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sábado, 29 de julho de 2023

Crónica de Maus Costumes 336

 Férias, descanso e tempo

 

            Este é o último fim de semana de julho, o que significa que esta rubrica semanal ficará em pousio. Quem a escreve terá quatro semanas descomprometidas e quem a lê já como rotina terá de a alterar um pouco e também não será difícil, com toda a certeza.

            Hoje, farei uma espécie de “mixórdia de temáticas”, mas sem o sentido de humor de Ricardo Araújo Pereira. Começo pela Jornada Mundial da Juventude, que tem trazido gente jovem e menos jovem, oriunda de todo o globo. Ficam em famílias de acolhimento e vivem, juntamente com eles, um espírito de fraternidade e de partilha. Não acolhi ninguém das jornadas, mas conheço a experiência, por já ter recebido a minha Gaia durante uns meses. Há quem conteste imenso o dinheiro gasto e os mais radicais resguardam-se na laicidade do Estado e nos últimos escândalos associados à pedofilia, dentro da Igreja. É preciso saber-se que uma certa quantidade de árvores não faz a floresta inteira e que a par dessa gente que trai os princípios cristãos também há muitos que são capazes de dar um verdadeiro testemunho do seu cristianismo. Hoje, o Parque da Cidade do Porto recebeu imensos peregrinos. Diz quem lá esteve que o ambiente foi de alegria contagiante, de multiculturalidade, com milhares de jovens a cantar e a pular, de forma sadia e sem comportamentos de risco associados a outro tipo de eventos. Numa das paróquias do concelho, há uma família eslovaca de seis: os pais e quatro filhos. Todos pequenos. O mais novo com apenas um ano. Vieram assim, com fé e correndo o risco de terem de se separar e ficar em casas distintas. Correu-lhes bem. Alguém teve condições e generosidade para os albergar a todos. Não teria essa coragem, a de partir com tanto filho pequeno sem saber bem para onde e em que condições. O espírito que os anima e os une não passa despercebido. Isto, seja-se crente ou não, mais crítico ou menos crítico em relação à despesa e a um possível retorno económico, não nos deixa indiferentes. Num mundo cada vez mais global, mas onde o egoísmo impera e que é ferido constantemente por conflitos entre os povos, esta jornada, com as pessoas que movimenta num convívio salutar e multicultural, que promove a tolerância e a aceitação do outro, só pode ser observada como uma luz de esperança para um futuro que se quer melhor. Quem não concorda com o evento pelo facto de não ser religioso, bem, goste ou não, a matriz cultural europeia é a judaico-cristã. Para o bem e para o mal. Nem todos gostam de futebol e já cá tivemos o europeu e o mundial, onde se terá gastado mais na construção de estádios… Acolhemos outro tipo de espetáculos musicais que podem também não ser do agrado de toda a gente. Não me parece correto que se use de dois pesos e de duas medidas. Estou à vontade para falar, porque nunca marquei presença em nenhum. Também não estarei em Lisboa. Penso que o Luís Osório, no seu “Postal do dia” fez uma análise bastante correta, de que gostei, e cujo texto já partilhei. Olhar para esta jornada apenas do ponto de vista económico é absolutamente redutor. O Papa Francisco tem sido uma voz constante na defesa dos mais desvalidos, dos refugiados, dos pobres, das vítimas em todas as circunstâncias e tem apontado o seu dedo crítico ao capitalismo feroz e desregrado que sobrepõe o interesse económico à vida humana. Um milhão de pessoas em Lisboa significa que partilham da visão do Papa, que é o grande motor para a vinda de todos. Quantos não estarão presentes por falta de oportunidade e não por falta de vontade… Para mim, esta mobilização é um sinal inequívoco de que ainda há esperança. Há jovens comprometidos na construção de um mundo melhor, eles que são o futuro das nações.

