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quinta-feira, 30 de junho de 2022

Diálogo II

- Porque te desencantas da vida?
- Pela falha singular e irreparável
Porque era ela
Porque era eu
Porque ela era eu
Simbiose e alteridade
A perfeita medida da saudade
Sem ela não sou eu...

sábado, 25 de junho de 2022

Crónica de Maus Costumes 283

 

Um português na Holanda

O convidado do último programa Em Primeira Pessoa, da Fátima Campos Ferreira, foi o José Rentes de Carvalho. É possível recuperá-lo na RTP play (perdoem-me a publicidade) e ainda há um outro com o Mário Zambujal que também hei de ver, mas falhou-me a oportunidade.

Acredito que se interroguem sobre a personalidade referenciada. Por um mero acaso, tropecei com o Rentes de Carvalho há uns anos, num artigo qualquer de uma revista, nome da cultura portuguesa que também me era desconhecido, na altura. Não desta vez, pelo que quando me veio parar o alarme da entrevista, logo soube que a veria.

                José Rentes de Carvalho é um escritor português talvez ainda desconhecido da maioria. É um senhor de noventa e dois anos com uma memória fresca e que dizia, na entrevista, ter uma memória enorme, boa, e que era um horror…

Passou a sua infância em Gaia, mas as suas origens pertencem ao Nordeste Transmontano profundo: Estevais, uma pequeníssima aldeia de Mogadouro, onde o cemitério velho é o exemplo da simplicidade e da pobreza. As lápides são pedras irregulares, sem nomes nem epitáfios nem pedras tumulares. Dizia ele à Fátima, a jornalista, que não encontraria cemitério mais pobre… E eu achei o mais belo, precisamente, pela singeleza. Os jazigos, nalguns casos, capelas, dos cemitérios transtornam-me… Como se houvesse alguma riqueza na morte ou fizesse diferença estar depositado numa capela, no esquifo mais fraco ou no de melhor material, se num jazigo ou campa rasa ou até gaveta, com a cremação tão em voga… Tudo um horror… Por isso, ver um chão plano e um pedra mal-amanhada a indicar onde fica a cabeça dos mortos, parece-me suficiente. No final, de uma forma ou de outra não sobrará nada… E se em vez da pedra fosse uma árvore, tanto melhor… Dizia ele que os mortos, ali, eram embrulhados na mortalha e lançados à cova, sem mais. Não havia dinheiro sobrava miséria.

Rentes de Carvalho é desse tempo difícil da fome, do comboio que passava a Carviçais e, nesta passagem, sorri… Conheci a antiga linha, já naquele tempo da minha infância desativada, mas ainda permaneciam os carris. Agora nem isso…

Carviçais era a terra da minha professora primária, a D. Esperança, colega e amiga da minha mãe. De modo que lá fomos passar uns fins de semana, com a Dona Maria e o senhor Ferreira, os pais da minha professora, que tinham terras de cultivo. Foi aí, a caminho de umas terras que os senhores faziam, que quatro ou cinco crianças montadas na “burrica”, ao descer da encosta íngreme, desequilibraram-se e bateram com os costados no chão. Eu era uma delas…

A linha e o comboio traziam as novidades da cidade e os habitantes originários das aldeias. Rentes de carvalho era um deles. Mais velho passou por Lisboa, por Paris, pelo Brasil, tendo-se fixado na Holanda, em Amesterdão, desde 1956, onde lecionou Literatura Portuguesa e Brasileira. Rentes de Carvalho esteve quarenta anos sem ser reeditado em Portugal e, no entanto, é reputadíssimo na Holanda. Admirado pela rainha holandesa, tendo-se atrevido a retratar o povo com quem vive no seu livro intitulado Com os Holandeses. Não se sente estranho nessas terras, mas sente-se “tão português que dói”, como ele diz.

