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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Novo Ano

 Não sou Drummond, poeta ilustre!

 Não sei fazer votos de novo ano

 Desejo sempre o mesmo com receio 

 De ferir a coerência: o mesmo do ano anterior

O mesmo aos seus sucessores futuros:

Nada!

Nem é o tempo que vem e que passa

Antes eu que nele se esgota...

Nada! Nada anseio nem nada dele espero.

Zero!

Apenas poderei esperar de mim

E de minha miserável condição...

Certo dia arrombou-se a porta por dentro

Vi com espanto a poesia...

E depois de saber o conhecimento

Jamais desejei a ignorância

Nunca mais fui quem era...

Por becos, ruas e vielas

Há um ser que procura ser no mundo

Ah! Minha lúcida loucura!

(Meu Sísifo, meu Torga!)

Procuro a minha verdade mais pura

Tão mais angustiada quanto necessária

E caminho por mim dentro em mim caída

Vasculho-me e perco-me e encontro-me

Para ti me dirijo sempre, ó verdade de mim,

E serei feliz. Assim!

sábado, 26 de dezembro de 2020

Natividade e Requiem

Nasci ainda agora

Na flor desabrochada

No sol que rompeu por

Entre os novelos de algodão

Ou na espuma leve das ondas 

Desfeita ao oscular a areia

A marcá-la com a sua seiva

E morri tantas outras outras vezes

Em derrotas indesejadas

Em vitórias fracassadas

Por nunca serem as da minha escolha

Morri ao ver-te partir

Ao acenar do teu braço longínquo

E renasci a cada madrugada

Em que a preguiça me visita

E me toma conta do corpo

Cheio de viço e de projetos

Arrasto-me na lassidão quente dos lençóis

E sei-me viva e renascida

Para morrer de seguida

A cada voltar de página do jornal

Que se esquece pousado em qualquer banco

A todo o instante em que se liga o botão

De contar a história do homem e a sua podridão

E vivo novamente nas páginas de um livro

Escolhido ao acaso ou oferenda de alguém

E se é oferta consola e renasço duplamente

Na poesia esquecida ou no filme que dela fala

E que é ela transformada em coisa de se ver

Sou vida e morte a passar pelos dias

Como qualquer simples mortal

Quem louco terá julgado nascer e morrer apenas uma vez?

Nasço e morro nos teus braços

Nasço e morro no meio de cansaços

Nasço e morro sempre outra vez

Até ao requiem final 

Escolha que alguém fez

Crónica de Maus Costumes 212

 L’enfer c’est les autres

Diz Jean-Paul Sartre e tem razão, porquanto os outros sejam, muitas vezes, o nosso espelho. Na verdade, o inferno somos nós em confronto com o outro. A admissão de que a existência perde a sua validade ou o seu sentido sem o outro dá cabo das pretensões de qualquer um.

Não existe mãe sem filhos, marido sem esposa, filhos sem pais, professor sem alunos, escritor sem leitores, artistas sem público… Então, não existimos sem a alteridade, o que não deixa de ser estranho, porque possuímos uma essência individual e única e que não é partilhada. Porém, poderia essa essência ser verdadeiramente sem o outro, ainda assim? Eis o fundamento da necessidade da alteridade para podermos ser. Difícil é o equilíbrio entre a alteridade e a interioridade nas relações… Precisamos do outro para ser, mas ele tem direito à sua essência única e exclusiva também. O jogo de equilíbrios, de respeito, de tolerância e de aceitação dificultam as relações interpessoais, transformando-as, muitas vezes, numa luta absurda de imposição do ser.

Ocorreu-me esta ideia enquanto lavava a loiça, depois de ler um artigo em que dava a conhecer o número absurdo de escravização dos seres humanos, a que assistimos neste mundo, apesar da abolição da escravatura… Culpavam-se as políticas neoliberais (das quais não sou fã) pelo sucedido. Em abono da verdade, o capitalismo selvagem promove essas situações. Essas circunstâncias nefastas ainda não foram minimizadas pelos países mais ricos, porque os interesses económicos sobrepõem-se aos direitos humanos, que deveriam ser prioritários. Escusado será dizer que as mulheres e as crianças são os dois grupos mais vulneráveis, onde a escravização para a oferta de serviços sexuais tomam a dianteira. O facto de esses negócios e de essas práticas existirem não veicula ninguém a esse tipo de consumo. É um problema tão grave quanto o do traficante e o do consumidor. Não existiria tráfico se não houvesse consumo nem consumo se não houvesse tráfico. Não me parece que o problema seja de fácil resolução, uma vez que existe desde que o mundo é mundo, apesar dos progressos inegáveis nessa matéria. Não é, portanto, justo nem intelectualmente honesto, culpar meramente o sistema capitalista pelo problema. É um problema transversal aos sistemas políticos e que reflete o facto de o Homem não ser capaz de ser humano! É um problema que advém da falta de reconhecimento do outro! É um problema que confronta o agressor consigo mesmo, transformando-se no monstro violento, porque subjuga a vítima. Só é agressor, porque existe uma vítima.

A falta de consciência de que somos nos outros e com eles, de que somos a forma como nos projetamos nos outros, de que se é na alteridade e de que sem ela não passamos de existências inócuas, conduz o Homem a esse descomprometimento tolo, presumido e nefasto.

Só o caminho do amor ao outro como projeção do amor a nós mesmos poderá ajudar a solucionar o problema. Como plantar a semente e disseminá-la? É preciso educar para o respeito, para a tolerância, enfim, para o amor, numa sociedade que promove cada vez mais a competição desenfreada, a inveja, a aniquilação do outro, entendido como sombra, esquecendo-se de que sem ele não existe verdadeiramente o eu!

Nina M.

 

 

 

 

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Tarde

 É tão tarde!

Espero embalada pelo vento
Fustigada pela chuva lá de fora
E eu quente de alma nua sob os lençóis
Onde te espero para regressar ao ninho
Ao meu lar...
Há um cansaço em mim que impede o sono
Clamo por Morfeu
Que me leve e me salve da agitação dos dias
Quero dormir...
Demasiado embutida no espírito
Recuso o dia e o sol por saber da lua
E de estrelas mais brilhantes
As mesmas com que me traçaste o caminho
Cerro os olhos.... Com força... Impiedosamente até sentir remelas
E tudo o que sinto me impulsiona para ti
Pulsação vibrante e a cabeça a latejar
Deitas-te sobre mim em versos
Soltos que transbordam revoltosos
Da demora, talvez...
E desta fadiga incessante à qual procuro o fim
Só tu me resgatas e me devolves a mim!


sábado, 19 de dezembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 211

 

Cansaços de final de período

                Esta semana, soube que uma colega estava gravemente doente. Descobriu-o numa consulta e com exames de rotina. Sem esperar e sem qualquer aviso prévio, entrou no hospital a 25 de novembro e ainda lá continua.

O coração adoeceu e cedeu. O cansaço era desvalorizado e atribuído à idade, que apesar de não ser ainda muita, começa a pesar. Felizmente, há muita coisa que se conserta com a medicina e ao ouvi-la falar, antes da sua longa cirurgia, parecia que estávamos a conversar sobre o carro que vai ao mecânico, porque precisa de válvulas novas. O coração dela também precisou de algo novo, modelo exclusivo e feito à medida, o que explicou o tempo que permaneceu no hospital sem visitas até à data da cirurgia e assim continua. Oxalá não as possa ter, porque na situação atual, as visitas existem apenas para os familiares se despedirem dos que partem. Venham rapidamente as vacinas para que as vidas de tantos possam voltar às rotinas pré-covid. Esta minha colega convenceu-me a participar no programa da AFS e assim proporcionou-me a oportunidade de conhecermos a nossa italianinha, a nossa Gaia, com nome de deusa, que significa a Terra mãe. Com receio do que este ano nos pudesse reservar, decidimos não acolher ninguém. Seria uma responsabilidade terrível e a precaução venceu, porém, a Fátima, destemida, tinha uma italiana em casa… Depois, a vida, que tem tanto de surpreendente quanto de terrível, trouxe-lhe uma italianinha com um pai cirurgião, que fez questão de falar com os colegas portugueses para partilharem conhecimentos e opiniões. Este episódio é tão extraordinário e tão ternurento, apesar do momento difícil, que as famílias jamais o esquecerão. A menina, que já regressou ao seu país natal, pôde despedir-se de quem tão bem a acolheu, com todas as precauções e cuidados, obviamente. Motivo para felicitar o humanismo do gesto, que possibilitou a despedida a ambas. Histórias como esta lembram-nos a nossa fragilidade e as circunstâncias que vivemos tornam tudo mais difícil! A minha colega passou por uma cirurgia de onze ou doze horas sem o conforto presencial dos que ama. Tinha o telemóvel, mas nunca é a mesma coisa e eu que a senti esperançosa, mas assustada, por saber da delicadeza do arranjo da máquina, dou comigo a pensar na matéria perecível e fraca de que somos feitos…

