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sábado, 30 de setembro de 2023

Crónica de Maus Costumes 341

 Imbecilidades a esmo

              

               Os tempos estranhos que vivemos proporcionam imbecilidades a esmo, sem hipótese de controlo. Embirro com censores puritanos, metidos a moralistas e que tentam coartar a liberdade artística e individual. Esforçaram-se corajosamente os nossos antepassados para alguns, atualmente, se lembrarem de puxar do rançoso lápis azul e se porem traçar o que, na opinião deles, pode ou não ser publicável ou exposto.

            Há duas ou três semanas, fiquei perplexa com o designado grupo dos trinte e sete, que subscreveram a petição para a remoção da estátua de Camilo, no Largo Amor de Perdição, por estar abraçado a uma mulher nua e que, na interpretação dos doutos subscritores, não honraria a memória de Ana Plácido, o amor da vida do escritor. Espantou-me, de imediato, que Rui Moreira, o presidente da autarquia, tivesse dado ouvidos a semelhante dislate. Com certeza, estaria num dia mau. Cedo se viu na contingência de mudar de ideias, porque segundo constaria das atas e como parecia óbvio, a estátua foi lá colocada com autorização do executivo em funções, naquela altura, em 2012. O autor da obra veio a terreiro explicar que a mulher representa todas as figuras femininas da obra camiliana e não a esposa, como se alegava. Entretanto, a escultura era apelidada pelo presidente da Câmara como “feia e de “mau gosto”. Já os signatários entendiam que Camilo aparecia abraçado a “um exemplar mais ou menos pornográfico”, tratando-se de uma “humilhação da mulher desnuda perante o homem vestido” e uma “menorização” de Ana Plácido. Provados os factos, isto é, de que a autarquia tinha aceitado a doação, Rui Moreira não pode decidir por si só a sua remoção. Entretanto, seis mil signatários (números da altura) já se tinham organizado para uma petição a favor da manutenção da obra.

            Evidentemente, todos temos a liberdade de gostar ou não gostar da escultura, mas considerar a obra pornográfica só me dá vontade de rir! Não terão nunca os signatários da referida petição visto uma mulher nua? Desconhecerão eles grandes obras preservadas nos melhores museus do mundo, em que o corpo humano aparece enaltecido, através de uma beleza rara? Em que é que o nu artístico pode ser ofensivo? Concordarei que não é obra que me encante particularmente, mas também não me ofende. Compreenderia mais rapidamente se alegassem apenas a falta de estética da obra, argumento que pode ser discutido, mas repudio a fundamentação puritana da sua condição pornográfica. Este comportamento está ao nível dos pais americanos que se queixaram do professor que mostrou a estátua do David aos seus alunos! Um mundo onde o sexo e a pornografia vendem mais do que nunca, onde é possível encontrar, com apenas um clique, vídeos eróticos e pornográficos, feitos com gente de carne e osso, virem alegar o despudor do calhau negro esculpido é de uma imbecilidade inenarrável!

            Pouco tempo depois, esta semana, nova polémica causada pelo lançamento de um livro infantil, onde são apresentados os vários tipos de família que fogem aos padrões tradicionais. Ora vamos lá ver se nos entendemos… O livro ainda é mais fácil de resolver do que a estátua, porque quem não gosta, não compra. Assunto encerrado. Ah e tal, mas nas escolas podem lê-lo às nossas criancinhas e desvirtuá-las!... Senhor, dai-me paciência, será caso para dizer, porque em Teu nome continuam a perpetrar-se os maiores atropelos e a maior discriminação, quando a Palavra fala no acolhimento de todos!