Do país guarda a mágoa de ser primeiro editado em língua estranha e que não é a sua materna, que tanto ama! Senti-lhe a voz húmida e embargada ao falar do descaso que o país fez de si. É a Estevais que vai buscar o material para as suas narrativas. Passa agora metade do tempo na Holanda e outra metade na aldeia portuguesa. Em “Ernestina” narra a aldeia com crueza e com linguagem descarnada. Não se vê o “reino maravilhoso” de Torga nem a infância mítica, mas uma “terra do demo”, onde Judas perdeu as botas, onde se vive entre a vontade de sair e o desejo de ficar, onde se vive com a necessidade de deixar o deserto e a miséria para trás, mas não se consegue, porque eles saem juntamente, agarrados à pele. As personagens cruas, brutas, formadas com o rigor e a dureza do enxadão e da paisagem montanhosa e seca não são absolvidas. Um retrato duro e cru, trazido de novo aos portugueses pela Quetzal, com a ajuda do flaviense Francisco José Viegas.

Um escritor a desvendar, antes que ele se apague. Aqui fica um excerto:

 

“Teria sido mais fácil refilar contra Portugal inteiro, do que ver-me a braços com a própria carne, a minha gente, as dores que escondemos, o mal e o bem que traz esta maneira transmontana, tão nossa, toda de repentes, dilacerados desde o berço entre o carinho e a fúria, a ânsia de partir e a praga de ficar, a liberdade e a prisão”.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

Diálogo I

- Gostas-me?
- Amo-te.
- Mas gostas-me?
- Amar não é mais?
- Não. Pode ser ilusão que se desfaz
Como bola de sabão
Sai pelo ar sem regresso... Sem lamento
Amar sem gostar é cegueira 
Ver o outro só dentro de si.
Gostar é outra coisa. É olhar para fora e ver mundo.
Saber dos terraços e dos precipícios, 
Das funduras amargas das sepulturas da alma
Sem paixão sem dó mas ainda com empatia
Volta-se sempre a quem se gosta ou nunca se de lá sai apesar do nevoeiro... 
Amas-me. Mas gostas-me?

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Epígrafe

Procurei-te antes de o saber
Antes do tempo
E depois dele
A palavra pura
A palavra bela
A palavra autêntica
A palavra absoluta
Tardaste
Não vieste verso perfeito
Fizeste-te demora
Para te encontrar no sabor
De um beijo arriscado

sábado, 18 de junho de 2022

Crónica de Maus Costumes 282

 

Schopenhauer, o pessimista

                 Mário de Carvalho, no texto saído no exame de Português do ensino secundário, ironiza com a própria ignorância e desconhecimento sobre as obras de literatura mundial e a inibição que o saber de outros pode causar-lhe, para afirmar a liberdade que cada um de nós tem de manifestar a sua opinião sobre as mesmas, sem receio da crítica dos estudiosos. Após admitir a sua ignorância, afirma que o seu trabalho de falar sobre nada, porque nada sabe é mais difícil do que falar sobre tudo, que supõe saber-se tudo sobre tudo.

            Não sei se Mário de Carvalho se terá alguma vez sentido achincalhado ou diminuído por alguém que possa ter considerado os seus pensamentos a propósito de algo ou de alguma obra ligeiros ou insuficientes e quem sabe erróneos, mas sei o amargo de reconhecer saber tão pouco, apesar de se gostar do saber. Essa consciência é terrível e pesada. Há, efetivamente, a liberdade de manifestar uma opinião, sim, mas a possibilidade do erro e a probabilidade de um especialista em exegese puxar o tapete e ridicularizar o comentário é intimidatório. Mário de Carvalho exagerou, porque sabe, certamente, bem mais do que sentencia, mas para o comum dos mortais, que procura saber e se reconhece sempre tão distante do que almeja, não há motivo para ironias, mas antes receio do ridículo e do erro. Pressinto que é também isto a angústia que ele tenta exorcizar. Não adianta. É mesmo “difícil viver com essa deficiência e inferioridade” e a única forma de a combater, que é através da leitura e do estudo, parece sempre insuficiente e causa a terrível sensação de andar a correr atrás do prejuízo.