Surge um cansaço… A moléstia de final de período, mas que me deixou particularmente exausta, este ano (eu, normalmente enérgica e que não o costumo acusar desta forma)! A necessidade e a vontade extrema de me desligar de uma boa parte do mundo, preferencialmente, sem confinamento e fora de casa, que me começam a moer, que me obrigam a adiar planos e visitas que gostaria de realizar, porque o tempo é um bem precioso a não desperdiçar e a única coisa que poderei comportar comigo é a sabedoria e o acervo de experiências... A primeira não é muita, sempre aquém do desejável e a segunda, difícil de concretizar, nos tempos em que vivemos. O aborrecimento de ver os motivos que me levam a trabalhar muito adiados, porque sem isso a correria não faz grande sentido e só me rouba tempo para mim e aos meus… Cronos. Sempre Cronos, esse deus implacável que não se compadece das urgências dos mortais… Deve ser da idade e do tempo que aflora a irritabilidade, mas a ausência dos que amamos e dos seus afetos transtornam-nos o espírito. É necessário aguentar, mas a ausência e os adiamentos são uma fadiga contínua.

Fátima, espero que recuperes rapidamente e que possas regressar aos teus. Se tiver que ser ainda em confinamento, que o seja em tua casa.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 12 de dezembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 210

 

Teísmo, ateísmo e a infinita estupidez humana

Hoje passou-me diante dos olhos um texto de um ateu encarniçado que me deixou a pensar… Dividia o Homem em duas espécies: “homens inteligentes sem religião e Homens religiosos sem inteligência”, fazendo de todo o crente um estúpido. Eu considero apenas haver homens inteligentes e outros menos inteligentes, independentemente da sua crença ou do seu ateísmo. Não resisto ao sarcasmo: Pobre Kierkegaard! Foste um tonto! Talvez só um iludido!

Tal como ele (o autor do texto que li), facilmente reconheço que numa era em que o conhecimento e a ciência chegam às massas, há dogmas que passaram a ser questionáveis à luz da razão. O senhor afirma-se um ser livre, ateu e sem alma (porque esta não existe) nem espiritualidade, afirmando-se feliz no seu ceticismo. Ainda bem que se afirma feliz, porque o texto estava impregnado de um tom amargo. Nem os agnósticos lhe escapam, pois a seus olhos, mantêm-se numa posição confortável de nem serem peixe nem carne, mediante a ausência de provas que confirmem a existência ou a inexistência de Deus. Tal como Nietzsche e, mais tarde Sartre, as entrelinhas sugerem um apelo à responsabilidade existencial sem a crença na bengala de uma entidade superior que nos ampara na queda. O total assumir da responsabilidade dos nossos atos, sem esperar um céu redentor ou um inferno castigador após a morte. A assunção do corpo pelo corpo e da matéria pela matéria e a aceitação da morte como o fim de tudo, o niilismo absoluto.

Talvez traga maior responsabilidade viver desta forma, porquanto a questão do sentido da vida ganhe uma dimensão exponencial. Na verdade, essa questão passará a ser o cerne da existência e do sentido dela. Ariano Suassuna, escritor brasileiro, afirmava-se crente por não lhe restar outra opção. Ou isso ou seria um desesperado, afirmava. Não sei se li desespero, mas uma certa ira é percetível, não sei se verdadeiramente causada pela estupidez dos crentes se pela inevitabilidade da sua pequenez e da sua fragilidade. A verdade é que sermos reduzidos ao nada e ao vazio dói. Não nos deixa margem para o erro e para o absurdo em que tantas vezes as nossas vidas se transformam. Lembro-me de um excerto belíssimo de “A Saga”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, conto para todas as idades (dizem que é infantil, mas eu não acredito ou serei eu ainda criança), que nos ensina isto: “E Hans compreendeu que, como todas as vidas, a sua vida não seria a sua própria vida, a que nele estava impaciente e latente, mas um misto de encontro e desencontro, de desejo cumprido e desejo fracassado, embora, em rigor tudo fosse possível. E compreendeu que as suas grandes vitórias seriam as que não tinha desejado e que, por isso, nem sequer seriam vitórias.”

Face ao incumprimento da vida, não será natural o Homem procurar o alto? A espiritualidade sempre fez parte do ser humano. Não serão a literatura, a música e as artes a expressão do divino no homem? A máxima expressão da beleza… Não Devemos confundir sistemas religiosos com espiritualidade. Não concebo a existência humana sem estas manifestações que nos sublimam nem a vida sem a criação do espírito.

Talvez Deus, a existir, possa não ser uma entidade exterior a nós, mas a ideia residente que nos empurra para a transcendência. Talvez seja o amor que carregamos e, por isso mesmo, nos seja possível amar o próximo… Ou talvez não seja nada disto, porque nos colocaríamos a questão de haver gente com um Deus gigante dentro de si e outras à míngua…

Segui o conselho do senhor: “Sábio é aquele que formula para si próprio perguntas inteligentes em que questiona certos valores e crenças, procurando as respostas verdadeiras.” Não sei. Há tanta coisa para a qual não encontro resposta… Porém, não sou sábia, logo o erro estará na perguntas, que também não serão inteligentes…

 Se a mensagem for válida e humana eu já gosto, assim como gosto do Deus-menino vindo à terra para a povoar com a sua inocência, a lembrar-me do poema de Alberto Caeiro em que Jesus é a criança que corre, brinca e rebola na relva, que vive no nosso seio…

Não. Nem todos os crentes são estúpidos. Serão mais esperançados, mais oníricos, menos pessimistas e não creio que se sintam desobrigados de se cumprirem nesta vida finita.

Cito Soren Kierkegaard: A fé começa precisamente aonde acaba a razão.

 

Nina M.

 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Não sei se é inquietude

 Não sei se é inquietude

Angústia ou alma transbordante

Se alegria de um instante

Sei da folha fria e vazia

Templo sagrado de palavras

A censura não cabe neste altar

Seria grande a heresia

Traição à bela poesia

A escolha meticulosa de palavras

Para o nada ou o tudo escamotear

Escreve-se como quem canta

Num rasgar de alma aberta

Em timbre alegre ou melancólico

A soltar uma voz que aperta

Escreve-se como quem narra

Histórias de mil ficções

Sem importar se é a verdade 

Que veste as emoções

Tudo o que sai do pensamento

Seja verdade ou ilusão

É autenticamente pintado

Não se verga à contenção

Os que leem poesia

Como almanaque agrícola

Condenam-se à fantasia

À triste figura ridícula

De não beber as metáforas

Da fonte de Hipocrene

De não saber que as palavras

Escondem ou desvelam

O seu sentido perene





sábado, 5 de dezembro de 2020

Sinto a tua mão no meu rosto

Sinto a tua mão no meu rosto
Carícia quente que recebo a gosto
Caem os meus olhos nos teus olhos 
Paraísos resgatados do tempo
Memórias preservadas, sentimento
A florirem, os teus lábios
Oferecem-se aos meus
No abraço apertado
Desfaz-se o receio
Tudo é poesia, vago anseio





Crónica de Maus Costumes 209

 

Quando os filhos são fonte de inspiração.

- Ahahahah, Mãe! Adoro-te, sabias?!

- Até onde? Daqui à lua e volta?

- sim.

Vem o mais velho…

- Eu amo-te muito, mãe.

- Até à lua também?

- Huuummmm…. Até à Andrómeda! (Mal ele sabe que a mãe já lá esteve muitas vezes, na sua juventude – numa das discotecas da cidade onde estudou).

- E isso é longe, filho? (Sorria sem que ele visse).

- É outra galáxia, mãe!

- Ah! Então é amor suficiente – respondi.

- Sabes, mãe, tenho muito orgulho em ti - replicou.

- Porquê? – Perguntei.

- És muito trabalhadora. Estás sempre a trabalhar. Estavas a corrigir coisas e ainda vais fazer a crónica…

Ri-me.

- Que remédio! – Disse. Temos de trabalhar.

- Olha, mas tenho orgulho, porque podias escolher ser vadia, que eu sei que há mulheres assim… Que não querem saber de nada… Nem dos filhos…

- Ai é? Então e os homens? (Perguntei para saber se haveria alguma questão de género para resolver…)

- Esses? Ainda há mais! Olha, só querem beber e droga e não trabalham, mas o pai também não é assim.

