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segunda-feira, 29 de março de 2021

Fragrância

Quisera eu ser fragrância
Simples perfume no ar
Para dar asas à errância
E na minha casa morar

Voaria sem ter asas
Esparzindo o meu odor
Só tu bem o sentirias
O perfume do meu amor

Saberia a felicidade
O aroma que se espalha
pelo campo e pela cidade
Arde em fogo é fornalha

Viajaria leve livremente
Sem qualquer impedimento
Só para depositar um beijo
Nesse teu triste lamento

Seria apenas essência
Despojada de matéria
Imaterializada presença
Na ausência de miséria

E nessa decomposição
Em fragrância de fruto
Ter-me-ias sempre à mão
O teu ser absoluto


sábado, 27 de março de 2021

Crónica de Maus Costumes

 Memórias

            A minha cabeça, tal como a de todos, ganha vida sozinha e avança pelos trilhos da memória ou do pensamento, conforme a ocasião e dá largas ao seu livre-arbítrio sem pedir licença à dona.

            Na verdade, é ela a dona, que me faz ter pesadas ausências, por vezes notadas e sofríveis quando me sinto trespassar por um olhar inquisidor de quem tenta saber por que caminhos estreitos eu estive perdida. Demasiado sinuoso para ser explicado e, subitamente, as voltas já são tantas que não o saberia dizer.

            Hoje recuei no tempo e viajei até Chaves, a bela Aquae Flaviae, flor do Tâmega. Bela cidade. Pequenina e pitoresca, fria e quente como o Diabo ao sabor das estações, que me fazia gostar de romper o rabo das calças nos cafés para usufruir do ar condicionado que não tinha em casa e manter a temperatura mais agradável, quer de inverno quer de verão. No frio, o aquecedor a óleo que permanecia ligado o dia todo, ainda compunha o cenário, mas no verão… Era o suar das estopinhas … Por baixo do meu T0, havia um café, onde me refrescava e por lá permanecia, a gozar a temperatura amena. E eu que suporto bem o calor! O que fará quem com ele sofre!

            Certo, é que morava relativamente perto do centro da cidade, junto da avenida que passa em frente à escola Dr. Júlio Martins. E foi aí, na rua, que conheci o Sr. Engenheiro Montalvão Machado, o dono do T0 que arrendei.

            Os Montalvão Machado são um nome de respeito, desde sempre ligados à política local e nacional. O Dr. Júlio Montalvão Machado, por exemplo, foi um dos  fundadores do Partido Socialista, falecido em 2012, era também conhecido pelo interesse que dedicava à História local, tendo publicado alguns livros sobre a República e a Cidade de Chaves. A República chegou a Chaves com dois anos de atraso e o facto não esteve relacionado com a distância entre esta urbe e Lisboa, mas pelas sucessivas incursões monárquicas do Paiva Couceiro, refugiado em Espanha, para conseguir reorganizar os ataques invasivos. De modo que volta e meia, a bandeira hasteada mudava de cor. Tenho comigo um dos seus livros: Crónica da Vila Velha de Chaves, por razões académicas, na altura, oferecido pelo seu familiar. Quem gostar de História, vale a pena ficar a saber um pouco mais dos factos, pois os monárquicos e republicanos pulavam de trincheira como quem muda de camisa. Qualquer semelhança com a política local de hoje será mera ficção! Os Montalvão Machado eram familiares de António Granjo, que foi presidente da Câmara da Cidade, que participou na Primeira Guerra Mundial, exerceu funções de Presidente do Ministério, acabando brutalmente assassinado, naquela que ficou conhecida como a “Noite Sangrenta”, por ser um forte opositor à Monarquia do Norte, movimento liderado por Paiva Couceiro, que não viria a singrar.

            De modo que quando conheci o Sr. Engenheiro, já um homem idoso e curvado, conheci alguém com o peso da História aos ombros… Pena ter-me apercebido disso um pouco tarde, até porque quando o encontrava, normalmente, para lhe entregar o cheque com o pagamento da renda, trocávamos algumas palavras. Porém, a primeira vez que lhe falei, foi por telefone, para saber da casa. Atende-me do outro lado, uma voz assertiva e ufana “Estou sim, daqui fala o Sr. Engenheiro Montalvão Machado”. A Sónia Moreira, aos vinte e sete anos não era a mesma que é hoje. Menos ponderada, um pouco doida e com a pressa da vida. Soou-me a vaidade o atendimento e a plebeia atirou do alto da sua altivez, na fração de segundo seguinte: “Daqui fala a Dra. Sónia Moreira, muito bom-dia.” Parva, pois claro! Erros da mocidade. A minha colega que assistia à conversa ria-se que nem uma perdida. Quando desliguei, olhou-me, à espera do desenvolvimento. Disse-lhe: “Pois se o senhor se apresenta como senhor engenheiro, atiro-lhe com o doutora, que normalmente não me serve para nada…”

