Simples perfume no ar
Para dar asas à errância
E na minha casa morar
Esparzindo o meu odor
Só tu bem o sentirias
O perfume do meu amor
Memórias
A minha cabeça, tal como a de todos,
ganha vida sozinha e avança pelos trilhos da memória ou do pensamento, conforme
a ocasião e dá largas ao seu livre-arbítrio sem pedir licença à dona.
Na verdade, é ela a dona, que me faz
ter pesadas ausências, por vezes notadas e sofríveis quando me sinto trespassar
por um olhar inquisidor de quem tenta saber por que caminhos estreitos eu estive
perdida. Demasiado sinuoso para ser explicado e, subitamente, as voltas já são
tantas que não o saberia dizer.
Hoje recuei no tempo e viajei até
Chaves, a bela Aquae Flaviae, flor do
Tâmega. Bela cidade. Pequenina e pitoresca, fria e quente como o Diabo ao sabor
das estações, que me fazia gostar de romper o rabo das calças nos cafés para
usufruir do ar condicionado que não tinha em casa e manter a temperatura mais
agradável, quer de inverno quer de verão. No frio, o aquecedor a óleo que
permanecia ligado o dia todo, ainda compunha o cenário, mas no verão… Era o
suar das estopinhas … Por baixo do meu T0, havia um café, onde me refrescava e
por lá permanecia, a gozar a temperatura amena. E eu que suporto bem o calor! O
que fará quem com ele sofre!
Certo, é que morava relativamente
perto do centro da cidade, junto da avenida que passa em frente à escola Dr.
Júlio Martins. E foi aí, na rua, que conheci o Sr. Engenheiro Montalvão Machado,
o dono do T0 que arrendei.
Os Montalvão Machado são um nome de
respeito, desde sempre ligados à política local e nacional. O Dr. Júlio
Montalvão Machado, por exemplo, foi um dos
fundadores do Partido Socialista, falecido em 2012, era também conhecido
pelo interesse que dedicava à História local, tendo publicado alguns livros
sobre a República e a Cidade de Chaves. A República chegou a Chaves com dois
anos de atraso e o facto não esteve relacionado com a distância entre esta urbe
e Lisboa, mas pelas sucessivas incursões monárquicas do Paiva Couceiro,
refugiado em Espanha, para conseguir reorganizar os ataques invasivos. De modo
que volta e meia, a bandeira hasteada mudava de cor. Tenho comigo um dos seus
livros: Crónica da Vila Velha de Chaves,
por razões académicas, na altura, oferecido pelo seu familiar. Quem gostar de História,
vale a pena ficar a saber um pouco mais dos factos, pois os monárquicos e
republicanos pulavam de trincheira como quem muda de camisa. Qualquer
semelhança com a política local de hoje será mera ficção! Os Montalvão Machado
eram familiares de António Granjo, que foi presidente da Câmara da Cidade, que
participou na Primeira Guerra Mundial, exerceu funções de Presidente do
Ministério, acabando brutalmente assassinado, naquela que ficou conhecida como
a “Noite Sangrenta”, por ser um forte opositor à Monarquia do Norte, movimento liderado por Paiva Couceiro, que não
viria a singrar.
De modo que quando conheci o Sr.
Engenheiro, já um homem idoso e curvado, conheci alguém com o peso da História
aos ombros… Pena ter-me apercebido disso um pouco tarde, até porque quando o
encontrava, normalmente, para lhe entregar o cheque com o pagamento da renda,
trocávamos algumas palavras. Porém, a primeira vez que lhe falei, foi por
telefone, para saber da casa. Atende-me do outro lado, uma voz assertiva e
ufana “Estou sim, daqui fala o Sr. Engenheiro Montalvão Machado”. A Sónia
Moreira, aos vinte e sete anos não era a mesma que é hoje. Menos ponderada, um
pouco doida e com a pressa da vida. Soou-me a vaidade o atendimento e a plebeia
atirou do alto da sua altivez, na fração de segundo seguinte: “Daqui fala a
Dra. Sónia Moreira, muito bom-dia.” Parva, pois claro! Erros da mocidade. A
minha colega que assistia à conversa ria-se que nem uma perdida. Quando
desliguei, olhou-me, à espera do desenvolvimento. Disse-lhe: “Pois se o senhor
se apresenta como senhor engenheiro, atiro-lhe com o doutora, que normalmente
não me serve para nada…”
Ficamos tratados,
nesse dia. A partir de então, sempre que nos cruzámos, senhor engenheiro para
cá e senhora doutora para lá. Certo é que o senhor engenheiro (na verdade, ele
gostava do titulozinho) simpatizava comigo e se à chegada me fez assinar um
inventário com os bens que a casa continha, à saída não quis ver nada, por mais
que insistisse para verificar que lá permanecia tudo direitinho.
