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sábado, 31 de dezembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 306

 

Reclama& Luta.com

 Hoje, fiquei a saber que criei a empresa Reclama&Luta.com. Achei tão bom que tinha de pegar no título. Referem-se, obviamente, à minha ocupação dos últimos dias com as preocupações que afligem os professores. Na verdade, trata-se de um pequeno puxão de orelhas pela entrega à causa que me consome e que me aliena de coisas e de pequenas tarefas que é necessário cumprir, como não esquecer os horários a que acabam os treinos dos filhos…

Ando absorvida com esta questão, pois claro, como todos os professores deveriam andar. Se me perguntam as razões do descontentamento, elas não faltam… Podemos começar pelo tempo de trabalho não contabilizado e pelas quotas de acesso ao quinto e sétimo escalões, que impedem milhares de professores de progredirem na carreira, independentemente do seu profissionalismo e mérito. É preciso clarificar esta realidade para a opinião pública. Para aceder ao terceiro, ao quinto e ao sétimo escalões, os professores passam por uma avaliação externa, ou seja, vêm colegas de outras escolas, que se encontram em escalões superiores, assistir e avaliar as nossas aulas. Sentimo-nos voltar ao estágio, eu que fiz estágio integrado, e que entre o Português e o Francês, tive quarenta aulas assistidas e avaliadas pelos meus orientadores. Deixo um abraço apertado para ambos… Um especial para o orientador de Português, o senhor padre Abrunhosa (isso mesmo que estão a pensar… É familiar do cantor. Primo, se não me engano. Um excelente orientador e uma excelente pessoa, de quem muito gostava). Significa que ter uma pessoa dentro da minha sala a avaliar-me, e já tive por mais duas ocasiões ao longo da carreira, não me causa pânico. Muito mal estaria se ao fim de vinte e quatro anos não soubesse o que devo fazer para preparar uma aula com excelência. Esta avaliação que nos é feita por um colega que vem de outra escola e que, à partida, não conhecemos (mas pode acontecer de o conhecermos dada a quantidade de escolas por onde passamos), vale setenta por cento da nossa avaliação. Os outros trinta vão para a avaliação interna, feita pelo nosso coordenador de Departamento e depois ratificada ou não pela SAD (equipa que se pronuncia sobre a avaliação dos coordenadores e a quem compete a atribuição dos excelentes, muitos bons e bons a atribuir). Acontece que por muito que esta equipa possa reconhecer o mérito das pessoas em avaliação, se todas ou uma grande parte delas forem muito boas (na generalidade são), mas não houver muito bons a atribuir para todos (o que normalmente não há), alguém fica lesado e é remetido para uma lista nacional infindável e aguarda pacientemente, mas em revolta pela injustiça, o seu lugar ao sol. Esta explicação é para os que não são professores e desconhecem a realidade, repetindo a barbaridade que se ouve amiúde em relação à avaliação dos docentes. Tudo isto representa um trabalho extraordinário e acréscimo de burocracia que não é pago a quem o faz. O erro maior deste processo absurdo é o facto de as pessoas serem muito boas no que fazem, facto comprovado por uma avaliação externa de um colega da área e, também, da avaliação interna e correr o risco de, apesar de ser muito bom, não progredir por falta de quota. É uma injustiça revoltante. Pior… é uma ignomínia. Como se eu dissesse a um aluno brilhante que merece vinte, mas só terá direito a dezoito! Portanto, os professores são avaliados, mas são injustamente avaliados.

Não bastava esta questão, o Ministério da Educação ainda nos quer passar para a alçada das autarquias, numa municipalização encapotada, acusando as organizações sindicais de mentirem, garantindo que a colocação é feita pela graduação. Será, sim, no mapa intermunicipal que querem criar, mas a afetação à escola será efetuada por um conselho de diretores, mediante um perfil a definir. Sabemos muito bem o critério largo que significa o perfil. Questiono também com que direito o Ministério quer retirar o meu direito à escolha, uma vez que esse conselho de diretores pode considerar que tenho o perfil adequado para integrar os quadros de determinada escola, onde eu não pretendo ficar. No concurso que temos, seleciono as escolas pela minha ordem de preferências e até há muitas que excluo da minha seleção. Pelos novos critérios, seria obrigada a aceitar a colocação sem ter direito de escolha! Com que direito o Ministério interfere na liberdade de escolha de um professor?! Faça-se o seguinte: criem os mapas e permitam que os professores continuem a concorrer, através do critério de graduação, para esses mesmos mapas, através de regras justas e transparentes e não perfis que são casacos feitos à medida de quem os irá vestir. Nós conhecemos o processo. É que já houve um concurso paralelo, chamado BCE, e sei bem o que me acontecia… Enquanto na reserva de recrutamento me encontrava nos lugares cimeiros, na bolsa de contratação de escola (BCE) sofria quedas alarmantes! Vão passear com os vossos perfis, que não passam de critérios manhosos para se selecionar quem se quer, independentemente do profissionalismo de quem concorre!

Quando a opinião pública não compreende e diz asneiras quando opina, eu não me espanto, porque os concursos são um processo kafkiano difícil de entender por quem está de fora, mas ainda assim limpo, isento e minimamente justo. Corrija-se o que está mal e não o que vai funcionando… Porém, quando vejo a classe sobre quem se abate todas estas infâmias, para não falar de outras que aqui poderia enumerar, mas a lista seria longa, absolutamente apática e alheada, gera-se em mim um espanto inominável e uma incapacidade de compreensão avassaladora. Posso admitir que me digam que concordam com a proposta do Ministério e que aleguem todas as suas razões… Considerá-las-ia idiotas, mas teria de respeitar. No entanto, quando vejo a inação ou por defenderem uma cor partidária ou por alheamento e ausência de uma consciência de classe, as minhas entranhas abalam-se. Não importa se somos todos ou não afetados (mas seremos, mesmo os de quadro que estão longe, longe ficarão por mais cinco anos, no mínimo. A mobilidade interna será uma miragem). Se a classe é afetada, todos temos o dever de lutar pela justiça. Assim deve ser, porque a isto se chama integridade. Esta apatia fere-me, porque a classe que deveria ensinar os alunos a importância de se baterem pelo que consideram justo são os que abnegadamente aceitam tudo sem espírito crítico e sem noção do golpe que representará para a classe. Por último, este ataque não é só aos professores, mas alunos e ao futuro deste país. Se a carreira já é pouco atrativa e se já há falta de professores, nos tempos mais próximos, será ainda pior. O Ministério deitará à mão de tudo e os futuros professores serão gente sem qualificação para tal. Não é por saber falar inglês que o sei ensinar e que sei explicar o funcionamento da língua, com a suas regras gramaticais, por exemplo. O país nunca esteve tão bem servido de professores como atualmente, mas começa a regredir e um país sem bons professores estará condenado ao fracasso. Perante esta realidade que se me oferece cristalina ao olhar, empalideço e a frustração cresce. A par do amor que sinto pelo meu país e pelas suas gentes (julgo que não saberia viver noutro lado), paradoxalmente, surge um ódio negro e cego e um desejo surdo de ter nascido num país civilizado, que valoriza o saber e a escola. Neste momento, sinto uma vergonha funda de um país ignaro que promove a ignorância e a corrupção e dos que o aceitam placidamente, sem qualquer esboço de revolta. Parece que em vez de sangue corre água nas veias dos portugueses e se é verdade que a atitude estoica previne dissabores e angústias, também não é menos verdadeiro de que ninguém vive neste mundo como mero espetador, porque por mais que nos custe, a vida puxa-nos pela manga e obriga-nos a escolhas. Queiramos ou não, por mais difícil que estas sejam, também nos definem.

Não é propriamente uma crónica otimista de final de ano, mas é lúcida na sua indignação.

Boas entradas, muita saúde e coragem, porque iremos precisar dela para enfrentar as agruras que aí vêm.

 

NinaM.