            Aprecio o que me rodeia à distância. Apesar de admirar o Papa Francisco, não me vejo metida no meio de multidões e de confusão. Evito-as. Gosto cada vez menos de grandes ajuntamentos. Sinto-me sempre uma estrangeira, expulsa da sua própria casa. Tem-se agravado com a idade e com a perda de vontade de pertença ao grupo alargado. Gosto da intimidade e do privado. Dos encontros genuínos com amigos, no sossego e no resguardo do lar. A convivência que aprecio tem de ser significativa e poucas coisas o são, efetivamente. Não adianta tentarem agarrar-me pelo braço e puxar-me pela manga, porque não vou. Não quero e não estou em idade de precisar de me adaptar a contextos que nada me dizem. Não é petulância, muito menos arrogância, apenas exercer o direito de preservar o meu ser, sem que o sinta agredido, sem fazer frete. O pleno usufruto da minha liberdade, mesmo que os filhos julguem a mãe um bocadinho estranha. Já tive a minha boa dose de multidões (selecionada mediante o gosto) em tempo útil da juventude. Tudo tem o seu tempo e, atualmente, o meu é outro. Sem retorno e inegociável. Preciso de pausar o tempo e de o viver mais demoradamente. Hoje, no quarto da filha, os olhos depararam-se com os novos quadros que pôs na parede. Quis retirar a suas fotos de menina de três ou quatro anos e, de repente, essa pequena criança deixou de existir. Há uma pré-adolescente que elimina as memórias da sua mais tenra infância sem saber que a mãe tem saudades dessa menina, desse irmão mais pequeno também… Sem se dar conta de que o tempo carrasco não deixa ninguém impune. Portanto, há demasiadas distrações que nos descentram, nos roubam a nós mesmos e nos distraem com superficialidades. Há significativos irrecuperáveis e ou os vivemos quando assim tem de ser ou escapar-se-nos-ão por entre os dedos, líquido e rarefeito.

            Votos de umas boas férias. Reencontrar-nos-emos em setembro, assim espero.

 

Nina M.

           

           

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Poesia-me

Escreve um poema, insistes
Poesia-me
E penso na métrica e na musicalidade
Desejável para fixar o indizível
As palavras são insuficientes
Diante da plenitude, da beleza e do sublime
Do inferno da dor também.
Assim que há silêncios mágicos
Tão profundamente sentidos
Por uma alma [duas por uma ser manifestamente insuficiente]
Silêncios metafísicos
Vem o mundo. Quer
Arrancar-me suspiros a lembrar
Que existe
As tarefas: o jantar, a casa...
Escreve um poema - ouço.
E obedeço
Silencio-me em busca
De palavras que traduzam
Os silêncios perfeitos.
Não as encontro.
Emudeço.
Silencio como brisa suave
A acariciar amorosamente um rosto.



sábado, 15 de julho de 2023

Crónica de Maus Costumes 334

 

 Maternidade: Prós e contras

             Os meus olhos cruzaram-se com um texto, durante a semana, em que uma mulher afirmava que a opção de não ter filhos poderia ser uma escolha altruísta, devido ao estado em que se encontra o mundo.

            Fiquei parada a olhar para aquelas linhas, a pensar… Pelos vistos, antes de mais, há a tese de que o altruísmo, afinal é egoísta, porque a ação de fazer o bem e de alegrar o outro, ao que parece, traz mais benefícios ao agente do que ao beneficiado. Parece que são libertadas umas certas hormonas como a dopamina, a serotonina, a oxitocina, responsáveis pela sensação do bem-estar. Portanto, alegrar alguém com um gesto, com uma palavra de apreço, com um presente parece trazer benefícios ao próprio. Portanto, só temos a ganhar com as atitudes positivas.

