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sábado, 4 de maio de 2024

Crónica de Maus Costumes 372

 

O país anedótico que temos

 Portugal consegue ser o melhor e o pior país do mundo para se viver. Quer dizer, para os que vivem do humor, podem radicar-se por cá, pois não lhes faltará matéria de inspiração. Basta que assistam às notícias.

Temos um Presidente de República que se esquece que é o máximo representante da nação e, portanto, é capaz do melhor e do pior, no mesmo dia. Tanto é capaz de dar uma lição de História. Fica para os anais uma certa conversa com o narcisista do Trump como, no momento seguinte, aparece a perguntar a uma menina se não tem frio e para ter cuidado… não vá constipar-se, por estar muito decotada! Recentemente, chamou lento ao António Costa, o que justificou com a sua origem goesa e rural ao Montenegro! Afirma que este dá muito trabalho, porque é imprevisível e tem comportamentos rurais. Não o explicou, mas prende-se com as origens do líder do Governo atual, que é natural de espinho. Tal afirmação já fez com que Pacheco Pereira viesse afirmar que conhece Espinho e que não é assim tão rural, pois tem muita indústria, uma das maiores feiras do país (bem, para mim, a feira é um pouco rural e raramente me apanham a feirar)! Não gosto das multidões que se acotovelam e andam a passo de caracol enquanto remexem tudo no que está exposto, tudo amontoado, numa desordem que dificulta encontrar seja o que for e, depois, ter de ouvir os pregões: “Ó minha flor, venha cá, diga lá o que precisa! Olhe que o preço é bom, freguesa!”. Definitivamente, não é para mim e estou consciente que deixo cair mais uma pérola para que me chamem de elitista. Não o sou. Posso conversar genuinamente com quem quer que seja, mas não gosto mesmo nada de ajuntamentos, arraiais, povoléu amontoado e barulho. E faz-me confusão ver as coisas todas ao molho, sem ordem nenhuma… Não sou a pessoa mais organizada do mundo, pelo contrário, mas caramba, nem tanto ao mar nem tanto à terra!

Há que regressar ao texto! Outra coisa de que me acusam com veemência, é de me lembrar de encaixar episódios dentro de episódios e dificultar a vida a quem segue a narrativa… Tende paciência, já lá vamos… Dizia eu que o Professor Marcelo anda com vontade de rotular os parlamentares. Veremos quem se seguirá, mas parece-me que deveria olhar um bocadinho para si e lembrar-se de que já não está há muito no papel de comentador! O professor parece um saltimbanco, aquele aluno elétrico, incapaz de estar quieto e calado, a quem dá vontade de dar um forte puxão de orelhas! Para além destes chistes que, apesar de despropositados são inócuos, o senhor presidente, às vezes, gosta de complicar a vida aos comparsas da política. Já não bastava isto, vem falar logo de seguida de uma necessária recompensa às ex-colónias, sem esclarecer concretamente o que quereria dizer com isso. Depois foi interpelado e lá foi dizendo que já se vai fazendo, que a recompensa existe quando se perdoa uma parte da dívida, quando se estabelecem protocolos especiais para que as pessoas originárias desse país possam vir para cá mais facilmente, etc, etc. Ó senhor presidente, antes de se falar na praça pública, essas matérias deveriam ser discutidas internamente! Pode-se pensar e discutir o assunto, nomeadamente, no que à devolução de obras de arte diz respeito, mas não se arremessa assim o assunto, sem uma contextualização, para polarizar uma sociedade já de si polarizada. É necessário maturar as ideias, antes de mais e depois lançar o diálogo para se chegar a uma conclusão!

Já não nos basta as trapalhadas do presidente, ainda temos de levar com as trapalhadas da assembleia! Por mim, eu gostaria de perceber com clareza se há ou não excedente orçamental e como se passa de um excedente para uma dívida substancial, num curto prazo de tempo. Ou o excedente nunca existiu ou se existiu é preciso uma explicação cabal para compreender a sua aplicação. Depois, se o parlamento continua a brincar à governação e se as duas forças políticas que, supostamente, não se suportam (PS e CHEGA) continuam a juntar-se para serem uma descarada força de bloqueio à governação, só vejo duas situações que podem ocorrer: ou a AD se farta, atira a toalha ao chão e vamos novamente para eleições ou o Montenegro é obrigado a chegar a um acordo com quem não quer e nunca quis, cedendo à chantagem, para poder governar. Até ao momento, claramente, o Governo não governa e, portanto, estamos num absurdo kafkiano sem fim à vista. Repugnam-me extraordinariamente, visceralmente e revoltadamente estas jogadas de bastidores, esta hipocrisia fétida e este jogo do faz de conta de que Eça já se lamentava. As palavras que me ocorrem são as da minha avó Matilde: “À bardamerda, todos”!