 

 

 

           

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Abandono

 Há uma tristeza no abandono
Que grela a alma
Estraga-a juntamente com a humidade
Que se entranha nos ossos
O abandono de si
O abandono do outro
O abandono dos sonhos e das ilusões
O abandono dos filhos
O abandono dos pais
O abandono da alegria
O abandono do amor
O abandono de um país derrotado
Cheio de abandonos individuais
Que se não ergue pelo abandono dos seus
Cidadãos...
O pior abandono possível:
O abandono dos versos que rejeitam o poeta que sempre os acaricia...
O abandono é um vazio
A instalar-se nos olhos
Mesmo quando se está pleno de tudo

domingo, 25 de dezembro de 2022

Natal

Tempo de Natal
Sem Natal noutros lugares
Sem a paz e a boa nova anunciada...
Que será um Natal sem o bem consubstanciado em carne humana?
Natal pronunciado que soa a vazio
Que tempo esculpe memórias de além
De um tempo sem retorno e em vão?...
De quantos Natais precisará o homem
Para se reinventar em ser
De coração tomado?

sábado, 24 de dezembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 305

 O Natal já não é o que era

                O Natal, por mais que me esforce, já não tem o mesmo sabor. Não foram os Natais que mudaram sobremaneira… Fui eu quem, primeiro, cresceu e, depois, envelheceu.  

            Deixei de aguardar ansiosamente pelos presentes. Em criança, era uma azáfama e, por antecipação, descobríamos o que nos iam ofertar, apesar dos esforços vãos da minha mãe, que tentava evitar que os descobríssemos. Porém, a alegria e a magia partilhada com os irmãos e os primos era certa e o convívio especial. Depois do jantar em casa de cada um, a nossa Tia abria os braços acolhedores e o resto da consoada era passada em sua casa, entre rabanadas de leite, de chá e de vinho, à vontade do freguês… Nunca comi nenhumas. Não aprecio essa doçaria. Excetuando o pão-de-ló da tia, que também já não podemos comer, não queria saber dos formigos nem da aletria. Falar deste pão-de-ló é vê-la sentada num banco com o alguidar enorme de barro que acolhia os ovos, o açúcar e a farinha batidos à força de braços que seguravam as duas canas, batidas cruzadas e sincopadamente. Ah! Tia, onde quer que estejas, sentimos a tua falta e os Natais não são mais os mesmos. Rapávamos as canas e os alguidares com a língua e dedos, mesmo assim, à lambões!… Hoje, há também pão-de-ló de forno de lenha, mas não sabe ao mesmo…Já mais jovens, não eram as prendas que faziam diferença, mas o convívio de primos entre os amendoins, o espumante e as cartas jogadas.

            Hoje, o Natal perdeu um pouco da sua magia. Talvez tenha crescido de mais. Não há presentes pelos quais anseie. Sabem que só os livros e experiências de passeios ou viagens me podem fazer sonhar. Estou cada vez pior com os livros. Não suporto oferecer aqueles que não possuo… Só se não gostar do género, mas não sou de ofertar o que eu não gosto… Depois, livros não são um presente que se ofereça a qualquer um. É um presente especial e há que merecê-lo, pelo que a época natalícia consegue ser exasperante. Cada vez menos gosto de andar à cata de presentes em lojas cheias. Passo pelas ourivesarias, sapatarias e lojas de moda quase sem olhar. No entanto, devo entrar, rebuscar nos molhos de roupa revirada à procura da camisola certa para oferta ou de outra coisa qualquer… Com a falta de paciência, vejo-me às compras de Natal nos vinte e dois e vinte e três. Consegui evitar a véspera, menos mal…

            Enfim… olho-me e vejo-me a comer as batatas cozidas com bacalhau e a saberem-me bem (nunca apreciei) e sinto a maturidade entranhada nos ossos.

Salva-nos a euforia dos pequenos. Agora, a vez é deles, dos primos que se reúnem e regozijam com os presentes que o pai-natal ou o Menino- Jesus deixou no presépio, tal qual outrora os pais fizeram, mas sem tia… É ouvi-los dizer que esperam um ano inteiro por este dia em que se juntam todos em casa da avó, com a lareira acesa e é uma festa!… É bom para os pais também, pois os irmãos reúnem-se e é bom.

            O Natal, agora, é feito de serenidade. Continuo sem comer as rabanadas, os formigos e a aletria… Somos adultos com as suas famílias que desaprendem o encanto. Pelo sim pelo não, para finalizar o repasto, sento-me à mesa da casa onde cresci a rabiscar a crónica com que vos desejo um feliz Natal.

Nina M.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 304

 Ministro, escuta! Os professores estão em luta!

 O subtítulo era um dos gritos de ordem de ontem, na manifestação que juntou entre vinte e cinco a trinta mil professores, a quem o tempo ajudou.

Começo com um agradecimento aos colegas de Vilela, Paredes, que se organizaram para fretar um autocarro e que foram parceiros de viagem e de luta. Foi um dia longo e cansativo, naturalmente, e que começou muito cedo. Não foi fácil para os professores, nesta altura, irem a um sábado a Lisboa, mas foi necessário e bonito de se ver. Finalmente, os professores obtiveram atenção e cobertura televisas. Parece que o país, tal como quem nos governa só vai ouvindo quem se junta em multidão considerável em frente à Assembleia, a casa da Democracia, em protesto e apupo. Cheguei a temer pelo movimento, pois assim que se chegou, havia alguns colegas, mas não em número que permitisse perceber a dimensão da manifestação. À hora marcada, os professores começam a surgir das várias artérias que levam ao Marquês. E assim que se inicia a marcha em direção à Assembleia, com regozijo, começamos a perceber a mole humana que se estendia ordeiramente, em protesto. Passamos pela Mortágua cidadã, que se abeirou no passeio, mas não se contou com a presença dos vários partidos que costumam colar-se a estes movimentos. Talvez pensassem que seria pouco expressivo, dadas as condições em que aconteceu. O S.T.O.P., organização sindical a quem o Governo e as outras associações sindicais prestam pouca atenção e acusam de radicalismo, soube compreender a insatisfação da classe, que é grande, e mobilizar as pessoas. Este sindicato é pequeno, pouco expressivo, mas talvez cresça depois disto. Lembrar que os milhares de professores que ali se encontravam não são todos associados do S.T.O.P. Muitos deles não terão qualquer filiação sindical, outros serão filiados noutras associações e, outros, por certo, pertencem mesmo ao sindicato que ajudou a dar voz ao descontentamento e o galvanizou. O posicionamento dos cidadãos em relação ao panorama político mudou. Continuamos a ter os indefetíveis defensores partidários, mas a quantidade de pessoas que se desliga desses movimentos e se orienta pelo que o seu espírito crítico e consciência lhes ditam tem vindo a aumentar, para a ser a realidade nos próximos tempos. Não há razão para se impugnar a liberdade de escolha face a uma posição partidária com a qual não se concorda. Acredito que os cidadãos, principalmente, as novas gerações, cada vez mais, farão as suas opções sem atenderem a cores partidárias, como acontecia no tempo dos meus pais, nos anos conturbados pós abril. Significa que se assim funciona relativamente à vida política do país, também acontece na mesma medida noutras organizações, portanto, não se pode medir a força de um movimento de sublevação pelo apoio que é dado pelos maiores representantes sindicais. Já em 2008, na famosa manifestação dos cem mil professores e que quase derrubou a senhora ex-ministra cujo nome evito pronunciar pela urticária que ainda me causa (julgo que ainda não surgiu político que me tivesse conseguido espoletar tanta ira), o descontentamento nasce no seio da classe e é, depois, cavalgado pelas organizações sindicais. Porém, a revolta é genuinamente das pessoas, a quem os sindicatos se associaram e bem, pois é para isso que existem: defender a classe profissional que representam e não agendas partidárias ou próprias. Estamos perante uma situação similar e os nossos representantes têm de se habituar a ouvir a voz da população. Ministro, em latim, significa aquele que serve e é para isso que eles são eleitos, para servir os que os elegeram e não para se servirem deles. Ninguém serve bem o outro se não o souber ouvir, acolher as suas preocupações, dialogar e chegar a consensos, de boa-fé. Marcar reuniões que não conduzem a lado algum, porque já se estipulou que “vale mais um mau acordo do que acordo algum”, questiono, para quem?! Para o Governo ou para os reivindicam? Não, senhor ministro, o que vale mais é defender aquilo em que se acredita. Não queremos um mau acordo. Queremos que o Governo e os Sindicatos com maior expressão compreendam isto: os professores não estão dispostos a fazer um mau acordo! Não desta vez. Temos vindo a ter sucessivos mais acordos desde 2008 e estamos fartos! Apetece dizer: Chega! Basta! Quero usar a palavra chega sem qualquer receio de outras conotações. Chega de os professores serem lesados e feridos na sua dignidade! Chega de atropelos! E se surge um sindicato pequeno, mas que é capaz de dar voz ao ditado “vale mais partir que torcer”, pois ainda bem, já que só assim parecem combater a surdez com que se imunizam!