Hoje, não reagiria, decerto, dessa
forma. Seria menos atrevida e mais comedida e, certamente, ter-lhe-ia
aproveitado melhor as conversas, já que o distinto cavalheiro, com o seu je ne sais quoi de quixotesco, foi
sempre afável, fazendo questão de mostrar a impressão que tinha a respeito da
jovenzinha que se percebia distinguir da juventude estragada, dizia ele.
Coitada de mim, com um apelido sem história e ao que parece com raízes judaicas
(com jeitinho ainda tive cristãos-novos nos meus antepassados e não carrego
ponta de antissemitismo, entenda-se. Hoje, já não se pode dizer nada sem
clarificar que não há intuito de qualquer desprestígio nas palavras) e sem
sangue importante que me corra nas veias. Devia ser o porte. Há quem me acuse
disso, sem que no entanto manifeste qualquer elegância especial, aqui a
chambeta, que rompe torto os sapatos…
Certo é que a imagem do senhor, hoje,
invadiu-me. Certamente, já terá falecido, pois se o conheci nos seus oitenta… Ele
lá fez questão de me prestigiar com o apelido a história de família e de me honrar
com a sua simpatia…
Em sua honra, senhor engenheiro
Montalvão, em jeito de quem se desculpa pela ousadia passada, à qual terá achado
a sua graça, parece-me…
Nina M.
Há palavras que nos definem
Baixinho ou em silêncio
São nossas eternas amantes
O absoluto e a eternidade
Um segredo bem guardado
Da mais profunda intimidade
Pode ser um nome
Quem sabe um adjetivo
Talvez um verbo para os mais inquietos
Tenho várias que me amam
E me fazem...
Hoje sei uma
Pela qual me apaixonei
E volteia em mim em círculos
A dar-me conta da sua essência
Mas precisa de corpo inteiro
Para viver
Redivivo, o ressuscitado
Ou o que há de vir
E hei de ser rediviva
Assim que voltar ao viço da vida
E me abraçar à sua seiva
Como náufrago perdido
Não sei que frémito ou ânsia
Lança um coração ao vento
Em passo de contradança
Em fúria de momento
Com loucura de criança
Fogo incêndio e cinza
Arde! Tudo em mim é chama
Viva em labaredas de azul
É desconcerto freima atrevida
Um cansaço deste paul
Deste tempo de desilusão
É um grito de revolta
Agiganta-se a emoção
Resgatemos a humanidade
Salvemos a nossa condição
Não haja leito de conforto
Para os jogadores de xadrez
Brademos contra as injúrias
Contra o ataque tão soez
Erga-se alto a nossa voz
Faça-se ouvir
Um grito de blasfémia
Não calemos a cobardia
Combatamos com poesia
Os desmandos assassinos
Em cada poça de sangue
Jorrado por mãos carnívoras
Jaz um petiz exangue
Para horror dos que o choram
Sem tempo de o embalar
Nem de exéquias decentes
Tempos de ferocidade
Tempos de homens doentes
E um dia sucede o outro nas calhas
De um mundo indiferente
Se nos falha o conforto
Já nem nos sentimos gente
É lá ao longe onde o sol ferve
E a terra seca moribunda
Não dói nem se ouve a matança
Mesmo que seja uma criança
Ainda haverá tempo. Haverá esperança?
Pressuponho
que o longo confinamento que vivemos não deixa ninguém saudável, tanto física
quanto psicologicamente. No que respeita a condição física, para mim não fez
grande diferença, dado que continuei ativa e com as corridinhas habituais. No
entanto, a componente mental começa a evidenciar exaustão, devido à situação
que se arrasta já há um ano. É muito tempo de clausura e a vida monástica nunca
foi uma opção para mim.