            Por uma situação similar em conversa de rede social, dou por mim atrás de Schopenhauer, o pessimista, que apresenta uma visão pessimista do amor, tratando-o como um impulso sexual e ilusório. O homem procura a mulher bela, de preferência entre os 18 e os 28 anos por se encontrar no período fértil e as mulheres, os homens entre os 30 e os 35, por estarem no apogeu, apreciando a masculinidade, a proteção para si e para a futura criança. Tudo isto sob a ilusão de que o sujeito tudo faz para a sua felicidade, quando, na verdade, apenas obedece ao ímpeto sexual ou ao que ele designa de vontade de vida que é inconsciente, mas que faz com que o indivíduo se eternize na propagação da espécie. Assim, procura o parceiro que complete o que lhe falha, citando o exemplo de que um homem loiro poderá preferir uma mulher morena e um homem fraco, uma mulher forte…

            Explicar o amor pelo determinismo biológico não me parece suficiente. A filosofia de Schopenhauer não traz boas perspetivas futuras. Depois de satisfeita, a vontade de vida esmorece, os amantes revelam-se pessoas com os seus defeitos e a ilusão desfaz-se. Não é a felicidade do casal que o amor prometia, mas a simples continuação da vida. Desta forma, os casamentos por amor estão fadados ao insucesso e com prazo de validade curto. A vida utilizou os amantes para dar início à próxima geração que também enganará. Concluindo, toda a paixão amorosa é impulso sexual e os amantes os criminosos que, com o seu ato, perpetuam a ilusória promessa de felicidade, a tristeza, a desilusão e a miséria do mundo.

Porém, nos casos em que tal suceda, talvez não se possa falar de amor e a palavra esteja a ser mercantilizada. Fale-se de desejo, então. Entender o amor desta forma é, naturalmente, pessimista (falamos de Schopenhauer), e ficam várias questões por explicar… Como explicar à luz deste pensamento o amor depois da idade fértil? Também não explica que se continue a desejar quem se tem ao lado, mesmo que envelheça; elimina da equação outras propriedades como as semelhanças e gostos comuns, uma ética de vida comum, enfim uma série de condicionantes importantes para a viabilidade do amor, não contempla o amor entre pessoas do mesmo sexo, já que o fim não seria a procriação… E outras que poderíamos sugerir. Não explica que Saramago falasse de Pilar como o acontecimento da sua vida, mesmo ao fim de tantos anos…

O filósofo da primeira metade do século XIX, para quem o fim da existência é a dor e o tédio e para quem a felicidade um mero interlúdio enganoso, influenciou Nietzsche, Freud, Wittgenstein, Einstein, entre outros grandes vultos, mas discordo de quem me disse que percebia mais de amor do que qualquer um de nós.

Faço como o Mário de Carvalho e invoco o direito de tresler, se for o caso.

 Nina M.

 

 

 

 

 

domingo, 12 de junho de 2022

Estio

Quente.

Calor de sol alto

Corpo em brasa

Lasso e indolente


Céu de azul intenso

Cor de domingo 

Lugar de preguiça 

E o chilrear feliz das aves


Devem estar felizes

Sem penas molhadas

Sem frio 

À sombra dos beirais


Chega o odor do rio

O leve cantar da água 

A lembrar que a vida breve

É tão curta quanto o estio

O verão e seus sinais



sábado, 11 de junho de 2022

Crónica de Maus Costumes 281

 

Pessimismo e Esperança

                Chego arrebatada e com o brilho no olhar, uma sensação de beleza inscrita na alma, como só a arte ou amor conseguem imprimir. Venho do Teatro Nacional de S. João e com o Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago incrustado na pele.

            Um espetáculo que estará em cena até ao final da próxima semana, num trabalho conjunto de atores portugueses e catalães e que aconselho vivamente.

Quem ainda não leu a obra ficará a conhecê-la bem e os que já o fizeram revisitam-na, rememoram-na e saem rendidos aos atores, ao brilhante trabalho do encenador e se dúvidas houvesse, da plena consciência do tesouro que o Saramago representa para a cultura portuguesa.

            Não me deterei nos pormenores da obra, que foi reavivada nos tempos de pandemia, mas espetáculos desta dimensão reduzem-nos à nossa insignificância. Mostram a nossa pequenez perante a beleza e melhor percebemos que sem cultura o Homem não passa de “um bicho da terra tão pequeno”, como cantou o nosso príncipe dos poetas.