- Pois não, respondi. Se assim fosse não era casado comigo.

- Porquê? Descasavas-te?

- Divorciava-me. É assim que se diz. Ou nem teria casado. Precisamos de quem nos ajude, não de quem nos prejudique.

Terminamos o diálogo com “ainda bem que nesta casa o único preguiçoso é o filho. Assim as coisas correm bem.” Riu-se e retirou-se.

Detesto o papel de mãe babada. É natural que todas as mães sintam orgulho na prole, mas quando é exagerado, soa-me a gente vazia que se apraz apenas com a conquista dos filhos, o que poderá significar que já não têm nada para conquistar por si. Sobrará, tarde ou cedo um vazio muito difícil de preencher. Não resisti, porém, a eternizar o momento doce e as declarações amorosas deles. Naturalmente, também lhes faço muitas e gosto de aproveitar estas, enquanto o pudor não os impede de desbragarem a alma. Com a idade ficamos mais contidos, mais austeros e carregamos um amor envergonhado de pais para filhos e vice-versa. Lembro-me de ser meiga com os meus progenitores, principalmente, com o meu pai a quem me lembro de beijar incessantemente. Não acompanhava o gesto com palavras. Penso que no meu tempo (e já pareço alguém muito idoso a falar) o amor era posto em gestos e não em palavras. Há quem diga que é o que verdadeiramente conta, porque as palavras, levam-nas o vento, porém, para mim, elas têm um valor especial e não devem de todo ser desperdiçadas. No entanto, se o amor é real pode ser dito também, porque lhe acrescenta beleza e transcendência. Não me lembro de ouvir os meus pais dizerem que me amavam, mas não duvido um segundo do amor deles. Sempre dispostos a deixarem as suas coisas para auxiliarem os filhos, antes de tudo.

Hoje, com os seus 82 anos, o meu pai passou por cá, devidamente mascarado e numa visita rapidíssima, para entregar um bolo-rei fresquinho, acabado de confecionar na pastelaria de confiança e os rebuçados da tosse de que os netos tanto gostam. É uma forma de contar o seu amor. Sei-o aliviado por ter ouvido as notícias e sentir que não lhe roubam o Natal, a companhia da filha e dos netos (sempre certos na noite de consoada) e quem sabe de todos, no almoço do dia vinte e cinco, conforme a usança. Por mim, assim que possa, refugiar-me-ei o mais que puder em casa. Deixar que passem uns dias para vermos se há o Natal habitual.

Leio-lhes nos olhos a preocupação e a saudade. O afastamento e a ausência cansam, principalmente aos que sabem ter um futuro bem mais curto que o passado. Verem-se privados, nesta altura da vida, do que lhes faz bem e do que os deixa felizes é tornar o tempo que lhes sobra mais insípido e mal passado…

Os netos anseiam tanto quanto os avós pela festa em família… Seja por palavras, seja por gestos, o amor familiar faz-se presente, tal como deve ser.

 

Nina M.

 

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Rendição

 Algures entre a realidade e o sonho

A meio caminho da transcendência

Agitam-se bandeiras brancas de rendição

Deposito o meu coração em tuas mãos

Cofre sagrado que não profanas

Pulsar de vida 

Como a brisa leve quando me ausento

Deixo para trás breve lamento

E já em serena despedida

Não cruzo as mãos sobre o peito

Rejeito a tradição por despeito

E no entanto enquanto viva

Não me via desesperada

Apesar da certeza de não ser nada

Da futura ausência da carne e dos ossos

Dos meus pensamentos que são palavras

Assim mortas, perdidas e vagas


sábado, 28 de novembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 208

 

O direito inviolável à vida

                Cada vez gosto mais do Valter (Hugo Mãe). Além de grande escritor parece-me um ser humano gigante! Viveu parte da sua infância na minha cidade, numa casa cor-de-rosa, no centro, que tinha um jardim enorme! Passava lá amiúde, com os meus pais, ao domingo, dia de ir ao café, em frente à casa, que era da dona Alicinha Batista, uma velha muito velhinha, imagem que a minha memória guarda.            Nunca conheci o Valter (com muita pena minha), mas eu também não morava na cidade, em catraia.

Ele contava, ontem à noite, na Comercial, que quando veio de Angola, frequentou a escola na minha cidade. Engrossava a lista dos retornados que não eram vistos com bons olhos pelos que cá residiam. Essa é a verdade. Para os continentais, essa gente que saiu do país, onde a miséria reinava, à procura de melhores condições de vida e regressaram com a guerra colonial, com uma mão à frente e outra atrás, apanharam os parcos empregos, passando “à frente” dos que cá estavam e que aguentaram toda a miséria sem nunca terem saído. Já se sabe: numa casa onde falta o pão, todos ralham e ninguém tem razão!” De modo que o Valter contava que a funcionária da escola, a ele, só lhe servia meia caneca de leite, enquanto aos outros meninos a enchia. Eu também sou desse tempo! O leite era servido em canecas de plástico. Branco. Imaculadamente detestável! Só o cheiro do leite quente já me revirava as tripas e arrancava-me vómitos tremendos! Acontece que a professora que tive no primeiro ano (antiga primeira classe), achando que eu não bebia leite por questões de casmurrice de canalha, todos os dias me fazia beber um bocadinho (devia ser a teoria de que temos de experimentar dez vezes até o nosso paladar se habituar). Eu segurava o vómito como podia… Certo dia, lembrou-se de me fazer beber meia caneca. O horror percorreu-me as veias. Nesse dia, não segurei o vómito e foi a libertação! A professora não voltou a insistir e eu não voltei a beber leite até aos dias de hoje! Nem natas. O cheiro é-me insuportável. Tal como o sabor. Valter, teria todo o gosto em ceder-lhe a minha caneca de leite!

Porém, o horror da história é o motivo racista que levava a funcionária a agir dessa forma. Comentava, enquanto o servia, que os meninos escuros não precisavam de beber tanto leite! O Valter, bom ser humano, já lho perdoou há muito, mas não esqueceu o episódio. A nossa memória guarda o que nos marca e ele aprendeu o que significa ser discriminado sem razão e perguntava-se o motivo de ser mais escuro, embora não pareça nada. Inconcebível é o comportamento da senhora, sobretudo, com uma criança. A falta de sensibilidade e de bom senso é de facto imprescindível para se lidar com seres humanos, mas ainda mais com crianças… Creio que todas essas dificuldades, aliadas a uma timidez que lhe é natural, ao que parece, fizeram dele o que é hoje. Seguramente, um dos melhores da atualidade, mas que conserva uma humildade e uma simplicidade própria dos gigantes. O Valter escreve sobre as inquietações de todos nós. Na verdade, não somos assim tão diferentes. Uns dão-se ao trabalho de as descobrir e de as pensar e outros optam por viver na superfície das emoções. Nenhum estará mais certo do que o outro e apenas faz o que lhe permite viver melhor ou o que, pelo menos, lhe causa a impressão de viver melhor (uma questão de má-fé sartriana, que não é propriamente inconsciente, mas antes o nosso consciente a querer aplacar os nossos receios. Autoproteção, na verdade, da qual todos padecemos, uns mais do que outros. Somos nós a querer enganarmo-nos). “Contra Mim” é o título do seu novo romance (de cariz autobiográfico e que, naturalmente, terei de adquirir e de ler). É uma satisfação saber que o Valter morou por aqui (mesmo que considere a Póvoa do varzim, onde vive, a sua terra). Saber que alguns dos episódios da infância foram passados cá, mesmo os maus episódios como o relatado, porque tudo serviu para o construir, é um orgulho e uma satisfação. Uma pequena vaidade ilegítima e um pouco parva, mas que ninguém me tira!

O escritor escreveu, a propósito da generosidade do General Ramalho Eanes, que afirmou que os velhos dariam os seus ventiladores aos mais novos em caso de necessidade, por causa da COVID -19, que não queria que o fizesse. Na sua opinião, o país não pode colocar os velhos nessa posição, porque ele não gostaria que a sua mãe, que já tem oitenta anos, mas ainda tem vitalidade, fosse obrigada a morrer em prol da vida de um mais novo, porque não temos o direito de escolher qual das vidas é mais válida. Dizia ele que cada um sabe de si e da sua vontade de viver, sempre individual e única. Há velhos de oitenta com mais vontade de continuar por cá do que muitos jovens. Portanto, o dever de um país é providenciar os mecanismos para que todos tenham direito a serem tratados. E isto é de uma clarividência exemplar. Pelo menos, parece-me. Não consigo não concordar com ele, porque para mim, a vida de cada um não é entendida num sentido utilitarista ou economicista, mas um direito inviolável, que poderei admitir ser interrompido se for essa a vontade a quem ela pertence, em determinadas e raríssimas exceções! Eu, que tenho a mania de querer viver pelo menos até aos noventa e, se a medicina ajudar, quem sabe até mais, isto se conseguir manter a sanidade e a força física, não poderia estar mais de acordo! Há coisas que preciso fazer, na tentativa de me cumprir e, portanto, quem sabe da disposição para o fim da linha sou eu! Neste momento, não tenho nenhuma. Desconfio que mais tarde também não. Plenamente consciente da sua inevitabilidade, eu passo muito bem sem ela.

