditada
na humanidade e abalada pelo cinismo, porém, como acreditar na bonomia da
sociedade se o simples exercício de usar uma máscara e evitar multidões parece
inexequível para alguns, que não podem perder uns passeios em prol do bem comum
e em prol dos seus?
Zygmunt Bauman tem razão. Tempo de uma modernidade
líquida que me desgosta, em que tudo é efémero e passageiro como o telemóvel
que se troca a cada surgir de modelo novo ou como o carro que se deve trocar ao
fim de uns anos para ostentar uma saúde financeira e uma vaidade provinciana.
Devo estar a ficar velha, já noto a pele sem a elasticidade dos vinte anos, mas
também ainda não tenho o sorriso metido dentro de parênteses, para usar a
metáfora fabulosa do Lobo Antunes e, no entanto, dou comigo a ter saudades do
meu corsa comercial velhinho de início de carreira, que sempre subiu o Marão
sem avarias ou reclamações. E continuo ligada a ele, que já não existe há
dezasseis anos, pelas memórias e pelos sorrisos que me arranca. Era um pouco
doida à época e a carripana conhecia as curvas de Vila Real a Vilarandelo e
depois a Chaves de cor… E esta tendência exacerbada para me ligar às memórias
passadas que me lembram de quem fui e me fazem ver o diferente que sou, ainda
que muito permaneça idêntico, fazem-me gostar das coisas e desejar
perpetuá-las. Gosto das coisas pelo seu valor e não pelo preço. Na verdade, não
é exatamente das coisas, mas da afetividade delas. Sempre fui assim. Desfiz-me
do corsa com o mesmo custo que me desfiz dos muitos papéis que tive colados nas
paredes do quarto no tempo da faculdade com mensagens dos amigos, a família de
quem está deslocado por terras alheias. Guardei por anos e religiosamente um
envelope cheio de papéis com missivas engraçadas, outras lamechas, assinaturas
e cartas (ainda recebi algumas cartas e sinto agora o cheiro a tinta velha…) e
sabia que tinha de o fazer, de reciclar, porque não se pode acumular a tralha
toda, sabendo também que um dia ao lembrar-me disso haveria de o lastimar. E
lastimo… Depois, há outros registos mais recentes, porém, não tão recentes
assim, dos quais ainda não me desfiz por falta de coragem. De maneira que
sempre fui velha na alma, talvez, e a velhice já não me traga grande novidade…
E ao pensar nisto, lembro-me da mensagem do cardeal
José Tolentino Mendonça e sei que não quero nem passo pelas coisas sem as
habitar ou tão pouco falo com os outros sem os ouvir, não quero juntar
informação sem a aprofundar (ainda que tenha uma mente dispersa e que gosta de
voar por vários temas, para evitar o enfado… Talvez precise de envelhecer um
pouco mais para corrigir esse prejuízo…). E não suporto a ideia de tudo
“transitar num galope ruidoso, veemente e efémero”… Eu que coleciono almas e
conversas e me esforço por guardar as que me merecem a memória, ainda que falhe
tão mais do que gostaria… A memória não é má, mas não é infalível e é muito
seletiva. Eu que gostaria de poder congelar momentos, carregar essa intensidade
pela vida fora e fazer dela duração como no poema de Peter Handke (caramba! Que
belo poema!). Não quero viver na velocidade, que na verdade nos impede de
viver. Quero poder treinar a memória para guardar os poemas de tantos outros: o
Neruda que escreveu os melhores poemas de amor, talvez sem saber o amor… E o
verso de Safo que não sei de cor ou de Torga e da sua dureza e de Sophia e da
sua melodia…
Este tempo em que tudo é tecnologia só nos rouba
sem compaixão o parco tempo que nos sobra. Se não estivermos atentos, entra-nos
casa dentro e vai-nos matando lentamente, porque a cada falha, a cada recusa de
verso em troca de um teclado é uma centelha de alma que se perde e se corre o
risco de não recuperar. Sinto-me velha, porque vejo pessoas distantes e continuo
a vê-las novas e sei que já são tão velhas quanto eu… Sinto-me velha, porque
pelo caminho já deixei muita gente e sei que a perda maior ainda está por vir
(felizmente) … Sinto-me velha, por ausência de capacidade ou sequer desejo de
ir a uma discoteca até às seis da manhã, como tantas vezes! Sinto-me velha,
porque o ruído é-me cada vez mais insuportável e o sossego do sofá com uma
manta sobre os joelhos e um livro, uma tentação! Sinto-me velha, porque estou
cada vez mais intolerante à papelada que me aborrece profundamente, porque não
me acrescenta nada e agora deu-me para isto, de me irritar e de sentir as
vísceras estremecerem de cada vez que me arrancam de dentro de mim para me
lançarem às coisas das quais não quero saber! Ao terrível mundo pragmático onde
só trabalho, porque para viver verdadeiramente ausento-me para outro só meu,
tão protegido e tão inalcançável! E puxam-me e insistem para que desça e quase
desejo reformar-me só para ter direito a esta alma velha com toda a
tranquilidade.
E assim, tantas vezes, neste mundo cheio de coisas,
descobrimos vazios inconsoláveis que não são colmatáveis nem pelo telemóvel,
nem pelo carro, nem pelas joias ou acessórios caros ou silicones que preencham
as rugas, mas que deixam a descoberto a nossas angústias. Não há tecnologias
nem distrações que nos valham, pois o dia de cada um se confrontar há de chegar
e a escolha entre olhar de frente a nossa verdade e as nossas fraquezas ou
fugir cobardemente terá de ser feita, entre risos e lágrimas, com uma cheia de tudo
e outra cheia de nada.
Nina M.