A
capacidade de colocar a situação em perspetiva também me faz saber que sou uma
afortunada, sem grandes razões para o queixume. Aliás, sou pouco dada a isso…
Concedo-me o direito à lástima durante um tempo, porque todos nós precisamos de
um período de adaptação, mas tento sempre enquadrar a situação na devida
moldura, para perceber que os meus motivos para o agastamento são ridículos se
comparados com tantos verdadeiros problemas reais. A partir do momento em que
mantenho o trabalho, o salário, a minha saúde e dos que amo, não há lugar para
reclamações sob pena de cair no ridículo… Não falarei, portanto, do tanto que
me falta, por considerar que o melhor a fazer nesta situação é olhar para o
tanto que me sobra. Porém, se há algo em que o confinamento começa a fazer das
suas é no que diz respeito à irritabilidade. Se a estupidez por si só já me
causava algum prurido, neste momento, sinto sérias dificuldades em lidar com
ela e vejo a minha paciência esgotar-se num ápice, perante algumas situações.
Incomodo-me,
desde logo, com a minha classe profissional e com as queixas de alguns bebés
chorões que nunca estão satisfeitos com nada. Desconfio que a única solução
para essa gente era ficar de papo para o ar em casa, sem fazer nada e ver o
dinheirinho a cair na conta ao final do mês. Eu também gostaria que me saísse o
euromilhões, não para ficar inativa, pois não teria paciência para tal, mas
para fazer única e exclusivamente o que me apetecesse e aquilo de que
verdadeiramente gosto e que para aqui não vem ao caso…
Falo,
obviamente, das vacinas e dos comentários chorosos (e estúpidos, já agora)
sobre a obrigatoriedade ou não de a tomar e os medos exagerados que muitos
revelam. Se falamos em desconfinar, aqui
d’el-rei quem me acode, porque é
um perigo e nem pensar… Sem vacina deveríamos todos recusar regressar à escola!…
Onde já se viu?! E catrapumba! Cá vêm os discursos miserabilistas de fazerem da
classe carne para canhão, etc e tal! Muito bem. Vamos desconfinar e os
professores vão ser vacinados. Era o que haveria de faltar! Vamos servir de
cobaias e não veem os problemas que têm surgido por esse mundo fora?! E chegam
logo os arautos da desgraça a anunciar que daqui a dois anos é que vai ser
bonito, porque vai começar gente a morrer em barda por causa dos coágulos
originados pela vacina e sei lá o que mais… Ufa! Haja paciência!...
Meus
amigos, não se querem vacinar? Não vacinem. Não são obrigados a isso, mas
depois não se lamentem por se sentirem inseguros e se, eventualmente, contraírem
a “gripezinha” lembrem-se também de que não podem prever possíveis sequelas
futuras. A vacina pode causar efeitos secundários graves em alguns de nós?
Pode. Tal como qualquer medicamento. A comunidade médica iria permitir que se
inoculasse em massa a população com algo que fosse mais prejudicial do que
benéfico, já depois de toda a testagem que foi efetuada? Obviamente, que não!
Deixemo-nos de teorias da conspiração sem nexo e confiemos nos cientistas que
têm vindo a trabalhar arduamente para nos devolverem a normalidade o mais
rapidamente possível! Lembram-me aqueles pais modernaços e inconscientes que
optam por não vacinar os filhos contra o sarampo, por exemplo. “O meu filho não
foi vacinado e nunca apanhou!” Pois não! Grande parvo! Só não apanhou por haver
imunidade de grupo já que a larga maioria se encontra inoculado. Deixássemos de
o fazer e logo se veria… Por essa ordem de raciocínio, ainda hoje teríamos
gente a morrer de tuberculose… Perco as estribeiras com isto! Depois, há
aqueles que não sabem se serão vacinados na área de residência ou na área da
escola, pois trabalham a muitos quilómetros de casa e se sentirem efeitos
secundários como faço para voltar para casa? A sério? Isso é alguma questão? Se
tiver algum problema muito sério será transportado para o hospital, se sentir
uma ligeira indisposição lá terá que a aguentar ou pedir a alguém que o vá
buscar. Como faria caso se sentisse mal num dia normal de trabalho?!
