Seguidores

sábado, 30 de julho de 2022

Crónica de Maus Costumes 288

 

Consultas e rotinas

A crónica de hoje será mais feminina. Durante a semana, fiz a visita anual ao ginecologista. Tenho saído sempre feliz do consultório, porque até hoje é o único professor que, invariavelmente, me tem avaliado com vinte valores, após observação da ecografia mamária e mamografia e respetivo exame anual, tal como é necessário, na “sala das torturas”, como ele próprio designa. Obviamente, não é uma consulta que adoremos fazer, mas é imprescindível. Já estive para lhe dizer que tortura maior é o dentista. Na maca ginecológica, não se sente nada… Noutras circunstâncias, seria estranho e até indesejável, mas ali é o que se espera, não sentir absolutamente nada.

Tudo impecável aqui com a jovem senhora, como normalmente me trata, pelo que me diz categoricamente: “vinte valores, menina. Está tudo muito bem, o que é uma grande chatice, veja lá… Não tenho nenhum tratamento a fazer” - diz a sorrir, enquanto me dá uma palmadinha no rosto, antes de se dirigir novamente ao consultório, na sala contígua, aonde estamos ainda apresentáveis. Foi a primeira vez que o meu médico de sempre, que me acompanhou nas duas gravidezes, que preveniu e evitou que pudesse eventualmente passar por um aborto espontâneo, que me defendeu a Matilde, teve um gesto de carinho, um gesto absolutamente paternal. Ele, médico reputadíssimo, um dos melhores do país, com provas dadas e clínica para tratamento de infertilidade, sempre muito profissional e competente, mas também homem de poucas falas, reservado e distante. Às vezes, notava-lhe até uma certa irascibilidade para com as suas auxiliares e, neste momento, nada disso é visível.

Nota-se-lhe um cansaço e o desgosto pela sua perda. Os retratos da filha e do pai (também ele ginecologista) enfeitam-lhe a parede do consultório. Acompanham-no sempre, como faz questão de dizer. A morte da filha, há cerca de quatro anos, ainda uma mulher jovem, de 32 anos e que deixou duas crianças pequenas, uma delas, bebé que amamentava, matou parte do professor (assim o trato, porque é professor catedrático). Um cancro da mama fulminante, descoberto durante a amamentação, sem que houvesse nada a fazer. A vida pode ser muito cínica. O pai que trata, acompanha e zela pela saúde de tantas mulheres, nada pôde fazer pela própria filha. O luto e a tristeza acompanham-no e não gosto de o ver assim… Pesam-lhe os anos, envelheceu imenso e nota-se que precisa de recorrer muito mais à ficha de cada paciente, quando outrora, sabia todo o historial de cor. Sabia se já íamos com a mamografia que pede a cada dois anos, depois dos quarenta. Agora, precisa de consultar a ficha para saber se está na altura do exame… Lá me disse que para mim ia abrir uma nova, uma terceira ficha, que sobrepõe umas às outras, como páginas de livros escritos à mão. Respondi-lhe: "pudera, senhor professor, já são tantos anos!"

- Pois são! – diz-me a sorrir…

Antes do seu grande desgosto, raramente sorria. Era sempre muito profissional, mas mais austero e pouco paciente. Agora, noto-o mais humano, mais próximo e mais terno. Sou mais velha do que seria a sua filha, se fosse viva, mas não tenho dúvida de que cada “jovem senhora” que acompanha é, de certa forma, a filha que não perde. A palmadinha inusitada no rosto, de visível satisfação por poder dizer que estava tudo bem e que me dava vinte valores é disso prova. O professor já é capaz de sorrir. Desejo que lhe sobre a saudade boa, sob a forma de amor, que a dor que possa ainda sentir esteja mais mitigada e que os netos lhe possibilitem encontrar ainda razões para cá estar. É que já o ouvi dizer que estava só à espera do momento do encontro com a filha e com o pai. Espero que os outros filhos e todos os netos lhe permitam ter vontade de cá permanecer…