Sim, Valter, se a sua mãe ainda está cheia de vitalidade e vontade de viver tem tanto direito à vida quanto qualquer um de nós. Não pagamos impostos elevadíssimos para que os médicos tenham de escolher, mas para que todos possam ter o melhor atendimento possível, independentemente da idade.

Bem-haja!

Nina M.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Noivado

Era assim num dia como o desta noite

Ou o dia como o deste dia 

De céu limpo e luminoso

De azul celeste tão belo

Sem novelos de algodão

Que sonhei que me pegaste na mão

E a levaste aos lábios num ósculo

Comprometido

Gesto tão antigo para gente tão de agora!

E sorrias enquanto ma guardavas na algibeira

- Gosto das tuas mãos pequenas, delicadas e suaves

Repetes sem cessar...

(E não as julgo perfeitamente belas

Talvez sejam perfeitas de tanta imperfeição)

Na esperança de não veres a esperança desfeita

Fitas-me seriamente sem revelar medo de se quebrar a ilusão

(Ou eu não soube ler os sinais e os teus olhos enganaram-me)

E era quase certo o sim que esperavas de mim

(Mas no amor e na dor nunca se sabe bem ... )

E sem mais nada... Sem cerimónias ou preces

Tomaste-me a alma por palavras de presente

Que garantes guardar eternamente

sábado, 21 de novembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 207

 

O saber não ocupa lugar

                Ler o texto de opinião “Sem tecto, entre ruínas”, de José Matias Alves, do jornal Público e o autor escreve ao abrigo do anterior acordo ortográfico, daí a manutenção do (c) na palavra teto, não posso deixar de fazer a minha leitura relativamente a algumas ideias apresentadas.

                De referir que a base estrutural do texto foi escrita há cerca de 25 anos e publicado no Correio Pedagógico e adaptada aos dias de hoje. O título do artigo retoma o título do livro de Augusto Abelaira (1982).

                O artigo é escrito na voz de um narrador autodiegético, de quinze anos de idade, Daniel Rocha. O jovem confronta-se com a situação pandémica, que obrigou a alterações profundas nas dinâmicas da organização da escola. Lamenta, por isso, as trinta e uma horas compactas semanais que lhe “promete uma vida futura, enfim liberta da maldição que parece tudo querer destruir”. Até lá, sofre do longo tempo preso e sozinho em casa, da turma numerosa de 28 alunos, em que respiram uns para cima dos outros, da redução dos intervalos para evitar os contactos e do contrassenso que isso constitui com o facto de, dentro das salas de aula estarem a 50cm. Fala do tempo insuportável de distância e de solidão. O suposto jovem de 15 anos vai apresentando, ao longo do texto, as razões que os vários professores invocam para a valorização do papel da escola, enfileiradas umas nas outras, à medida que as matérias vão sendo lecionadas. Assim, o professor de Filosofia fala da escola e da educação como alavanca do progresso social, da emancipação do homem, constituindo um elevador social; a docente de História lembra que a escola, com os títulos académicos, democratizou a sociedade e veio a substituir a estratificação de sangue, permitindo a mobilidade social; de seguida, a professora de Português invoca a Literatura como a morada do ser, a revelação do mundo, dos outros, dos próximos mesmo mascarados (ao ler isto, esta professora de Português já me conquistou)! Finalmente, o professor de Latim aborda a estruturação da língua e do raciocínio, base para se poder comunicar bem. O aluno termina a referir que no livro de Filosofia leu que resistimos à mudança, receamos a incerteza, mas que o tempo não se suspende, acabando com uma série de interrogações retóricas: “e para onde vai [o tempo]? E para onde é que eu vou? E que faço em casa, numa tarde de sol, a mergulhar em séculos de saber? Onde poderei ler o sentido da minha adolescência, a confusão da minha respiração? Onde poderei encontrar as respostas para as minhas inquietações? Onde?”

                Antes de mais, manifesto o meu apreço pela esclarecida e brilhante reflexão. Quem me dera que os nossos jovens fossem, efetivamente, capazes de pensar e de escrever desta forma. A maioria, nesta idade, não é. A ser verdadeira a existência deste narrador, com certeza, ele estará de parabéns. Ocorre-me, então, que quer com pandemia quer sem ela, estas questões em torno da escola e da preparação dos jovens para o seu futuro já vêm de longe. Pois se a base do texto já foi escrita há 25 anos!

A dada altura, o jovem diz que ouviu o pai comentar com um amigo que “o mundo moderno esmaga o homem com a precariedade de todos os horizontes, ainda mais nestes tempos pandémicos” e, mais tarde, que terá lido no computador do pai um documento intitulado “teses sobre o sem-sentido da escola” onde leu que a preparação da escola será um fracasso se a organização social e a organização do trabalho não se organizarem de modo a dar um sentido diferente à vida, pois haverá uma falta de motivação dos professores e dos alunos se a vida ativa não fornecer perspetivas de promoção. A ser assim, os alunos e os professores dificilmente acreditarão no sentido da vida escolar.

Parece-me que o cerne da questão está na revolução que ocorreu sobretudo nos últimos anos, perante o facto de, salvo raras exceções, o canudo já não ser a garantia de uma vida estável e confortável. O saber já não garante os bons empregos e já não constitui a certeza de ser o elevador social que tanto se preconiza. Desta forma, parece que todos os argumentos usados pelos professores caem em descrédito. Na verdade, mediante uma reportagem que vi, nestes últimos tempos não se tem diminuído a diferença entre as condições sociais e económicas de geração para geração. São necessárias cinco gerações para que uma criança oriunda de um meio pobre consiga atingir um salário médio, segundo um estudo da OCDE. Julgo ser esta constatação que leva o jovem ou o José Matias Alves a afirmar que se “sente esmagado pelo vazio da incerteza”.

Penso que esta tendência veio para ficar. Não será a sociedade a adaptar-se ao homem, mas antes este a ter que se reinventar para caber na sociedade que ele próprio criou!

Ora bem... A discussão sobre o interesse de certas matérias para a vida futura dos estudantes sempre se colocou. Não é porque o latim não é falado que perdeu a sua utilidade. Não é porque ninguém pretende licenciaturas em História ou Literatura que estas perderam a sua validade. Talvez o Homem precise de uma mudança de paradigma e de procurar mais intelectuais pensadores do que tecnocratas. Esse é o grande flagelo da escola e da sociedade. Os professores, que deveriam ser instigadores do amplo saber, foram transformados em técnicos, que cumprem um programa e umas aprendizagens essenciais limitativas. Eu devo, obrigatoriamente, estudar os poemas X, Y, Z, mesmo que para aqueles alunos e para aquela turma sejam mais adequados o C, D, E! Ah! Já é possível alterar currículos. Pois… Só a parafernália de documentação e projetos exigidos fazem qualquer um perder a vontade. Trabalho mais intensamente e de forma mais limitada e padronizada, hoje, do que no início da carreira, há 23 anos! Todos os alunos têm de ser formatados para escrever um texto de opinião, obedecendo cegamente às regras instituídas, quando seria mais importante fomentar  a criatividade, por exemplo. Num mundo democrático e de plenas liberdades, exigimos exercícios padronizados. Que remédio! São objeto de avaliação em exame! Agora que penso nisso, a mim, nunca nenhum professor de Português me ensinou a escrevê-los e as opiniões escritas não me têm faltado! Penso também que podem discordar delas, mas não será pelo texto mal escrito.  Os alunos, por sua vez, precisam de entender que a sua formação deve ser holística e articulada. Sem as ciências sociais e humanas perde-se a empatia, a capacidade de se dar, de se ouvir, de formular e de reformular pensamentos, expressos através da língua, conjunto de signos comuns a uma sociedade. As ciências sociais e humanas servem, antes de tudo, para humanizar os humanos desumanizados. Um médico ou engenheiro não se valoriza por saber um pouco de História ou de Literatura ou de Artes Plásticas? Fará algum mal aos futuros informáticos, engenheiros e afins saber quem foi Padre António Vieira, Eça de Queirós, Pessoa ou Saramago e conhecer os seus escritos, parte integrante da nossa cultura e do ser-se português? Será normal que tenha de esclarecer um aluno do ensino secundário sobre os cristãos-novos, a influência da comunidade judaica em Portugal e o empreendedorismo que eles emprestavam ao país? Sobre o massacre dos judeus, as políticas de expulsão do reino, a violência exercida sobre as crianças retiradas aos pais para serem criadas por famílias cristãs? Não deve o básico da nossa História ser conhecido de todos, independentemente da área de estudos?  