Ficamos tratados, nesse dia. A partir de então, sempre que nos cruzámos, senhor engenheiro para cá e senhora doutora para lá. Certo é que o senhor engenheiro (na verdade, ele gostava do titulozinho) simpatizava comigo e se à chegada me fez assinar um inventário com os bens que a casa continha, à saída não quis ver nada, por mais que insistisse para verificar que lá permanecia tudo direitinho.

            Hoje, não reagiria, decerto, dessa forma. Seria menos atrevida e mais comedida e, certamente, ter-lhe-ia aproveitado melhor as conversas, já que o distinto cavalheiro, com o seu je ne sais quoi de quixotesco, foi sempre afável, fazendo questão de mostrar a impressão que tinha a respeito da jovenzinha que se percebia distinguir da juventude estragada, dizia ele. Coitada de mim, com um apelido sem história e ao que parece com raízes judaicas (com jeitinho ainda tive cristãos-novos nos meus antepassados e não carrego ponta de antissemitismo, entenda-se. Hoje, já não se pode dizer nada sem clarificar que não há intuito de qualquer desprestígio nas palavras) e sem sangue importante que me corra nas veias. Devia ser o porte. Há quem me acuse disso, sem que no entanto manifeste qualquer elegância especial, aqui a chambeta, que rompe torto os sapatos…

            Certo é que a imagem do senhor, hoje, invadiu-me. Certamente, já terá falecido, pois se o conheci nos seus oitenta… Ele lá fez questão de me prestigiar com o apelido a história de família e de me honrar com a sua simpatia…

Em sua honra, senhor engenheiro Montalvão, em jeito de quem se desculpa pela ousadia passada, à qual terá achado a sua graça, parece-me…

 

Nina M.

sexta-feira, 26 de março de 2021

Redivivo

 Há palavras que nos definem

 Baixinho ou em silêncio

São nossas eternas amantes

O absoluto e a eternidade

Um segredo bem guardado

Da mais profunda intimidade

Pode ser um nome

Quem sabe um adjetivo

Talvez um verbo para os mais inquietos

Tenho várias que me amam

E me fazem...

Hoje sei uma

Pela qual me apaixonei

E volteia em mim em círculos

A dar-me conta da sua essência

Mas precisa de corpo inteiro

Para viver

Redivivo, o ressuscitado

Ou o que há de vir

E hei de ser rediviva

Assim que voltar ao viço da vida

E me abraçar à sua seiva 

Como náufrago perdido



 



segunda-feira, 22 de março de 2021

Freima

Não sei que frémito ou ânsia 

Lança um coração ao vento

Em passo de contradança

Em fúria de momento

Com loucura de criança

Fogo incêndio e cinza

Arde! Tudo em mim é chama

Viva em labaredas de azul

É  desconcerto freima atrevida

Um cansaço deste paul

Deste tempo de desilusão

É um grito de revolta

Agiganta-se a emoção 

Resgatemos a humanidade

Salvemos a nossa condição

Não haja leito de conforto

Para os jogadores de xadrez

Brademos contra as injúrias

Contra o ataque tão soez

Erga-se alto a nossa voz 

Faça-se ouvir

Um grito de blasfémia

Não calemos a cobardia

Combatamos com poesia

Os desmandos assassinos

Em cada poça de sangue

Jorrado por mãos carnívoras

Jaz um petiz exangue

Para horror dos que o choram

Sem tempo de o embalar 

Nem de exéquias decentes

Tempos de ferocidade

Tempos de homens doentes

E um dia sucede o outro nas calhas

De um mundo indiferente

Se nos falha o conforto

Já nem nos sentimos gente

É lá ao longe onde o sol ferve

E a terra seca moribunda

Não dói nem se ouve a matança

Mesmo que seja uma criança

Ainda haverá tempo. Haverá esperança?






sábado, 20 de março de 2021

Crónica de Maus Costumes 224

 

Confinamento e irritações

Pressuponho que o longo confinamento que vivemos não deixa ninguém saudável, tanto física quanto psicologicamente. No que respeita a condição física, para mim não fez grande diferença, dado que continuei ativa e com as corridinhas habituais. No entanto, a componente mental começa a evidenciar exaustão, devido à situação que se arrasta já há um ano. É muito tempo de clausura e a vida monástica nunca foi uma opção para mim.