Ontem, o senhor ministro já concedeu entrevista. Estava nervoso. Transpirava. Não creio que fosse apenas pelo calor do estúdio, mas porque percebeu que a contestação engrossa fileiras. Como todos os governantes, o João Costa preferiu cerrar dentes e não mostrar fraqueza antes de negociar, quis estabelecer linhas vermelhas com um microdiscurso orientado para persuadir a opinião pública e não os seus professores. A profissão docente tem as suas especificidades, pelo que não é comparável com outros serviços públicos. Um professor contratado ou de quadro desenvolvem o mesmo tipo de trabalho, independentemente dos cargos que cada um exerce. O cargo de direção de turma é dos que mais trabalho e responsabilidade implicam e é dos que menos importância se lhe atribui e, no entanto, sem ele, as escolas não funcionariam. Ninguém o deseja e quase todos o fazemos, contratados e gente do quadro. Os que não desempenham este desempenham outros, portanto, senhor ministro, há hierarquias, mas não há “chefias” no sentido literal do termo, com papéis absolutamente distintos. Um diretor de turma, um coordenador de departamento, um coordenador de projetos, um coordenador de cursos profissionais, professores que integram grupos de trabalho diferenciados e afins continuam todos a cumprir a principal função e a mais prazerosa: dar aulas. O senhor sabe-o. Tem essa obrigação, pelo que vir falar para a opinião pública, dando a entender que os professores não podem ser diferentes de outros serviços públicos não passa de um sofisma ou não teríamos um Estatuto Próprio a que o senhor quer pôr termo. Depois, mente ao tentar desvalorizar o movimento gerado nas redes sociais, fazendo crer que não passa de populismo. Trata-se de descontentamento, indignação e revolta e ficou o aviso. Por último, talvez fosse bom enviar para as televisões o documento emanado do Conselho de Ministro para que se perceba quem mente. O cerca de trita mil professores que estiveram presentes na manifestação, senhor ministro, não são nem iletrados nem ignorantes. Sabem ler e interpretar. Importa mais o que não está escrito do que o que ficou redigido. A sua garantia verbal de que não haverá professores selecionados pela autarquia vale zero, quando pela redação do documento tudo é possível! E é verdade. É mesmo isso que o senhor está a pensar. Não! Os professores não confiam nem em si nem no seu Governo.

Por último, colegas, é tempo de união. Precisamos de todos, porque só com todos evitaremos a hecatombe. É tempo de unir e não de separar. Professores (do público e do privado) e Associações sindicais é tempo de agirmos coletivamente, pois a luta ainda agora começou. Centremo-nos no que importa: a escola, os alunos e os seus professores.

 

Nina M.

 

 

 

 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Se soubesses a importância de um beijo

Se soubesses a importância de um beijo
Poderia dizer ósculo, mas não soa
A ternura que se afague

E se soubesses o bem do amplexo
Sentido, sinónimo de abraço desejado
O plantar da semente contra a corrosão

Se soubesses da angústia pelo teu mal
Por adoecer juntamente, estancarias
instantaneamente a hemorragia

Da alma que sangra desilusão
O receio de uma convicção [falsa]
O temor de uma partida indesejada

Como poderias deixar de ser
Se vives no calor do meu regaço
Pejado de vida?













terça-feira, 13 de dezembro de 2022

O cinismo do poeta

Rompe-me as veias este cinismo
Dorido, desencantado e sarcástico 
Torna-me descrente e cego
A qualquer ato de fé
E eu que sempre juro 
A ele não me render
Vejo-me agastado e penitente
Quase vencido e a sofrer

Conheço todos os quase da vida
A meio caminho de tudo
Quase feliz quase sereno
Quase cumprido
Rompem-se as ilusões na esquina
De um abismo que sempre quis

E de um quase nada feito
Sem virtude nem engano
Estala em mim este cinismo
Que me embala e causa dano
Prossegue o mundo na sua calha
Alheio a toda a razão
A justiça que se tarda
Envenena o coração

O amor, o seu antídoto,
Ao vê-lo assim instalado
Parece ter-se perdido
Sem rumo em qualquer estrada
Vagueia, assim, livremente
O cinismo impenitente
A castigar o poeta
O mundo e a sua gente


domingo, 11 de dezembro de 2022

Não quero rendição

Não quero rendição
Ao desencanto
Nem à injustiça
Não quero rendição
À desilusão
Nem aos déspotas
Desejo de liberdade inviolável
Rendição apenas
Ao amor
Àquele que não pede
Anulação
Nem fingimento de ser
Quem não se é
Porque não seria amor
Antes escravidão
Não seria escolha
Seria submissão
Não à rendição
Não à anulação
Ser de sublevação 

sábado, 10 de dezembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 303

 

Revolta e indignação

Trago dois assuntos para a agenda de hoje: Ronaldo e professores.

Relativamente ao Ronaldo, dizer que anseio pelo fim da novela que a comunicação social, redes sociais e a própria família criam em torno do homem. Para ele, apenas uma palavra: obrigada, pelo tanto que deu à seleção e, sobretudo, pelo coração que põe quando traz as quinas ao peito. Aos que o destratam sem tino, sem consciência e sem razão sugiro que se remetam ao silêncio. Ronaldo não é nem nunca foi o meu ídolo. Só tive um e esse partiu há duas semanas. Porém, sei reconhecer no Cristiano a grandeza futebolística que tem, fruto do seu esforço, da sua dedicação e da sua superação. Sei, sobretudo, ser reconhecida pelo facto de levar o nome de Portugal ao mundo e de defender acerrimamente as cores do seu país. Cristiano é um jogador gigante em fim de carreira, mas continua humano, cheio de virtudes e de defeitos também. Não me interessa se é mais ou menos arrogante, se falhou aqui ou ali, como todos nós. Quem foi sempre esclarecido e nunca errou atire a primeira pedra, já dizia Cristo, ou então aqueles que tanto o criticam que digam o contributo maior que deram ao seu país. Cristiano conquistou o mundo e agora, do alto dos seus trinta e sete anos, o corpo não responde com a mesma agilidade e rapidez, não porque ele não se empenhe seriamente, mas porque o rendimento já não pode ser o que foi. Está a ser muito penoso para ele aceitá-lo e digerir. É difícil compreender que quem se esforça e se exige tanto tenha problemas em aceitar o que a quem está de fora parece óbvio?!

Respeito por quem já trouxe tantas alegrias desportivas ao país e empatia para que ele possa aceitar a nova realidade. Ser-se compreensivo e respeitador para com ele não significa ser condescendente, penso que nem ele o quereria quando caísse em si. Se Ronaldo não tem capacidade física para fazer os noventa minutos, não faz ou não joga. Certo. Nunca comprometer o coletivo em nome do individual, mas respeitar quem deu tanto implica não se regozijar com o seu mau momento, implica não ser cruel nem maldoso e nem é uma questão de generosidade, mas de caráter. Assim o entendo.

