Seguidores

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Um dia

Um dia serei água (matéria liquefeita)

Oceano que fustiga impiedosamente

A rocha na sua fúria de ser


Um dia serei água (matéria liquefeita)

Chuva torrencial que arrasta

Os abismos do homem para o caos


Um dia serei água (matéria liquefeita)

Regadio de terras áridas e inférteis

De onde germinarão flores


Um dia serei água (matéria liquefeita)

Oceano azul prata de perfeição

A beijar suavemente a areia após a exaustão



segunda-feira, 26 de julho de 2021

Um espírito noturno

Um espírito noturno 

Arranca-me aos braços de Morfeu

E a meu lado contempla o sono

Essa pequena morte diária 

Onde as forças se retemperam

Antes da ressureição 

Presença incorpórea que vela

O meu descanso...

Deita-se a meu lado 

A meio da noite estrelada

Numa urgência calada

De onde nasce a poesia

 




 




sábado, 24 de julho de 2021

Crónica de Maus Costumes 242

 Em jeito de despedida

            Aproxima-se o final de um ano letivo e as merecidas férias. A sensação é a de encerrar dois anos letivos consecutivos, quase sem paragem. O Ensino à Distância (E@D) deixou marcas em todos: alunos e professores.

Estendeu-se o ano letivo e houve um terceiro período imenso e sem paragens. Os alunos pararam quinze dias, sem necessidade, logo na retoma do segundo período, porém, os professores, durante esse tempo, estiveram em reuniões pedagógicas e a preparar material que precisariam de usar nas aulas “on-line”, porque as aulas em presença e as aulas digitais exigem recursos, preparação e tempos diferentes. As últimas são mais trabalhosas e menos eficazes (pelo menos com crianças de pouca maturidade ainda). Valeu, porém, a experiência passada, motivo pelo qual esses quinze dias de encerramento foram absurdos e prejudiciais para todos. O problema do Governo era a falha nos computadores que tinham sido prometidos e demoraram a chegar, mas a lacuna continuou a existir e ainda não está resolvida.

Como mãe, apesar de me preocupar estes dois anos cruciais, mas atabalhoados que a minha filha viveu, em que a consolidação das aprendizagens (3º e 4º anos) foi posta em risco, considerei um disparate o prolongamento até oito de julho. Nas últimas duas semanas, a minha pequena só pedia que a escola terminasse, já cansada de tudo e com vontade de ficar em casa. Muito nunca significou bem feito e é essa a sensação com que fico. O Ministério quis compensar o tempo perdido, mas para haver aprendizagem é necessário que haja predisposição para aprender e motivação. Nas últimas semanas, não as sentia na minha pequenota. Ela, sempre tão responsável e briosa! Havia sobretudo cansaço. Tal como o meu, que respirei fundo quando as aulas chegaram ao fim (escrevi aulas e não trabalho). Porém, quando o ano letivo já vai longo, o trabalho que não exige a permanência com alunos em sala de aula parece mais suave.

De modo que estas férias são, certamente, muito desejadas. Espero que sejam o encerramento de um ciclo e o início de um novo capítulo. Preferencialmente, sem confinamentos e sem ecrãs entre alunos e professores. Precisamos todos de resgatar as nossas vidas e a nossa normalidade. Depois, termina o quadriénio, o que significa que para os professores de quadro é ano de concurso. Para os professores contratados é-o todos os anos! Muitas vidas ainda por resolver. Para mim, a angústia é um pouco menor do que já foi, pois há o vínculo à zona, mas não há o vínculo à escola. A minha egoísta angústia é a de ter o vínculo emocional construído ao longo de seis anos e de não o querer desfeito. É tempo de esperança, mas de incerteza também. Mantenho a real esperança de poder regressar aonde gosto de estar, mas não há certezas, de modo que me resta agradecer, antes de mais, à direção, a simpatia, a cordialidade e a disponibilidade com que sempre me receberam. Tentei fazer o meu melhor. Terei falhado, eventualmente, e peço desculpa se aconteceu, porém, parto de consciência tranquila por ter dado de mim o melhor que pude e soube fazer.

Aos colegas de trabalho, dizer-vos que foi um prazer privar e trabalhar convosco. Grata pela colaboração, pelo espírito de entreajuda e pela simpatia. Nalguns casos, grata pela amizade que nos liga. Uma boa escola vai para além do edifício confortável, porque a boa escola é construída com bons seres humanos. A qualidade do relacionamento interpessoal entre pares, entre as estruturas intermédias e as estruturas de gestão nunca me faltou. Também eu tentei não vos falhar e colaborar da melhor forma que soube. Perdoai se, eventualmente, não o consegui. Pura incapacidade e não qualquer espécie de ronha.