A capacidade de colocar a situação em perspetiva também me faz saber que sou uma afortunada, sem grandes razões para o queixume. Aliás, sou pouco dada a isso… Concedo-me o direito à lástima durante um tempo, porque todos nós precisamos de um período de adaptação, mas tento sempre enquadrar a situação na devida moldura, para perceber que os meus motivos para o agastamento são ridículos se comparados com tantos verdadeiros problemas reais. A partir do momento em que mantenho o trabalho, o salário, a minha saúde e dos que amo, não há lugar para reclamações sob pena de cair no ridículo… Não falarei, portanto, do tanto que me falta, por considerar que o melhor a fazer nesta situação é olhar para o tanto que me sobra. Porém, se há algo em que o confinamento começa a fazer das suas é no que diz respeito à irritabilidade. Se a estupidez por si só já me causava algum prurido, neste momento, sinto sérias dificuldades em lidar com ela e vejo a minha paciência esgotar-se num ápice, perante algumas situações.

Incomodo-me, desde logo, com a minha classe profissional e com as queixas de alguns bebés chorões que nunca estão satisfeitos com nada. Desconfio que a única solução para essa gente era ficar de papo para o ar em casa, sem fazer nada e ver o dinheirinho a cair na conta ao final do mês. Eu também gostaria que me saísse o euromilhões, não para ficar inativa, pois não teria paciência para tal, mas para fazer única e exclusivamente o que me apetecesse e aquilo de que verdadeiramente gosto e que para aqui não vem ao caso…

Falo, obviamente, das vacinas e dos comentários chorosos (e estúpidos, já agora) sobre a obrigatoriedade ou não de a tomar e os medos exagerados que muitos revelam. Se falamos em desconfinar, aqui d’el-rei quem me acode, porque é um perigo e nem pensar… Sem vacina deveríamos todos recusar regressar à escola!… Onde já se viu?! E catrapumba! Cá vêm os discursos miserabilistas de fazerem da classe carne para canhão, etc e tal! Muito bem. Vamos desconfinar e os professores vão ser vacinados. Era o que haveria de faltar! Vamos servir de cobaias e não veem os problemas que têm surgido por esse mundo fora?! E chegam logo os arautos da desgraça a anunciar que daqui a dois anos é que vai ser bonito, porque vai começar gente a morrer em barda por causa dos coágulos originados pela vacina e sei lá o que mais… Ufa! Haja paciência!...

Meus amigos, não se querem vacinar? Não vacinem. Não são obrigados a isso, mas depois não se lamentem por se sentirem inseguros e se, eventualmente, contraírem a “gripezinha” lembrem-se também de que não podem prever possíveis sequelas futuras. A vacina pode causar efeitos secundários graves em alguns de nós? Pode. Tal como qualquer medicamento. A comunidade médica iria permitir que se inoculasse em massa a população com algo que fosse mais prejudicial do que benéfico, já depois de toda a testagem que foi efetuada? Obviamente, que não! Deixemo-nos de teorias da conspiração sem nexo e confiemos nos cientistas que têm vindo a trabalhar arduamente para nos devolverem a normalidade o mais rapidamente possível! Lembram-me aqueles pais modernaços e inconscientes que optam por não vacinar os filhos contra o sarampo, por exemplo. “O meu filho não foi vacinado e nunca apanhou!” Pois não! Grande parvo! Só não apanhou por haver imunidade de grupo já que a larga maioria se encontra inoculado. Deixássemos de o fazer e logo se veria… Por essa ordem de raciocínio, ainda hoje teríamos gente a morrer de tuberculose… Perco as estribeiras com isto! Depois, há aqueles que não sabem se serão vacinados na área de residência ou na área da escola, pois trabalham a muitos quilómetros de casa e se sentirem efeitos secundários como faço para voltar para casa? A sério? Isso é alguma questão? Se tiver algum problema muito sério será transportado para o hospital, se sentir uma ligeira indisposição lá terá que a aguentar ou pedir a alguém que o vá buscar. Como faria caso se sentisse mal num dia normal de trabalho?!

Não há paciência! Gente que gosta de complicar e que para cada solução encontrada adora arranjar um novo problema com a esperança que seja insolúvel!