Quanto às “jovens senhoras” que me vão acompanhando, não descuidem a vossa saúde. A visita anual ao ginecologista, o exame citológico (vulgo papanicolau), a ecografia e mamografia são obrigatórios! Pela vosso bem-estar! Afinal, custa mais o dentista…

Esta será a última crónica antes do almejado descanso. O mês de agosto, por força das circunstâncias exige que se reponham energias, pelo que nos próximos tempos estarei a usufruir do merecido sossego, sem atender a compromissos laborais nem lúdicos, que apesar de me serem prazenteiros, não deixam de ser uma espécie de trabalho não remunerado. Já dizia o outro: faz o que gostas e não terás de trabalhar um único dia. E eu gosto efetivamente da rubrica criada há muito, mas preciso de uma desintoxicação, tal como aqueles que me vão acompanhando, suponho…

 Assim sendo, por motivo de férias, a “Crónica de Maus Costumes” ficará em pousio durante o mês de agosto. Dizem que o pousio torna o terreno mais fértil. Veremos... Boas férias!

 

Nina M.

 

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Eros

Mias-me pela manhã 

Durante a noite...

Procuras saciar a tua fome 

A tua sede

Todas as  fomes e todas as sedes

De carinho  

E marras-me as pernas nuas

Deixas que sinta o teu nariz húmido 

Esfregas-te esquivo à moda dos gatos

E desnudas-te, deixas-te cair sobre o tapete

À espera de recompensa

Olhas-me sério e vejo outro olhar

Há um céu e um mar que denuncia

E se não vens fazes-me falta...

sábado, 23 de julho de 2022

Crónica de Maus Costumes 287

 

Memórias

Um destes dias relembrei vivências de outros tempos, em conversa com os amigos que ficam. Tempos felizes, porque a inocência não havia sido quebrada, tempos felizes porque o mundo parecia mais belo do que sinistro. Ele é belo, mas a humanidade estraga-o. Felizmente, existem seres humanos que conseguem equilibrar as coisas e fazer-nos sentir que, apesar dos pesares, apesar do pessimismo, há esperança e luta e a crença de que é possível contribuir para um mundo melhor…

Não era preciso pensar sobre isto, naquele tempo… Nem a maturidade, ou melhor, a falta dela o permitia nem a “nossa tribo” via a feiura. O nosso mundo era dionisíaco, inocente e belo. Não cabia a maldade. É sobretudo por esta inocência que guardo memórias tão preciosas.

Obviamente, que havia coisas menos bonitas, mas não no grupo restrito dos elementos de sempre. Havia cuidado, carinho, brincadeira, muita ternura recíproca e fui tão feliz! Não me canso de o repetir e surge-me o verso do Álvaro de Campos “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”… Estranhamente, não desejo propriamente um recuo temporal, voltar a ter vinte anos. Não quereria, se me fosse oferecido. Há mais Sónia hoje do que antes… Mais mulher, mais consciência, mais conhecimento, mais ser, mas não negaria a possibilidade do eterno retorno… Uma cápsula do tempo e poder voltar a viver certos momentos. Ser repetidamente eu, há vinte e muitos anos, nas mesmas circunstâncias, com as mesmas pessoas…

Depois de muito riso, motivado pela conversa e pelas recordações, surgiu a sombra, o abalo, a pedra no charco. Vieste ter comigo, Nuno. Não me aparecias há muito e surgiste-me a sorrir, puerilmente, como era hábito. Veio tudo à memória. Subíamos a rua das traseiras de minha casa (eu e a Bela). Vínhamos de lá, em direção ao cu (Café universidade) … Felizes… Ríamos… Quando fomos interpeladas pelo Missas, de semblante carregado e atónito pela nossa alegria. “Estais-vos a rir? Não sabeis o que aconteceu?! O Nuno morreu. O Nuno matou-se”.

