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terça-feira, 23 de abril de 2024

Alma

Não há outro apelo de alma
Que o teu, minha poesia!
Ainda que o dia seja vago e baço
E me invada a melancolia ou

Com a angústia me debata
E dela me desfaça
E em versos me trespasse

É tua a minh'alma etérea
Para ti em brasa se dirige
Fogo ardente ou brasido
Purificação onde não cabe

A desilusão

domingo, 21 de abril de 2024

Cacilda


 - Ai, ai, ai, quem me acuda! Ai que não me aguento nesta agonia!
A lamúria alastrava noite dentro, aldeia fora... Ninguém ligava. Subitamente a aldeia quedava-se no silêncio interrompido pelo balir da Cacilda. Nos primórdios, uma alma ou outra ainda se inquietava e forçava-se a levantar, quantas vezes, no frio do inverno, a cismar na gritaria. De candeia na mão, o benemérito seguia os gritos, lajedo afora, com pressa de valer à alma em sofrimento. Chegada lá, via a Cacilda contorcida, um esgar de lábios e os olhos arrelampados, surpreendidos pela visita. O garrafão vazio, aos pés da cama, raiado a vermelho tinto, denunciava-lhe o vício... Maldita mulher! Mata-se com o tintol e só lhe dá para o berreiro à noite! 
-Olha, Cacilda, se bebesses merda! Rais foda a mulher, que aflige meio mundo para isto...
A alma penada morava sozinha, ausente de homem emigrado, a carpir as mágoas com o vinho... Se a intenção era esquecer, pr'ó diacho com a pinga, que lhe renovava as recordações e a fazia pôr o lugarejo em sobressalto. Aconteceu uma e outra e ainda outra vez até que a lamúria caiu no esquecimento e já não punha ninguém em cuidados.
-Escuta! Escuta! Que é isto?
-Ora, mulher! Que raio há de ser? É a Cacilda e a sua loucura. Deixa pra lá isso e dorme...

sábado, 20 de abril de 2024

Crónica de Maus Costumes 370

 

Recordar é viver

               Ao ouvir os meus filhos falar dos avós, vou sorrindo…

Acham o avô cómico quando se gaba da carta que um dos netos (um dos primos) lhe escreveu pelo seu aniversário, onde afiançava que o avô era um homem de trabalho e de valor, porque passou o tempo da Segunda Guerra Mundial e duros sacrifícios. A avó discorda de imediato e repreende o marido, que tem a mania, mas que não faz nada e é ela quem faz tudo, incluindo o almoço para ele. Evidentemente, o avô responde com a tarefa que fazia no momento, porque andavam a arrumar lenha, mas deve-se ter esquecido que a esposa também lá andava. A verdade é que é a avó que trata das tarefas domésticas e o netos sabem-no bem e riem-se como perdidos dos chistes entre os dois! Disso e dos reparos do avô sobre o que a mãe deles deve ou não fazer! Como se não constituísse uma delícia para os filhos verem os seus pais repreendidos pelos seus próprios pais, independentemente, da idade que possam ter… Termina a Matilde com um “o avô é muito engraçado”! Faltou a prima para acrescentar que o avô, no outro dia, a vira com uma camisola larga e, muito sério a olhar para o braço, achou que a miúda ocupava a manga toda e há que recomendar uma dieta, porque ela estava com uns braços muitos gordos! Obviamente, não precisa de dieta nenhuma, a vegetariana da família, porque é uma menina elegante e bonita! Riem-se muito destas coisas! E eu lá lhes explico que o avô, aos 86 anos, já não percebe nada de modas…

Vê-los a conversar alegremente, faz-me recuar a mim no tempo e lembrar-me do maio quentíssimo em que a minha avó Matilde me fez ir para a escola, ainda por cima de tarde, com uma camisola de malhinha fina, mas de gola alta, debaixo de um sol e de um calor abrasador!