Tudo isto me causa uma ligeira irritaçãozinha, mas a grande urticária surge com a passividade das agendas políticas, dos interesses partidários e da apatia de muitas ONG, muito defensoras dos direitos humanos quando por qualquer razão oculta lhes interessa, mas muito relapsas noutras situações. Ando há uma semana a tentar digerir a ira que se apoderou de mim, por uma situação que se arrasta há tempos e que parece a ninguém indignar. Falo de Moçambique. Hoje uma manifestação, em Lisboa, pró-desconfinamento, contra o uso de máscara, à luz do que se encontra agendado noutros países europeus, porque de facto o uso da máscara ou o cartão que indicará a nossa vacinação contra a COVID e que constitui um grave atentado contra a nossa liberdade é que é indecoroso! Decapitar meia-dúzia de crianças e chacinar comunidades, isso não interessa nada, porque se passa bem longe de nós! Talvez se lhe pegar por outro lado, muitos senhores possam sentir-se verdadeiramente ofendidos, indignados e começar a pressionar a comunidade internacional a intervir naquele território, para se tentar pôr cobro ao desmando. Atenção, que vou dar uma novidade: os moçambicanos são negros! Gente! São negros que estão a ser chacinados! Será que assim resulta?! Mamadou, Ascenso Simões, bloquistas em geral, alguém me ouve, por favor?! Querem agilizar algumas das vossas ações para chamar a atenção para esta barbárie?! Serei a única alma a quem ferve o sangue, treme o intestino e cai na raiva por se sentir impotente?

Fartinha desta santa e honrada hipocrisia de uma sociedade tinhosa da qual me apetece fugir, mas sem a qual não posso viver! Ó dilema!

Como diria o ilustre Fernando, na voz do seu Álvaro, “É o sono da soma de todas as desilusões,/ É o sono da síntese de todas as desesperanças […]”

 

Nina M.

 

sexta-feira, 19 de março de 2021

É no prelúdio da sílaba anunciada

 É no prelúdio da sílaba anunciada
 Que me observo e O vislumbro
 E na bruma dispersa dos versos O consumo
 Vejo-me e descubro-O envergonhada

 Senhor do meu dia e do meu ano
 Nesta era...Idade tão tardia
 A lua cheia que de brilho se enchia
 Só para desfazer o vil engano

Que a minha alma acrescentava
O Amor afinal não era só o dano
Mas a cura para o erro tão mundano
E a dádiva de mim se revelava

Encontra quem Te procura
Numa luta diária que porfia
Os deuses e a sua rebeldia
Ciente da desejosa aventura

Numa página em mim aparecia
A desvelar-se sem prurido e sem mistério
Silencioso como o túmulo de cemitério
O Amor derramado em Poesia



 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Sem alma e sem chão

Sem alma e sem chão

Cabeças que rolam pelo chão

São crianças inocentes

Ainda ausentes de razão

Cordeiros da Páscoa imolados

A lembrar a culpa e a crueldade

 Dos que deveriam sentir-se envergonhados

Desça sobre vós a ira do vosso Profeta

Ou deus menor deus das trevas ou anjo caído

Que se sacia com sangue inocente

Arda ele e todos vós nessa sua sarça ardente!

Renego todos os deuses da ira e da tirania

Renego-vos, malditos, e a vossa vida fria...

Se o vosso deus poupou Abraão

Porque quereis transformá-lo em vilão?

Porque não vejo sublevação... Ondas gigantes

Imparáveis de indignação?

Que era das trevas que Idade Média avança

Sem que se impeça a morte de uma criança?!

Que a terra que um dia vos há de dar a sepultura

Se fenda aos vossos pés e vos engula!

Vos leve para um buraco negro sem fundo

Longe bem longe para os confins do mundo!

Não regressareis 

Onde houver um Homem de boa vontade

Não caberá um asco de ser humano!

Morrei e morrei já, vândalos tiranos!

Ide ao encontro das vossas sete virgens celestiais

Tão bestas tão feras 

Não sabem que as doces virgens

Rejeitam os boçais!

Iludidos, toscos ignorantes sanguinários

 Estais ao serviço de mercenários!

Quem pudera arrancar de mim esta ira! 

Este duplo nojo que me atormenta!

Perdoai-me, Senhor, que me transformo

Na fera perdida que a Tua Mensagem afugenta...




sábado, 13 de março de 2021

Crónica de Maus Costumes 223

 

As ilhas mágicas

Estou a acompanhar religiosamente, com a ajuda da box, o programa da RTP 1 “Mal-Amanhados – Os Novos Corsários das Ilhas”, que passa aos sábados, às onze da manhã, conduzido pelo comediante Luís Filipe Borges, mais conhecido por boinas, terceirense, e pelo escritor Nuno Costa Santos, micaelense. Trata-se de uma declaração de amor ao arquipélago onde nasceram, enquanto nos guiam por uma viagem gastronómica, paisagística, cultural e também de aventura, divulgando a identidade dos diferentes ilhéus.