Resta-me, então, desejar umas boas férias a todos, com a esperança de reencontrar muitos em setembro próximo. Faço votos para que a vida vos traga o que desejais. Deixo um abraço apertado aos contratados, ainda mais dependentes da boa vontade dos deuses dos concursos do que eu e também aos recém-chegados ao quadro de zona. Que as moiras (as três irmãs, deusas gregas do destino) estejam connosco.

Por fim, dizer aos que me acompanham nas lides da escrita que a rubrica “Crónica de Maus Costumes” parte também para férias, no próximo fim de semana.  Preciso de desintoxicar-me e o número 242 representa quase cinco anos de textos semanais. Ainda hei de descobrir como os aguentais…

 Nina M.

Atacama

Exibe o belo vestido de pétalas suaves

Delicado, em tons de rosa

A cobrir as fendas e a aridez do seu corpo

Depois das chuvas em primaveril ensejo

A contrariar a sua natureza austera 

Exibe fulgurante beleza

A lembrar que o assombro existe

Na contemplação de rosas num qualquer deserto

Porque são raras as flores de Atacama!



sexta-feira, 23 de julho de 2021

Não beberei o veneno

 Não beberei o veneno

 Vertido ao vento enquanto passo

 Sou antídoto sou canção 

 Convicção feita de aço 

 Por te conhecer, ó ideal,

 E te acolher dentro da alma

 Saber a essência pura e bela

Apreciá-la na quietude e na calma

Fecham-se os ouvidos à ignomínia 

Ergue-se a voz no silêncio cinzento

Cristalina e sã é a consciência 

Não! Não conspurcarão a beleza sagrada

De um coração em que tenho morada.  


quarta-feira, 21 de julho de 2021

A felicidade terá nome

 A felicidade terá nome
 E Será de mulher
 
Agente criador demiurgo
Transumância de almas elevadas

Além mar, céu e terra
E fala-lhes a deusa baixinho

Um dito de Amor
O conforto feminino

E nessa nuvem fresca de orvalho
Serena a pura essência a dor

Por ver distante o agasalho
Os Raios de sol e o seu calor

A Felicidade terá nome 
E será de mulher

Para afastar a escuridão 
Para matar a solidão

Mesmo em manhãs ermas de neblina
Espreita entre nuvens a menina

Porque a felicidade terá nome
E será de mulher...










domingo, 18 de julho de 2021

Descrença

Já houve um outro olhar...
Um olhar límpido e cristalino
Sobre as coisas e a existência

A inocência pueril de quem olha
alegremente o mundo e nele acredita
Ingenuidade e pureza perdidas

Ao primeiro desgosto de amor
Ao primeiro ultraje sofrido
À consciência primeira da injustiça

E a perplexidade irrompe muda
Calada na sua timidez
Talvez com medo de ferir a crença

Fomos jovens e acreditámos
E sabíamos que não perderíamos
o olhar embevecido sobre o mundo

Com desdém dos velhos (dos já cansados
Dos trilhos ignóbeis da existência)
Em ânsia de vida, de construção e de aceleração

Arrogância abandonada aos poucos
Esfrangalhada pela mortalha da realidade
A certeza de nada importar por nada subsistir

O legado cruel deixado aos do porvir
Os ataques do homem ao homem
Os ataques do homem à natureza-mãe

A ganância demolidora dos grandes
Dos que desconhecem o valor da dignidade
E julgam que a vestem com o fato e a gravata

A perplexidade contínua
De quem vê o semelhante chegar ao espaço
E fechar os olhos à epopeia da pobreza

A fome e a míngua  a conviver
Com o desperdício. Nunca houve tanto
E nunca tanto se perdeu...

É a evolução. Dizem-nos.
A crueldade é menor. Não há espadas nem flechas.
São armas sofisticadas, biológicas e químicas.