Não adianta tapar o sol com a peneira. Se houve aspeto positivo que a democracia trouxe foi a liberdade individual, desde que ela não atropele a liberdade dos outros. Atualmente, existem, sim, famílias monoparentais, famílias com dois pais ou duas mães. Essas pessoas têm o direito de serem respeitadas e os outros o dever de as respeitarem. Têm, fundamentalmente, o pleno direito de serem quem são e que só a elas diz respeito. Seres inteligentes compreendem que o fundamental numa família é o amor e o cuidado, independentemente de ela ser tradicional ou não. Aliás, as famílias tradicionais não são garantia de coisa nenhuma. Não faltam crianças abusadas, maltratadas e negligenciadas por famílias com pai e mãe. Portanto, não só não compreendo a sandice como a considero um absurdo. Depois, quem colocar o intelecto em funcionamento perceberá que aquelas que devem ser protegidas em primeira instância são as crianças e que haver histórias com as quais elas se possam identificar e compreender a sua realidade, sem receio da diferença, ensinando a todos a tolerância e a aceitação, porque o fundamental é o amor familiar, é muito positivo. É função da escola semear a tolerância e a aceitação do outro, ensinar a não discriminar.

Para ser mais clara ainda, a orientação sexual de cada um só a ele diz respeito e não é uma escolha que se faz. Ninguém escolhe ser heterossexual ou homossexual. Apenas se é e com todo o direito a ser quem se é. O facto de um casal homossexual poder criar uma criança não fará dela, obrigatoriamente, homossexual. Ela será como a sua natureza a presentear. Não sei o que há de difícil para compreender! Gostaria que a horda de imbecis que invadiram o lançamento do livro fossem capazes de compreender o tamanho da estupidez! Se a forma de vida do outro não interfere com a sua, apreciando ou não (tem esse direito também), só tem de respeitar e nada mais.

            Por último, o suposto grupo de ativistas preocupados com o planeta não passa de meia-dúzia de arruaceiros que desconhecem os seus deveres. Também invadiram um evento e mostraram uma falta de respeito inacreditável para com um representante do Governo português. Não é admissível e a sociedade portuguesa deveria deixar claro que não compactua com estas libertinagens. Todos temos o direito à indignação e à manifestação, mas em caso algum se pode recorrer à violência ou à humilhação do outro, neste caso, com a agravante de se tratar de um representante do Estado, goste-se ou não das suas políticas e eu não sou particular fã deste executivo. Não vale tudo em democracia e para que não se acabe, é preciso zelar por ela. Portanto, ao contrário do que foi noticiado, não foi um grupo de ativistas que quis erguer a sua voz, porque estes são pacíficos, foi um grupo de imbecis mal-educados, que ao serviço de uma agenda política, quiseram ter os seus cinco minutos de fama.

            O mundo anda desconcertado! Razão, tinha o Camões.

 

Nina M.

           

 

sábado, 23 de setembro de 2023

Crónica de Maus Costumes 340

 

Politicamente incorreta, mas lúcida

            O mundo nunca foi um lugar tão estranho, polarizado e relativo quanto agora.

            Por um lado, vivemos na era da tecnologia, do progresso e da ciência, em que tudo tem uma explicação científica, mesmo os fenómenos incompreensíveis. Por outro lado, tudo é relativo, incluindo a biologia e a ciência, a que imputam construções culturais.

Até há pouco, ninguém tinha dúvidas de que a Terra é redonda. O matemático grego Eratóstenes de Cirene conseguiu prová-lo, 285 anos Antes de Cristo, e também calcular a sua circunferência com bastante precisão: 24.000 milhas de diâmetro, o que é surpreendentemente próximo da circunferência real de 24.900 milhas. Se dúvidas houvesse, a viagem de circum-navegação do português Fernão de Magalhães dissipou-as.  Mais tarde, Copérnico apresenta a teoria heliocêntrica e Galileu Galilei, que a adotou, viu-se aflito e perseguido pela Inquisição. Se nos séculos XV e XVI estas e outras dúvidas eram aceitáveis, hoje, no século XXI, são meramente parvas. Porém, há “terraplanistas” à solta e por mais que se lhes explique à luz da razão, com jogos de luz e de rotação, com imagens do planeta Terra visto do espaço e o diabo, eles escolhem a sua ilusão da realidade.