Já estive várias vezes nos Açores e, se tudo correr bem, lá regressarei este verão para descobrir mais duas ilhas que ainda não conheço (Faial e Pico), redescobrir S. Jorge (belíssima) e a que melhor conheço, Terceira, onde vou amiúde e onde também não falharei, este ano. Os meus filhos adoram! Saltam de alegria quando sabem que vão aos Açores passar uns dias com as primas adotadas de coração e com o tio Carlos, que é o herói da criançada, por ter toda a paciência do mundo e ser amigo de fazer a vontade da canalha. De modo que estou a gostar imenso de assistir ao programa, de conhecer as particularidades, a história e a identidade daquelas gentes.

Não sei se por ir lá variadas vezes, se por ter lá a minha irmã de coração, certo é que adoro o arquipélago! Gosto de acordar de manhã e ir correr junto ao mar, gosto de ir ao mar depois de terminar a corrida, gosto da simpatia das pessoas, gosto da tranquilidade e da natureza, do verde que nos hipnotiza, das paisagens deslumbrantes e de um tempo que se faz de conversas, risos, amizade, simplicidade. Um tempo que se faz sem tempo contado. Gosto que a Terceira tenha lutado para se manter independente e o tenha conseguido, durante um certo tempo, durante o domínio filipino. O apreço dos terceirenses pelos touros deve vir da batalha da Salga. Gosto que a ilha tenha tido um papel importantíssimo nas lutas liberais. Foi de lá que D. pedro IV organizou o desembarque do Mindelo, com a participação do nosso Garrett. Gosto desta mesma ousadia que caracteriza a mui nobre, leal e invicta cidade do Porto. Gosto, essencialmente, de sentir no açoriano um profundo orgulho na sua terra e de ver que saem, muitas vezes para estudar, outras para ganharem mundo, quando o corpo jovem e a alma inquieta o pedem, mas de saber que desejam regressar a casa, ao ninho e às origens. O regresso ao ventre materno, à bruma em dias mais cinzentos, às paisagens exuberantes situadas num nico de terra abandonado no meio do atlântico, a cerca de mil e quinhentos quilómetros do continente. É no meio da natureza, no silêncio do paraíso ainda não estragado pelo homem, numa fajã, no cume de uma serra ou no meio do mato (como designam os açorianos o monte) que nos sentimos mais próximos de Deus e acreditamos na sua existência. Umas ilhas fantásticas, povoadas por desterrados, por vozes inconvenientes ao regime, nalguns casos, que souberam fazer da lonjura nova casa, com resiliência. Gosto da forma como o açoriano é ligado às suas tradições e atividades culturais. Nas pequenas ilhas proliferam bons artistas: cantores, músicos, escritores, fotógrafos… Têm imenso orgulho nos seus teatros amadores e filarmónicas, mantendo uma atividade cultural notável, que sabem valorizar e preservar. Gosto que o açoriano não seja o provinciano deslumbrado, aquele que vai à capital, que por lá permanece uns tempos e regressa com desdém dos que ficaram. Normalmente saem e regressam com vontade de empreender e de fazer evoluir a sua terra e as suas gentes. Regressam com a certeza de quem sabe que as ilhas são o melhor local onde podem viver, um paraíso raro e difícil de encontrar. Enfim, a sua pertença. Gosto de ver em cada ilhéu um Torga e o seu amor pelo Reino Maravilhoso.

Eu, que não sou açoriana e que não sei se gostaria de lá viver no inverno por precisar muito de sol e de me incomodar a chuva, sei que gosto cada vez mais de lá regressar no verão, de descobrir o que ainda não conheço… Os meus pequenos também, porque na sua inocência, como se fosse só uma questão de querer, perguntam muitas vezes:

- Mãe, porque não fazemos uma casa na Terceira?

- Por falta de dinheiro, filhos. Apenas isso.

Quem experimenta quer regressar. Como dizem os terceirenses: vais prová, vais comê e vais gostá! (Quem precisa do “r” final do infinitivo?)

Estou em falta para com esta gente, que terei que remediar antes do regresso e do périplo pelo grupo central. Falta a leitura do Nemésio “Corsário das Ilhas” e de Raúl Brandão “As Ilhas Desconhecidas”. Fica a promessa.