Era visível a sua consternação. Petrificamos. Ainda perguntamos se falava a sério… Atirou-nos zangado que não iria brincar com tal assunto. Calámo-nos. Apressámos o passo na esperança de que nos desfizessem o engano assim que nos sentássemos na mesa habitual… Silêncio. Tristeza. Incredulidade. Foste de fim de semana e não regressaste.

Porquê, Nuno? Era a pergunta que os teus pais nos colocavam, a suplicar pela verdade, mesmo que fosse dolorosa. Queriam uma explicação. Precisavam dela. Perguntavam-nos se andarias na droga… Afirmávamos que não. Nunca nenhum de nós te viu ou te soube metido nessas coisas. Pesou não ter resposta. Pesou ver-lhes o desespero. Nenhum de nós sabia o motivo. Nenhum de nós era capaz de o explicar. Nenhum de nós te soube mal… Ou fomos nós pouco perspicazes e pouco observadores ou foste tu muito bom ator… Sempre me pareceste bem-disposto e alegre como todos os outros… A pergunta ficará sempre por responder. Não deixaste qualquer explicação e foste embora. Sei que não quis que mais alguém próximo de mim partisse dessa forma. Mágoa é constatar que nenhum de nós foi suficiente para ti. A nenhum confiaste a tua angústia e a tua dor. Talvez fôssemos demasiado leves para o peso que transportavas contigo. Foram dias difíceis…

A viagem para a Guarda, para as tuas exéquias… Trajados, solenes e contritos. Choro e desespero. Tudo quanto guardo desse dia.

Prefiro as outras memórias, as dos risos partilhados, das caminhadas até à cantina e à Metrópolis. Pergunto-me quantas vezes estarias em dor sem que o soubéssemos, sem que o pudéssemos adivinhar… Não sei porque tardei a prestar-te homenagem se tantas vezes me lembrei de ti. Decidiste partir sem explicação. Sem olhar para trás, num voo sem retorno. Não viste nada que a vida te pudesse oferecer, apesar da tua juventude. No entanto, nunca te sentimos deprimido. Nem triste, sequer…

Porquê, Nuno?!

 

Nina M.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Felicidade

 Felicidade é

Um sol poente de mão dada
Uma poesia sussurrada
E, no final, uma cabeça sobre
Um ombro
Olhos fechados
Com um livro sobre o peito
Pensamentos dispersos que voam
Sobre um leito
Um copo de vinho em frente à lareira
Num inverno escuro e só
Uma cerveja que se tira da geleira
Para partilhar
Com quem gosta de nós
O sossego imperturbável
De quem se sente em casa
Uma mão entrelaçada
Num golpe de asa
Uma vida falhada que ergue o seu canto
Na fantasia de quem recusa o quebranto
A música que dói e eriça a pele
A tela, um mundo desenhado a pincel
É ter tudo em instantes
É ter nada como dantes
É suprimento da falha
Em todo o esplendor
Não é não ter dor
É sobretudo ter amor

sábado, 16 de julho de 2022

Cansaços

 Cansaços


O canto dos pássaros é outro
O cuco soa distinto
E o chilreado matinal
Que acorda cedo a vida
Pede outro ouvido

Tempo de cansaços
De apagamento do ser
Que em letargia
Busca a ausência
De todas as coisas

É fuga de verão
Necessidade de evasão
De outros lugares
No final, a dolorosa
Consciência:

Ninguém se despoja
Das suas misérias
Se são nossas
Não causam estranheza
As de outros... Que fazem cá?