Não
há paciência! Gente que gosta de complicar e que para cada solução encontrada
adora arranjar um novo problema com a esperança que seja insolúvel!
Tudo
isto me causa uma ligeira irritaçãozinha, mas a grande urticária surge com a
passividade das agendas políticas, dos interesses partidários e da apatia de
muitas ONG, muito defensoras dos direitos humanos quando por qualquer razão
oculta lhes interessa, mas muito relapsas noutras situações. Ando há uma semana
a tentar digerir a ira que se apoderou de mim, por uma situação que se arrasta
há tempos e que parece a ninguém indignar. Falo de Moçambique. Hoje uma
manifestação, em Lisboa, pró-desconfinamento, contra o uso de máscara, à luz do
que se encontra agendado noutros países europeus, porque de facto o uso da
máscara ou o cartão que indicará a nossa vacinação contra a COVID e que constitui
um grave atentado contra a nossa liberdade é que é indecoroso! Decapitar meia-dúzia
de crianças e chacinar comunidades, isso não interessa nada, porque se passa bem
longe de nós! Talvez se lhe pegar por outro lado, muitos senhores possam sentir-se
verdadeiramente ofendidos, indignados e começar a pressionar a comunidade internacional
a intervir naquele território, para se tentar pôr cobro ao desmando. Atenção, que
vou dar uma novidade: os moçambicanos são negros! Gente! São negros que estão a
ser chacinados! Será que assim resulta?! Mamadou, Ascenso Simões, bloquistas em geral,
alguém me ouve, por favor?! Querem agilizar algumas das vossas ações para chamar
a atenção para esta barbárie?! Serei a única alma a quem ferve o sangue, treme o
intestino e cai na raiva por se sentir impotente?
Fartinha
desta santa e honrada hipocrisia de uma sociedade tinhosa da qual me apetece fugir,
mas sem a qual não posso viver! Ó dilema!
Como diria o ilustre Fernando, na voz do seu Álvaro, “É o sono da
soma de todas as desilusões,/ É o sono da síntese de todas as desesperanças […]”
Nina M.
Sem alma e sem chão
Cabeças que rolam pelo chão
São crianças inocentes
Ainda ausentes de razão
Cordeiros da Páscoa imolados
A lembrar a culpa e a crueldade
Dos que deveriam sentir-se envergonhados
Desça sobre vós a ira do vosso Profeta
Ou deus menor deus das trevas ou anjo caído
Que se sacia com sangue inocente
Arda ele e todos vós nessa sua sarça ardente!
Renego todos os deuses da ira e da tirania
Renego-vos, malditos, e a vossa vida fria...
Se o vosso deus poupou Abraão
Porque quereis transformá-lo em vilão?
Porque não vejo sublevação... Ondas gigantes
Imparáveis de indignação?
Que era das trevas que Idade Média avança
Sem que se impeça a morte de uma criança?!
Que a terra que um dia vos há de dar a sepultura
Se fenda aos vossos pés e vos engula!
Vos leve para um buraco negro sem fundo
Longe bem longe para os confins do mundo!
Não regressareis
Onde houver um Homem de boa vontade
Não caberá um asco de ser humano!
Morrei e morrei já, vândalos tiranos!
Ide ao encontro das vossas sete virgens celestiais
Tão bestas tão feras
Não sabem que as doces virgens
Rejeitam os boçais!
Iludidos, toscos ignorantes sanguinários
Estais ao serviço de mercenários!
Quem pudera arrancar de mim esta ira!
Este duplo nojo que me atormenta!
Perdoai-me, Senhor, que me transformo
Na fera perdida que a Tua Mensagem afugenta...
Estou
a acompanhar religiosamente, com a ajuda da box, o programa da RTP 1
“Mal-Amanhados – Os Novos Corsários das Ilhas”, que passa aos sábados, às onze
da manhã, conduzido pelo comediante Luís Filipe Borges, mais conhecido por
boinas, terceirense, e pelo escritor Nuno Costa Santos, micaelense. Trata-se de
uma declaração de amor ao arquipélago onde nasceram, enquanto nos guiam por uma
viagem gastronómica, paisagística, cultural e também de aventura, divulgando a
identidade dos diferentes ilhéus.