 

Nina M.

 

           

 

 

terça-feira, 9 de março de 2021

Dichote

 Há muito investigador
Que em ânsias de admiração
Não resiste ao olhar novo
Ao avesso da questão
E com os estudos culturais
Irmanado com o ismo
Arranca interpretações brutais
Acusa o Eça de racismo!
Ironia! É o pastiche português!
Atira zangado, Eça!
Enxurro de cloaca, vocifera Alencar!
Só o estudioso impertinente
Não percebe a estupidez
Cisma no seu racismo
Talvez também no seu machismo
Esquece a época e o contexto
E nem se lembra do texto
Nem da caricatura do português!
E tu, Camões, amigo,
Vê se escapas ileso
Apregoas imperialismo
Ficas votado ao desprezo!
Cuidado com a “maura lança”
Instigas à opressão
Se te apanham desprevenido
Lançam-te a rejeição!
Não penses tu, ó Pessoa,
Que também serás esquecido
Falaste na invasão amarela
Não te perdoam o bramido
Queres fazer da lusofonia
O nosso Quinto Império?
Vê lá se perdes a mania
Da grandeza e do mistério!


segunda-feira, 8 de março de 2021

Mulher

 Bela Vénus de luz dourada

 Deusa de ébano formada

 De lisos cabelos d'oiro

 Ou de crespo carvão forjada

 Se és brancura alva de alvorada

 Ou pretidão de noite estrelada

 És rainha curvilínea de seios

Virginais e fartos

Ou andrógina e felina

Quebras estereótipos gastos

 És mulher!

Essa palavra te define

Guardadora de vontades

Alquimista de palco

Mãe irmã amante e cortesã

Tudo isso sem sobressalto

De vestido ou de fato

De sapato raso ou de salto

És mulher és fortaleza

Tudo num só retrato

Colo maternal lâmina cortante

És ouvinte és falante

O princípio do mundo

Pois tudo o que existe é gerado

Nesse teu ventre fecundo!


domingo, 7 de março de 2021

Barqueiro triste

- Diz-me, barqueiro triste,

Para onde vai a tua barca

Se do mundo amor não viste?

- Vou ao mar pescar com ela

Trazer comigo sereia bela...

- Pescador da barca alva,

Do mar não vem doce canto

Só lamentos e o pranto

Com que a alma iludiste

Pois se a sereia não existe

O que vais pescar com ela?

Não te enredes no sargaço

Que a morte trazes no regaço...

- Diz-me tu, deusa do logro,

De que serve a vida larga

De cautelas e de façanhas

Se a alma em si se acanha?

Se a sereia eu não ouvir

Não me acrescenta dano

A ilusão de existir 

Amor no grande oceano...

Tê-lo-ei sempre em mim

Remarei sem princípio nem fim

Comandado por sonho humano!

Dá ao demo o pessimismo

Nesta barca de tristura

Não cabe tamanha negrura

Nem se embarca conformismo!










sábado, 6 de março de 2021

Crónica de Maus Costumes 222

 

Haja limites para o politicamente correto!

A ditadura do politicamente correto começa a atingir proporções deploráveis, que raiam a estupidez.

Durante a semana, li um pequeno texto de um professor de Português e poeta que se lamentava por ter ouvido um aluno dizer que Camões era racista. Servia de apresentação de um texto de imprensa em que a jornalista se lamentava de ter sido preterida para fazer uma entrevista a um escritor negro por ser branca, depois de já ter feito inúmeros trabalhos do género. Intuía-se que por ser branca, a jornalista não teria a capacidade para sentir o peso ou absorver a mensagem veiculada pelo autor negro. Naturalmente, a periodicista mostrava indignação, questionando se era necessário ser negro para ser capaz de compreender o negro ou de ser homossexual para compreender o homossexual… A resposta é óbvia: basta ser humano (a única raça que conheço) e empático. A arte, especialmente a Literatura, tem a capacidade de nos transportar para mundos diferentes dos nossos, para lutas que não travamos diretamente, para dramas que nãos nos pertencem, mas que nos fazem colocar no lugar do outro. Colocar-se no lugar do outro ou ser-se empático é a qualidade de que se necessita para saber ouvir, saber compreender e saber aceitar a diferença. É a qualidade que nos permite aceitar o outro com as suas diferenças. Assim, a Literatura em particular e a arte em geral são capazes de derrubar os muros da ignorância e dos preconceitos. Quem lê o Filho de Mil Homens, de Valter Hugo Mãe (desculpe, Valter. Insiste em escrever o seu nome em minúsculas, mas trata-se de uma subversão que não gosto de fazer. É um autor demasiado grande para ser escrito em minúsculas) não fica indiferente ao Antonino, o homossexual da ficção. Não precisamos de o ser para nos condoermos com as pequenas grandes tragédias da personagem: a dificuldade em assumir a sua essência, o desprezo e o ódio que lhe votava a vizinhança, o desgosto materno que o queria “curar”, o sofrimento de Antonino, que não correspondia às expetativas do meio onde se movia, como se fosse obrigado a ser o que os outros esperavam dele. É fácil compreendermos o despotismo valorativo que uma sociedade sempre impõe aos seus membros e a crueldade com que é capaz de tratar os rebeldes e os que ousam ser diferentes. De nada serve se depois pensarmos que não passa de uma história e não formos capazes de canalizar a empatia para a realidade onde nos movemos. Porém, é isto que a leitura nos permite: o acesso a outros mundos, a outras formas de sentir, de ser e de estar e a abertura para se ser tolerante.