Os vazios são
Silêncios polidos
Tralha deitada ao mar

Crónica de Maus Costumes 286

 

Despedida

O tema da crónica de hoje não é feliz. No domingo passado, partiu o senhor Domingos Barreiro, pai da minha irmã de coração, com quem partilhei um passado, com quem estudei, com quem estagiei, com quem cresci, por quem nasceu uma empatia e um carinho súbitos. Fomos o apoio uma da outra em diversas circunstâncias. Continuamos assim… Com uma amizade pura, desprovida de interesse a não ser o bem-estar da outra. O oceano que nos separa é o mesmo que nos une. Tem sido duas vezes por ano e este não será exceção. É um momento de tristeza e não te emociones agora, amiga, quando me leres…

Quero deixar umas palavras em memória do teu pai, um senhor com quem tive o privilégio de privar. Antes de mais, agradecer a cordialidade, a simpatia, a disponibilidade com que sempre me recebeu, primeiro a mim e depois à minha família. Agradecer o respeito que tinha pela nossa amizade. Agradecer-lhe a mulher que te tornou com a sua proteção e a sua ajuda, apesar de todas as dificuldades que foste forçada a superar (sabemos bem do que falo). Venceste. Melhor, tu e o teu pai venceram. Era muito bonito observar (para quem tem olhos sensíveis) quer o profundo amor e a atenção e cuidado que lhe dedicavas quer o orgulho que ele sentia e que lhe explodia no olhar, quando te tinha perto.

A imagem que guardo do senhor Domingos é a do homem alto, forte, com as suas cãs e bigode branco. O patriarca que zela por todos (cumpriu bem a sua missão) e que recebia como ninguém. O senhor que à chegada das visitas, diligentemente, se preocupava para que os estômagos não quedassem vazios. Lá vinha o presunto, o queijo e o bom vinho, enquanto solicitava à sua Alice o pão para acompanhar. Obviamente, não é pelo presunto ou pelo queijo (ainda que fossem bons e soubessem pela vida), mas pelo prazer que víamos que sentia em bem acolher os seus amigos ou os dos filhos. Herdaste-lhe o gosto…

Recordo com especial carinho uma conversa que tive com ele à beira-mar, na prainha do costume. Eram os nossos filhos bem pequenos. A Matilde ainda nem era nascida! Talvez tenha sido, penso que foi mesmo a última viagem do teu pai a tua casa.

Perguntei-lhe sobre os tempos de Angola, a descolonização atabalhoada, a dificuldade que foi recomeçar do zero, reconstruir tudo novamente com muito sacrifício, poupança e trabalho. Apesar de todas as provações que o teu pai teve de ultrapassar, apesar de todos os sacrifícios, não era um homem amargurado nem curvado perante as vicissitudes, pelo contrário. Era de sorriso fácil, de trato agradável, de quem sabe que a vida não existe para nos facilitar a tarefa de a viver, mas que parecia de bem com ela, como quem sabe que se cumpriu.

Impossível não recordar o encontro que não foi lá do seu agrado, mas manteve sempre a compostura. Só o soubemos no dia seguinte, quando confessou a inveja pela carne de porco à alentejana requentada… O que nos rimos! Ou então quando ainda nenhum de nós tinha visto uma nota de 500 euros e ele lança a mão à carteira, à boa moda dos comerciantes, sempre habituados a andar com muito dinheiro e puxa da nota ainda imaculada. Lembro-me de pensar que, naquela altura, o meu salário resumia-se a duas notas daquelas…

Sabes, via o teu pai e lembro-me do meu. Parecia adivinhar, o ano passado, pelo verão, quando quis visitar o teu… Dá-lhe para estas coisas, agora… E eu sei o que é, porque o farejo. Caminha como quem se prepara para a sua despedida do alto dos seus oitenta quatro anos. Nenhum de nós está imune à perda. É a lei da vida. Eles, os velhinhos que partem, aceitam com mais tranquilidade e mais naturalidade que nós. Teremos de aprender a viver com isso… Teremos de saber que a morte faz parte da vida e que enquanto não vem, ela não existe e, quando chega, dormimos o sono longo dos justos.

Um dia, depois de todo o choro e da dor que cobre estes instantes, sobrará a saudade boa, aquela que nos faz sorrir à lembrança das peripécias.

Até sempre, senhor Domingos!

 

Nina M.