Paradoxalmente, vivemos num mundo de ciência e de ilusão em que cada ser escolhe a sua verdade relativa. Deixam de existir verdades absolutas e tudo passa a ser relativo, colocando-se vários tipos de análise, absurdas ou não, em igualdade de veracidade. A instituição de um relativismo que se quer aplicar a tudo e a todos transforma-nos numa espécie de idiotas que devem aceitar tudo como possibilidade de verdade, ainda que a ciência e a biologia, objetivamente, a refutem.

Recentemente, li uma notícia sobre o encontro de milhares de pessoas que se sentem cães e agem como cães! Recusam a sua realidade de homo sapiens sapiens e regridem, tornando-se quadrúpedes de coleiras e que uivam! Sustentam a sua tese no facto de o género ser uma construção social e de se identificarem como não binários e, como tal, são cães, gatos, girafas e o que mais lhes apetecer! Ora vamos lá ver… Meus amigos, não se trata aqui de uma verdade relativa, porque olhando para vós, empiricamente se constata que sois bípedes, não tendes quatro patas, sabeis falar (também sabeis uivar e ladrar, mas por imitação) e não tendes pelo, cauda, nem orelhas pontiagudas e tão pouco focinho! Sois hominídeos e não adianta vir com teorias sobre a não identificação com nenhum dos géneros. Só pode ser um caso patológico do foro mental e que precisa de tratamento médico! Ou isto ou uma brincadeira de Carnaval!

No que me diz respeito, eu não quero saber se se sentem cães ou gatos ou diabo! E garanto que se me aparecessem à frente os trataria com o respeito que um ser humano merece, principalmente, se pressentimos que pode padecer de um transtorno. No entanto, não posso admitir que me queiram fazer engolir e aceitar como verdadeiro de que é natural identificar-se com um animal, ao ponto de o imitar no seu modo de vida!

O mesmo acontece em relação à mudança de sexo. Neste caso, consigo compreender que alguém não se sinta confortável com o seu corpo. Compreendo que seja do sexo masculino, mas que gostasse de ser mulher e vice-versa. Entendo que se essas pessoas se sentem melhor com a transformação física por corresponder ao seu desejo, devolvendo-lhes a alegria de viver, devem fazê-lo. Nada a obstar. Devem ser respeitados na sua singularidade e qualquer ser merece sentir-se bem consigo mesmo. No entanto, a realidade é que a cirurgia de transformação não os torna mulheres ou homens. Torna-os seres aparentemente semelhantes a uma mulher ou homem. Lamento, mas a ciência e a biologia são factuais. Os cromossomas e a anatomia não mentem e a realidade é que a cirurgia não altera isso. Portanto, têm o direito de tomar a decisão que os deixa mais felizes e realizados, mas não podem impor a sua visão dissociada da realidade aos outros, porque mais tarde, se eventualmente, o seu cadáver vier a ser analisado, a biologia determinará o género. Pode-se não gostar dele, querer uma transformação para se sentir melhor e ter-se o pleno direito de o fazer sem que haja discriminação, devendo ser respeitado, mas não se pode querer impingir a ideia de que há uma quantidade infinita de géneros, tudo depende da verdade relativa de cada um!

Portanto, comigo, o assassinato que se pretende fazer à língua, sob o lobby da aceitação e da inclusão, para se parecer muito progressista e moderno não tem acolhimento! Não me fazem engolir a construção de uma estupidez. Assim, para mim, pessoas ou seres racionais são homens ou mulheres, pais ou mães e não apenas progenitores ou pessoas com útero ou sem ele, em nome de uma inclusão de fachada. A inclusão vê-se pelo respeito no trato e pela ausência de discriminação e não pela novilíngua criada que é apenas ridícula, com o seu “todes” patético e outras palavras semelhantes.

Cansada de parvoíces e de quererem generalizar o que é sentimento de uma minoria que de atropelada parece agora querer atropelar! Têm direito ao respeito, mas não à subversão da ciência! Homessa!...