Ora, quando se quer tanto defender uma causa, mas em nome dela se ostraciza, perde-se a razão e enfraquece-se a causa. Desta forma, impedir que uma jornalista com trabalho reconhecido não possa entrevistar um autor negro por ser branca parece-me sobremaneira inqualificável. A seleção da jornalista deve passar pelo critério da competência e não pelo da cor! De modo que quando vejo atribuírem a Camões o epíteto de racista todas as minhas entranhas se abalam e se estremecem! Ainda há pouco tinha escrito, a propósito do Padrão dos Descobrimentos, que só faltava pedirem que Camões e Pessoa fossem retirados do programa pelo canto épico, um dos “feitos gloriosos” e o outro da identidade ou da alma lusa! Haja decoro, decência e sobretudo cultura! Também já me deparei com uma notícia que dava conta de que numa palestra on-line, em Massachusetts, a professora doutoranda Vanusa Vera-Cruz Lima defendeu que “Os Maias” são uma obra racista, porquanto e passo a citar: “A perceção e a representação de pessoas negras n’Os Maias’ dependem de agressão, desumanização e degradação. O meu objetivo é analisar a linguagem usada por Eça de Queirós para se referir às pessoas negras, através das personagens, narração, discurso e escolha de palavras, entre outras abordagens estilísticas (…) O objetivo é trazer atenção e perceber o papel que a raça tem no trabalho de Eça ao analisar não só a linguagem racista prejudicial usada neste clássico”. Acrescenta também que “existe uma descomunal admiração pela brancura detetada na narrativa”.

A doutoranda terá apresentado também exemplos retirados da obra: “crises de melancolia negra” de Pedro da Maia, os olhos de Maria Monforte parecem “negros de cólera”, “escada escura e feia”, “quartos alegres, forrados de papéis claros”, referindo que existem vários trechos em que a brancura está associada à beleza feminina. Está com certeza, quem não se lembra da descrição de Maria Eduarda, no peristilo do Hotel Central? Da deusa de “carnação ebúrnea” e de “cabelos de oiro”, que faz com que o Craft deixe escapar um “esplêndida”!

Será necessário lembrar que o romance data do século XIX? Que há um contexto e uma realidade diferentes dos que vivemos hoje? Queremos apagar a memória coletiva, a arte e a cultura, supostamente para não sermos ofensivos, neste caso concreto, para com a raça negra?! Para não os fazermos deparar com a discriminação contra a qual ainda hoje lutam? A mim parece-me um terrível absurdo para além de um enorme erro! Depois, não posso deixar de questionar a seriedade de tal estudo e as agendas politizadas por detrás de certos movimentos. Não se lembrou a autora do estudo do seguintes factos, que pode facilmente comprovar com uma leitura atenta do romance:

1. Afonso da Maia, pai de Pedro e avô de Carlos da Maia, era terminantemente contra o casamento de Pedro e Maria Monforte, porque o pai desta tinha feito fortuna com o tráfico de escravos. Afonso da Maia, liberal e jacobino, considerava indigna essa forma de fazer fortuna, à custa de sangue alheio. Por isso, não aceitava Maria Monforte, a negreira. Esta não era merecedora de integrar a família Maia, por lhe correr sangue alheio nas veias.