 

 

 

sábado, 9 de julho de 2022

Crónica de Maus Costumes 285

 

 A importância dos famosos “rankings” das escolas

            Ontem e hoje, o assunto das redes sociais, mais uma vez, como todos os anos, desde que foram inventados, são os famosos “rankings” que ordenam as escolas do país pelos resultados dos seus alunos nos exames nacionais, nas mais variadas disciplinas.

            A partir desta ordenação, infere-se, numa análise pouco cuidada e pouco credível, apesar da objetividade dos resultados, quais as melhores escolas do país e quais as piores. Trata-se de uma depuração deturpada, porque insiste em comparar realidades incomparáveis. Desde logo mistura a escola pública com colégios privados, que como toda a gente de bom senso reconhece, tem alunos com perfis diferenciados. Os privados são procurados por famílias com condições económicas e sociais distintas, que conseguem proporcionar um acompanhamento escolar diferente aos seus filhos. Muitos dos alunos que frequentam o ensino privado procuram, ainda assim, a ajuda de explicadores externos (muitos deles trabalham na escola pública e são pessoas competentes) para colmatar uma ou outra dificuldade que possam ter. Não vejo qualquer mal naqueles que têm possibilidades económicas em escolher um privado do seu agrado e propiciar todo o auxílio de que o filho possa necessitar. Se o podem pagar têm toda a legitimidade para o fazer. Erradas são as análises subsequentes e considerar-se a escola x melhor do que a y, porque a média obtida pelos alunos nos exames realizados é mais elevada. Só poderemos estabelecer esse tipo de comparação quando as condições forem as mesmas e a verdade é que não são. A escola deixou de ser um elevador social há algum tempo. A maioria dos meninos que frequenta o privado pertence, no mínimo, a uma classe média alta e quando de lá sair a ela continua a pertencer. Estas escolas, na generalidade, escolhem os alunos e não são inclusivas. Com jeitinho, os seus professores não precisam de conhecer o Decreto-lei 54. Estas escolas não precisam de fornecer a única refeição quente do dia ao aluno, o suplemento alimentar para que as crianças possam tomar pequeno-almoço, nem solicitar a intervenção da CPCJ, não precisam de lhes incutir hábitos de higiene nem de garantir que, pelo menos, na escola, os meninos tomam banho. Estas escolas também não têm que lidar com os alunos que não querem estudar e que prefeririam estar a trabalhar. Obviamente, nem todos os alunos da escola pública têm este perfil. A escola pública alberga todos, porque é uma escola pensada para todos: do mais miserável ao mais burguês, do menos capacitado ao mais capacitado e, com a realidade que tem, cumpre o melhor que pode com os escassos meios que lhe são dados. Há muito se faz omeletes sem ovos na escola pública, com os esforço de toda a comunidade educativa, passando pela direção, pelos auxiliares (muitos deles autênticos tutores de certos alunos e merecem todo o reconhecimento) e, naturalmente, pelos professores. Comparar resultados de exames em universos tão distintos é uma falácia! Seria como comparar um atleta de alta competição em determinado desporto a um atleta amador. Gosto de fazer as minhas corridinhas, mas não preciso de testar para saber que se fosse correr com a Aurora Cunha, Rosa Mota ou Fernanda Ribeiro não seria capaz de aguentar o ritmo delas. Estabelecer comparações entre escolas sem atender à realidade económica e social dos seus discentes é ser apenas tonto. A melhor garantia de sucesso de um aluno continua a ser o meio social de onde provém e a sua família. É contra a desigualdade social que a escola pública se bate. Todos os dias se trabalha para que os alunos que a frequentam venham a ter melhor qualidade de vida do que as gerações anteriores. Pelos vistos, a escola pública está a perder a luta. Certo é que estes “rankings” servem apenas para estigmatizar as escolas que aparecem nos últimos lugares, como se não estivessem a cumprir bem o seu papel, à luz da ideia de que a competição e a meritocracia favorecem a aprendizagem. Ora acontece que a realidade de um menino a quem são proporcionadas viagens, explicações, instituto para o inglês, prática desportiva, para além de um acompanhamento familiar próximo é diferente daquele que abre o frigorífico e que o encontra vazio. Os primeiros partem seguramente em vantagem. Obviamente, não têm culpa disso, que saibam aproveitar a oportunidade, porque não fazem mais do que a sua obrigação. Grandes são os que conseguiram superar as adversidades injustas que a vida lhes colocou com o seu esforço. Esses têm, efetivamente, muito mérito. É essa a ideia constante que passo aos meus filhos. Eles frequentam a escola pública tal como a mãe, que é produto da escola pública, mas tanto eles, como eu, partimos com vantagem em relação a muitos. É bom lembrar-lhes isto. É bom que saibam que o sucesso não é inteiramente deles, mas também por um feliz acaso de nascimento e de criação. Já nasceram num meio que lhes inspira expetativas elevadas e têm condições para as realizar. Se falharem, peçam justificações a eles mesmos. Mesmo dentro da escola pública encontramos estas desigualdades, logo o que deve ser feito é conseguir proporcionar os meios de apoio aos mais desfavorecidos, para tentar equilibrar ou, pelo menos, minimizar as diferenças. Sirvam os “rankings” para se investir no ensino público, para que possa ser um efetivo ascensor social.