            Quando falo da beleza da arte, obviamente não me refiro ao conteúdo da peça. Ensaio sobre a Cegueira confronta-nos com o que há de mais abjeto no ser humano. Não é, de todo, uma exaltação da beleza nem uma manifestação hedonista. É antes de mais a exposição crua e seca de uma humanidade falhada, de um coletivo decadente, egoísta e que, quando confrontado com a possibilidade da morte, esquece qualquer sentido, qualquer propósito de vida, qualquer ética para garantir a sua sobrevivência, mesmo que não saiba para quê. Parece, portanto, que há um certo determinismo biológico que empurra o Homem para a vida e a escusa da morte, mesmo nas situações mais miseráveis. Saramago não é um otimista. Concretamente, aqui, explora a maldade, a crueldade, o egoísmo e o oportunismo, a luta pelo poder dentro do manicómio, a luta pela comida, as sevícias impostas às mulheres…

 A cegueira branca dos que “vendo não veem” cria um mundo medonho onde “o mundo caridoso dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel, e implacável dos cegos”. No meio dessa lama, sobrevive o grupo liderado pela mulher do médico, “a mulher que vê” e que agora repara e observa, no seu pequeno mundo fechado no manicómio, o que faltou ver em liberdade: a guerra, a fome, a frivolidade, a crueldade, a falta de distribuição de riqueza… Tudo o que qualquer humano não afetado pela cegueira branca consegue encontrar no mundo de hoje.

            Escrever o Ensaio para Saramago foi conviver com a decadência e acolher o sofrimento. É impossível parir um livro destes sem dor, diz o próprio Saramago a propósito: “ [] desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais.” No entanto, no meio do caos, há “la dona s’hi veu”, “ a mulher que vê”. Primeiro, seria impossível a quem cega repentinamente sobreviver sem ajuda, depois, esta mulher fantástica, dotada de uma força moral à prova de tudo, com um sentido de responsabilidade e de dever apuradíssimos é o farol do grupo. A cuidadora que por amor acompanha o marido e acaba a tratar de todos. É a mulher-farol, a luz, a guia, é na verdade, a esperança. É ela quem diz ao sair do manicómio que “ainda há a cidade”, mesmo que sem luz, sem água, sem transportes, sem serviços, com os santos nas igrejas de olhos vendados… Ainda há a cidade, ainda há a esperança de retomar a vida, de sair do pesadelo, de voltar a ver para talvez, agora, reparar. Há, por isso, na obra a constatação da falha coletiva da humanidade, o reconhecimento da sua torpeza, da sua vilania e da cegueira, o desencanto com o Homem, mas sobeja ainda a esperança.

Apesar do mundo distópico retratado, do desencanto e até do pessimismo, a chama da esperança mantém-se acesa por força do amor que cuida, na figura da mulher do médico. Não há rendição ao cinismo, nem resignação. Há um grupo liderado pela esperança, que se mantém unido e mantém a dignidade numa ação conjunta, no seu raio de ação. Talvez, por isso, no final, sejam recompensados com a visão.

Todos nós teremos, portanto, o nosso papel no mundo e compete a cada um escolher a marca que quer deixar ao seu redor. Melhora-se a sociedade através da ação individual, de ser para ser, até alcançar todo o conjunto.

Talvez o sonho seja possível, no dia em que a cegueira branca deixar de atingir a humanidade. Haja a esperança que nos salva os dias.

 

Nina M.

 

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Desesperança

Na ausência de esperança
Esboroa-se a vida fragmentada
Magnificência e tragédia
De mão dada
Peça de Shakespeare encenada
Sem repetição de cena
Sem unidade de ato
Assim é levada a pena
Da humanidade
Em colapso

sábado, 4 de junho de 2022

Crónica de Maus Costumes 280

 

A Igreja e a sexualidade

 

                Hoje, no facebook, deparei-me com um comentário a uma publicação de um amigo virtual a propósito dos argumentos de S. Tomás de Aquino para provar (dentro do possível) a existência de Deus. Queria a pessoa saber se tinha sido S. Tomás de Aquino a dizer algo do género (em paráfrase livre): Senhor, dai-me a castidade, mas não para já.

            Pegou-me o riso e estive quase para comentar e acrescentar: Senhor, dai-me a castidade, mas não para já, apenas quando já não me fizer diferença, quando a velhice a trouxer naturalmente. Contive-me.

            Entretanto, mais alguém esclareceu que o dito não seria de S. Tomás de Aquino, mas antes de Santo Agostinho.