Compreendo a ideia que sustenta tal afirmação, mas não me convence. Afirmar que trazer um filho ao mundo pode ser um ato egoísta e não gerar vida pode ser um gesto altruísta, porque iríamos poupar o novo ser ao desgosto de crescer e de se desenvolver num mundo alucinado e pouco razoável, não me parece argumento de monta. O mundo nunca foi recomendável! Sempre houve fome, guerra, ódio, misérias e opressões. Se todos pensássemos dessa forma, o ser humano estaria extinto. A crueldade existente nunca demoveu a humanidade de procriar. Parece-me mais lógico cada um trabalhar individualmente em prol de um mundo higiénico, porque se formos pensar na linha do tempo, desde os primórdios, a vida humana é feita de convulsões e nunca houve tantas condições. Naturalmente, também aqui há cisões abruptas e fossos absurdos e nem todos os homens têm o mesmo conforto, mas julgo que é inegável a evolução positiva, numa visão mais ampla da história da humanidade. Obviamente, a humanidade está muito longe de ser perfeita e há um longo trabalho a ser feito, mas deverá, precisamente, o ser ocidental questionar a maternidade ou paternidade como um gesto de altruísmo se nunca teve tantas condições favoráveis? Não serão estas até as responsáveis por uma certa doença da pós-modernidade, em que o tanto já é tão em demasia que sobra apenas um vazio imenso? Um tédio inexplicável e uma anedonia injustificável, num mundo em que quase se tem tudo e nada se abarca nem satisfaz. Parece que o facto de o homem não precisar de lutar pela sua sobrevivência o deixou à deriva, sem um sentido e um propósito que justifique a sua existência. Perante este cenário, surgirá o pensamento de que não valerá a pena trazer crianças ao mundo…  É verdade que se a população existente no planeta fosse estrategicamente redistribuída, sem olhar a fronteiras e nações (afinal o planeta é a casa de todos) a Europa não seria tão envelhecida. Paradoxalmente, temos um planeta sobrepovoado, em que os países ricos esgotam rapidamente os recursos naturais. Há quem defenda o decréscimo do ritmo de crescimento populacional nos países em vias de desenvolvimento como parte da resolução do problema, acompanhado de outras medidas, naturalmente, como o recurso mais regrado da energia, uma melhor gestão das zonas urbanas, a proteção da água, um crescente controlo da exploração florestal e a preservação das terras cultiváveis.

Não me parece, no entanto, que a decisão de ter um filho passe por esta postura de não querer sobrepovoar o planeta. A mulher tem o direito de não querer ter filhos e uma análise racional, tecnicista e fria aconselha-o vivamente. Desde logo, cada filho até atingir a maioridade representa uma despesa de cerca de duzentos mil euros aos pais (se eu colocar o numerário em viagens e livros, ainda me arrependo de ter tido os meus…), depois, a responsabilidade, a preocupação, o centro e o foco da vida passam a ser eles, inevitavelmente. Há perda de liberdade, na medida em que os pais assumem a tarefa de criar e de educar um novo ser que não pediu para nascer e tudo o que possamos fazer pode direta ou indiretamente prejudicá-los. Para não falar das situações aborrecidas como as noites mal dormidas, as doenças que sempre surgem, as birras, a exigência de atenção que não se compadece de cansaços e um dar de si a todo o instante, sempre mais e sempre de forma inesgotável, até ao fim dos nossos dias.

Na verdade, é muito fácil conseguir elencar um enorme número de razões para não se ser mãe nem pai e o altruísmo é a última que me ocorre.

A favor, apenas duas e, por sinal, egoístas: o privilégio de saber o que é o amor incondicional. Saber com todo o coração que daríamos, sem pestanejar, a vida por aquele ser que acolhemos no ventre e a possibilidade de prolongarmos os nossos genes na vida terrena, o que nos confere uma certa imortalidade. Estas duas razões ofuscam todos as outras contrariedades. Confirma-se a teoria de que quem dá amor, faz o bem, cuida, muitas vezes, sem vontade e com sacrifício, apenas porque ama, é o beneficiado. Por isso, os pais, mesmo exauridos, quando olham as suas crias, sobra apenas o amor, o retemperador de forças que os induz cuidado, sempre renovado, sem contas nem reclamações.