            Tudo o resto são vaidades, egos inflamados e pouco tino.

 

Nina M.

 

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Noite de verão

Hálito quente de noite de Verão
Sobre a pele sem brisa
Como uma canção
Desfalece sobre o corpo
Pousa a amaciar a memória
De um momento doce de fim de tarde
Em que o beija-flor
Beija a flor
Que se abre em comovente desejo

Esse hálito quente de noite de verão
Que afaga a dor
Como uma canção
A lembrar que a vida
É loucura contida
Doce lucidez de inocência perdida
Abraço e ilusão
Narrativa construída
Pela arte da imaginação 

sábado, 2 de julho de 2022

Crónica de Maus Costumes 284

 

Leituras e escrita

                Por estes dias, fui ouvir o João Tordo que promove o seu último livro, “Naufrágio”. Gostei do rapaz. Simples, de conversa fácil, sai-lhe como as cerejas e às tantas já não se lembra a razão que o levou até àquele ponto da reflexão e questiona o público: “mas isto foi a propósito de quê? Já me perdi.” Não se perdeu nada. Fez foi uns tantos desvios pelo caminho, mas todos eles relacionados com a linha de raciocínio que seguia.

            Estou em dívida com o João, porque ainda não li nada dele e a cada escolha que se faz, há uma infinidade de outras opções que ficam à porta. Ainda não tinha chegado a altura do João. Será durante este verão. Fica a promessa. Depois, direi se me agradou. Não comprei o seu último, mas aquele que foi o seu terceiro livro e que lhe garantiu um prémio Saramago. À partida, a atribuição desta distinção é garantia de qualidade, mas nisto dos livros, às vezes compra-se num ato de fé, que logo se desvanece para passarmos logo a ser como o São Tomé e a precisar de ler para crer.