“Sonita, não tens calor?!” – Perguntaram. Foi a avó que me disse que estava frio e que tinha de me agasalhar, para vestir esta camisola… Ou então, a lembrar-me do ditado que a minha avó me dizia, quando cismava que a queria ensinar a ler. A minha avó só tinha ido meia-dúzia de meses à escola. Sabia escrever o seu nome: Matilde e copiar letras, mas não sabia ler. Lembro-me de me questionar por que razão, sendo a minha mãe professora primária (era essa a designação), nunca ensinara a mãe a ler! A determinada altura, queria fazê-lo eu! A minha avó não foi na conversa e respondia-me sempre que “burro velho não toma andadura, filha…” mas fazia-me as perguntas para saber responder ao senhor padre e poder fazer a primeira comunhão. Fi-la com seis anos. Quando me perguntaram se queria nesse ano ou no seguinte, quis logo nesse. Na verdade, tenho a memória de querer saber o sabor da hóstia. Eu queria prová-la e só havia uma forma de o poder fazer, de modo que quando me puseram a questão, decidi que seria breve. Depois, andei uns tempos angustiada, porque os miúdos que iam “provar a hóstia” insistiam que não se podia mastigar e eu aflita a pensar que se aquilo me ficasse agarrado à garganta poderia abafar ou algo do género… Não sei a quem confessei o meu medo… Talvez a minha mãe me tenha dito que Jesus se desfazia com a saliva, para não me preocupar. Fiquei mais tranquila. Vieram os ensaios, no Pinheiro Manso, no Porto, por motivos de agravo entre os meus pais e o  padre da paróquia, na altura. Chique! Comunguei, pela primeira vez, no Porto. Um ambiente estranho onde não conhecia ninguém. Certamente, todas as crianças me foram apresentadas, mas eu não me lembro nem agora e também não me lembrava na altura, porque distraída nos pensamentos, não ouvira nada do que fora dito. Felizmente, há meninos muito atentos e, no dia, uma menina muito solícita, vestida de branco, tal como eu, veio chamar-me (até sabia o meu nome! Mistério para mim! Eu não sabia o dela…). Há que Deus que eu era o seu par… Certo. Se era para ir, siga! Lá entrámos na igreja, de vela em punho (a que tinha sido já do meu batismo, em filinha de dois a dois… Só me lembro de fazer playback nos ensaios, porque se ainda hoje canto mal, na altura não era diferente e sempre tive sentido do ridículo. De modo que decidi não espantar ninguém, mas para que não me aborrecessem com a cantoria nem estragar a melodia aos outros, fazia playback. Uma miúda denunciou-me e disse para a colega, espantada: “Olha, ela não canta! Está a fazer playback!” Pensei de imediato que ela haveria de ter muito a ver com isso! Homessa! Já uma pessoa não se pode poupar ao ridículo! E continuei na minha santa atuação… Tive como prenda o famoso relógio de pulso, o primeiro, oferta do meu padrinho e um boneco que imitava um bebé, oferta da madrinha e que levava para todo o lado, porém, quando me cansava, a mãe lá o carregava e chegou a enganar várias pessoas, porque ao longe parecia uma criança de verdade. A minha tia deu-se ao trabalho de lhe fazer roupa e carapins e tinha uma alcofa e tudo. Para o meu pai era o martelão! “Lá vai ela com o martelão”, dizia-me invariavelmente…

Isto e do avó Chico do Marco (o meu pai é natural do Marco de Canaveses), com o seu mata-ratos no canto dos lábios amarelados, já calejados do cigarro que se me afigurava interminável e que se alimentava, à noite, com duas petingas fritas e uma chávena de chá com bolacha maria. Ria-se, de olhos pisqueiros, quando dava aos netos o copo de vinho tinto para molhar os lábios e depois de perguntar: Então? E a resposta: é bom! Não me lembro que o avô Chico falasse… Acho que não o ouvi falar, só a rir de boca torcida para não deixar cair o seu Kentucky ou Definitivo, enquanto relembrava com os filhos histórias passadas ou melhor, as partidas que pregava à vizinhança, por ser pândego e malandro.

Talvez um dia, seja o Rodrigo ou a Matilde a eternizarem as memórias dos avós. Por enquanto, divertem-se com eles e aproveitam-lhes a companhia e os muitos mimos e vontades que lhes fazem!

 

Nina M.

 

 

Fel

A minha alma nem sempre é mel

Por vezes é fel
Acolhedora de cinismos implacáveis
Dolorosos, cruéis
Quem sabe verdadeiros

A terrível realidade
Oferecida diante dos olhos
Sentida nos ossos
Mas que não se quer ver

Impõe-se. Fétida.
A esboroar o coração...

terça-feira, 16 de abril de 2024

Nome

Julguei ouvir uma canção
Melodia matinal
Gota de orvalho
Sobre a folha verde e límpida
Por entre as sílabas que te saíam
Escaparam, ao de leve, as três
Do meu nome
Leves, suaves e soltas
Como quem traz novidade
Embrulhada na doçura
Soa-me quase belo
Equilibrado quase perfeito
Como se não fosse o meu
Dito assim, num instante,
Um murmúrio quase suspiro
A desmoronar a saudade


sábado, 13 de abril de 2024

Crónica de Maus Costumes 369

 