Enfim, talvez seja idealismo, mas seria bom que a escola fosse também apreciada pelo saber que em si proporciona e não apenas pelo futuro ou ascensão social que possa trazer, infelizmente em declínio. O gosto que a escola me deu pelo conhecimento combate o cinismo que nos rodeia e as frustrações de uma profissão cada vez mais desgastante, mais difícil e menos atrativa. Precisamente, porque de mim querem uma técnica, que é o que me recuso ser! Há algumas coisas de que não gosto na minha profissão. Desde logo a abominável burocracia que nos destrói. Não obstante, uma permanece intacta: a possibilidade de falar de literatura, esse mundo especial e incrível vivido por dentro e que tento aperfeiçoar a cada momento. A oportunidade de o poder cruzar com a História e com a Filosofia, alargando horizontes. Também tenho de saber de gramática. Temos todos e, ao contrário do que dizem, também é importante, porque é ela que regula a língua e a torna percetível e clara. É ela que regula o nosso património maior, a nossa língua, guardiã da nossa História. É na língua, portanto, que se guarda quem fomos, o que somos e para onde vamos, o Quinto Império do porvir. Talvez, por isso, desconfie sempre quando se questiona sobre a utilidade desta ou daquela matéria. Aprendi que tudo tem sempre a sua utilidade, mais tarde ou mais cedo. Esqueceremos algumas aprendizagens, mas não se tornam inúteis por isso. Trata-se, evidentemente, de uma clarividência que surgiu apenas com a maturidade.

Assim, ao “para que precisamos disso se não serve para nada?” Respondo: também respiramos o ar que não vemos ou sentimos. No entanto, mantém-nos vivos.
Que os jovens pensem assim é normal, mas que os adultos os acompanhem, já me causa um certo prurido…

Por fim, às questões colocadas pelo jovem, lamento, mas não há respostas prontas. Terá de ser ele a encontrar o seu caminho, o seu sentido e a resposta às suas inquietações. Aviso que é um caminho que se faz ao longo da vida, às apalpadelas, para o qual é necessário um arsenal de conhecimentos, porque só tem inquietações quem as pensa.

Nina M.

 

 

domingo, 15 de novembro de 2020

Hoje

Cai a noite sobre o silêncio

Desfere a escuridão húmida 

De noite outonal

Fria  inóspita e indesejada

Silêncio sobre os silêncios do ser

Deveria ser verão 

Gosto mais dos silêncios quentes do verão

Sobre as risadas dos petizes na rua

Do céu estrelado e sem nuvens

Que se abre à esperança de mundos

Este inverno que se instala nos ossos

Leva-nos os gestos amorosos e pueris

Rouba-nos as almas amadas

Deixa o lastro imenso da sua ausência

Quero ver-te e abraçar-te

Afastar a solidão e a linha vermelha

Sempre o vermelho a interpor-se

A cor proibitiva e funesta

Sangue que brota das almas enxutas

Já sem palavras

Com tempo e sem poder de estar

De ser com os outros e de amá-los

De reinventar alegrias 

Antes que a eternidade os leve

No seu azul celeste mas longínquo





Crónica de Maus Costumes 206

 

Pulhitiquices

 

            Não consigo passar ao lado do tema da semana, uma vez que não vivo alheada da realidade que me circunda, na qual me movo e que é a realidade do meu país e dos meus filhos.

            Faço desde já a minha declaração de interesses para não ser mal interpretada na reflexão que farei, que é apenas isso, a minha visão e análise, à luz do que sou e do que sei e do que vou procurando saber. Naturalmente, haverá quem concorde e quem discorde e ainda bem. A democracia admite sempre o pensamento divergente e plural. Normalmente, eu tenho problemas com o inverso: a admissão de um pensamento único e totalitário. Porém, para não me perder, começo por referir a minha absoluta independência partidária. Não sou, nunca fui e não tenciono ser filiada em qualquer partido político, pelo motivo mais egoísta que pode haver: a manutenção da minha liberdade, da minha individualidade, da minha consciência e da minha integridade. Teria muita dificuldade em seguir a orientação do partido, se não concordasse com o sentido de voto. Seria vender a minha alma ao diabo e ela pode não ser a melhor coisa do mundo, mas é minha e não está à venda. Há quem a tenha toda, mas é uma dádiva que faço, no exercício da minha liberdade. Dito isto, acrescentar que repudio todo e qualquer regime repressivo das liberdades e qualquer regime totalitário, seja ele de direita ou de esquerda.

            A polémica estalou com o acordo feito pelo PSD Açores relativamente a algumas matérias com todos os partidos do espectro político alinhado à direita, incluindo o CHEGA. Eu compreendo as razões, mas discordo da estratégia. Penso que o PSD de Rui Rio, enquanto partido passível de ser eixo governativo, não deveria ter sucumbido à tentação. Fez o mesmo que o primeiro-ministro na sua primeira legislatura. Na altura, também não me pareceu ético a geringonça arranjada. Foi mero assalto ao poder, tal como o é agora, mesmo que a legislação o preveja. Estou completamente à vontade para o poder dizer, já que não votei em nenhum do candidatos. Ora, os socialistas estão a provar do próprio veneno e fazem-se de virgens ofendidas e o PSD a fazer o que tanto criticou. Hipocrisias políticas que detesto solenemente. Levantaram-se de imediato vozes contra (incluindo dentro da própria estrutura partidária) e a opção pode ser criticada (eu mesma já afirmei discordar da estratégia), já o argumento de que o CHEGA é um partido de direita radical e que não deveria sequer existir, lembro que se existe, obteve o aval do Tribunal Constitucional, instituição idónea e que, certamente, analisou cuidadosamente o seu programa e não encontrou matéria de fundo para impedir a formação do novo partido. Se gosto dele? Não. Se o aceito? Pois se vivo em democracia e a defendo, tenho de o tolerar. Posso ter o dever cívico de contestar a sua ideologia, mas a democracia não abre exceções para o que se não gosta. Tal como não gosto deste partido conotado com a direita radical, também não gosto dos partidos de extrema-esquerda e que, na minha humilde opinião, também existem em Portugal, mas tolero-os e, neste momento, até são parte da geringonça. Instalada a polémica, não faltaram debates e comentadores a saltar a terreiro utilizando o argumento de que o CHEGA não pode ser viabilizado na nossa democracia e que não se pode confundir o PCP ou o BE com ele. É apresentado o argumento da luta do partido comunista contra o fascismo e do papel vital da ex-União Soviética no combate contra o nazismo. De facto, não se pode negar nem uma coisa nem outra, todavia, é preciso lembrar que os russos libertaram diversos países europeus, mas de seguida impuseram o seu totalitarismo. Não falta literatura a relatar os malefícios feitos ao povo, que se viu livre do jugo alemão para passar a estar sob o jugo soviético. Quem lê Milan Kundera, por exemplo, no seu romance mais famoso, A Insustentável Leveza do Ser, percebe o que foi e como foi e compreende porque o escritor checo se mudou para Paris e escreve, atualmente, em francês. De salientar que ele viu a sua nacionalidade retirada pelo partido comunista da ex-Checoslováquia e que lhe foi restituída há relativamente pouco tempo, quarenta anos depois. Tudo gente muito democrática! E se acaso se lembra o genocídio perpetrado por Estaline, as ditaduras atuais na Venezuela, Coreia do Norte, China e Rússia e a miséria daquele povo, bem como a falta de liberdade, perante este contra-argumento, surge a justificação de que o comunismo português não tem as mesmas características nem é um partido extremista. Pois muito bem… Lembram-se que Chávez também começou por ser democraticamente eleito, certo?! Lembram-se da situação da Venezuela antes de Chávez e depois dele e pior ainda com Maduro, correto?! Também era suposto esses senhores respeitarem a democracia e os seus valores! Em Portugal, o partido comunista nunca conseguiu fazer o mesmo, felizmente! Porém, foi só por falta de oportunidade, pois quem lutou por um verdadeiro regime democrático, no 25 de abril não deixou! O que foi o 25 de novembro? Uma tentativa revolucionária falhada para instaurar uma ditadura de esquerda, apoiada no regime soviético! O que foi a COPCON e de que forma foi utilizada? De repente, parecem todos uns meninos de coro e já não há paciência para essa complacência para com uma esquerda totalitária e castradora da dignidade e da liberdade do Homem! Não significa isto que defendo o Ventura ou fascismos (detesto a sua figura machista e hipócrita). Pelo contrário, repudio-os com toda a força da minha alma e bastou uma época de terror e de perseguições e de morte cruel! A era das trevas já passou e que fascismos e nazismos sejam definitivamente sepultados. Porém, não acredito na ideia romantizada que muitos portugueses fazem do movimento comunista no nosso país. Dei-me ao trabalho de ler os programas políticos portugueses e, pela forma como estão redigidos, parece que qualquer um deles serve! Todos preconizam as liberdades, o desenvolvimento político, social e económico, a melhoria das condições de vida dos cidadãos, etc. Só não especificam exatamente como pretendem fazê-lo. O PCP lá vai falando na reforma agrária e no combate aos latifúndios e criação de cooperativas (significa isto nacionalizações e expropriações, acabando com a iniciativa dos privados, com a propriedade e, logicamente, matando a economia) e o CHEGA fala no liberalismo como antónimo de totalitarismo, no direito à diferença e não à igualdade imposta por regimes totalitários, na não obrigatoriedade da escola pública ou de serviços de saúde pública (significa isto retirar a saúde e a educação das mãos do Estado, setores que lá devem permanecer por uma questão de justiça e de equidade social e capitalismo mais selvagem ainda). Refira-se que no programa deste não há qualquer menção xenófoba ou racista, porém, sabemos bem o terreno que pisam. Sempre a diferença entre o que se escreve e o que se poderia fazer e a eterna hipocrisia… Curiosamente, são estes dois partidos tão antagónicos que mais usam as palavras liberdade e democracia. Nos programas do PS e do PSD ela não é uma constante. Concluo, portanto, que para o “bloco central” a liberdade já está instituída e deve ser respeitada e para os outros dos extremos seja um conceito novo a reinventar e, por isso, o PCP fala numa “democracia avançada” e o CHEGA na “IV República”!