Por isto, Ronaldo, mesmo não gostando quando, de alguma forma, hostilizas o meu clube, desejei muito que pudesses ser o herói do jogo, uma última vez. Não foi possível. Nem sempre é possível. Sabes um segredo… Os melhores heróis trazem sempre consigo algum lastro de derrota. Terás de o superar, porque o céu já o alcançaste, independentemente de tudo.

Fecho este separador e passo abruptamente para os professores e a sua luta. Não posso deixar de fazer, também por aqui, o apelo à união dos professores, em primeiro lugar e, depois, aos sindicatos. Perante mais um ataque soez à classe, pede a razão que nos batamos pela defesa da classe, mas também da escola pública, tão de si depauperada pelas sucessivas governações.

 Não! Os professores não querem ver a sua liberdade de escolha posta em causa em nome da gestão de recursos humanos. Não! Os professores não querem estar sujeitos à vontade e perfis maleáveis e manhosos e que permitem a adulteração da escolha de um profissional. Não! Os professores não querem ver sonegado o direito de se aproximar da sua área de residência, porque ao contrário do que o senhor ministro diz, muitos de nós não moram onde trabalham, porque já têm uma vida feita e habitação própria noutro lugar. O professor poderá, eventualmente, viver onde trabalha se lhe forem dadas condições para tal. Não! Os professores não querem andar de escola para escola entre concelhos ou até no mesmo, na sua própria viatura e com combustível pago do seu bolso, porque ou as escolas distam mais de cinco quilómetros ou ninguém lhes paga o gasóleo e o desgaste. Não! Os professores não querem ficar à espera numa lista interminável, quando são muito bons, mas as quotas dizem que não o podem ser. Não! Os professores não querem perder a sua liberdade de pensar, de se pronunciar e de agir, ao abrigo de uma coerção camuflada de poderem vir a ficar sem o seu lugar se forem uma voz dissonante. Não! Os professores não querem ser marionetas nas mãos dos que até ao momento só nos desgovernam. E não! Os professores não querem lutas fofinhas e inócuas, serviçais, à espera da esmolinha! Os professores querem, porque merecem, todo o respeito da sociedade e este, meus amigos, não é feito de meras palmadinhas nas costas em tempos difíceis, mas com ações concretas de dignificação da carreira. Um governo ingrato que não reconhece nem tem interesse em proporcionar uma escola pública de qualidade e que vive à custa do espírito de missão dos professores, porque o têm e volta-se contra eles, não é de confiança. Não!

É hora de dizer: Basta!

Às associações sindicais apelo para que terminem com as “guerras de alecrim e de manjerona”, que acabem com as suas guerrinhas de interesses, pois os tempos são duros e de luta. Os professores estão mobilizados. Cavalguem essa mobilização e, sobretudo, não nos falhem como tem vindo a acontecer. Não queremos acordos razoáveis sempre com prejuízo para o nosso bolso. Queremos uma escola que seja merecedora do nosso empenho e da nossa motivação e que nos reconheça o esforço. Não se fazem reformas contra as pessoas! Fazem-se reformas pelas pessoas e elas são os professores e os seus alunos!

Aos encarregados de educação dizer-lhes que nós, professores, também somos pais com filhos nas escolas públicas e que têm também os seus professores em greve. De seguida, alertá-los para duas realidades que parecem não querer compreender: dentro de pouco tempo, a falta de professores será avassaladora e da forma que tratam a classe, a desvalorizam e achincalham, poucos serão os jovens que virão para o ensino; depois, para colmatar essa falha arranjarão alguém com algum conhecimento superficial sobre os assuntos para ensinar os vossos filhos… Voltamos à década de oitenta em que havia profissionais no ensino de bradar aos céus! Apesar de, como em todos os ofícios alguns de nós serem melhores do que outros, acreditem que nunca a educação teve profissionais tão bem preparados e começa a perdê-los, sem retorno. A mim, se me quiserem reformar e deixarem trazer para casa o ordenado intacto, eu bato com a porta.

Gosto de ser professora e não tenho pejo em dizer que sou muito boa profissional dentro de uma sala de aula. Gosto de sentir os meus olhos brilharem e o meu sangue ferver quando lhes falo do revolucionário Garrett, do sarcasmo e inteligência do Eça, do príncipe Camões, daquele que o queria suplantar, o Fernando e as suas Pessoas e do nosso génio último, o nosso Nobel que tanto nos orgulha. É isso que faço com gosto e sei que os meus alunos farão a justiça de o reconhecer. Cansada! Não dos nossos jovens cada vez mais difíceis de motivar, mas de sucessivos Governos que querem fazer da escola pública o esgoto nacional e dos seus professores, capachos sem voz ativa!

Acordem, colegas!

“É a hora!

Valete, fratres.”

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 3 de dezembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 302

 

Quem tem filhos tem cadilhos

As pessoas que mais amamos são as que têm o condão de tornar o dia claro ou de o fazer de nevoeiro e de chuva intensa. São as que nos dão as maiores alegrias e, paradoxalmente, as que nos causam os maiores padecimentos e preocupações. Às vezes, conseguem ambos num curto espaço de tempo.

As pessoas que uma mãe mais ama são os filhos. Acima dela mesma e, por cansada que esteja, não há esforço que não desenvolva para os ver no caminho certo, que pode ser o que eles escolherem, mas pelo qual devem trabalhar. Quando se tem filhos que não assumem as suas responsabilidades como devem ser assumidas, esse comportamento deve ser acompanhado de perda de direitos, mas de forma positiva e construtiva. Um equilíbrio difícil de se conseguir quando eles são obstinados na teimosia.

A necessidade de autonomia e de bons resultados não se compadece do ritmo de cada um, no mundo quantitativo e competitivo em que vivemos. Os que se inquietam com essas pressas e esses ritmos terão de se adaptar ao mundo em que vivem, mesmo que ele contrarie os valores que se andou a aprender. Se ao jovem foi ensinado que a cooperação é mais interessante do que a competição ou, pior ainda, se a preferência pelo desligamento e abandono da competição é um traço de personalidade, está o miúdo e estão os pais envolvidos em sarilhos. O jovem, porque não entende o motivo de ter de ser assim e a cenoura do sucesso profissional com que se lhes acena é ainda um futuro demasiado longínquo e os pais porque sabem a realidade em que se mexem e sabem que a vida atropela os mais incautos.

A colisão entre estas duas forças opostas gera desconforto para todos, até porque as expetativas de uns não são coincidentes com as dos outros. Fazer com que o jovem compreenda que não basta a positiva para entrar na Universidade, mas que tem de estudar seriamente, se o quiser fazer, é trabalho hercúleo.

O controlo e o aperto parental no que diz respeito à imposição de estudar, a partir de determinada idade, são dificílimos. Então, para os que até têm ambições, mas estas exigem trabalho que não se gosta de fazer, é uma cruz! Um dossiê a ser gerido com cautela e negociado, sempre à espera que a maturidade dê o sinal de sua graça ou então que o medo da perda de certos privilégios possa espoletar a ação.

Até lá, aconselho o remédio que eu tomo: quilos de paciência a ingerir pela manhã, com reforço a meio da tarde, e um acompanhamento próximo, o que para quem detesta o controlo se revela uma medicação indigesta, mas necessária e, ainda assim, às vezes, ineficaz.

Para além disto, resta acender a velinha para Santo Efrén, que propõe a seguinte oração:

Senhor e Mestre de minha vida,

Afasta de mim o espírito de preguiça,

De abatimento, de domínio, de loquacidade,

E concede a mim, teu servo,

um espírito de integridade,

de humildade, de paciência e de amor.