2. A brancura da tez era cânone de beleza à época. Aliás, já desde o tempo da renascença e de Petrarca, em que as mulheres admiradas e cantadas eram brancas, loiras e de olhos claros. Não só se excluem as mulheres negras, mas também as brancas trigueiras de olhos castanhos! Já agora, valerá a pena recordar que Camões, apesar dos muitos sonetos de influência petrarquista, teve a ousadia de compor as  “Endechas a Bárbara Escrava”, a sua “pretidão de amor” e a “cativa que o tinha cativo”.

3. A mulher de Afonso da Maia era uma portuguesinha baixinha e trigueira (não se enquadra nesse cânones). Maria Monforte e Maria Eduarda, sim, duas deusas de tez clara, mas note-se: Maria Monforte é retratada em termos pouco abonatórios: mulher bela, mas manipuladora, egoísta, interesseira e volúvel. Atira Pedro, um romântico fraco, para a tragédia, assim como aos seus dois filhos, em especial Maria Eduarda.

Maria Eduarda, belíssima, é uma das poucas mulheres que Eça pincela com alguma indulgência e compreensão. As mulheres queirosianas, genericamente de condição social elevada, são apresentadas como adúlteras e fúteis. Maria Eduarda tem um passado pouco abonatório, com várias relações amorosas (Carlos sabia que o avô nunca aceitaria esse romance, não a consideraria digna da família). Eça retrata-a com compreensão, porque a considera uma vítima das circunstâncias, no entanto, Maria Eduarda, apesar do seu passado e da sua mãe, é uma mulher íntegra, tal como os Maias. À exceção desta e de Joaninha, de " A Cidade e as Serras", as mulheres são retratadas de forma impiedosa. Talvez se explique pelo passado do Eça e pelo facto de ele ter sido rejeitado pela própria mãe (isto sou eu a supor, obviamente, não há como provar).

4. Finalmente, o recurso aos adjetivos “negro” e “escuro” nada tem a ver com racismo, mas com uma interpretação cultural da cor e do uso expressivo do adjetivo, recurso frequente na escrita queirosiana! Para o português, a cor preta significa luto, sinal de tristeza, associado a aspetos negativos e prende-se com os indícios de tragédia que Eça pretende causar ao leitor! Não está relacionado com a cor da pele de qualquer ser humano! Atribuir-se à cor esta conotação negativa não significa transpô-la para a pessoa.

Irra! Como é possível arranjar uma interpretação tão aviesada e forçada? E agora? Vamos exterminar todos os clássicos por considerarmos que não apresentam um discurso politicamente correto, mesmo que nesse momento da História a interpretação do mundo fosse entendida de outra forma?! Haja paciência para tamanha parvoíce! Haja coragem para se reabilitarem os clássicos, a nossa cultura, a nossa língua, enfim, a nossa identidade!

Sou absolutamente a favor da luta contra o racismo. Sou absolutamente contra estes desmandos! Afirmar que Camões ou Pessoa ou Eça eram racistas é não conhecer, não saber analisar factos à luz de uma época. É não saber História nem Literatura!

Já fomos um povo esclavagista e colonizador? Sim. Faz parte da nossa História para o bem e para o mal. Faz parte da nossa identidade cujo maior baluarte é a nossa língua! Assim, ao contrário de Mamadou Ba, por exemplo, que é legalmente português, eu não tenho vergonha da nossa História. Reconheço-lhe os defeitos que quero ver lembrados para que não se repitam, principalmente os do século passado, mas é essa mesma memória coletiva que nos confere identidade. Mamadou, connosco, partilha a nacionalidade, com toda a legitimidade, mas não partilha a identidade, que começa na língua, passa pela História e termina na cultura e nas tradições, no modo de ser do português. Entre nacionalidade e identidade há um longo caminho a percorrer. As mudanças que devem ser feitas têm de ser alicerçadas no amor ao país e ao seu povo, querendo a sua natural e sadia evolução, sem ódios e sem polarizações, uma mudança inclusiva sem distinção de raças, credos ou ideologias.

Tentar arrancar ou fazer esquecer as nossas raízes culturais é ridículo e inadmissível.

Nina M.

terça-feira, 2 de março de 2021

Ausências

 Sei de ausências

 Desconfortos e almas em chamas

 Abandonadas e sós

 A solidão é uma casa fria e húmida

Com bolor nas paredes

E frinchas desagradáveis nas janelas

É tristeza arrastada pelo vento

Que se infiltra  sem que se queira

O desamparo de quem

Já não se reconhece inteiro

Neste silêncio doentio

O ser despovoado na ausência

Trespassado pela distância

A lembrar os lampiões tristes e sós

Das nossas ruas abandonadas

Murchas e pardas

Tão cinzentas como a alma

Nos dias de morrinha angustiada