            Pela minha parte, espero que nenhum deles chegue ao poder como a maior força política e espero bem que façam os dois maiores partidos portugueses olharem para dentro e corrigirem seriamente as suas asneiradas sucessivas. A corrupção massiva a que se assiste nestas duas forças políticas (e estas verdadeiramente democráticas), as negociatas, os conluios, os esquemas que desgraçam este país são os responsáveis pelo extremar de posições e pela procura de alternativas que não o são verdadeiramente. Recuperem rapidamente os verdadeiros ideais e de pouco mais precisaremos! Por esta altura, Francisco Sá-Carneiro e Mário Soares conversam um com o outro, levando as mãos à cabeça, apesar das suas diferenças…

            Se não for viável a reestruturação destes dois partidos sem socratismos, Varas, Loureiros, Duarte Limas e afins, talvez prefira encomendar um Governo à Europa: Finlândia, Suíça, Suécia, Luxemburgo… Qualquer um deles servia, a avaliar pelo nível de vida desses cidadãos e das suas liberdades inquestionáveis! A dada altura, o nosso Eça, através do seu alter-ego, João da Ega, desejou a bancarrota e a invasão espanhola. A bancarrota, já veio por três vezes depois do vinte e cinco de abril (sempre pelas mãos dos mesmos, em abono da verdade), quanto aos espanhóis, a avaliar pelos últimos escândalos, a corrupção que temos já nos é suficiente! Deve ser mal endémico da Península!

            O panorama político português é um vazio de ideias e de valores. Os partidos abandonaram os ideais pelos quais valia a pena lutar. De modo que é sempre uma dor  a cada eleição, por ver a hipocrisia estampada entre o que afirmam e o que fazem. Temos tecnocratas que se tornaram políticos de profissão, muitos deles nunca fizeram mais nada na vida e estão lá para se servirem e não para prestarem um verdadeiro serviço aos seus concidadãos. É um desalento, uma decadência moral sem fim à vista… Porém, apesar de tudo e ainda assim, prefiro uma democracia doente a qualquer totalitarismo saudável. Os que apregoam os benefícios de tais regimes e muitos encontram-se fora da sua pátria, não sei o motivo que os leva a escolherem países de matriz totalmente democrática em vez de experimentarem as infinitas liberdades oferecidas nesses lugares idílicos! Não me cansarei de repetir à exaustão: totalitarismos nunca mais! Nem de direita nem de esquerda.

 

Nina M.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Ainda

Ainda me vês depois do silêncio?

Ainda irrompo os teus sonhos diletos

E te esventro a alma com violência?

Átomo em espera

Vida em suspenso

Aérea, leve e desalento 

Conto de fadas gasto

Exausto e vencido

Do outro lado da vida

Poesia em chama

(A exigir verdade)

Vive em mim e devora

Monstro sagrado

De um templo polido a dor...

Ainda me sabes 

Na exata escuridão das palavras?

Sem aurora ou futuro 

Anúncio de morte prematuro?

E ainda me queres assim... Despojada...

Só de alma inteira 

Mas perdida na estrada?

Se ainda me vês no silêncio 

Na exata escuridão das palavras

No anúncio prematuro de morte

Na poeira dos caminhos...

No tudo que se despreza e do que se foge 

Sabe que me encontras mais fundo

Do lado imaterial do mundo

Onde os pássaros não cantam

Onde o céu escurece

E as árvores secam 

Bebe... Bebe do leito desse rio

De águas paradas em pousio

Para no esquecimento viver






sábado, 7 de novembro de 2020

Embriaguez

Poder saciar o desejo no teu corpo

Cinzelar a pele o meu barro a gosto

Despudoradamente livre e sã

Fazer nova vida novo amanhã 

Morrer depois do amor

No teu abraço 

Morreres-me de paixão 

Em mim e de cansaço 

Lava ardente que nos una

A verdade da essência nos consuma

Eu nos teus olhos veja o desejo crescer

Tu nos meus saibas o suave renascer

Nessa dádiva divina e secreta

Um fogo que se alastra pela sesta

Abraçados um no outro a mesma sina

Destinados à eternidade

Profecia sibilina

O universo é meu e teu

 Vida que se não perdeu  

No meio da neblina






Crónica de Maus Costumes 205

 

Tareia de cócegas e de beijos

Um dos livros mais ternurentos que li é O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, descendente de portugueses. É sobejamente conhecida a história e já foi imortalizada também em telenovela e filme. A novela passou e eu era catraia. Tenho uma vaga ideia da Godoia (a irmã que melhor compreendia o Zezé), a atriz Cristina Mullins, com rosto de lua cheia e olhos gigantes cor de céu. Não vi. O livro leria muito mais tarde, já adulta, e o filme, ainda ontem, vi a sua versão mais recente.

Invariavelmente, eu fico sempre um pouco desgostosa depois de ver o filme, conhecendo o livro. A película não é má e trata os episódios que mais se destacam, mas o livro é infinitamente mais ternurento e violento também. Impossível ficar indiferente às travessuras de um Zezé arteiro, mas cheio de doçura, como a generalidade das crianças, desejoso de um amor que não tinha na família e que foi encontrar no amigo Portuga. O pé de laranja lima, o amigo em que Zezé montava para fazer as suas cavalgadas, é a prova de que a imaginação pode salvar o que sobra da alma de alguém. O último reduto de quem se sente só, abandonado por todos e incompreendido. A árvore com quem Zezé conversava conservou-lhe a sanidade mental. Ela foi, mais tarde, substituída pela presença do Portuga, a quem a criança adotou como pai, de quem lhe veio o sabor e o cheiro do amor. Zezé ficou órfão duas vezes: a primeira, do pai biológico, de quem levava surras monumentais e a quem matou, como explicou ao português, num diálogo comovente. Devagarinho, o coração da gente vai matando aos poucos e, quando nos damos conta, a pessoa já morreu, mesmo que viva. A segunda, do pai que ele escolheu, o seu amigo português.