Sim, Senhor e Rei,

Concede ver os meus pecados

E não julgar os meus irmãos

 Há que aproveitar e pedir por nós, pelos filhos e, já agora, pelos alunos, que padecem do mesmo mal. Ainda estive para retirar a loquacidade da equação, mas adulteraria o original. No entanto, faço o reparo de que se esta não for no sentido pejorativo da verborreia vazia, pode e deve ser estimulada. Se for para os fala-barato que não deixam ninguém descansar às oito da manhã, com tanto paleio para nada dizer, então, que a abandonem para sempre! Porém, Santo Efrén, que seriam os escritores sem ela?!

Diz o povo que quem não pede Deus não ouve… Peçamos.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 27 de novembro de 2022

Aos grandes

A morte não apaga o rasto dos grandes
Grandes são os que nos tocam a alma
De  forma indelével, permanente e calma
Além da humanidade o espírito transcende

Afáveis, íntegros, homens de apreço
A morte, em geral, a todos nos faz bons
Há os que, porém, na vida mostram dons
Inexpugnável sinal de homens sem preço

A morte tão cedo da carne perecível
Ao tempo que fora de tempo leva a vida
Não impede a memória irresistível

Da grandeza que nunca foi esquecida
Para eles a canção do cisne inesquecível
O seu canto não é morte, antes vida!

sábado, 26 de novembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 301

 

Bibota, o gigante!

            Cinco campeonatos, três taças, uma taça de campeão europeu, uma supertaça europeia, uma taça intercontinental. São estes os triunfos coletivos com a camisola do Futebol Clube do Porto envergada e o eterno número nove estampado. Seis vezes o melhor marcador do campeonato, duas botas de ouro, 451 jogos e 355 golos. É este o palmarés desportivo do gigante que, hoje, deixou a família portista destroçada.

            A crónica de hoje não poderia ser outra. Teria de ser dedicada ao meu único ídolo dos tempos de criança: Fernando Gomes. Já anteriormente, eu escrevi sobre o bibota e não quero repetir-me. Nunca conheci o capitão, número nove. Nunca tive oportunidade de lhe dirigir a palavra e, no entanto, a sua partida significa deixar um lugar vazio no coração que só ele poderia ocupar. Escrever sobre o bibota é recuar no tempo e recordar a idade da inocência e a pureza. É lembrar dos penáltis marcados no sofá que servia de baliza e dos gritos de golo, como se estivessem a ser relatados, com o nome Fernando Gomes no final. É lembrar que não admitia que alguém se atrevesse a criticar o meu ídolo e que nem mesmo quando surgiram outros com fogo nos pés e que fizeram história no clube, como Rabah Madjer e Paulo Futre conseguiram destroná-lo no meu apreço. Escrever sobre o Gomes é recuar a 1987 e à final de Viena, na qual não pôde jogar por lesão e à qual assistiu pela televisão com Lima Pereira, também lesionado. A sua equipa ganhou-a por ele, com a assinatura do calcanhar de Madjer e de Juary, a arma secreta. É lembrar do despertador para as quatro da manhã para ver o jogo da taça intercontinental. Essa, o Gomes não falhou e marcou um dos golos; o outro foi do Madjer. Escrever sobre o Gomes é voltar à magia pueril onde os heróis são perfeitos. De maneira que depois do Gomes não voltei a ter qualquer ídolo. Nem mesmo na adolescência, em que os atores, jogadores ou cantores da moda faziam as delícias das meninas. Nada. Houve outros jogadores do FCP que me granjearam e granjeiam a admiração, mas nenhum deles foi capaz de ocupar o lugar do capitão, número nove.

            Lembro-me de contar isto a um colega portista. Lecionava em Chaves e ele, a certa altura, lá deixou escapar que era vizinho ou conhecia o bibota, já não me lembro bem… Sei que nunca mais esqueci a sua frase quando, em tom muito sério, deixa cair que o futebol é irracional, porque se fosse racional, só haveria portistas… Ri-me muito com a tirada. Olhei-o e disse-lhe que o Gomes era o meu ídolo de infância. Eu gostava tanto dele! E lá levou com a história dos penáltis e de eu encarnar o Gomes e os meus irmãos que nem tentassem ficar com o nome do capitão! Já se riam e já sabiam que o nove era meu! Garantiu que quando se cruzasse com ele lhe contaria, porque ele ficava feliz com estas histórias. Não cheguei a saber se o fez, mas, neste momento, e apesar de não mudar nada, espero que tenha tido a oportunidade de lho dizer.

Não sou de ídolos, mesmo agora. Não idolatro ninguém, porque com a queda do anjo em nós percebemos os pés de barro dos humanos. Há gente que admiro muito e com reverência, mas a paixão esgotou-se com o capitão. Mesmo quando saiu para o Sporting, onde jogou as suas duas últimas épocas, e me deixou de coração partido, gostava que o Gomes brilhasse, apesar de querer as vitórias do FCP. O lugar ídolo é seu por direito. Sempre foi.

Hoje, quando me deparei com a triste notícia, os meus olhos embaciaram, rasos de água. O nosso capitão não venceu a luta final contra a doença que o consumia. Parte a matéria, fica a memória e o legado. Para sempre eternizado no museu do clube e no coração dos portistas, em especial daqueles que com ele cresceram. Gostaria que o número nove não voltasse a ser usado no FCP, após o término da época, em sinal de respeito pela memória do maior goleador da história do clube.

Para mim, será sempre o meu único ídolo. Agradeço-lhe todas as alegrias, todos os golos de dragão ao peito, toda a dedicação ao seu clube.

Descansa em paz, eterno bibota. Um senhor! Dentro e fora de campo.

 

Nina M.

 

 

 

 

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Ao "Zap do professor"

Partiste, Jorge de Sena!
Deixaste a tua carta como herança
Para os teus herdeiros -
Todos os filhos deste mundo!
Muitos a leram.
Muitos a mastigaram.
Muitos a deitaram fora.
Atrevida talvez?!
Que fariam com ela
Na algibeira da modernidade?
Quem sabe hoje dos fuzilamentos de Goya...
Neste mundo não se mata assim...
Ouvem-se os ruídos ao longe
Destroem-se centrais nucleares
Pilham-se as cidades
Enterram-se ou carbonizam-se corpos
Amontoados em valas. Desfeitos.
Roubam-se infâncias 
Ensina-se o ódio
Lá longe... 
Armas químicas, guerras nucleares...
Tudo higiénico, limpo, ao dispor de um botão.
Não mais se ataca ou defende de fuzil em riste
Corpo a corpo
Talvez o corpo do outro e o seu suor
Ainda fizesse o agressor recuar dois passos
Talvez ainda exalasse a humanidade, o outro...
Não se mata a humanidade, neste início de novo século!
Bendita a hipocrisia dos que falam de paz e instigam a guerra
Porque os deixa adormecer tranquilamente, à noite,
Sob o peso das vidas perdidas dos que partiram.
Sob o peso das vidas perdidas dos que teimam viver.



sábado, 19 de novembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 300

 

Notas soltas

                Hoje, a rubrica completa mais uma volta ao número cem. Trezentas crónicas semanais escritas ao longo do tempo nem é pouco nem é muito, é alguma coisita. A deste fim de semana será uma coisa um pouco descosida e uma mixórdia de assuntos que suscitam o meu interesse.