Não rolam cabeças nem se esquartejam corpos
Mas espalha-se o veneno letal
Que há de matar mais inocentes

Tudo higiénico e distante ao alcance de um botão
Eliminam-se os campos de concentração
E os bombardeamentos são desinformação

Mas haja esperança no homem civilizado!
Há de haver solução...  
Tudo está em permanente progresso

E procura-se desesperadamente 
Esse olhar virginal
Vê-se a velhice desdenhada sob a pele

Talvez resista o último suspiro de alento
A contrariar a resignação 
No mágico momento 

Em que se encontra a poesia
E dela não se larga a mão
Vem de lá a maresia...








Deitam-se as palavras sobre o leito

 Deitam-se as palavras sobre o leito

 Corpo nu em lençóis brancos

 Livre e despojado

A sentir o prazer do toque sobre a pele

Não vem a sílaba exata e clara

Volteiam as ninfas em dança sensual

Chamo-as a resolverem a minha pulsão

Rejeitam o apelo

Resistem como quem pressente

Hoje nem um verso frutificará

Perdido alhures na distância do coração




sábado, 17 de julho de 2021

Crónica de Maus Costumes 241

 

A era digital e a suas implicações

            Assisti a um debate “on-line”, promovido pela livraria Barata (Lisboa) e que tinha como tema “ A era digital e o desligamento do mundo”, uma conversa com o filósofo André Barata e o Francisco Teixeira da Mota, advogado.

            Se neste momento se interrogam como tenho tempo para assistir a debates, eu explico: enquanto passo a ferro, tarefa aborrecida, gosto de rentabilizar o tempo e vou assistindo a conferências, conversas, sobre temas que me interessam. Uso o telemóvel e aprendo, reflito e o trabalho fica feito, de igual modo.

Naturalmente, falou-se da alienação que as redes sociais constituem, na fragmentação que o digital causa, na velocidade com que se vive hoje e na necessidade de pausar, de regular o funcionamento do digital… Abordaram duas questões bastante pertinentes: primeiramente, a regulamentação do que pode ou não ser dito, escrito e veiculado pelo mundo digital, já que põe em causa a liberdade de expressão e a dificuldade de selecionar o que é ou não censurável. Dito de outra forma: até onde será admissível a censura nas redes sociais? Poderá e deverá penalizar-se alguém que diga que “os políticos são corruptos?” Aplicam-se, no digital, as mesmas regras do espaço público? Trata-se de uma perceção errónea, muitas vezes propalada no quotidiano, que poderia ser objeto de tratamento jurídico, mas que é, normalmente, desvalorizada. Ora, um comentário destes na esfera virtual deverá ser sancionado? Deverão os estados intervir, apesar de as grandes corporações terem pessoas cuja função é o policiamento do que vai sendo comentado e publicado? Se a entidade considerar uma publicação ofensiva pode apagá-la e punir o autor com dias de suspensão da rede. A grande questão passa por definir com exatidão os limites do que é aceitável ou não. A verdade é que essa regulamentação não funciona. Eu considero inaceitável que se use a rede social para o insulto, o enxovalho, e a ofensa primitiva e gratuita. Não faltam comentários desagradáveis, apenas porque as pessoas pensam que por se ter uma rede social tem que se aceitar tudo. Não. Definitivamente, não! Pode-se discordar, mas ser insultuoso ultrapassa os limites do bom senso. Depois, há a questão das notícias falsas ou de imagens e vídeos violentos que são partilhados,  com boas intenções, mas que só fazem perpetuar essa falsidade ou violência. O que fazer? Policiar, rastrear e bloquear as notícias consideradas falsas ou falaciosas? A aferição da objetividade, imparcialidade e veracidade de um facto nem sempre é linear ou fácil de estabelecer, pelo que talvez seja mais benéfico apostar na educação digital e combater essas notícias falaciosas com publicação de qualidade e factual do que censurar sem critérios bem definidos. Mexer na liberdade de expressão, baluarte das democracias pode ser perigoso, mas simultaneamente, nem tudo pode ser admissível. Estamos a viver num “maravilhoso mundo novo” que ainda estamos a aprender a gerir e que nos desliga, muitas vezes, da realidade em que nos movemos.