Já
estive várias vezes nos Açores e, se tudo correr bem, lá regressarei este verão
para descobrir mais duas ilhas que ainda não conheço (Faial e Pico),
redescobrir S. Jorge (belíssima) e a que melhor conheço, Terceira, onde vou
amiúde e onde também não falharei, este ano. Os meus filhos adoram! Saltam de
alegria quando sabem que vão aos Açores passar uns dias com as primas adotadas
de coração e com o tio Carlos, que é o herói da criançada, por ter toda a
paciência do mundo e ser amigo de fazer a vontade da canalha. De modo que estou
a gostar imenso de assistir ao programa, de conhecer as particularidades, a história
e a identidade daquelas gentes.
Não
sei se por ir lá variadas vezes, se por ter lá a minha irmã de coração, certo é
que adoro o arquipélago! Gosto de acordar de manhã e ir correr junto ao mar,
gosto de ir ao mar depois de terminar a corrida, gosto da simpatia das pessoas,
gosto da tranquilidade e da natureza, do verde que nos hipnotiza, das paisagens
deslumbrantes e de um tempo que se faz de conversas, risos, amizade,
simplicidade. Um tempo que se faz sem tempo contado. Gosto que a Terceira tenha
lutado para se manter independente e o tenha conseguido, durante um certo tempo,
durante o domínio filipino. O apreço dos terceirenses pelos touros deve vir da batalha
da Salga. Gosto que a ilha tenha tido um papel importantíssimo nas lutas
liberais. Foi de lá que D. pedro IV organizou o desembarque do Mindelo, com a
participação do nosso Garrett. Gosto desta mesma ousadia que caracteriza a mui
nobre, leal e invicta cidade do Porto. Gosto, essencialmente, de sentir no
açoriano um profundo orgulho na sua terra e de ver que saem, muitas vezes para
estudar, outras para ganharem mundo, quando o corpo jovem e a alma inquieta o
pedem, mas de saber que desejam regressar a casa, ao ninho e às origens. O
regresso ao ventre materno, à bruma em dias mais cinzentos, às paisagens
exuberantes situadas num nico de terra abandonado no meio do atlântico, a cerca
de mil e quinhentos quilómetros do continente. É no meio da natureza, no
silêncio do paraíso ainda não estragado pelo homem, numa fajã, no cume de uma
serra ou no meio do mato (como designam os açorianos o monte) que nos sentimos
mais próximos de Deus e acreditamos na sua existência. Umas ilhas fantásticas,
povoadas por desterrados, por vozes inconvenientes ao regime, nalguns casos, que
souberam fazer da lonjura nova casa, com resiliência. Gosto da forma como o
açoriano é ligado às suas tradições e atividades culturais. Nas pequenas ilhas
proliferam bons artistas: cantores, músicos, escritores, fotógrafos… Têm imenso
orgulho nos seus teatros amadores e filarmónicas, mantendo uma atividade
cultural notável, que sabem valorizar e preservar. Gosto que o açoriano não
seja o provinciano deslumbrado, aquele que vai à capital, que por lá permanece
uns tempos e regressa com desdém dos que ficaram. Normalmente saem e regressam
com vontade de empreender e de fazer evoluir a sua terra e as suas gentes.
Regressam com a certeza de quem sabe que as ilhas são o melhor local onde podem
viver, um paraíso raro e difícil de encontrar. Enfim, a sua pertença. Gosto de
ver em cada ilhéu um Torga e o seu amor pelo Reino Maravilhoso.
Eu,
que não sou açoriana e que não sei se gostaria de lá viver no inverno por
precisar muito de sol e de me incomodar a chuva, sei que gosto cada vez mais de
lá regressar no verão, de descobrir o que ainda não conheço… Os meus pequenos
também, porque na sua inocência, como se fosse só uma questão de querer,
perguntam muitas vezes:
-
Mãe, porque não fazemos uma casa na Terceira?
- Por
falta de dinheiro, filhos. Apenas isso.
Quem
experimenta quer regressar. Como dizem os terceirenses: vais prová, vais comê e
vais gostá! (Quem precisa do “r” final do infinitivo?)