A história enternece quer pelo conteúdo quer pela atualidade. Infelizmente, os maus tratos infligidos a crianças continuam na ordem do dia. A mão lesta de quem castiga terrivelmente, desmesuradamente o atrevimento e a travessura infantil não deixou de existir. Uma violência gratuita justificada pelo mau comportamento e pela necessidade de educar, mas essencialmente, um lavar de frustração e de raiva pela vida que se tem a cada bofetada desferida. Cada golpe manchava a autoestima do garoto, que pensou em suicidar-se para acabar com o seu tormento. O menino foi salvo pelo amor do Portuga a quem pediu que o levasse para sua casa e, quando confrontado com a morte dele, adoece emocionalmente. O pai tenta recuperar a sua imagem e o seu papel, depois de ter resolvido os seus problemas financeiros e com o álcool, mas nunca chegou a perceber que seria demasiado tarde, que o seu papel de pai já não lhe cabia, que o filho já o tinha morto há muito e nada do que fizesse poderia importar. A redenção do miúdo veio pela mão do amor que não mais o abandonou, mesmo depois da morte da fonte.

Os meus filhos viram o filme também, ainda que com alguma resistência do mais velho, que está na idade de rejeitar o que os pais teimam em aconselhar. Porém, depois da recusa teimosa, o interesse foi surgindo e, no final, ficou a satisfação. Em tempos de tanta mediocridade, é imperioso oferecer qualidade.

No fim do filme, depois de alguns esclarecimentos, a minha doce Matilde soube lembrar o tempo em que, mais pequeninos, a mãe os deitava e invariavelmente se despedia de cada um com uma “tareia de cócegas e de beijos”. Era a nossa despedida a cada anoitecer e, ontem, depois de a recordarmos, teve que se repetir, apesar dos pudores da adolescência de um (às vezes mais fingidos pelo dever que a idade comporta do que por vontade) e da relutância da outra, cujos nove anos já não justificam tal lamechice. O certo é que nenhum deles se furtou às carícias nem esquecem do beijo ou do abraço antes de deitar.

Ainda há quem julgue que o amor não cura?

 

Nina M.

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Felicidade

Se um olhar de felicidade basta

E o vento com o seu sopro arrasta

A verdade do ser límpida e clara

Lar dos sonhos do amor mais puro

Preservado do mundo obscuro

Da volatilidade que magoa

Exige o dia um saber eterno

Exige a alma um beijo que voa

E pousa sagrado, doce, na noite estrelada

Morada das almas, a via dourada

E adormece feliz com a magia

De um regresso a casa ao fim do dia

E se alguém perguntar por onde errou

Saberá dizer a alma fugidia:

- No lugar onde a felicidade se encantou

 Por ver que o seu amor não morria






sábado, 31 de outubro de 2020

Sentir-se uma alma velha

 Sentir-se uma alma velha 

 Não das que lastima a perda do fulgor da juventude

Mas antes se reconhece em cada sulco do seu rosto 

(Memórias cinzeladas pelo tempo)                                                                       

Onde em cada veia roxeada, rego profundo

Cavado à enxada pela vida,

Se desenha uma história desmedida

De desencontros e de encontros

Tão absolutamente perfeitos

Esses serão para sempre a duração

A alma e a essência mais pura do ser

Resguardado do ruído do mundo

O seu frontispício e o seu reverso

A síntese do seu tudo e do seu nada

Duração inexorável 

Memória e absolvição





Crónica de Maus Costumes 204

Uma mão cheia de tudo e outra cheia de nada

Nunca o Homem ocidental viveu tão bem. Efetivamente, apesar da pobreza que ainda há, vive-se na era do conforto, da tecnologia e da abundância. Uma opulência ambiciosa que não se satisfaz facilmente e coage o ser humano a ser estupidamente escravo em prol de uma vida burguesa tão farta quanto desnecessária.

A receita é antiga, mas continua na ordem do dia, num mundo onde o capitalismo selvagem vigora e onde se cria a falsa ilusão de necessitarmos do que, na verdade, não precisamos. Nunca foi tão fácil a comunicação e, no entanto, nunca interagimos pessoalmente tão pouco! Quase parece cinismo existir um vírus que impeça os abraços, as conversas e a atenção que, na verdade, já pouco existiam e que, subitamente, as pessoas valorizam. Talvez aconteça que alguns dos velhos atirados para o hospital, reféns da COVID, sem as visitas que os familiares reclamam sejam os mesmos que seriam lá deixados para a família poder ir de férias descansada… Demasiado desacreditada na humanidade e abalada pelo cinismo, porém, como acreditar na bonomia da sociedade se o simples exercício de usar uma máscara e evitar multidões parece inexequível para alguns, que não podem perder uns passeios em prol do bem comum e em prol dos seus?

Zygmunt Bauman tem razão. Tempo de uma modernidade líquida que me desgosta, em que tudo é efémero e passageiro como o telemóvel que se troca a cada surgir de modelo novo ou como o carro que se deve trocar ao fim de uns anos para ostentar uma saúde financeira e uma vaidade provinciana. Devo estar a ficar velha, já noto a pele sem a elasticidade dos vinte anos, mas também ainda não tenho o sorriso metido dentro de parênteses, para usar a metáfora fabulosa do Lobo Antunes e, no entanto, dou comigo a ter saudades do meu corsa comercial velhinho de início de carreira, que sempre subiu o Marão sem avarias ou reclamações. E continuo ligada a ele, que já não existe há dezasseis anos, pelas memórias e pelos sorrisos que me arranca. Era um pouco doida à época e a carripana conhecia as curvas de Vila Real a Vilarandelo e depois a Chaves de cor… E esta tendência exacerbada para me ligar às memórias passadas que me lembram de quem fui e me fazem ver o diferente que sou, ainda que muito permaneça idêntico, fazem-me gostar das coisas e desejar perpetuá-las. Gosto das coisas pelo seu valor e não pelo preço. Na verdade, não é exatamente das coisas, mas da afetividade delas. Sempre fui assim. Desfiz-me do corsa com o mesmo custo que me desfiz dos muitos papéis que tive colados nas paredes do quarto no tempo da faculdade com mensagens dos amigos, a família de quem está deslocado por terras alheias. Guardei por anos e religiosamente um envelope cheio de papéis com missivas engraçadas, outras lamechas, assinaturas e cartas (ainda recebi algumas cartas e sinto agora o cheiro a tinta velha…) e sabia que tinha de o fazer, de reciclar, porque não se pode acumular a tralha toda, sabendo também que um dia ao lembrar-me disso haveria de o lastimar. E lastimo… Depois, há outros registos mais recentes, porém, não tão recentes assim, dos quais ainda não me desfiz por falta de coragem. De maneira que sempre fui velha na alma, talvez, e a velhice já não me traga grande novidade…

E ao pensar nisto, lembro-me da mensagem do cardeal José Tolentino Mendonça e sei que não quero nem passo pelas coisas sem as habitar ou tão pouco falo com os outros sem os ouvir, não quero juntar informação sem a aprofundar (ainda que tenha uma mente dispersa e que gosta de voar por vários temas, para evitar o enfado… Talvez precise de envelhecer um pouco mais para corrigir esse prejuízo…). E não suporto a ideia de tudo “transitar num galope ruidoso, veemente e efémero”… Eu que coleciono almas e conversas e me esforço por guardar as que me merecem a memória, ainda que falhe tão mais do que gostaria… A memória não é má, mas não é infalível e é muito seletiva. Eu que gostaria de poder congelar momentos, carregar essa intensidade pela vida fora e fazer dela duração como no poema de Peter Handke (caramba! Que belo poema!). Não quero viver na velocidade, que na verdade nos impede de viver. Quero poder treinar a memória para guardar os poemas de tantos outros: o Neruda que escreveu os melhores poemas de amor, talvez sem saber o amor… E o verso de Safo que não sei de cor ou de Torga e da sua dureza e de Sophia e da sua melodia…

Este tempo em que tudo é tecnologia só nos rouba sem compaixão o parco tempo que nos sobra. Se não estivermos atentos, entra-nos casa dentro e vai-nos matando lentamente, porque a cada falha, a cada recusa de verso em troca de um teclado é uma centelha de alma que se perde e se corre o risco de não recuperar. Sinto-me velha, porque vejo pessoas distantes e continuo a vê-las novas e sei que já são tão velhas quanto eu… Sinto-me velha, porque pelo caminho já deixei muita gente e sei que a perda maior ainda está por vir (felizmente) … Sinto-me velha, por ausência de capacidade ou sequer desejo de ir a uma discoteca até às seis da manhã, como tantas vezes! Sinto-me velha, porque o ruído é-me cada vez mais insuportável e o sossego do sofá com uma manta sobre os joelhos e um livro, uma tentação! Sinto-me velha, porque estou cada vez mais intolerante à papelada que me aborrece profundamente, porque não me acrescenta nada e agora deu-me para isto, de me irritar e de sentir as vísceras estremecerem de cada vez que me arrancam de dentro de mim para me lançarem às coisas das quais não quero saber! Ao terrível mundo pragmático onde só trabalho, porque para viver verdadeiramente ausento-me para outro só meu, tão protegido e tão inalcançável! E puxam-me e insistem para que desça e quase desejo reformar-me só para ter direito a esta alma velha com toda a tranquilidade.

