Por cá, as
festividades continuaram e comemorou-se o sétimo aniversário da minha mais
nova. Amanhã, ainda haverá almoço com a família, visto que a festa hoje foi
para os colegas. A minha filha, se pudesse, desconfio que convidaria este mundo
e o outro! Recupero energias no silêncio da noite e na certeza da folha em branco.
Trespassa-me uma
culpa que me lembra dos horrores do mundo, principalmente, o que tem sido mais
apregoado no momento, a destruição da Síria e o sofrimento daquele povo,
especialmente das crianças. Somos sempre fruto do meio em que vivemos.
Queiramos ou não, o nosso caráter também é moldado por ele. Como sobreviver
depois da tragédia? Como ultrapassar o medo e readquirir a esperança, a faísca
que move o Homem e o impede da autodestruição? Tirem a esperança a um Homem e
roubam-lhe a alma! Mesmo para nascer é preciso ter sorte. Nós tivemo-la, fruto
das circunstâncias e não do nosso mérito. Enquanto festejava o sétimo aniversário
da minha filha, quantas novas vítimas terão sido feitas?
Vivo desassombrada
pela força da idade que nos rouba a inocência. Sei os horrores que o ser humano
é capaz de cometer movido pelo dinheiro, poder e paixão. Ensinam-nos os livros
essas matérias. Sou pessimista relativamente à natureza humana e parece-me que
esta em nada mudou ao longo dos séculos. Com uma roupagem diferente, os vícios
e as atrocidades são os mesmos. Irrita-me sobremaneira, apesar de saber existir
desde sempre esta inércia indiferente, sob capa de compaixão hipócrita perante
a catástrofe. Dou comigo a cismar e ainda assim espantada de existir tanta
maldade e indiferença. Recuso-me a aceitar que a Humanidade possa negar-se ao
aceitar a sua desumanização. Aflige-me esta sensação de impotência perante um
mundo desacertado e cruel. Por quanto tempo mais seremos os jogadores de xadrez
de Ricardo Reis, que assistem ao desmoronar de tudo o que os rodeia impávidos e
serenos, fechados num estoicismo e epicurismo que lhes sopram ao ouvido
promessas de um falso hedonismo? Não será apenas bruto egoísmo?
Nina M.
Ricardo Reis (Heterónimo
de Fernando Pessoa)
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo do xadrez.
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indiferentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida,
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulsa dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória; a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! sob as sombras que sem querer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez,
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá por fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
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