Estou
em falta para com esta gente, que terei que remediar antes do regresso e do périplo
pelo grupo central. Falta a leitura do Nemésio “Corsário das Ilhas” e de Raúl Brandão
“As Ilhas Desconhecidas”. Fica a promessa.
Nina
M.
Bela Vénus de luz dourada
Deusa de ébano formada
De lisos cabelos d'oiro
Ou de crespo carvão forjada
Se és brancura alva de alvorada
Ou pretidão de noite estrelada
És rainha curvilínea de seios
Virginais e fartos
Ou andrógina e felina
Quebras estereótipos gastos
És mulher!
Essa palavra te define
Guardadora de vontades
Alquimista de palco
Mãe irmã amante e cortesã
Tudo isso sem sobressalto
De vestido ou de fato
De sapato raso ou de salto
És mulher és fortaleza
Tudo num só retrato
Colo maternal lâmina cortante
És ouvinte és falante
O princípio do mundo
Pois tudo o que existe é gerado
Nesse teu ventre fecundo!
- Diz-me, barqueiro triste,
Para onde vai a tua barca
Se do mundo amor não viste?
- Vou ao mar pescar com ela
Trazer comigo sereia bela...
- Pescador da barca alva,
Do mar não vem doce canto
Só lamentos e o pranto
Com que a alma iludiste
Pois se a sereia não existe
O que vais pescar com ela?
Não te enredes no sargaço
Que a morte trazes no regaço...
- Diz-me tu, deusa do logro,
De que serve a vida larga
De cautelas e de façanhas
Se a alma em si se acanha?
Se a sereia eu não ouvir
Não me acrescenta dano
A ilusão de existir
Amor no grande oceano...
Tê-lo-ei sempre em mim
Remarei sem princípio nem fim
Comandado por sonho humano!
Dá ao demo o pessimismo
Nesta barca de tristura
Não cabe tamanha negrura
Nem se embarca conformismo!
A
ditadura do politicamente correto começa a atingir proporções deploráveis, que
raiam a estupidez.
Durante
a semana, li um pequeno texto de um professor de Português e poeta que se
lamentava por ter ouvido um aluno dizer que Camões era racista. Servia de
apresentação de um texto de imprensa em que a jornalista se lamentava de ter
sido preterida para fazer uma entrevista a um escritor negro por ser branca, depois
de já ter feito inúmeros trabalhos do género. Intuía-se que por ser branca, a
jornalista não teria a capacidade para sentir o peso ou absorver a mensagem
veiculada pelo autor negro. Naturalmente, a periodicista mostrava indignação,
questionando se era necessário ser negro para ser capaz de compreender o negro
ou de ser homossexual para compreender o homossexual… A resposta é óbvia: basta
ser humano (a única raça que conheço) e empático. A arte, especialmente a
Literatura, tem a capacidade de nos transportar para mundos diferentes dos
nossos, para lutas que não travamos diretamente, para dramas que nãos nos
pertencem, mas que nos fazem colocar no lugar do outro. Colocar-se no lugar do
outro ou ser-se empático é a qualidade de que se necessita para saber ouvir,
saber compreender e saber aceitar a diferença. É a qualidade que nos permite
aceitar o outro com as suas diferenças. Assim, a Literatura em particular e a
arte em geral são capazes de derrubar os muros da ignorância e dos
preconceitos. Quem lê o Filho de Mil
Homens, de Valter Hugo Mãe (desculpe, Valter. Insiste em escrever o seu
nome em minúsculas, mas trata-se de uma subversão que não gosto de fazer. É um autor
demasiado grande para ser escrito em minúsculas) não fica indiferente ao
Antonino, o homossexual da ficção. Não precisamos de o ser para nos condoermos
com as pequenas grandes tragédias da personagem: a dificuldade em assumir a sua
essência, o desprezo e o ódio que lhe votava a vizinhança, o desgosto materno
que o queria “curar”, o sofrimento de Antonino, que não correspondia às
expetativas do meio onde se movia, como se fosse obrigado a ser o que os outros
esperavam dele. É fácil compreendermos o despotismo valorativo que uma
sociedade sempre impõe aos seus membros e a crueldade com que é capaz de tratar
os rebeldes e os que ousam ser diferentes. De nada serve se depois pensarmos
que não passa de uma história e não formos capazes de canalizar a empatia para
a realidade onde nos movemos. Porém, é isto que a leitura nos permite: o acesso
a outros mundos, a outras formas de sentir, de ser e de estar e a abertura para
se ser tolerante.