            Na verdade, a frase que lhe é atribuída é: “Senhor, dá-me castidade e continência, mas hoje não”. Santo Agostinho embrenhou-se num percurso de descoberta pela verdade, julgo que poderíamos dizer numa busca de sentido para a sua existência. De maniqueu que fazia a afirmação do prazer e a negação da procriação, depois da conversão ao catolicismo, tornou-se defensor da procriação e da negação do prazer. O trajeto do santo e a busca pela castidade não lhe foi fácil. Levou uma vida dissoluta e de prazeres carnais aos quais sucumbia facilmente, mesmo depois de ter encontrado o seu trajeto.

A decisão da castidade surge com a separação da mulher que amava para se casar com uma noiva mais condizente e em idade de casar, conforme a vontade da mãe, porém, sucumbiu à necessidade da carne. Como o próprio diz: “Assim, como eu era menos um amante do casamento do que um escravo da luxúria, encontrei para mim outra mulher” (SANTO AGOSTINHO, 1973, VI, 15).

Como legado da Antiguidade, principalmente, dos estoicos e dos neoplatónicos, preservou-se a hostilidade ao prazer e ao corpo, empecilhos para a elevação do espírito. A Igreja foi bastante recetiva à ideia de celibato oriunda do mundo antigo e que impôs pela força ao clero. Pese embora os filósofos gregos, de um modo geral, concordassem com a importância da busca do prazer, os estoicos e os neoplatónicos manifestam a sua preferência pelo celibato, pela abstinência e pelo ascetismo, ideia que influenciou a Igreja e o próprio Santo Agostinho, como forma de manter a proximidade com Deus. A partir de então, ficou instituído que seria melhor para o homem não ter mulher e a admissão do coito apenas com a finalidade da procriação, uma vez que no paraíso, a procriação teria sido originada sem prazer. Surge, desta forma, o casamento como uma concessão aos homens, dada a fraqueza humana. A relação sexual deveria ser ausente de prazer e o cônjuge que procurasse o outro cometeria um pecado perdoável, mas o que realizasse coito por solicitação do outro – mas, pessoalmente, não buscasse o prazer – não incorreria em culpa. No entanto, a Igreja preferiu o pensamento mais conservador do Santo Agostinho, colocando o pecado no âmbito da sexualidade, veiculando o celibato e a virgindade como virtudes e a Virgem Maria como modelo. Na verdade, os seguidores de Jesus não o seguiram no trato com as mulheres, pois Ele conversava, dialogava e deixava-Se acarinhar por elas. As mulheres que rodeavam Jesus tinham um papel ativo e eram tratadas com respeito, o que para a lei judaica era inaceitável. Depois da sua morte, a mulher é desprezada, é a feiticeira de quem o homem deve afastar-se para não cair em tentação.

No século XII, a contrariar este pensamento que desprezava o corpo, o prazer e a mulher, surge Pedro Abelardo que vive o amor trágico com Heloísa. Tendo sido descoberto o romance entre ambos, a gravidez de Heloísa e o casamento secreto, o mestre de Teologia da Catedral de Notre-Dame de Paris foi castrado por vingança, a mando do tio de Heloísa, Fulbert. Humilhado, retira-se para a Abadia de Saint-Denis, tornando-se monge e passa a dedicar-se aos estudos filosóficos. Heloísa torna-se freira, mas trocaram cartas para o resto da vida, como deixou testemunhado no livro “História de Minhas Calamidades”. Mesmo após a tragédia, Pedro Abelardo tentou reabilitar o prazer sexual por entender que o prazer natural de um corpo não pode ser declarado pecado nem culpar alguém por se deliciar com o prazer que deve necessariamente sentir.

Olhando para a trajetória da Igreja Católica, no século XXI, já seria tempo de distinguir a luxúria, o exibicionismo e o vício que destrói o ser humano, conduzindo-o à insalubridade e à conspurcação pela falta de respeito por si mesmo e pelo outro, com a consciência de que o corpo é o templo do espírito, da vivência plena e sadia da sexualidade, principalmente, quando ela é o corolário do amor e da intimidade e o prolongamento da alma. A vivência da sexualidade é um direito que assiste qualquer ser humano, independentemente da sua condição e que, se vivida plenamente, fortifica vínculos e afetos, não destrói nem aprisiona.

Se Abelardo, no século XII, o compreendeu tão claramente, o que falta à Igreja deste tempo entender? Para bem da resolução de hipocrisias relativas a preceitos que ninguém (ou quase ninguém) cumpre.

 

Nina M.