O saber não ocupa lugar
Ler o texto de
opinião “Sem tecto, entre ruínas”, de José Matias Alves, do jornal Público e o autor escreve ao abrigo do
anterior acordo ortográfico, daí a manutenção do (c) na palavra teto, não posso
deixar de fazer a minha leitura relativamente a algumas ideias apresentadas.
De referir que a
base estrutural do texto foi escrita há cerca de 25 anos e publicado no Correio Pedagógico e adaptada aos dias
de hoje. O título do artigo retoma o título do livro de Augusto Abelaira
(1982).
O artigo é
escrito na voz de um narrador autodiegético, de quinze anos de idade, Daniel
Rocha. O jovem confronta-se com a situação pandémica, que obrigou a alterações
profundas nas dinâmicas da organização da escola. Lamenta, por isso, as trinta
e uma horas compactas semanais que lhe “promete uma vida futura, enfim liberta
da maldição que parece tudo querer destruir”. Até lá, sofre do longo tempo
preso e sozinho em casa, da turma numerosa de 28 alunos, em que respiram uns
para cima dos outros, da redução dos intervalos para evitar os contactos e do
contrassenso que isso constitui com o facto de, dentro das salas de aula
estarem a 50cm. Fala do tempo insuportável de distância e de solidão. O suposto
jovem de 15 anos vai apresentando, ao longo do texto, as razões que os vários
professores invocam para a valorização do papel da escola, enfileiradas umas
nas outras, à medida que as matérias vão sendo lecionadas. Assim, o professor
de Filosofia fala da escola e da educação como alavanca do progresso social, da
emancipação do homem, constituindo um elevador social; a docente de História
lembra que a escola, com os títulos académicos, democratizou a sociedade e veio
a substituir a estratificação de sangue, permitindo a mobilidade social; de
seguida, a professora de Português invoca a Literatura como a morada do ser, a
revelação do mundo, dos outros, dos próximos mesmo mascarados (ao ler isto,
esta professora de Português já me conquistou)! Finalmente, o professor de
Latim aborda a estruturação da língua e do raciocínio, base para se poder
comunicar bem. O aluno termina a referir que no livro de Filosofia leu que
resistimos à mudança, receamos a incerteza, mas que o tempo não se suspende,
acabando com uma série de interrogações retóricas: “e para onde vai [o
tempo]?
E para onde é que eu vou? E que faço em casa, numa tarde de sol, a mergulhar em
séculos de saber? Onde poderei ler o sentido da minha adolescência, a confusão
da minha respiração? Onde poderei encontrar as respostas para as minhas
inquietações? Onde?”
Antes de mais, manifesto o meu
apreço pela esclarecida e brilhante reflexão. Quem me dera que os nossos jovens
fossem, efetivamente, capazes de pensar e de escrever desta forma. A maioria,
nesta idade, não é. A ser verdadeira a existência deste narrador, com certeza,
ele estará de parabéns. Ocorre-me, então, que quer com pandemia quer sem ela,
estas questões em torno da escola e da preparação dos jovens para o seu futuro
já vêm de longe. Pois se a base do texto já foi escrita há 25 anos!
A dada altura, o jovem diz que ouviu o pai
comentar com um amigo que “o mundo moderno esmaga o homem com a precariedade de
todos os horizontes, ainda mais nestes tempos pandémicos” e, mais tarde, que terá
lido no computador do pai um documento intitulado “teses sobre o sem-sentido da
escola” onde leu que a preparação da escola será um fracasso se a organização
social e a organização do trabalho não se organizarem de modo a dar um sentido
diferente à vida, pois haverá uma falta de motivação dos professores e dos
alunos se a vida ativa não fornecer perspetivas de promoção. A ser assim, os alunos e os professores dificilmente
acreditarão no sentido da vida escolar.
Parece-me que o cerne da questão está na revolução
que ocorreu sobretudo nos últimos anos, perante o facto de, salvo raras
exceções, o canudo já não ser a garantia de uma vida estável e confortável. O
saber já não garante os bons empregos e já não constitui a certeza de ser o
elevador social que tanto se preconiza. Desta forma, parece que todos os
argumentos usados pelos professores caem em descrédito. Na verdade, mediante
uma reportagem que vi, nestes últimos tempos não se tem diminuído a diferença
entre as condições sociais e económicas de geração para geração. São
necessárias cinco gerações para que uma criança oriunda de um meio pobre
consiga atingir um salário médio, segundo um estudo da OCDE. Julgo ser esta
constatação que leva o jovem ou o José Matias Alves a afirmar que se “sente
esmagado pelo vazio da incerteza”.
Penso que esta tendência veio para ficar. Não
será a sociedade a adaptar-se ao homem, mas antes este a ter que se reinventar
para caber na sociedade que ele próprio criou!