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 16 de setembro de 2023

Crónica de Maus Costumes 339

 

Divagações

               Não há vidas perfeitas. Aliás, a perfeição é uma utopia que existe apenas para nos obrigar a procurar a melhor versão de nós mesmos, a partir das escolhas que vamos fazendo e que são de nossa responsabilidade. Muitas vezes, escolhemos mal, outras, escolhemos não escolher, apesar de intuirmos o caminho, por diferentes razões, porque por exemplo, o desconhecido assusta e é mais seguro prendermo-nos ao que já conhecemos. No entanto, todos faremos o que nos é possível e o melhor que sabemos ou podemos mediante as circunstâncias em que vivemos. Não há, portanto, qualquer razão para a falta de empatia e julgamentos sumários inadvertidos em relação aos outros e às suas escolhas.

Creio que a maioria de nós, numa análise séria, sente-se ficar aquém do que gostaria, porque talvez ninguém se realize plenamente em todas as suas dimensões. Como disse Eça (cito livremente), a vida vivida é sempre diferente da vida sonhada, por isso se rotulou um vencido da vida. Seremos todos um pouco vencidos da vida e o grau da derrota é tão mais elevado quanto menor for a realização na área que mais valorizamos. A angústia agrava-se se tivermos consciência de que há sempre uma escolha e que uma quota parte da responsabilidade pelo fracasso é nossa.

Assim, a minha vida é confortável, devo reconhecê-lo, mas longe da perfeição, porque eu sou falha. Desde logo, sou falha na escrita. Dizia-me uma pessoa que descobriu as minhas linhas que deveria dedicar-me só à escrita para poder produzir mais - e talvez melhor - acrescento. Respondi que morreria de fome. Se existisse só eu talvez me devesse essa tentativa, mas a responsabilidade materna não me permite tal aventura. Terei de assumir a escolha, naturalmente. Não há vidas perfeitas. Ninguém tem tudo o que pretende ou o que sonha e escolher implica optar por um caminho da encruzilhada, deixando de percorrer os outros, pelo menos plenamente, deixando cair as outras possibilidades. Pode ser angustiante por não sermos capazes de saber o que teria sido a vida se tivéssemos optado por outro percurso, no caso de concluirmos que fizemos a opção errada. Sempre se pode mudar, estarão a pensar. É verdade. Sempre se pode mudar e, nesse caso, cá vem a escolha mais uma vez.

A vida é feita deste círculo vicioso imenso e difícil, mas também quem pensa que veio a este mundo para obrigatoriamente ser feliz, como se à nascença fosse decretado o direito à felicidade, engana-se. Quando muito pode-se nascer com o dever de procurar a felicidade, seja ela o que for. Julgo que andará ligada ao sentido que conferimos à nossa existência ou, por outras palavras, ao enchimento que damos à nossa essência, mas é um palpite, porque é um conceito demasiadamente complexo e facilmente confundível com alegria, prazer e bem-estar, que são correlatos dela, mas diferentes. Uma vida feliz não tem de ser necessariamente alegre ou prazerosa a todo o instante e ser feliz também não exclui a dor e sabe acolher os momentos de tristeza. Está-se alegre e é-se feliz. A alegria é uma emoção passageira, tal como o prazer, mas a sensação de vida feliz será mais duradoura.

Certo é que não há almoços grátis nem vidas feitas. Cada um tem de fazer a sua o melhor que puder e souber, se possível, com boas escolhas que conduzam a uma vida boa, conscientes de que não há garantias nem seguros de viagem.

A consciência da finitude talvez possa ajudar o ser a trilhar o caminho que lhe é próprio e mais natural. Será por isso que, frequentemente, muitas pessoas que tiveram a experiência de quase morte mudam radicalmente a sua vida, porque compreendem e sentem visceralmente não poderem perder tempo.