Cheiro a bafio hipócrita

               Alheada que sou da televisão, metade da polémica em torno do livro que Passos Coelho teve a infeliz ideia de publicitar e de apresentar passou-me ao lado. Ouvi apenas meia-dúzia de palavras a uns comentadores, manifestamente, insuficientes para formar qualquer opinião. Porém, hoje, sempre fui ler a notícia do JN em torno da questão e que englobava algumas citações das pessoas que assinaram os artigos de opinião reunidos no livro.

               Devo dizer de antemão, que apesar da minha total discórdia em relação ao teor do que é apresentado, defendo totalmente o direito que essas pessoas têm de exprimir a sua opinião. Têm direito a ela como eu tenho à minha e o direito de a exprimir. Defendo a liberdade, acima de tudo e defendê-la implica defender o direito de as pessoas declararem o que pensam, desde que isso não constitua uma instigação ao ódio e à arruaça, mesmo que eu não as acompanhe no seu juízo de valor.

               Não foi o Passos Coelhos quem escreveu os artigos que integram o livro, mas ao aceitar apresentá-lo, permite-nos concluir que subscreve se não todos, pelos menos uma boa parte dos artigos. Estranho muito esse posicionamento e questiono inclusive o que terá levado um liberal a assumir tal posicionamento. O Passos Coelho pertencia à ala mais liberal do PSD, desvirtuando, inclusivamente, a génese do partido, na minha opinião, uma vez que, a par de políticas económicas mais liberais, sempre reservou um quinhão da sua preocupação para políticas sociais. Este era o partido fundado por Francisco Sá-Carneiro, liberal na economia e também nos valores, sem, no entanto, descurar a preocupação para com uma política social. Passos Coelho, quando assumiu a liderança do partido, assumiu uma posição liberal plena, o que prejudicou o partido, no meu entendimento. Ora, questiono como um homem que não se enquadra na tipologia do conservador, pode vir defender um conservadorismo rançoso e ultrapassado. Passos Coelho divorciou-se e casou novamente, pelo que fica excluído da “família tradicional” e defendeu a lei do aborto. O partido deu liberdade de voto nessa matéria (e bem), portanto, como pode agora assumir este posicionamento? O Passos Coelho terá mudado de opinião ou não passa de uma estratégia política para reunir o maior número possível de votos à direita, a pensar numa eventual candidatura à presidência da república? Se assim for, e basta aguardar para ver, o meu voto não o terá. Não é possível ser-se um defensor da liberdade individual e o seu contrário, em simultâneo. Perde a sua credibilidade e a confiança que poderiam nele depositar. Até ao momento, poder-se-ia detestá-lo devido à sua teimosia em ir para além da troika, em aconselhar os jovens à emigração, pela sua crueza e insensibilidade perante o sofrimento de muitos. O funcionalismo público foi absolutamente fustigado nesses anos. Tudo isso é matéria para que tantos o desprezem, mas não me lembro de alguém alguma vez o ter apelidado de mentiroso. Caso se verifique tratar-se de jogada política, Passos cairá na teia da hipocrisia, daquele que não olha a meios para alcançar os fins e tornar-se-á no político que desprezo. Se mudou mesmo de opinião e acredita no que  apresenta, só me ocorre que não poderá estar na posse de todas as suas faculdades, para efetuar tal viragem… Venha o diabo e escolha, nenhuma das hipóteses lhe é favorável.   