A outra questão que chamou sobremaneira a minha atenção é o “direito ao esquecimento”. Uma vez na Internet, para sempre na Internet, dizem. Todos nós temos direito à privacidade e à intimidade. O advogado Francisco Mota lembrava que esse direito ao esquecimento é fundamental, já que se alguém cometer um crime e cumprir pena pelo erro cometido sujeita-se a que passados vinte anos esse facto possa ainda ser encontrado facilmente na Internet. Qualquer um de nós pode ser confrontado com um disparate que tenha dito ou feito em determinada altura, que não nos define, mas que pode ser reavivado a qualquer momento com consequências desastrosas. Há empregadores que vasculham o perfil digital do candidato para decidirem sobre a sua contratação. Ainda há dias o Ronaldo foi vítima dessa armadilha, a propósito da coca-cola que rejeitou e desaconselhou beber. A sua antiga campanha publicitária a essa bebida reapareceu. O Ronaldo perdeu, momentaneamente, o direito à incoerência que afeta a vil condição humana (ninguém consegue manter uma coerência inabalável ao longo da vida) e perdeu também o direito a mudar de opinião e de evoluir!

Se pensarmos na morte… O que acontecerá ao nosso espólio? Qualquer um poderá assumir a nossa conta? Quem sabe usurpar a nossa identidade… Quando eu desaparecer terei o direito de levar comigo o que me pertence, incluindo a minha vida digital. O advogado sugeria a criação de “cemitérios digitais” para que não circulem, no mesmo espaço, mortos e vivos e para que estes últimos possam prestar homenagem aos primeiros. Não será de todo má ideia, no entanto, quando eu desaparecer, preferiria que a minha página do “facebook” fosse comigo. O blogue poderá ficar. Pode ser que alguém lhe aproveite os versos, que deixaram de ser meus. Tudo o resto só a mim me pertencerá.

Ocorre-me a última cena da série que acompanhei sobre o general De Gaulle. Imediatamente após a sua morte, a esposa queimava o seu espólio: todos os seus escritos (correspondência trocada e reflexões pessoais). Foi uma perda? Foi. Tremenda! Teve direito ao esquecimento? Com certeza.

 

Nina M. 