Desta forma, invejar a vida alheia e estabelecer comparações da sua vida com outras é apenas estúpido e infantil, porque mesmo aquelas que nos parecem fáceis e cheias de magia terão as suas angústias. Não deixa de ser verdade que umas serão mais fáceis do que outras, mas devemos preocupar-nos exclusivamente com a nossa e fazermos com ela o melhor que conseguirmos.

Apesar de não haver vidas perfeitas, a maioria delas também tem sempre aspetos positivos que devemos valorizar. Não há perfeição, mas também não há só miséria.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Bailado

Porque te humedecem os olhos
Quando sobre mim os pousas
Na sombra do silêncio
E na alma onde repousas?

É a friagem que te cerca
Neste certo final de Estio
A angústia que se perca
Na fonte clara do meu riso

Olhas-me em comoção
Pasmo de amor enlevado
Deixas fugir a razão
O coração fica parado

Continua a sincopar
Como se milagre houvesse
Por teus olhos quererem olhar
Quem a sua alma aquece

Nesse bailado de lágrimas
Presas no seu mar de sal
Fica suspensa uma vida
Por amar outra sua igual





sábado, 9 de setembro de 2023

Crónica de Maus Costumes 338

 

Vida e cultura portuguesa

               Enquanto arrumava a casa, tarefa matinal, consegui saber que o batateiro andava na rua. A estridente música e o megafone roufenho que emite uns sons estranhos e impercetíveis permite que os moradores o identifiquem sem erro.

               A música folclórica é inconfundível e bastante irritante, diga-se de passagem. Perdoem-me os adeptos e os fãs dos ranchos e da cultura popular, mas eu acho absolutamente horrível. São umas vozes esganiçadas que não cantam… Gritam! O som entra-me tímpanos dentro e agride-me terrivelmente. Dez minutos daquela gaiteirice e eu começo a ensandecer.  É isso e os bombos. Outra “arte” sem virtude nenhuma que deixa os tocadores a arfar e vermelhos de tanto esforço, pois batem com gosto, sem dó nem piedade na pele dos bombos como quem açoita violentamente um injuriador ou o pior dos criminosos! Eu interrogo-me sobre o propósito de tal espetáculo… Qual prazer produzir semelhante ruído! Ah e tal, mas os toques não são iguais… Quero lá saber, pá! Aquilo é sempre um, pum, pum, combinado de diferentes formas, mas que é barulho apenas! Para me deixarem felizes é virem um sábado de manhã, às oito em ponto, em tempo de trabalho, acordarem-me com essa música. É o delírio! Parece que adivinham… Ah e tal queria dormir até às nove ou dez no sábado… Ah! A vida faz-se de manhã! Senhor… Dai-me paciência porque se me desses força, ficavam com os bombos enfiados nos bicos dos colarinhos…

               Ainda me ri sozinha a imaginar o que seria um batateiro ou sardinheiro fazer anunciar-se ao som de Beethoven, Mozart ou Chopin… Talvez não fosse necessário tanto, mas um bocadinho de bom gosto musical, pedia-se… Sei lá… Um Rui Veloso ou Jorge Palma… Sempre têm alguma genica e seria mais agradável. Só por causa disso nem me dou ao trabalho de ir à rua saber como está o saco da batata… Vantagens de viver numa cidade bastante pequena e ainda rural… Passa o batateiro, o sardinheiro, o padeiro, que me deixa o pão todas as manhãs em cima do muro… Vem a montanha a Maomé, neste caso.

               Efetivamente, há tanta coisa boa que se faz neste país, que as estridências vocais e os bombos eram escusados. Bem sei que a moda dos DJ’s e a música techno é pouco melhor… Esse é o festival da noite, que consoante o vento, chega mais ou menos audível ao meu castelo altaneiro… E lá vão os filhos ouvir não sei quem e eu ouvir a batida… a lembrar os bombos e que não é melhor, até às quatro da manhã.