E assim, tantas vezes, neste mundo cheio de coisas, descobrimos vazios inconsoláveis que não são colmatáveis nem pelo telemóvel, nem pelo carro, nem pelas joias ou acessórios caros ou silicones que preencham as rugas, mas que deixam a descoberto a nossas angústias. Não há tecnologias nem distrações que nos valham, pois o dia de cada um se confrontar há de chegar e a escolha entre olhar de frente a nossa verdade e as nossas fraquezas ou fugir cobardemente terá de ser feita, entre risos e lágrimas, com uma cheia de tudo e outra cheia de nada.

 

Nina M. 

 

domingo, 25 de outubro de 2020

Pedro e Inês

Tu, só tu, puro amor, com força crua

Te banhas nas lágrimas dos amantes
Recolhes do pranto, da dor que é sua
O engano de não serem distantes
Ledos, anseiam uma fusão pura
Quedam-se bem próximos nunca errantes
Apenas ilusões que pouco duram
Mas salvam os corações que as maturam

As lembranças que na alma lhes moravam,
Longamente passeadas na ausência
Mais firmemente do amor lhes mostravam
O que dele sobeja de carência
Tanta falta, tanta falha guardavam
Tudo suportavam com paciência
Era enorme o amor feito de saudade
Curva-se o ser perante essa verdade

O nome que no peito escrito tinhas
A ferro e a fogo na alma foi bordado
Quiseste ensiná-lo só às ervinhas
Já com o temor de vê-lo roubado
Ignorastes bem as vozes mesquinhas
Todos segredavam ao vosso lado
Indif'rentes ao desmando soez
Vivestes um dia de cada vez

Foi triste a sina dos puros amantes
Que tudo, enfim, tu, puro amor desprezas,
Julgas só as dores edificantes
E alheio às suas vozes e rezas
Quiseste ambos exilados, distantes:
Um no céu, um na terra d'estranhezas
Porquanto o amor feliz não faz a lenda
O amor contrariado há quem o venda!




sábado, 24 de outubro de 2020

Crónica de Maus Costumes 203

 

O imperativo da liberdade

            A França está de luto. Mais uma vez, o país europeu promotor dos valores democráticos por excelência foi ferido de morte. A Europa foi ferida de morte. Portugal foi ferido de morte. Eu fui ferida de morte! Liberdade, sempre!

            É com consternação que olho para esta Europa que, subitamente, se vê atacada no seu princípio irrevogável da liberdade. Não faço a apologia do ódio nem concedo interpretações demasiado fáceis e simplistas da situação. A França sangra. Neste caso, o ataque foi perpetrado por um imigrante checheno, mas há outros casos em que os ataques terroristas são preparados e executados por filhos desse país, que se afastam da pátria. Muita coisa deve estar a falhar: a família, em primeira instância, seguidamente, falha o Estado e falha toda a sociedade. A família porque não soube ou não quis incutir os valores e os princípios democráticos do país; a escola, representante do Estado e todas as instituições públicas que não conseguiram persuadir para o valor da liberdade, do respeito e da tolerância e a sociedade que não soube acolher. A França, que alberga uma nova geração de franceses, filhos de imigrantes das suas ex-colónias, não foi capaz de os tornar verdadeiramente franceses. A real integração e pacificação não existem e parece-me que o antigo colonialismo é ainda uma chaga aberta que é forçoso estancar. Os países colonizadores (Portugal inclusive) foram absolutamente cruéis com os povos que exploraram. Há que assumi-lo frontalmente e sem pruridos. O império português, como todos os impérios, foi assente na escravização, na exploração, na tortura e na barbárie. O mesmo se passou com os espanhóis, os franceses, os ingleses, os holandeses… A História não pode nem deve ser apagada ou reescrita. Se existe é para que a olhemos e não cometamos os mesmos enganos. No entanto, diz o aforismo que a “História se repete” e lastimo, porque só prova a infinita estupidez humana! No entanto, nem os ex-colonizadores podem viver eternamente subjugados pelo peso da culpa e da História, o que não significa não reconhecer ou apagar os seus erros, nem os colonizados se podem alimentar do ódio contra o colonizador. Para o bem ou para o mal, a França proporciona-lhes, ainda assim, uma qualidade de vida superior à que teriam em muitos dos seus países de que originam e as oportunidades, apesar da xenofobia e do racismo existente, surgem e vão sorrindo à gente de bem, mesmo com todos os condicionalismos e da desvantagem com que partem. Por outro lado, quem escolheu ficar deve ser capaz de se adaptar e de respeitar os valores da República. A maioria muçulmana não pode ser julgada por um gesto hediondo, mas também não o deve aceitar nem defender nem calar-se perante o crime. Não é todo um povo que está em causa, mas umas quantas células terroristas que pretendem disseminar o medo e condicionar os valores da República.

            A liberdade de expressão ensinada pelo professor é um dos direitos fundamentais consagrados na constituição dos países democráticos. Muita gente se bateu e morreu para a conseguir instituir não pode, de todo, ser posta em causa. Há palavras que ferem e são armas de arremesso, dirão uns. Concordo. Há palavras duras e provocatórias, mas na Europa, não são admissíveis as reações cruéis e de violência inominável! Também não deveria sê-lo em nenhuma parte do mundo! E o que dizer do professor, que apenas cumpria com a sua missão? Não foi ele o autor das imagens. Apenas exemplificava o direito à liberdade de expressão e foi barbaramente assassinado. Foi vilipendiado nas redes sociais e vendido por uns meros euros por um ou dois dos seus alunos! Lamentável! Seres humanos deploráveis! Poderiam não imaginar o que sucederia, mas só o facto de alguém pagar pela identidade de outrem já indicia algo de errado. Contudo, o profeta Maomé (sanguinário, por sinal) estava a ser ofendido e a blasfémia lava-se com sangue! Cristo pode ser ridicularizado. Buda pode ser ridicularizado. Eloim também. Maomé não pode. Porquê? Uma das imagens em questão mostrava os três livros sagrados (Bíblia, Corão e Torá) em rolos de papel higiénico, como quem fala de literatura de sanita. Ao ver a imagem, como cristã católica, atravessou-me um estremecimento. Compreendi a mensagem e estes comportamentos inaceitáveis, o assassinato planeado e executado de forma horripilante só dá razão aos autores dos desenhos! A verdade é que a religião, enquanto instituição organizada e vivida de forma fanática só gera ódio e violência, exatamente o oposto do que deveria ser. Os judeus fizeram-no com Jesus e fazem-no com os palestinianos; os católicos com as outras religiões e com a ciência. Como esquecer o Tribunal do Santo Ofício? Como esconder os desmandos do Vaticano? Os muçulmanos radicais fazem-no contra quem for, basta ofender Maomé! Será assim tão difícil separar a religiosidade ou a espiritualidade de cada um dos desmandos de cada religião? Será impossível haver sentido crítico? Será impossível compreender que a lei pela qual nos regemos deverá ser o código civil e a constituição de cada país, onde está consignada a liberdade religiosa e que, por esse motivo, o Estado é de todos e para todos, logo é laico?

            Parece que a França não está disposta a abdicar destes valores. Ainda bem. Toulouse e Montpellier, num sinal de força, projetaram as imagens tão ofensivas para os muçulmanos nas paredes da Câmara. Esperemos que não haja retaliações. Os que aí pretenderem residir têm, com toda a certeza, todo o direito a praticar a sua fé, mas não têm o direito de matar um semelhante, porque se entende que ofendeu o profeta! As palavras sarcásticas não dão o direito de retirar a vida a ninguém nem de os maltratar e quem vive na Europa ou aceita os seus valores ou então, por mim, poderá retirar-se que não fará falta.

            A França tem um dossiê muito sensível para manejar e se tem o dever de acolher bem, também não pode permitir que estes desmandos que causam terror ameacem a liberdade dos franceses. A Europa poderá aceitar quem vem por bem, mas não os que lhe querem mal! Esses têm de ser identificados e, por mim, delicadamente convidados a sair, como disse um presidente de câmara canadiano, a propósito da exigência de serem retirados pratos de carne de porco da ementa da cantina das escolas: “Se vieram por bem e aceitam e respeitam os nossos valores, a nossa cultura e as nossas tradições, o Canadá ficará feliz por receber-vos. Se não for esse caso, lembrem-se de que têm outros belos 57 países muçulmanos onde poderão viver.

Concordo plenamente.

 

Nina M.