Ora bem... A discussão sobre o interesse de certas matérias para a
vida futura dos estudantes sempre se colocou. Não é porque o latim não é falado
que perdeu a sua utilidade. Não é porque ninguém pretende licenciaturas em
História ou Literatura que estas perderam a sua validade. Talvez o Homem
precise de uma mudança de paradigma e de procurar mais intelectuais pensadores
do que tecnocratas. Esse é o grande flagelo da escola e da sociedade. Os
professores, que deveriam ser instigadores do amplo saber, foram transformados
em técnicos, que cumprem um programa e umas aprendizagens essenciais
limitativas. Eu devo, obrigatoriamente, estudar os poemas X, Y, Z, mesmo que
para aqueles alunos e para aquela turma sejam mais adequados o C, D, E! Ah! Já
é possível alterar currículos. Pois… Só a parafernália de documentação e
projetos exigidos fazem qualquer um perder a vontade. Trabalho mais
intensamente e de forma mais limitada e padronizada, hoje, do que no início da
carreira, há 23 anos! Todos os alunos têm de ser formatados para escrever um
texto de opinião, obedecendo cegamente às regras instituídas, quando seria mais
importante fomentar a criatividade, por
exemplo. Num mundo democrático e de plenas liberdades, exigimos exercícios
padronizados. Que remédio! São objeto de avaliação em exame! Agora que penso
nisso, a mim, nunca nenhum professor de Português me ensinou a escrevê-los e as
opiniões escritas não me têm faltado! Penso também que podem discordar delas, mas
não será pelo texto mal escrito. Os
alunos, por sua vez, precisam de entender que a sua formação deve ser holística
e articulada. Sem as ciências sociais e humanas perde-se a empatia, a
capacidade de se dar, de se ouvir, de formular e de reformular pensamentos,
expressos através da língua, conjunto de signos comuns a uma sociedade. As
ciências sociais e humanas servem, antes de tudo, para humanizar os humanos
desumanizados. Um médico ou engenheiro não se valoriza por saber um pouco de
História ou de Literatura ou de Artes Plásticas? Fará algum mal aos futuros
informáticos, engenheiros e afins saber quem foi Padre António Vieira, Eça de Queirós,
Pessoa ou Saramago e conhecer os seus escritos, parte integrante da nossa
cultura e do ser-se português? Será normal que tenha de esclarecer um aluno do
ensino secundário sobre os cristãos-novos, a influência da comunidade judaica
em Portugal e o empreendedorismo que eles emprestavam ao país? Sobre o massacre
dos judeus, as políticas de expulsão do reino, a violência exercida sobre as
crianças retiradas aos pais para serem criadas por famílias cristãs? Não deve o
básico da nossa História ser conhecido de todos, independentemente da área de
estudos?
Enfim, talvez seja idealismo, mas seria bom que a
escola fosse também apreciada pelo saber que em si proporciona e não apenas
pelo futuro ou ascensão social que possa trazer, infelizmente em declínio. O
gosto que a escola me deu pelo conhecimento combate o cinismo que nos rodeia e
as frustrações de uma profissão cada vez mais desgastante, mais difícil e menos
atrativa. Precisamente, porque de mim querem uma técnica, que é o que me recuso
ser! Há algumas coisas de que não gosto na minha profissão. Desde logo a abominável
burocracia que nos destrói. Não obstante, uma permanece intacta: a
possibilidade de falar de literatura, esse mundo especial e incrível vivido por
dentro e que tento aperfeiçoar a cada momento. A oportunidade de o poder cruzar
com a História e com a Filosofia, alargando horizontes. Também tenho de saber
de gramática. Temos todos e, ao contrário do que dizem, também é importante,
porque é ela que regula a língua e a torna percetível e clara. É ela que regula
o nosso património maior, a nossa língua, guardiã da nossa História. É na
língua, portanto, que se guarda quem fomos, o que somos e para onde vamos, o
Quinto Império do porvir. Talvez, por isso, desconfie sempre quando se
questiona sobre a utilidade desta ou daquela matéria. Aprendi que tudo tem sempre
a sua utilidade, mais tarde ou mais cedo. Esqueceremos algumas aprendizagens,
mas não se tornam inúteis por isso. Trata-se, evidentemente, de uma
clarividência que surgiu apenas com a maturidade.
Assim, ao “para que precisamos disso se não serve para nada?”
Respondo: também respiramos o ar que não vemos ou sentimos. No entanto,
mantém-nos vivos.
Que os jovens pensem assim é normal, mas que os adultos os acompanhem, já me causa
um certo prurido…
Por fim, às questões colocadas pelo jovem, lamento,
mas não há respostas prontas. Terá de ser ele a encontrar o seu caminho, o seu sentido
e a resposta às suas inquietações. Aviso que é um caminho que se faz ao longo da
vida, às apalpadelas, para o qual é necessário um arsenal de conhecimentos, porque
só tem inquietações quem as pensa.
Nina M.