Ora,
quando se quer tanto defender uma causa, mas em nome dela se ostraciza,
perde-se a razão e enfraquece-se a causa. Desta forma, impedir que uma
jornalista com trabalho reconhecido não possa entrevistar um autor negro por
ser branca parece-me sobremaneira inqualificável. A seleção da jornalista deve
passar pelo critério da competência e não pelo da cor! De modo que quando vejo
atribuírem a Camões o epíteto de racista todas as minhas entranhas se abalam e
se estremecem! Ainda há pouco tinha escrito, a propósito do Padrão dos
Descobrimentos, que só faltava pedirem que Camões e Pessoa fossem retirados do
programa pelo canto épico, um dos “feitos gloriosos” e o outro da identidade ou
da alma lusa! Haja decoro, decência e sobretudo cultura! Também já me deparei
com uma notícia que dava conta de que numa palestra on-line, em Massachusetts, a professora doutoranda Vanusa Vera-Cruz
Lima defendeu que “Os Maias” são uma obra racista, porquanto e passo a citar: “A
perceção e a representação de pessoas negras n’Os Maias’ dependem de agressão,
desumanização e degradação. O meu objetivo é analisar a linguagem usada por Eça
de Queirós para se referir às pessoas negras, através das personagens,
narração, discurso e escolha de palavras, entre outras abordagens estilísticas
(…) O objetivo é trazer atenção e perceber o papel que a raça tem no trabalho
de Eça ao analisar não só a linguagem racista prejudicial usada neste
clássico”. Acrescenta também que “existe uma descomunal admiração pela brancura
detetada na narrativa”.
A
doutoranda terá apresentado também exemplos retirados da obra: “crises de
melancolia negra” de Pedro da Maia, os olhos de Maria Monforte parecem “negros
de cólera”, “escada escura e feia”, “quartos alegres, forrados de papéis
claros”, referindo que existem vários trechos em que a brancura está associada
à beleza feminina. Está com certeza, quem não se lembra da descrição de Maria
Eduarda, no peristilo do Hotel Central? Da deusa de “carnação ebúrnea” e de
“cabelos de oiro”, que faz com que o Craft deixe escapar um “esplêndida”!
Será
necessário lembrar que o romance data do século XIX? Que há um contexto e uma
realidade diferentes dos que vivemos hoje? Queremos apagar a memória coletiva,
a arte e a cultura, supostamente para não sermos ofensivos, neste caso
concreto, para com a raça negra?! Para não os fazermos deparar com a
discriminação contra a qual ainda hoje lutam? A mim parece-me um terrível
absurdo para além de um enorme erro! Depois, não posso deixar de questionar a
seriedade de tal estudo e as agendas politizadas por detrás de certos
movimentos. Não se lembrou a autora do estudo do seguintes factos, que pode
facilmente comprovar com uma leitura atenta do romance:
1.
Afonso da Maia, pai de Pedro e avô de Carlos da Maia, era terminantemente
contra o casamento de Pedro e Maria Monforte, porque o pai desta tinha feito
fortuna com o tráfico de escravos. Afonso da Maia, liberal e jacobino,
considerava indigna essa forma de fazer fortuna, à custa de sangue alheio. Por
isso, não aceitava Maria Monforte, a negreira. Esta não era merecedora de
integrar a família Maia, por lhe correr sangue alheio nas veias.
2.
A brancura da tez era cânone de beleza à época. Aliás, já desde o tempo da
renascença e de Petrarca, em que as mulheres admiradas e cantadas eram brancas,
loiras e de olhos claros. Não só se excluem as mulheres negras, mas também as
brancas trigueiras de olhos castanhos! Já agora, valerá a pena recordar que
Camões, apesar dos muitos sonetos de influência petrarquista, teve a ousadia de
compor as “Endechas a Bárbara Escrava”,
a sua “pretidão de amor” e a “cativa que o tinha cativo”.