            A primeira nota e a mais preocupante vai para o cenário político português. Semana em que o Carlos Costa, ex-governador do Banco de Portugal, decide abrir a boca e deixar a descoberto as influências de outro Costa em assuntos que não são da sua competência. Refiro-me, naturalmente, ao irascível telefonema feito em defesa preocupada da Isabel dos Santos, uma das herdeiras do José Eduardo dos Santos, ex-presidente de Angola e que entretanto se refugiou num dos países das Arábias para aproveitar bem o sol que, apesar da injustiça, invariavelmente, brilha mais para uns do que para outros. A isto, o senhor Costa, o primeiro-ministro, responde que não passam de jogos da oposição, que não perdoa a maioria absoluta atribuída ao seu partido. Quem não perdoa a maioria absoluta sou eu e não sei como os portugueses ainda não aprenderam a não entregar de bandeja o ato governativo exclusivamente a um partido, seja ele qual for! Após a tomada de posse é esperar um bocadinho e observar os tiques autoritários que começam a surgir. A par deste enredo vergonhoso, que terminará na palavra de Costa contra Costa, a lembrar o Kramer contra Kramer, temos o episódio de outro douto! O senhor Miguel Alves, ex-presidente da Câmara de Caminha e ex-secretário de Estado adjunto, talvez merecesse o epíteto de o Mago, uma vez que revelou a capacidade de fazer desaparecer a avultada quantia de 300 mil euros, que terá distribuído benevolamente a um duvidoso promotor imobiliário. Evidentemente, a oposição que não perdoa a maioria também não perdoou este episódio… E assim vamos, nesta mansa e pacata República, à beira-mar plantada, eternamente à espera de ver os que nos governam a zelar pelo bem comum ao invés de forrar os próprios bolsos, aumentando a sua pança, indiferentes à diabetes e ao colesterol.

            A segunda nota, ainda na senda política, vai para o nosso Presidente da República que nos aconselha a esquecer a violação do Direitos Humanos enquanto durar o Mundial. Enquanto a bola rolar, quem quererá saber dos trabalhadores-escravos mortos (em número avassalador) ou das mulheres massacradas e privadas da sua liberdade ou dos imigrantes mortos do Qatar… Nada disso importa! A comprová-lo estão as palavras de Gianni Infantino, que mostra sentir-se confuso. Decidiu fazer como Pessoa e, subitamente, faz um exercício de despersonalização e sente-se qatari, imigrante naquele país, africano e até mulher! De seguida, acusa a Europa de hipocrisia. Tem razão, esta não falta ao velho continente e ele parece ter aprendido bem a lição.

O Mundial não deveria ser realizado naquele país. Nada mais há a acrescentar. Tudo o resto é tapar o sol com a peneira, a favor de uma decisão inqualificável, mas para quê perder o nosso tempo com alguns milhares de vidas perdidas e outras subjugadas? O que interessa é a redondinha. Sempre há gente muito inconveniente! Estes ativistas da paz e da justiça não têm nem sentido de oportunidade nem o que fazer! Sempre dispostos a arranjarem polémicas. Não se aguenta!

A terceira nota e a mais otimista, para fechar a terceira volta ao número cem como deve ser, vai para o programa “Viagem a Portugal”, inspirado no livro do nosso Nobel e que o brasileiro Fábio Porchat apresenta, na RTP1. Agrada-me viajar por Portugal na companhia de tão venerável companhia e ver o engraçado Porchat a refazer os passos do ilustre escritor, acompanhando-os com pequenos excertos da obra. De caminho, ainda fiquei a saber do Geraldes, um jogador da bola que rompe estereótipos, porque não só lê bastante como ainda escreve poesia. Dei comigo a pensar que com esse sempre seria possível uma conversa fora dos lugares-comuns do mundo futebolístico, pelo que nem tudo está perdido…

 

Nina M.

sábado, 12 de novembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 299

 Questão de Honra

            Deparei-me, hoje, com uma cena do filme cujo título resgatei para dar nome à crónica. Da autoria de Rob Reiner, em 1992, com um elenco de luxo, com nomes como Tom Cruise, Demi Moore, Kevin Bacon, Kevin Pollak e o gigante Jack Nicholson faria furor.

Tom Cruise teria trinta anos ainda que aparentasse menos e era o menino bonito da época. Haveria adolescente que não tivesse uma paixoneta pelo “Tom das Cruzes?” O filme é bom, mas não convence pela beleza de um dos seus protagonistas, mas pela narrativa e pela mensagem que passa. A cena que especificamente relembrei é extraordinária. Nicholson tem uma interpretação sublime, de nos deixar sem fôlego. É isto que a arte nos faz, se nos toca, tira-nos o ar. Vi o filme algum tempo mais tarde, mas há tempo suficiente para não me lembrar com detalhe do enredo, mas ao voltar à cena em que Cruise, o advogado exibicionista da marinha, que defende dois marines acusados de terem matado um colega, por lhe terem aplicado o “código vermelho”, punição fora da cartilha militar cuja existência ninguém confirma, tem de enfrentar em Tribunal o temível comandante Jack Nicholson. Poucos esquecerão a deixa: “I want the truth!”, “ You can’t handle the truth!”

O advogado vence o comandante, porque o enfurece e consegue arrancar-lhe a confissão de que tinha ordenado o código vermelho, punição que poria termo à vida do soldado. O comandante era o autor moral do crime. O filme obriga-nos a questionar os conceitos de lealdade e de honra perante uma instituição e, sobretudo, se essa lealdade se deverá manter perante um caso de homicídio, mesmo que involuntário. O narcisismo do comandante, numa interpretação brilhante de Nicholson, expõe a sua frieza e a sua aparente superioridade moral. É esta, aliada à sua vaidade que o desequilibram, tornando-o irascível e fazendo-o perder a sua racionalidade, acusando o advogado de ter o atrevimento de lidar com questões que desconhece e que não compreende, convidando-o a pegar numa arma e a defender a liberdade antes de questionar certos procedimentos, afirmando que a morte do soldado pode ter salvado vidas.

Certo é que a Europa vive um cenário de Guerra e, imediatamente, me questionei se também nós, cidadãos comuns, seremos capazes de lidar com a verdade. Os russos retiram-se de Kherson. Ao que parece, não lhes restaria outra alternativa. A força militar russa não é o que gostariam de fazer parecer. Têm um exército esfrangalhado, cheio de gente que não passou de carne para canhão. Eu gostaria mesmo que fossem obrigados a retirarem-se da Crimeia também, porque esse assalto, já em 2014, foi uma vergonha. Espero que fique claro para o mundo que, no século XXI, não se aceitam comportamentos imperialistas e invasores, de alargamento de fronteiras, independentemente do poderio militar que o país possa ter. Serão os russos capazes de lidar com a verdade quando tudo isto terminar? Saberão que muitos dos que morreram não passaram de peões num jogo de Xadrez jogado pelos grandes que não hesitam em sacrificar inúmeras vidas para salvaguarda da honra militar? Gostaria que fossem bafejados pela coragem de olhar nos olhos do povo invadido e de sentir os crimes de guerra sucessivamente cometidos. Gostaria que percebessem que não deve haver guerra sem lei e, sobretudo, que foi tempo de desespero e de inutilidade.

Não poderia escolher melhor altura para ler “Guerra e Paz”. Tanto ainda permanece semelhante: os soldados, peças de xadrez dispostas e distribuídas com frieza, a tentarem sobreviver em condições miseráveis, com fome e frio. Pilham os próprios camponeses russos antes que cheguem os franceses. E os comandantes, esses, ocupam os palácios abandonados dos seus compatriotas. Continuam a viver confortavelmente e a organizar serões, enquanto desenham os próximos movimentos no tabuleiro da guerra, a partir do conforto de casa, em busca de promoções. A eterna vaidade humana…

Uma questão de honra seria evitar o sangue dos outros.

 Nina M.

sábado, 5 de novembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 298

 

O Homem e a sua inexpugnável estupidez

            Vi, hoje, nas notícias, tal como muitos de vós, com repugnância e revolta, a vandalização premeditada do Museu do Prado e de um dos quadros de Goya, com a intenção de sensibilizar a sociedade para a questão do aquecimento global. A ação concertada repetiu-se por outros lados, com o mesmo objetivo.