            Gostei de ouvir o João Tordo, já que durante a sua preleção, constatei que havia algumas referências literárias comuns. Assim, quando fala do papel que a Literatura pode ter para o desenvolvimento da empatia e da tolerância e cita o exemplo de “Lolita”, de Vladimir Nabokov, para explicar que ao ler a narrativa terrível sobre o pederasta que se aproveita da fragilidade da criança de onze ou doze anos que perdeu a sua mãe e que abusa dela ao longo de anos, impedindo-a de viver uma adolescência dentro da normalidade, o leitor, apesar de condenar e de repudiar veementemente o comportamento asqueroso de Humbert Humbert, não deixa de sentir empatia, palavra sobre a qual o escritor soube pegar no étimo grego “pathos” – sofrimento - para a esmiuçar e bem. Tordo expôs, fruto da sua experiência como leitor, exatamente o que eu senti quando li a obra referenciada. Dei comigo a pensar sobre como podia estar a sentir compaixão pelo pedófilo que acabou preso por homicídio e não por abuso sexual, sabendo que é o crime que mais me horroriza, desde logo porque sou mãe de dois, um dos quais uma menina, precisamente na faixa etária dos onze. Não gosto sequer de imaginar poder conhecer alguém capaz de tamanho horror. Não sei do que seria capaz, mas até as entranhas se me revoltam só de o pensar. No entanto, perante a narrativa, perante a fragilidade, a fraqueza, a consciência da personagem que sabia estar a agir mal, mas que não era capaz de controlar o impulso, senti comiseração. Fui capaz de desejar justiça, mas não vingança. O mesmo aconteceu com o Raskolnikov, de Dostoiévsky, que comete dois homicídios perfeitos, mas vê-se corroído pela culpa, encontrando a redenção pelo amor e pela fé, junto de Sonja. Ele próprio acaba por confessar o crime e a partir de então, começa a sua reconstrução, a sua regeneração moral e espiritual. Na verdade, Raskolnikov não passa de um homicida que planeou cuidadosamente o assassinato da velha senhoria e que com a chegada inesperada da irmã, se vê obrigado a matar esta também. Também aqui, ao longo da ação, sentimos empatia e comiseração pelo homicida descarado, por um lado subjugado pelo remorso e, por outro, vaidoso pela prática do crime perfeito. Acompanhamo-lo ao longo da narração e sentimos o seu arrependimento, chegamos a desejar que não seja efetivamente apanhado, porque a sua consciência já o condena o suficiente…

            Com estes dois exemplos, João Tordo agarrou-me. Ainda falou de “Ulisses”, de Joyce, mas não apreciou vivamente, apesar de reconhecer (como todos os críticos) a mestria do autor, revelando, sem pudor, que não estava a perceber nada daquilo (todos os que conheço e que o leram apresentam o mesmo queixume), mas que a leitura lhe valeu por uma determinada passagem que apreciou. Não segurei a minha curiosidade e perguntei-lhe com que idade tinha lido “Ulisses”. Respondeu-me que com cerca de trinta. Franzi a testa e disse-lhe que tinha sido avisada para não o ler antes dos quarenta e que até ao momento ainda não tinha tido o atrevimento de o fazer… Arranquei uma gargalhada à plateia, mas não sei se saberiam exatamente da dificuldade de que falamos. Desconfio, inclusive, que muitos dos presentes nem o “Lolita” nem o “Crime e Castigo” terão lido e é uma pena, porque sem essa leitura, não podem compreender com exatidão o alcance das palavras do escritor. Sei que terei de o fazer (ler “Ulisses”), algum dia, mas sei que não vai ser fácil… Depois de tudo isto e a propósito de Saramago, porque esta geração de autores, que são da minha idade ou próximos, são “filhos” do nosso génio literário, Tordo fala da Bíblia e do facto de gostar das narrativas, das histórias que ela contém, mesmo não sendo ele propriamente crente. Volta a uma referência que também conheço, mas que não possuo, que é a Bíblia traduzida pelo professor Frederico Lourenço, um enorme académico da Universidade de Coimbra, que nos contempla com as suas traduções de Homero e de Virgílio e nos encanta com as suas notas de explicação linguística. Dele tenho a “Odisseia”, de Homero. Fiquei, naturalmente, a salivar pela Bíblia, como o cão de Pavlov…

            Gostei de ouvir o João Tordo. Tive pena de só ter tido espaço para lhe fazer uma pergunta, uma vez que já se fazia tarde e o rapaz tinha autógrafos para assinar, mas soube-me a pouco, porque senti que poderia estar à conversa bem mais tempo. Muito gentilmente, pela altura do autógrafo, ainda me agradeceu a pergunta colocada, no fim da palestra. Quase me apeteceu dizer-lhe: Ó homem, perguntas é comigo! Teria mais algumas para lhe fazer…

 

Nina M.