A minha pequena Matilde, na sua ânsia de compreender o mundo, pergunta-me muitas vezes se preferiria que morresse ela ou eu. E a minha resposta é invariavelmente a mesma: claro que preferiria morrer eu. Nem gosto que me fales assim. E ela insiste em querer saber os motivos. Tento explicar-lhe que a morte dela ou do irmão seria a morte em vida da mãe. Não há nada que me assuste mais. Invariavelmente, ela arregala os olhos e diz-me: mas, ó mãe, morrerias. Trocarias a tua vida pela minha? Sem pestanejar, respondo. Ela cala-se e eu sei o que lhe vai na alma. O que ela não me diz e daí vem o seu espanto é que ela não seria capaz de o fazer por mim. Tenho de acrescentar, para serenar o seu coração, que o amor de uma mãe por um filho é sempre maior do que o inverso e está bem assim, por isso, nenhum filho precisa de dar a vida pela mãe ou pelo pai, porque nenhum deles aceitaria.

 

Nina M.

 

 

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Felicidade

Um momento de felicidade
Uma faísca
Uma centelha
Brilha
No meio do caos

Não é inteira a todo o instante
Tem o seu tempo
Fugaz
Às vezes chega pela aurora
Evapora-se pela manhã

Quem trocaria vida
Por esses breves e leves
Instantes
Quem a deixará cativa
De uma felicidade errante?

Ser feliz não ausenta de lágrimas
Um rosto sereno e belo
Caberá ao lado
A dor
Não querendo faz parte dela

Ser feliz é ser-se pleno
Realização de alma
Na Inteireza de um ser
Que não vem só com virtude
O cumprimento faz sofrer

Desejar uma vida boa
No meio da alienação
Ter vislumbres
Rasgos felizes
No meio da confusão




sábado, 8 de julho de 2023

Crónica de Maus Costumes 333

 Eterno retorno e amor fati

“E se um dia ou uma noite um demónio se esgueirasse na tua mais solitária solidão e te dissesse:

- Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande na tua vida há de retornar, e tudo pela mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio.
A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira.

 Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demónio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que responderias: - Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!

 Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse. A pergunta, diante de tudo e de cada coisa:

- Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?
Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?

Este excerto pode ler-se em “A Gaia Ciência”, de Friedrich Nietzsche e sistematiza o conceito de “eterno retorno”.

Partindo do princípio de que o nosso corpo é um conjunto de incontáveis partículas, oriundas da explosão de estrelas, e de que a massa existente no universo é finita, mas o tempo é infinito, num dado momento, todas as partículas de massa tenderão a ocupar todas as posições possíveis umas em relação às outras, repetindo, inevitavelmente, as posições ocupadas anteriormente. Portanto, como somos feitos de partículas dispostas no espaço, num universo de tempo infinito e de matéria finita, elas (as partículas) repetem as suas posições, logo, repetem também a nossa vida exatamente como ela decorreu, infinitas vezes.

Pela lógica, caros leitores, cada um de vós já leu esta crónica e repetirá a sua leitura ad eternum e, por essa mesma lógica, cada um de nós é, afinal, imortal! Não é maravilhoso?! E o universo é tão perfeito que nos originou com fraca memória (teorizo sem certezas) e tudo de que nos lembramos não passam de breves instantes, breves insinuações baças e nebulosas da memória, que designamos por “déjà vu”.

O desafio que Nietzsche nos propõe e nos faz pensar é mais complexo… A ser verdadeira a possibilidade de termos fraca memória, a nossa vida fica facilitada, porque se não nos lembramos, tudo o que fazemos, neste exato momento, está a ser realizado pela primeira vez, mas e se nos lembrássemos? E se houvesse consciência dessa repetição? Se a cada repetição já conhecêssemos a história, os diálogos, os pensamentos e os desfechos? Teríamos a coragem de viver a mesma vida eternamente, numa caminhada sem fim ou seria um fardo demasiado pesado e rejeitaríamos imediatamente tal hipótese? Que resposta daríamos ao demónio que nos oferecesse esta imortalidade?