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Espera

Espero-te

Alcanço-te nas esquinas do pensamento

A meio dos versos lidos vagarosamente

Como quem bebe o precioso líquido 

Néctar de salvação advindo das palavras

Contra o esquecimento 

Contra a resignação 

Contra mim talvez

Espero-te não sei de que esperança 

Vaga ou vã

Lume feito brasa que aquece sem arder

Espero-te com a vontade 

De quem não quer perder

O chão em rota de colisão 


sábado, 10 de julho de 2021

Crónica de Maus Costumes 240

  Deus, Kant e o Homem 

 Normalmente, quando corro só, a atividade não é infrutífera. Além do bem que faz à minha saúde, permite-me o diálogo entre mim e a minha consciência. Durante a corrida, assolam-me pensamentos e reflexões. Um texto de cariz filosófico que li sobre a diferença entre a compreensão e o perdão ou a justificação e com o qual, genericamente, concordo, estabelecia a diferenciação entre os conceitos. Compreender não significa perdoar ou desresponsabilizar e nem a sociedade pode viver de forma diferente. O facto de compreendermos as motivações que poderão estar por detrás de um crime não significa que o responsável seja perdoado e ilibado, exceto no caso de inimputabilidade. Ora, creio que o Homem não pode viver sem lei nem sem mecanismos de regulação, por incapacidade de por si só ser capaz de colocar os interesses do bem comum à frente dos seus. Esta estirpe de humano sempre rareou, pelo que para haver ordem e civismo, temos necessidade de recorrer a códigos de conduta ética estabelecidos quer pela lei quer pela religião. Ambas coartam a liberdade individual, se esta colide com o interesse e o bem do grupo. Tudo seria perfeito se o Homem usasse a sua liberdade em prol da sociedade, mas não o faz. A sua condição narcísica impõe-se e o distanciamento e a firmeza necessários para abdicar de si tolhem-lhe as escolhas. Eu gostaria muito que cada um de nós fosse capaz de abraçar a lei moral Kantiana. Seria maravilhoso se, por opção, todos agíssemos de acordo com uma premissa que pudesse ser válida e justa para todos. Agir através da “razão da pura” que conhece e distingue a priori o bem do mal. Seria até mais utilitarista, para não abusar da paciência humana e, ainda que a boa ação não fosse preconizada pela boa intenção, se fosse benéfica, seria válida. Julgo não haver garantia de que o interesse próprio não possa coincidir com a moral… Certo é que o Homem agiria por si e de acordo com a sua razão, em busca da harmonia comum, sem esperar qualquer recompensa ou castigo… A lei moral dispensaria, assim, a religião. Se tomarmos como exemplo o Cristianismo, que nos impele para o bem e para o perdão, compreendemos duas coisas: a Terra não é efetivamente o seu reino (de Cristo) – “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (a sociedade pode compreender, mas não pode deixar de punir as más condutas) - e que a intelectualidade cristã criou o impulso necessário para que o Homem aja em conformidade com o bem: a recompensa ou o castigo, numa vida além da morte, traduzidos vulgarmente pela ideia de paraíso ou de inferno. Quem faz o bem, com o objetivo último de alcançar o paraíso está a ser utilitarista e retiraria brilho ao seu comportamento. Ser o fim em si mesmo e procurar o bem, porque a razão assim o dita seria mais meritório, na opinião de Kant. Na minha também. O Homem teria razões para se comportar bem se afinal Deus é amor e tudo perdoa? Há, porém, uma condicionante para se alcançar o perdão. Deus estabelece também as suas regras: o arrependimento sincero. Nem todos o alcançam. Dostoiévski foi exímio na forma como tratou o dilema moral em “Crime e Castigo”. Depois de ter cometido o crime perfeito, sem indícios da sua culpabilidade, ainda que o inspetor o adivinhasse, Raskolnikov entregou-se e cumpriu pena na Sibéria. A sua consciência, aliada ao conhecimento de Deus, apresentado por Sonja, impossibilitaram-no de viver tranquilo e de aceitar a sua própria teoria: o homicídio da velha e avarenta senhoria teria sido um crime realizado a pensar no bem comum. Depois do russo, Nietzsche, o anticristo, e Sartre, o existencialista, colocam o Homem como o único responsável por si e pelas suas escolhas, sem qualquer apoio divino. Assim, ao mesmo tempo que reconhecem o livre-arbítrio no ser humano, responsabilizam-no pelas suas escolhas. Cada um de nós deverá ter a consciência de que a nossa ação terá impacto no outro. A forma como é recebida já não nos caberá, mas o gatilho foi puxado, convidando-nos a assumir as consequências que daí advierem, sem esperar um paraíso prometido. Por isso, mesmo que não queiramos a guerra e nos mantenhamos longe dela, por vezes, é a guerra que vem ter connosco e nos obriga a escolhas sem retorno, com ou sem ajuda divina, sempre condicionadas pelas circunstâncias. O caminho nunca é fácil e é sempre feito caminhando. Haja a ilusão de que amanhã poderemos construir-nos melhor do que hoje para não desistirmos da humanidade.

 Nina M.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Sei que morro

Sei que morro

A cada negação

Sei que morro 

A cada acolhimento

Sobra o vazio da desilusão

Sobra o nada da aceitação

É morte em qualquer caso

Sem que nela haja cinzas

De uma Fénix renascida

Sobra, porém, Amor

A minha redenção

sábado, 3 de julho de 2021

Crónica de Maus Costumes 239

 

O doce orgulho dos filhos

                Nada mais comovedor do que a pureza inocente do olhar de um filho sobre a mãe ou o pai, mesmo que saibamos que um dia essa admiração absoluta findará e encontrar-nos-ão os defeitos. A expetativa é podermos continuar a beneficiar do amor deles com as nossas falhas e apesar delas.

                Na sexta-feira, ao almoço, a minha amável e delicada Matilde perguntava-me se eu já tinha plantado uma árvore. Prontamente, eu respondi que não. A jardinagem nunca foi o meu forte. Não gosto mesmo de andar com as mãos na terra… Sei que há luvas, mas nem assim. Adoro a natureza e um belo jardim cuidado, só não gosto de o fazer.

Ela insistia:  “Nunca plantaste mesmo nada?!”

- Só batatas e limitei-me a colocá-las no rego distantes um palmo entre si ou a lançar o adubo antes de lá serem colocadas.

Respirou de alívio. Estava preocupada com a possibilidade de ter mentido inadvertidamente à professora. Afinal, não tinha mentido. Acrescentava aliviada.

Naturalmente, quis perceber do que se tratava. Sabes, estivemos a conversar com a professora, no intervalo, e ela disse-nos que o propósito da vida era ter filhos, escrever um livro e plantar uma árvore.

Ouvi sem desmentir. Nunca se desmente ou acaba com a admiração que um professor possa exercer sobre a criança, a menos que lhe seja absolutamente nefasta. Pensei para mim que o sentido da vida era, normalmente, a dúvida de todos e algo para o qual é difícil obter uma única e inequívoca resposta, para além de ser um achado absolutamente individual, sem fórmulas coletivas. Fiquei-me por um “ai foi? E então?”