Eu não li o livro e nem tenciono fazê-lo, mas o que escreverei de seguida baseia-se, essencialmente, nas citações que o jornal apresenta, ou seja, em excertos do famigerado “Identidade e família”. Acreditam os autores que a família tradicional é a “única sociedade natural, universal e intemporal” e contestam as iniciativas legislativas que entendem condicionar e lesar essa instituição, como por exemplo, a eutanásia, o aborto, a ideologia de género e o casamento entre casais homossexuais. Analisemos, então, o discurso… Defender a família tradicional não significa, portanto, promover valores de tolerância, de respeito, de equidade entre o casal que se pressupõe de sexos opostos, mas antes impedir outros de usarem da sua liberdade individual como quiserem, uma vez que em nada atentam contra a sociedade! Este raciocínio perverso e faccioso deixa-me perplexa. Ó meus caros senhores, defender a família tradicional, seria promover uma organização social em que as mulheres pudessem ser mães sempre que quisessem sem que fossem prejudicadas na sua carreira. Seria haver uma qualquer compensação para as empresas que criassem creches para onde as mães pudessem levar os filhos, por exemplo. Seria admitir que pudesse ser o pai o cuidador da criança e não a mãe e atribuir-lhe os mesmos benefícios. Seria prolongar a possibilidade de os cuidadores ficarem mais tempo em casa com os filhos, sem penalização monetária excessiva, por exemplo. Seria educar e promover a igualdade de género, saber  que a mulher tem tanto direito a uma carreira profissional quanto o homem, se assim desejar, e que trabalho igual pede salário igual; saber que a violência doméstica é crime e que não deve ser calado nem admitido e que as vítimas devem ser verdadeiramente protegidas; saber que a mulher é um indivíduo com pensamento próprio e capacidade crítica para formar as suas opiniões, apenas não tem a mesma força física que o homem, mas possui a mesma inteligência. É um ser com direito à sua liberdade plena, tal como o homem. Se estas bandeiras forem defendidas, então, estarão a trabalhar em prol da família tradicional harmoniosa, com capacidade para educar as suas crianças num ambiente seguro e saudável. Quem trabalha no setor da educação sabe que a maioria das crianças negligenciadas vivem no seio de famílias tradicionais que as maltratam! São muitos os casos, mais do que o desejável, o que prova que a família tradicional não garante nada! A maioria dos abusos vem precisamente dela. Ocultar este facto ou fingir não o saber é pura desonestidade intelectual e moral. Assiste-se apenas à vontade de impor uma visão de mundo aos outros. Pode-se defender o que se pensa, mas não se tem o direito de impor a sua crença ao outro. Desta forma, não se pode impor a heterossexualidade a quem tem natureza diferente, apenas porque se acredita que este é o caminho. Poderá ser para a maioria, mas não para todos e aqueles que não se identificam com esta via estão no seu pleno direito de viverem a vida em conformidade com a sua natureza, sem serem discriminados por isso. O mesmo é válido para o aborto e para a eutanásia. O facto de existir essa possibilidade não obriga ninguém a praticá-los. A isto chama-se respeito pela liberdade alheia. Não temos o direito de proibir aquilo que é do foro da liberdade de cada um. Quanto ao argumento de que a vida é um valor inviolável, resta perguntar aos olhos de quem. Se me responderem que é aos olhos de Deus, então, esse é um argumento meramente religioso e aqueles que não o são têm o direito de escolher o que querem. Cada um tem o direito de achar que ficar preso a uma cama não é vida e o direito de pôr fim a esse tomento, assim como quem acredita que a vida vale por si mesma tem o direito de a preservar, independentemente, das circunstâncias. É uma questão de liberdade individual e de uma tomada de decisão pessoal e consciente, devidamente acompanhada por uma equipa médica multidisciplinar, naturalmente.

Querer proibir o que só a cada um diz respeito é ser ditador e impor pelo meio da força legislativa o que não lhe compete. Quando um dos autores do manifesto usa o humanismo cristão como forma de combater tudo quanto lhe parece ser uma ameaça à família, só me apraz dizer que Jesus foi o maior progressista: defendeu as mulheres (os tais seres que um dos autores nega serem oprimidos, pois nunca se queixaram! Se não fosse um assunto tão sério causaria gargalhadas, pela estupidez!), os pobres, os leprosos, os samaritanos, enfim, as minorias ostracizadas! Este é o verdadeiro Evangelho: o amor, a aceitação e a tolerância. Qualquer outra coisa é uma subversão de vendilhões do templo e estes foram expulsos, pelo próprio Jesus, mediante a hipocrisia manifesta nas suas ações.

 

Nina M.

 

sábado, 6 de abril de 2024

Crónica de Maus Costumes 368

 

Relato de viagem

            Voltei a fazer o que dizia que não voltaria a cumprir: ir com alunos a Paris de autocarro. Dezasseis intermináveis horas quase sempre sentados, com curtas e poucas paragens, garantem dores nos joelhos e nas costas, o rabo calcinado e uma enxurrada de insultos a nós mesmos… Não cumpri, é certo, mas aguentei-me uma data de anos sem repetir. O Rodrigo tinha 20 meses quando cometi esta insanidade que agora repeti, e, neste momento, o meu filho tem dezasseis.