Eu não lido muito bem com a rotina. Enfada-me. Cansa-me. Preciso de inventar estratégias para lhe fugir. Suponho que Nietzsche me considerasse fraca e ressentida, sensível à melancolia, pela necessidade da criatividade, pela urgência de criar mundos e viver neles para assim suportar esta dura realidade. É o que a escrita e a imaginação nos permitem: transformamo-nos numa espécie de seres demiúrgicos, com a capacidade de criar universos paralelos. E é tão bom poder fazê-lo. Doloroso também poderá ser, mas catártico.

É esta mesma razão que leva o homem, segundo o mesmo filósofo, a acreditar na vida para além da morte e a buscar a transcendência. Tudo não passa de um analgésico, na sua perspetiva, numa tentativa do homem evitar o sofrimento, nem que para isso tenha de mentir a si mesmo e acreditar na mentira que constrói, neste caso, numa vida para além da morte.

Talvez tentasse negociar com o demónio para me deixar lembrar só dos momentos plenos e que não me importaria de reviver à exaustão. Só esses. Tudo o resto, o melhor seria não lembrar mesmo e viver tudo como se fosse a primeira e única vez. Ora… O que propõe Nietzsche para solucionar o problema que ele mesmo levantou? O conceito de “amor fati”, que mais não significa do que amor ao próprio destino. Aceitação plena da vida ausente de sentido, que caminha inexoravelmente para o nada. Um sim consciente e assertivo em resposta ao desafio lançado, um não só viveria a minha vida eternamente, como quero que seja assim.

Na verdade, Nietzsche é um estoico com umas pinceladas inovadoras… Na sua perspetiva, os que enfrentam a vida de frente, sabendo que as agruras fazem parte da experiência de estar vivo, com toda a autenticidade e sem placebos, merecem viver.

O Nietzsche morreu louco. Depois da famosa cena do cavalo, em Turim, o filósofo nunca mais foi o mesmo. Ao ver o cocheiro chicotear violentamente o cavalo, ele impediu-o, chorando e murmurando palavras impercetíveis ao ouvido do animal. Em 1879, largava o mundo académico e a rejeição de Lou Salomé (a mulher brilhante que encantou Freud, Nietzsche, Rilke…) atirou-o para um mundo de amargura e de solidão. Viria a morrer em 1900, no mesmo ano do nosso Eça de Queirós, e com poucos dias de diferença. Eça morreu a 16 de agosto e o filósofo, no dia vinte e cinco, do mesmo mês, num quadro de demência. A causa da morte não está claramente definida. Segundo os médicos alemães, o óbito estaria relacionado com o consumo excessivo de ópio e de haxixe, que ele usaria como forma de automedicação e há outra teoria que aponta a sífilis como causa, visto que seria um frequentador assíduo de lupanares.

O cinismo da vida é tramado e não dá sossego a ninguém, principalmente, aos maiores. O homem que propôs o “amor fati” não o soube aplicar, caso contrário não teria ensandecido ou viveu tão intensamente e cruamente a dor, sem subterfúgios (tese que cairá por terra caso o consumo de ópio e de haxixe se comprove) que enlouqueceu. Viveu anos em silêncio e as últimas palavras que terá dito foram: “mãe, eu sou um idiota”, dez anos antes da sua morte. Não, Nietzsche. Não eras nada idiota, mas a absoluta solidão e a amargura podem matar; matam a alma, com toda a certeza. Talvez a consciência do eterno retorno à mesma dor da rejeição fosse insuportável e talvez a loucura e a fraca memória fossem melhores do que a consciência.

Nina M.