- Olha, mãe, eu disse que tu já tinhas feito tudo, até tinhas escrito dois livros! As gémeas disseram logo que assim já tinhas a vida feita!

Isso soou-me a que se morresse já, não faria grande diferença… Eu gosto das trigémeas, amigas da minha filha. Muito alegres e simpáticas, que dizem à Matilde que a mãe dela é muito nova e magrinha! E já teve dois filhos! Fazem questão de acrescentar, depois de uma me dizer a certa altura, que “a Sónia é muito bonita”. Imagine-se lá… Conquistaram-me logo com estas tiradas! Uns amores, estas três Marias! Mal sabem que a verdadeira heroína é a mãe delas, porque depois de dois filhos bem mais velhos, surgem as três e passam a cinco! Meu Deus! Grande coragem!

- Sabes, mãe, eu não sabia se tu tinhas plantado uma árvore, mas pensei que sim. Pronto, não sei se menti, mas se plantaste batatas, serve, não serve?

Eu descansei-lhe a consciência e acrescentei que talvez já tivesse mesmo plantado uma árvore, porque no meu tempo de escola celebrava-se o Dia Mundial da Árvore e era habitual haver a plantação de algumas. Mesmo que a minha memória não o recorde. Na cabeça da minha filha, talvez a mãe tivesse feito as duas coisas mais difíceis e não me queria ver pendurada por uma árvore. Resolveu-se a questão assim.

O que me deixou de coração cheio foi perceber-lhe o orgulho com que me contava o facto, acrescentando que eu seria a única que já tinha feito as três coisas. Creio que vou ter de plantar uma árvore de verdade, para a consciência não me ficar a moer… Ou então contar com os caroços de pêssego que fui atirando à terra ao longo dos anos. Certamente, algum deles terá frutificado. Logicamente, a Matilde pediu-me uns exemplares para oferecer à professora e comprovar a veracidade da história e anotou o número exato da crónica que sabe que a mãe escreve, para dizer à professora que há muitas mais além das que estão postas em livro. Toda inchada de orgulho da mãe, a minha pequenita! Sem idade para saber que isto que a mãe faz não tem mesmo importância nenhuma e não passa de uma pulsão irremediável de pouco valor e de pouco tino. Lá descobrirá a seu tempo e espero que o tamanho da desilusão não seja do tamanho do orgulho que lhe vi.

A comoção de nos sentirmos admirados pelos filhos é inigualável, mesmo que tenhamos a plena consciência das nossas misérias e, em simultâneo, o coração contrai-se com medo de os dececionar. Um dia descobrir-me-á as imperfeições e se recordar este momento delicado talvez considere que não fui merecedora do seu apreço. Só de o pensar, estremecem-me as entranhas. Se o halo dourado com que nos olham empalidecer sobremaneira, algo de irrecuperável se quebra internamente.

Não serão, certamente, as pequenas falhas, que o amor faz esquecer, as responsáveis pela deceção sem remissão, portanto, meu amor infinito, farei o impossível para preservar intocada essa candura com que me olhas.

 

Nina M.

 

sexta-feira, 2 de julho de 2021

A vinda

 Sabeis... Se a minha visita acontece

Normalmente tão letal que arrefece

O sangue morno e apaga o  vosso ser


Sempre vos fingis surpreendidos

Alheados da minha existência 

Afinal, vaticino a última  presença


E na exata fração e nesse instante 

surge o remorso agonizante 

Das vossas realizações falhadas


E tudo se torna tão pequenino 

Ao sabor do desdém escarninho

Pela arte de não saber concretizar


Fosse tudo poesia  e a minha vinda 

Que bela seria! Trazer ao mundo 

A alegria das rosas brancas 

Assim que a primavera finda nos vossos lábios.




quinta-feira, 1 de julho de 2021

Era uma casa desabitada

Era uma casa desabitada 

De paredes nuas, frias e bolorentas

O soalho rangente e comido pelo tempo

gemia num lamento

O grelado amarelo da humidade

A corromper a tinta desbotada

Cenário vazio e desolador

Era uma casa habitada de ausência

De saudade da vida que dela escapa

Escorre célere pelos muros frios

Nada mais triste que uma casa desabitada

Que se procura reconhecer nas memórias

Nas fotografias mentais de uma outra época

Neste abandono às ervas daninhas e às pragas

À espera... Suspensa no tempo...

Sem ilusão ou esperança