3. A
mulher de Afonso da Maia era uma portuguesinha baixinha e trigueira (não se
enquadra nesse cânones). Maria Monforte e Maria Eduarda, sim, duas deusas de
tez clara, mas note-se: Maria Monforte é retratada em termos pouco abonatórios:
mulher bela, mas manipuladora, egoísta, interesseira e volúvel. Atira Pedro, um
romântico fraco, para a tragédia, assim como aos seus dois filhos, em especial
Maria Eduarda.
Maria
Eduarda, belíssima, é uma das poucas mulheres que Eça pincela com alguma
indulgência e compreensão. As mulheres queirosianas, genericamente de condição
social elevada, são apresentadas como adúlteras e fúteis. Maria Eduarda tem um
passado pouco abonatório, com várias relações amorosas (Carlos sabia que o avô
nunca aceitaria esse romance, não a consideraria digna da família). Eça
retrata-a com compreensão, porque a considera uma vítima das circunstâncias, no
entanto, Maria Eduarda, apesar do seu passado e da sua mãe, é uma mulher
íntegra, tal como os Maias. À exceção desta e de Joaninha, de " A Cidade e
as Serras", as mulheres são retratadas de forma impiedosa. Talvez se
explique pelo passado do Eça e pelo facto de ele ter sido rejeitado pela
própria mãe (isto sou eu a supor, obviamente, não há como provar).
4.
Finalmente, o recurso aos adjetivos “negro” e “escuro” nada tem a ver com
racismo, mas com uma interpretação cultural da cor e do uso expressivo do
adjetivo, recurso frequente na escrita queirosiana! Para o português, a cor
preta significa luto, sinal de tristeza, associado a aspetos negativos e
prende-se com os indícios de tragédia que Eça pretende causar ao leitor! Não
está relacionado com a cor da pele de qualquer ser humano! Atribuir-se à cor esta
conotação negativa não significa transpô-la para a pessoa.
Irra!
Como é possível arranjar uma interpretação tão aviesada e forçada? E agora?
Vamos exterminar todos os clássicos por considerarmos que não apresentam um
discurso politicamente correto, mesmo que nesse momento da História a
interpretação do mundo fosse entendida de outra forma?! Haja paciência para
tamanha parvoíce! Haja coragem para se reabilitarem os clássicos, a nossa
cultura, a nossa língua, enfim, a nossa identidade!
Sou
absolutamente a favor da luta contra o racismo. Sou absolutamente contra estes
desmandos! Afirmar que Camões ou Pessoa ou Eça eram racistas é não conhecer,
não saber analisar factos à luz de uma época. É não saber História nem Literatura!
Já
fomos um povo esclavagista e colonizador? Sim. Faz parte da nossa História para
o bem e para o mal. Faz parte da nossa identidade cujo maior baluarte é a nossa
língua! Assim, ao contrário de Mamadou Ba, por exemplo, que é legalmente
português, eu não tenho vergonha da nossa História. Reconheço-lhe os defeitos que
quero ver lembrados para que não se repitam, principalmente os do século passado,
mas é essa mesma memória coletiva que nos confere identidade. Mamadou,
connosco, partilha a nacionalidade, com toda a legitimidade, mas não partilha a
identidade, que começa na língua, passa pela História e termina na cultura e
nas tradições, no modo de ser do português. Entre nacionalidade e identidade há
um longo caminho a percorrer. As mudanças que devem ser feitas têm de ser
alicerçadas no amor ao país e ao seu povo, querendo a sua natural e sadia evolução,
sem ódios e sem polarizações, uma mudança inclusiva sem distinção de raças, credos
ou ideologias.
Tentar
arrancar ou fazer esquecer as nossas raízes culturais é ridículo e inadmissível.
Nina M.
Sei de ausências
Desconfortos e almas em chamas
Abandonadas e sós
A solidão é uma casa fria e húmida
Com bolor nas paredes
E frinchas desagradáveis nas janelas
É tristeza arrastada pelo vento
Que se infiltra sem que se queira
O desamparo de quem
Já não se reconhece inteiro
Neste silêncio doentio
O ser despovoado na ausência
Trespassado pela distância
A lembrar os lampiões tristes e sós
Das nossas ruas abandonadas
Murchas e pardas
Tão cinzentas como a alma
Nos dias de morrinha angustiada