            Cá em casa riem-se e erguem as mãos à cabeça, quando não meneiam três vezes a cabeça, qual Velho do Restelo! Dizem-me incapaz de resistir a uma viagem, mesmo que me saia do pelo e que para me verem feliz é meterem-me num autocarro!… Exageram, evidentemente, porque ser obrigado a pernoitar em transportes é horrível! Bem… à ida, não preguei olho, mas à vinda já dormi. Significa que já evoluí. Quem sabe se à terceira sou capaz de dormir à ida e à vinda!... Brinco… Não desejo propriamente uma terceira vez, desta maneira. Nem de avião gosto de muitas horas! Um massacre! Se a viagem for de autocarro, mas implicar paragens amiúde para visitar as cidades com que nos vamos deparando e estadia para dormir, ainda vai, mas andar horas a fio para se chegar o mais rapidamente possível ao destino, quando este fica longe, é muito duro.

            Apesar destes constrangimentos, não deixa de ser uma experiência enriquecedora. Tivemos alunas que choravam emocionadas quando se depararam, pela primeira vez, em frente à Torre Eiffel. Cumpriram um sonho de infância e observavam atentamente a cidade que veem nos desenhos animados “Lady Bug e o gato Noir”, admiradas com o realismo dos bonecos. Afirmavam querer morar ali e os olhos brilharam quer na Champs Elysées quer no mundo mágico da Disney. Outra agradecia o facto de ser filha única, porque se tivesse irmãos, teriam idade aproximada à dela e não haveria dinheiro para todos, por isso, o mais certo seria ficar em casa. “Se tivesse irmãos – dizia ela- não estava neste paraíso!” No entanto, a frase que me marcou foi a de um aluno aflito com a possibilidade de fecho do restaurante onde iríamos jantar… Desatou aos gritos aos colegas para que se despachassem e a mim, preocupado, afirmava: “professora, eu tenho de comer… E se o restaurante está fechado? Na minha opinião, comer é mais importante do que ver monumento…” Tranquilizei-o a rir-me perdidamente com o seu receio de passar fome em Paris… Que se lixe a Torre Eiffel! Rapar fome é que não!

            A beleza consola o meu olhar e Paris é um museu a céu aberto, uma cidade sumptuosa e altiva, vigiada por Montmartre e o Sacré-Coeur, do alto da colina. Os telhados de xisto preto com a suas belas mansardas de janelas abertas sobre o Sena… Prédios simétricos e alvos, enfeitados pelas varandinhas de ferro forjado, cheias de rebiques e berloques. Paris é uma mulher altiva e bela, dona de si, requintada e que se sabe admirada, olhando com certo desdém os que não a sabem apreciar.

Apesar de ser a minha terceira vez, sei que terei de voltar a Paris a título particular para cumprir o que lá me falta fazer ainda… e tenho ainda tanto para descobrir e lugares onde me perder! Quero a Paris menos turística e mais íntima, a Paris dos poetas, dos escritores, dos artistas e dos filósofos… A mulher misteriosa que guarda segredos… Só tive um bocadinho de Quartier Latin… e quase nada de Montmartre (infelizmente, o bairro está vendido ao comércio… Sinais dos tempos…). Precisarei de tempo no Louvre e no Orsay, precisarei de visitar a Madeleine e a Sainte Chapelle, de visitar o museu Rodin e o museu Picasso, talvez voltar a Notre Dame, depois das obras, antes de rumar a Versailles… Paris é uma cidade à qual se volta sempre. Não admira, portanto, a comoção de quem com ela sonhava.

Ter o privilégio de proporcionar esta comoção aos miúdos e vê-los absolutamente felizes compensa as malogradas dezasseis horas de viagem! Para além disso, conheci novas colegas, pessoas agradáveis, afáveis, e boa companhia. Conheci novas facetas de colegas. Na escola, conhecemos tão pouco… Todos somos mais do que o que mostramos e entristece-me que, por vezes, a distinção não passe do que é mais ou menos profissional. Certo é que não há bom profissional sem haver boa pessoa, no entanto, há, vezes além da conta, juízos de valor apressados e injustos, como se nunca falhássemos, como se fôssemos sempre a perfeição, quando todos nós estamos longe dela. Tento sempre não o fazer precipitadamente e ser cautelosa em relação às certezas. Desprezo a mesquinhez. Prefiro a boa vontade e a melhor versão de cada um. Venham lá mais horas de autocarro para as descobrirmos!

 

Nina M.