 

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Paraíso Terrestre

 Sonho o meu paraíso terrestre
À beira-mar plantado
Pelo azul do céu orlado
Corre a vida simples e Campestre

Suave como a brisa que passa
Espanta como o milagre da vida
E esse azul celeste seria
A eterna alegria do meu dia

Existe esse jardim imaginário
Em mim e fora de mim subsiste
Quando a ele acedo é o corolário
Da paixão pelo azul que persiste

Um campo verdejante
A desaguar no mar
Mais belo do que o mais belo olhar
Detenho-me na imaginação errante

Sei que existe...
Sei da terra distante...
Resta sonhar...


sábado, 1 de julho de 2023

Crónica de Maus Costumes 332

 

Celebrar a amizade

Hoje, foi dia de celebrar a amizade. Cinco mulheres que se conheceram numa escola e continuam a reunir-se, uma vez por ano, mesmo estando cada uma em sua escola.

A escola também é isto, dizia uma delas. Na verdade, Lurdes Martins, és a grande timoneira que permite que este espírito se mantenha. Não que nós não sintamos a mesma vontade, mas talvez pelas tuas características, em particular, a tua capacidade de dares prejuízo à empresa de telecomunicações com quem contratualizaste serviço, o viço se mantenha. Anualmente, cá estamos nós (as cinco), porque eu e tu vamos falando, vamo-nos encontrando e até arranjando projetos comuns, com maior regularidade. Deve-se à nossa proximidade geográfica, obviamente, mas também às afinidades que nos unem: o gosto pela cultura, pelo livro e pelas viagens. Quanto às passeatas, és infinitamente pior do que eu! Uma roda no ar, como é vulgo dizer-se. Se há característica de que gosto em ti é o facto de gostares de viajar, mas de lhe juntares o gosto pela cultura, pela arte, pela História… És uma boa parceira de viagens, porque fazes o trabalho de casa e gostas genuinamente de descobrir a história por detrás dos lugares. Até poderíamos ter escolhido uma espécie de spa caseiro, num dia de calor como o de hoje. Porém, se é passeio, é passeio. Dizes tu. E fazemos-te a vontade com gosto.

Trocámos Aveiro pela “Bila”, dadas as circunstâncias; o litoral pelo interior. A serranias também têm o seu encanto… Que o diga o Torga que cantou a montanha nua, despida até ao osso e as valas feitas a enxadão e a suor humano, nos socalcos do Douro. Mostrei-vos os recantos da pequena, mas agradável cidade onde estudei. Há muito não me perdia pela rua Direita que é torta e pelas suas vielas adjacentes, que tanto nos levam à Carvalho Araújo e à Gomes como à 1º de maio, virada ao Corgo, onde morei parte boa da minha vida. Talvez fruto do S. Pedro, ainda apanhámos a Capela Nova aberta, local onde era feita tradicionalmente a Monumental serenata, que sempre iniciava a queima… Regressar à Bila desta forma, poder perder-me nas suas vielas e traços de casas antigas é sinónimo de retroceder no tempo com saudade… Não podia faltar Camilo pelo meio, nem o Torga e a paisagem de Galafura. O S. Leonardo, que à proa de um navio de mosto, vai sulcando as ondas da eternidade, com desgosto de deixar para trás os vinhedos, o verdadeiro paraíso perdido…

Se tivéssemos ido a Aveiro, a guia não teria sido tão emotiva nem tão competente. Não teria falhado a casa dos avós de Eça. O avô que terá inspirado a criação da figura de Afonso da Maia, mas guia teria sido mais relapsa e não saberia mostrar tão bem os cantos à casa.

Na verdade, o favor foi vosso, meninas. Permitiram-me percorrer os trilhos da memória. Os trilhos do Corgo terão de ficar para uma próxima oportunidade, mas vim com um pedaço de passado agarrado à pele. Trouxe comigo não a “bila” de hoje, mas a de outrora.

 

P.S. Isabel Ferreira, estas meninas ainda provaram o covilhete da Gomes, mas as cristas de galo ou os pitos nem os cheiraram, apesar de termos passado na Lapão. Quem sabe a desculpa perfeita para lá voltarem. Lembrei-me de ti, doutora!

 

Nina M.