            Por mais que as questões ambientais suscitem a minha preocupação e a minha simpatia, não deixei de sentir repúdio pelo ato de vandalismo e pelos seres que o perpetraram. O Prado é património dos espanhóis, mas também de toda a humanidade e querer chamar a atenção para as alterações climáticas, por meio de ações selvagens é de uma indignidade inqualificável! Temos o dever de proteger o Planeta e a Natureza, mas a arte é também uma expressão da natureza humana e não é meramente uma manifestação cultural, mas a epifania transcendente do Homem, que lhe permite tornar tangível o sublime. A arte, independentemente da forma escolhida para a sua concretização, é a suprema realização humana! Não compreendê-lo e, sobretudo, ofendê-la é um comportamento simiesco, que em nada abona em favor dos executantes. Portanto, meus caros, os que se atrevem a profanar o que de melhor o Homem é capaz de produzir não passam de uns símios, independentemente, das suas razões. Talvez o planeta agradecesse a sua não existência.

            Esta conduta faz-me recordar a conversa com o meu adolescente de quinze anos, que afirmava categoricamente que mais valia o Homem não ter evoluído, porque apesar do incremento intelectual, continuava estúpido. Eu concordo em parte, isto é, o Homem continua parvo. Quis saber o havia por detrás da sua declaração. Começa, então, por explicar que o Homem vai destruir-se a si mesmo, uma vez que vai destruir o planeta e, por consequência, a espécie. Acrescentou que os homens vivem para se explorarem mutuamente, com a ambição do dinheiro e que talvez os primitivos fossem mais felizes. Não havia ambições económicas desmedidas. Rebati o seu argumento, já que é a melhor forma de o fazer pensar e desenvolver um raciocínio. Lembrei-lhe que as gerações mais recentes, aquelas que já foram educadas para terem preocupações ambientais e desenvolverem comportamentos amigos da Natureza, talvez sejam as que comportam maior pegada ecológica. São os incapazes de andarem cem metros a pé, os que trocam de telemóvel a cada ano, os que não abdicam um pouco do seu conforto… Reforcei que não imaginava o retrocesso civilizacional, porque já ninguém está disposto a voltar ao tempo das cavernas. Se ficar sem as tecnologias, que são já uma quase extensão do seu corpo, é para elas um terror, que dizer do restante… Afirmei que a estupidez humana vivia ao lado da inteligência e que o necessário era que a última vencesse.

            Acabou a sua intervenção com um suspiro, afirmando que todos iríamos morrer, logo a vida é inútil. Olhei séria para ele e vi-lhe a angústia da existência, na puerilidade dos seus quinze anos. Respondi que enquanto isso não acontece, enquanto o fim não chega, a nossa missão é fazer com que nos cumpramos na vida, dar-lhe um sentido e um propósito. O que acabava de me dizer, a constatação do absurdo que também preenche os nossos dias era uma questão filosófica que tinha assolado os existencialistas do século passado, logo era um assunto muito importante       e que merecia ser por ele pensado. Aproveitei para lhe dizer que tinha de estar atento para descobrir o atribuía sentido à sua vida. Sei a razão da sua angústia: reconhecer a importância do estudo e de pouco gostar de estudar. A tremenda dificuldade que representa para ele contrariar a sua preguiça e abdicar dos seus prazeres. Não me ocorreu falar-lhe dos estoicos nem das virtudes de Aristóteles, talvez noutra altura se proporcione. Procura o teu talento e talvez descubras um dos sentidos que justifique a tua existência e atribui-lhe um propósito, porque todos temos algum sem que, muitas vezes, seja algo propriamente palpável. Uns concretizam-nos através da arte, outros pelo desporto, outros pela capacidade de pensar, outros pela sua extrema generosidade… As possibilidades são muitas, meu adorado filho, procura e descobre para que não te sintas perdido.

            Ouviu-me. Não respondeu. Não sei o que pensou. Sei que é demasiado cedo para tão grande descoberta. Espero que descubras a estupidez que em todos mora e a saibas contrariar pelo uso da razão.

 

Nina M.

 

 

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Eu sei

Eu sei...
Que há morte
Sobre morte no olhar
A cada despedida
Obrigados a deixar
Correr a vida lesta
Numa falsa ilusão
De que há esperança
De que há mar a cada emoção

Eu sei...
O mundo não quer saber
Da nossa verdade dorida
Que é para todo o ser existir
Uma face que foi ferida
Ao ver tantos partir
Tão cedo fora de tempo
A queda do pano sobre o palco
Que acontece num momento...

Eu sei
Que há vida
Sobre vida num olhar
Uma esperança perdida
Que nos quer falar
E o silêncio mudo
Envolvido no brilhar
A superar o medo
Faz-nos acreditar






sábado, 29 de outubro de 2022

Crónica de Maus Costumes 297

 “Saramago, Ainda e Sempre”

Constitui o subtítulo “Saramago, Ainda e Sempre” o mote da tertúlia a que acabo de assistir, no âmbito da comemoração do centenário de José Saramago     , iniciativa da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, por intermédio do pelouro da cultura, em parceria com a Biblioteca Municipal Professor Vieira Dinis.
Normalmente, eu venho agradada destas iniciativas culturais e hoje não foi exceção, ainda que parte do que ouvi sobre o autor e a sua obra não tenha constituído novidade para mim. Congratulo, porém, todas as iniciativas que possam tornar o Nobel próximo das pessoas, garantindo a perpetuação da sua obra e, por consequência, a sua própria imortalidade. O painel era constituído pela Dra. Manuela Bentes, responsável pela condução da conversa e os ilustres convidados, pelo Dr. José Carlos Vasconcelos, filho desta terra, o grande timoneiro do Jornal Artes, Letras e Ideias, conseguindo mantê-lo vivo já há quarenta e dois anos e também coordenador do Gabinete Editorial da “Visão e por um dos responsáveis pela Fundação Saramago, Dr. Sérgio Letria.
O meu agrado prende-se, sobretudo, com as experiências narradas pelos convidados que tiveram, ambos, o privilégio de privar com Saramago. José Carlos de Vasconcelos esteve presente em Estocolmo, para além de ter sido o primeiro jornalista a entrevistar Saramago para a televisão. O Sérgio Letria trabalha na Fundação desde a sua criação, em dois mil e sete, projeto do próprio Saramago. (Ainda venho meio abismada com a forte semelhança física entre ele e o Valter Hugo Mãe!).
O Homem por detrás do escritor, de aparência dura, firme e distante era também um homem de afetos. Testemunhos vários confirmaram já a generosidade de Saramago. A geração dos escritores contemporâneos, todos eles crescidos com Saramago, não tem pejo em referir essa generosidade do ilustre em relação aos iniciantes nas lides da escrita. Hoje, foi uma vez mais confirmada. Ficamos a saber que a Fundação é sustentada com os direitos de autor de Saramago e com as vendas de livros e outras atividades que organize. Mostra coerência e lisura por parte do escritor. Ouvir contar que quando saía um novo livro, Saramago insistia em premiar monetariamente os funcionários da editora, do seu próprio bolso, por meio dos direitos de autor é extraordinário ou que certa vez, no Brasil, o puseram apenas a ele num hotel de luxo e o resto da comitiva portuguesa noutro menos conceituado e ele decidiu acompanhá-los, trocando o luxo pelo respeito para com os outros, é de valor. Na verdade, gostei da confirmação de que nos pequenos gestos do quotidiano, o escritor mostrava a mesma militância cívica e o mesmo humanismo de que a sua obra é exemplo. Saramago mantinha a coerência. O brilhante e inusitado discurso que faz em Estocolmo, aproveitando a ocasião para lembrar os atropelos constantes aos Direitos do Homem, responsabilizando os grandes líderes e os cidadãos que os elegem foi de uma coragem e lucidez admiráveis. Fiquei feliz por ver confirmada a minha suspeição: não se pode acusar o Nobel de hipocrisia. Ainda que esta seja um mal necessário para as boas relações sociais, há níveis intoleráveis de hipocrisia e queira-se ou não, apesar de sermos capazes de distinguir o autor da obra, esta não deixa de sofrer, caso o seu autor se revele absolutamente dissimulado. O génio literário continua a ser uma figura controversa. Há quem não goste dele e é legítimo, poderemos, eventualmente, discordar da sua orientação política e da sua visão de mundo, mas não se vislumbra nele hipocrisia, o que o torna autêntico e confiável. Mesmo quando se refugiou em Lanzarote, após a censura vergonhosa do seu “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que o impediu de concorrer a um prémio europeu, não deixou de continuar a pagar os impostos no seu país, embora estivesse desiludido e zangado com as figuras proeminentes de então e, naturalmente, com razão.
As meias-palavras ditas por José Carlos de Vasconcelos a propósito do meio em que se movimentam os escritores, afirmando que era melhor não sabermos desse ambiente, revelam muito. Lembrei-me imediatamente da hipocrisia e da inveja que Miguel Torga não tolerava e que faziam com que ele permanecesse longe desse covil.
Gosto de descobrir que as pessoas por detrás dos escritores, apesar de não serem nem santas nem heróis, não maculam o respeito que lhes dedicamos e, principalmente, os valores que os vemos defender.
Saramago tinha, certamente, os seus defeitos e apesar de podermos discordar de algumas das suas ideias, os princípios de liberdade, de justiça, de paz, de combate à desigualdade social por ele preconizados continuam a ser não só válidos como absolutamente necessários para que a sociedade se humanize.
Ele era um militante cívico que sempre lutou através da palavra por um mundo mais justo e esse mérito, ninguém lhe pode retirar.
 