               Salvou-me a noite o senhor Ruy de Carvalho. O privilégio de ver e ouvir o grande senhor do teatro português ao vivo já ninguém me tira! Uns magníficos noventa e seis anos que lhe permitem ainda recitar o “Monólogo do Vaqueiro” de cor e sem engano. Grande senhor, muito bem-disposto e muito grato ao seu público. Foi recebido com um grande aplauso e despediu-se com um aplauso ainda maior de um público que o não quer ver a desaparecer de cena. A serenidade com que encara o tempo que lhe sobra sem o contar é admirável e as memórias e histórias de oitenta anos de palco são fascinantes.

               O espetáculo começa o Ruy de Carvalho sentado à secretária, a escrever as suas memórias, ouvindo-se a sua voz a narrar o que escreve, mas na verdade trata-se de um ensaio sobre a vida. Em cena, a situação deriva depois para uma conversa entre dois amigos que deambulam pelas memórias do senhor Ruy, que fez questão de prestar homenagem à saudosa Eunice Muñoz, sua colega de ofício e amiga.

               Retive do seu ensaio sobre a vida, neste caso a sua, que há apenas duas formas de atuar: ou bem ou mal. Citou Nietzsche para justificar a sua longa carreira de ator, escolha de vida: “Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal” e terminou com Sartre e com a sua apologia da liberdade de escolha, sugerindo que escolhamos construir um mundo melhor, uma boa relação com os outros.

               O Ruy de Carvalho tocou no ponto essencial, no seu ensaio. Quis dizer-nos que somos responsáveis pelo que fazemos com as nossas vidas tal como ele é pela dele. Essa consciência de que o homem está condenado a ser livre, para citar Sartre, gera uma angústia tremenda, porque nos responsabiliza pelo caminho trilhado, pelo sucesso e pelo fracasso. É como se andássemos constantemente no fio da navalha, pois vivemos de escolhas constantes. Mesmo quando não escolhemos, estamos a fazer uma escolha. Sartre é tão duro, mas tão certeiro, que nos puxa o tapete, obriga-nos a sair da nossa zona de conforto, já que as circunstâncias, ao que ele chama de facticidade, não justificam o que quer que seja. O facto de alguém ter nascido homem (circunstância que não pode alterar) não implica que não possa escolher ser sensível, apreciar literatura, o teatro e a música. É uma escolha pessoal. No entanto, assumir plenamente que sempre temos uma escolha e que a responsabilidade de tudo o que nos acontece é nossa, por vezes, é um fardo demasiado difícil de suportar. Há escolhas tão difíceis que se escolhe não escolher ou, para nos aliviarmos da angústia que pesa, resguardamo-nos na má-fé, na mentira que contamos a nós mesmos e na qual acreditamos para tornar a nossa vida mais suportável. É muito mais fácil viver a pensar que estamos presos a uma situação, porque não há outra alternativa, do que enfrentar o medo do que possa vir depois da decisão. Acontece a todos amiúde. É mais fácil para o estudante justificar um mau resultado com a sua inaptidão para certa matéria do que assumir que não se preparou convenientemente e que fracassou. É mais fácil desistir do que tentar esforçadamente.

               Todos usamos de má-fé como autoproteção, mas ao citar Sartre, do alto dos seus noventa e seis anos e de vida longa, o senhor Ruy convida-nos a fazer boas escolhas e a viver intensamente, de forma a podermos olhar para trás e não lamentar a vida, antes pelo contrário, celebrá-la como vida boa.

               Foi tão bonito ouvi-lo, seguro, dizer que não tinha arrependimentos, sentir-lhe a saudade da sua Rute, que pesava quarenta e três quilos quando casou e cento e oito quando faleceu, sentir-lhe a falta que a sua amada lhe faz e ver o amor que ainda vive dentro dele e que o leva a falar com as fotos, porque é com a sua Rute que fala, tornando-a viva!...

               Ruy de carvalho convidou-nos a fazer a escolha do amor, da liberdade e do respeito. Foi com o respeito e também com amor do público que se despediu sob uma ovação interminável e merecida.

Obrigada.

 

Nina M.

 

 

 

 

sábado, 2 de setembro de 2023

Crónica de Maus Costumes 337

 

« C’est la rentrée »

            Setembro. Mais um ano letivo prestes a iniciar, porém, o iniciar das rotinas não é só para alunos, pais e professores. De uma forma geral, a sociedade volta ao ativo. Reinicia também a temporada política e começam os tradicionais discursos e encontros com jovens, assim como a festa do Avante. O final de agosto e início de setembro é sempre marcado por esta euforia que anuncia novos tempos e novas ações.

No final da primeira semana, já ninguém se lembra e tudo continua semelhante ao que sempre foi. Neste aspeto, destaco a coerência do senhor ministro da educação, que terminou o ano letivo de costas voltadas para os professores, acusando-os de irresponsabilidade e começa como terminou. Numa entrevista, subliminarmente, fez duas coisas: propaganda mentirosa, como o colega Paulo Guinote já explicou e bem, no programa 360 e, mais uma vez, de mansinho, atirou achas para a fogueira, queimando mais a imagem dos professores junto da opinião pública. A propaganda diz respeito à colocação de professores, que está longe de satisfazer as necessidades reais das escolas de algumas regiões. Este ano, os professores entrados para o quadro ainda não serão colocados aonde fazem falta. Evidentemente, foi a cenoura que o ministério lhes atirou e que este ano os professores morderam, no próximo, logo se verá. Os que ficarem onde pretendem, pois muito bem, terão as suas vidinhas minimamente resolvidas, os que forem atirados para onde não querem ir ou se resignam ou rescindem contrato. Conheço gente que afirma rescindir, no caso de ficar longe da família. O senhor ministro continua sem perceber que os professores não auferem salário que lhes permita viver em Lisboa ou no Algarve, até porque uma grande maioria já tem família constituída. Pagar duas casas não é fácil, principalmente, ao preço que se encontram nalgumas regiões do país. Toda a gente já percebeu como conseguiria reduzir substancialmente o problema, exceto o senhor que tem a responsabilidade da tutela. Desta forma, o assunto não está resolvido e o senhor ministro parece viver numa realidade virtual criada por ele e para ele. Depois, a questão das greves agendadas já para o arranque do ano letivo, que se adivinha conturbado, e da missiva de João Costa a sugerir que os professores devem pensar nos seus alunos… Pois com certeza e os docentes fazem-no constantemente, mas podemos devolver-lhe a responsabilidade. Sabe, senhor ministro, o senhor deve ser o primeiro a pensar nos alunos e, para isso, deve dialogar e resolver a contenda com os seus professores, que por acaso também são pais e também têm filhos na escola pública. O senhor e o seu Governo têm-nos sonegado tempo de serviço efetivamente trabalhado. Facto. Queremos recuperá-lo e é da mais elementar justiça, até porque neste país há professores que já o recuperaram integralmente (e bem). Temos tido paciência de Job ao longo dos anos, mas a vasilha enche e a paciência esgota-se. Assim, no caso das greves, a responsabilidade é inteiramente sua, porque o senhor não ouve. Uma negociação implica cedências de parte a parte, mas o ministério não cede nada no que seria essencial. Tem apenas engonhado, para usar uma expressão nortenha, para ver se vence pelo cansaço. Joguinhos políticos de muito mau gosto e de pouca retidão.

Perante este cenário, caros colegas, não sei que vos diga, para além de vos desejar um bom ano letivo e resistência para aguentar o que por aí virá, porque o desgaste vai sendo muito.

A todos os colegas que passaram pelo Agrupamento onde leciono e rumaram a outras paragens, faço votos de muito sucesso pessoal e profissional. Os que permanecem, em breve, encontrar-nos-emos no sítio do costume, naquela que é a nossa segunda casa, a escola, para trabalhar em prol dos alunos, independentemente das greves que possam ou não ser realizadas. Aos que chegam pela primeira vez, dizer-lhes que serão bem recebidos, como é apanágio da casa.

Até já!

 

Nina M.