Nina M.

sábado, 22 de outubro de 2022

Crónica de maus Costumes 296

  injustiça de Zeus

                Decidi, caro amigo, ex-colega, engenheiro de minas-escrevinhador-poeta-editor-estudante de matemática, seguir a tua sugestão… Eita homem dos sete ofícios, para usar uma expressão das bandas de onde te encontras, porque a transmontana seria menos escorreita!

            Para vos contextualizar, caros leitores e nem pensem que me fazem aderir à moda dos leitores e leitoras, mas isso seria assunto para outra crónica, dizia, portanto, que decidi aceitar o repto lançado pelo amigo Luís Altério ao ter comentado um dos seus fragmentos literários com que nos vai presenteando… Também já o aconselhei a deixar os fragmentos, que já são muitos e a atirar-se ao romance, mas não me ouviu ainda… Maravilhado com a Matemática, o Luís lá se atirou à empreitada de a estudar. Na conversa, dizia-me que escreveu o fragmento no meio do estudo e brinquei com a situação, afirmando que precisava da palavra para descansar da temível matemática! Lamentou a minha incapacidade de ver a beleza de uma equação. Admito que a não tenho. Sei de quem a possui, mas quanto a mim, resta-me consentir que ela possa existir, tal como existe na arte, seja na Literatura, seja na música, na pintura, na escultura, na representação, enfim, nas várias manifestações culturais da humanidade. Se a cultura trouxe algo de positivo foi a arte! A propósito disto, interrogava-me se a par desta maravilha que é a arte, trazida pela cultura, se paradoxalmente  não afasta o homem da sua natureza. As formas de vida do Homem hodierno são produtos culturais. A organização social e familiar tradicional do ocidente é diferente de outras e não significa que seja melhor ou pior, apenas diferente. Se as relações monogâmicas são a regra e considerado o correto pelos nossos padrões culturais (há quem ponha em causa), noutras culturas, o homem pode ter mais do que uma mulher, há uma poligamia que é aceite, mas apenas de uma das partes. A minha visão ocidental não me permite que esteja de acordo e não falo da poligamia, se for do interesse de todos, mas do facto de só uma das partes ter direito a ela. Mesmo que nos possa causar confusão, se os envolvidos se sentem felizes a viverem dessa forma, quem seremos nós para impormos o que quer que seja. Guna Yala, uma pequena comunidade indígena do Caribe, é um exemplo a ter em conta. Não se trata de um matriarcado, porquanto a mulher não é parlamentar ou cacique, mas é ela quem toma todas as decisões domésticas. Quando casa, o homem muda-se para a casa da noiva e é ela quem determina se o marido pode ou não dar alimentos à sua família de origem. O trabalho da mulher é valorizado e entendido como igual, sendo elas quem mais ganha, em parte pela prosperidade que o turismo lhes levou. Os gunas aceitam muito facilmente que os rapazes se sintam raparigas e queiram viver como tal, são os “omeggid”. As famílias aceitam-nos, acolhem-nos e ensinam-lhes as delicadas tarefas femininas, como bordar. Há mais transexuais masculinos do que femininos, mas em ambos os casos, a natureza de cada um é respeitada. As celebrações mais importantes nas ilhas Guna Yala são o nascimento de uma menina, a sua puberdade e o seu casamento. Toda a comunidade se reúne para beber chicha, uma cerveja local, para celebrar a juventude e a feminilidade. Já na tradição e cultura ocidentais, há uma construção do género binário, tendo em conta a biologia, mas que esquece o modo particular e pessoal de cada um estar e de se exprimir no mundo e que deveria ser acolhida, desde que em nada prejudique os outros. É o caso. A orientação sexual ou identidade de género em nada interfere com a liberdade do outro, mas a tradição ocidental tende a ostracizar, apesar dos enormes progressos que tem vindo a fazer nessa matéria. Significa que, neste caso, a tradição cultural padronizada é inibidora da natureza do ser humano. Daí a minha questão de me interrogar se a cultura, apesar de ser fundamental e edificante, imprescindível para o Homem, não é, em simultâneo, inibidora da natureza de cada um. Também pode ser que esteja completamente errada e que este pensamento seja uma ideia de caca, até porque limpava casas de banho, quando me surgiu…

            Caro Altério, como vês, são questões estapafúrdias ou filosóficas como esta, dependendo do ponto de vista de quem as vê, que me assaltam o espírito. Desconfio de que quem nasceu assim, não poderia ser coroado com inteligência matemática, da qual sou desprovida. Enfim, lá conseguia os mínimos, mas os números nunca me assaltaram o espírito! Porém, era capaz de sonhar diálogos em inglês, mesmo acordada, ou em francês… Raramente me lembro do que sonho, mas sei que neles falo melhor inglês do que acordada. A língua não se enrola, não me esqueço do vocabulário nem nada… O meu calcanhar de Aquiles é o latim, mas isso reconheço que no tempo em que tive de o estudar, as atrações eram muitas e eu não tinha tempo para tanto, porque, hoje, sei que iria gostar de o fazer. Talvez na reforma compre a gramática do excelso professor Frederico Lourenço e me dedique novamente, agora com mais seriedade do que só para fazer a cadeira, e o volte a aprender. Às vezes ainda suo frio, em sonhos, porque estou no exame e olho para aquilo e não sei nadinha! Que desespero, meu Deus! Aqui a menina nunca foi de ir para uma frequência a zero. Poderia e deveria ter sido mais aplicada, certo, mas sempre tive o meu brio e sempre fiz todas as cadeiras certinho! Uma jovem também precisa de vida social! O recolhimento trouxe-mo a maturidade…

            Portanto, chegada aqui, reafirmo o que já te havia dito, os meus professores de matemática (os desgraçados estão sempre na berlinda) não tiveram qualquer responsabilidade na minha falta de apetência para a disciplina e lembro-me perfeitamente de a minha ida para o décimo ano ter representado uma alegria tremenda, por não ter disciplinas de que não gostasse e nas quais fosse fraca. Ainda hoje me interesso e tenho gosto pela História, pela Filosofia, pela Psicologia, para além da minha área e das línguas, como te disse.

Enfim, cada um é para o que nasce! Dotes artísticos também não possuo e  posso lamentar-me, porque tenho duas mãos canhotas, fraca voz e desafinada e no desporto, sei caminhar e correr alguma coisinha, porque basta mexer os pés e aguentar…

 Já pensei pôr Zeus em tribunal, porque quem tanto fogo forja não se dignar a deixar cair distraidamente uma faísca sobre mim que me fizesse um pouco maior é de gerar indignação!

Por hoje é isto. Aí tens a tua “crónica à la Sónia” ou à la Nina M. como sugerido.


Nina M.