Lastimo a violência e o crime de racismo e de xenofobia perpetrado no Porto contra um grupo de imigrantes. É preciso ter cuidado com os discursos, a começar com os agentes políticos e a terminar na sociedade, que incendeiam os mais incautos e se tornam geradores de ódio. Esclareça-se de uma vez por todas que o homem é igual em toda a parte: mais feito de misérias do que de proezas. Nascermos portugueses é uma fatalidade; não nos confere qualquer superioridade moral nem nos torna melhores ou piores do que os outros, não nos concede o direito de agredir violentamente o estrangeiro que para cá veio! Nós somos um país de emigrantes! Não deve haver uma família portuguesa que não tenha casos de emigração! Não podemos aceitar nem permitir, enquanto sociedade, esta clivagem entre um “nós” que se julga melhor que “o outro”. É com satisfação que assisto à manifestação imediata de repúdio a estes atos vândalos. Só assim a sociedade pode mostrar que ainda é possível preservar a humanidade.

A última nota de pesar vai para a mãe que foi apanhada de surpresa com o comportamento do filho de dezassete anos, alegadamente, autor moral do crime de assassinato de uma jovem, no Brasil. Fica o alerta para os pais, que não sabem o que os filhos veem, leem e conversam na Internet e fica o alerta para os jovens: a vida real não é um jogo e cada um de nós vive diariamente, mas depois que a morte chega, já não se volta a pisar terra firme. Mais do que uma vida, só nos jogos de computador, mesmo!

Não à discriminação! Não ao ódio! Não à segregação! Todo o homem sangra.

 

Nina M.

terça-feira, 30 de abril de 2024

Dualidade


Deixa falar-te de dualidade...

Ser alma
Mas esperar que o corpo não desgoste

Inteligência
Mas gostar que lhe vejam a beleza

Alegria
Mas de pilares angustiados

Força
Mas construída na sensibilidade

Desejo
Mas sempre um pouco aquém

Brio
Mas sem excessos perfeccionistas

Leitura
Mas com impulso para a escrita

Borboleta
Mas poisa em terra firme

Impulso
Mas não quer causar dano

Solidão
Mas não suporta o vazio

Silêncio
Mas povoado de vozes

Serenidade
Mas no peito um tumulto

Loucura
Mas regulada pela lucidez

Dualidade
Mas convertida em poesia






























sábado, 27 de abril de 2024

Crónica de Maus Costumes 371

 

Tributo a Pinto da Costa

               Fui acompanhando, ao longo do dia, as eleições do Futebol Clube do Porto (FCP). O tempo do senhor presidente Jorge Nuno Pinto da Costa à frente dos destinos do clube acabou.

               Não sou sócia. Não votei. Entendo que o clube precisa de uma nova organização. Mesmo que o Pinto da Costa continuasse por mais quatro anos, seria necessário começar a acautelar o futuro do clube sem a sua presença. Algum dia teria de ser, senhor presidente. Não foi como gostaria que tivesse sido, mas talvez olhando para o trajeto pessoal de Pinto da Costa, talvez não pudesse ser de outra maneira… Nas suas autobiografias, afirma que não faria campanha por um suposto sucessor, no sentido de lhe preparar caminho, porque o Futebol Clube do porto não era nenhuma monarquia. Cumpriu. Não só não apoiou como não se retirou e lutou até ao fim. Pode ser acusado de muita coisa, mas nunca de cobardia. Pinto da Costa entende ser como as árvores e morre de pé.

               Eu só me lembro do meu clube com Pinto da Costa no comando. Chegou à presidência em 1982, tinha eu sete anos. Tenho imagens de um presidente ainda novo. Não tenho qualquer imagem do seu antecessor. Assim, apesar de acreditar que a vitória de André Villas-Boas é o melhor para o futuro do clube, não deixo de me sentir triste. Acredito que muitos portistas sintam esta cisão. Há um vínculo emocional forte entre os adeptos e aquele que foi presidente do clube durante quarenta e dois anos. O presidente Jorge Nuno Pinto da Costa merecia sair em apoteose, mas teimou em trilhar este caminho. Sabe, senhor presidente, faz-me lembrar o Santiago de “O Velho e o Mar” de Hemingway. A luta travada aos oitenta e seis anos, por não poder ser de outra maneira, que o fez chegar à meta sem a vitória, tal como o velho pescador chegou à costa, mas só com o espinhaço do espadarte, depois de tanta luta. Estas personagens épicas comovem-me. São os meus anti-heróis tão mais perfeitos que qualquer deus da antiguidade. Normalmente, no final, terminam de mãos vazias, mas de alma cheia. Talvez seja assim que o ainda atual presidente se sinta, com a consciência de ter dedicado toda a sua vida ao clube.

               Os portistas só podem mostrar gratidão pelo que fez pelo FCP, pelas inúmeras vitórias e troféus, pela inscrição do clube nos pergaminhos europeus. Será sempre o presidente dos presidentes. Será sempre o presidente honorário de todos os portistas.

               Amanhã, será dia de jogo grande, o último clássico de Pinto da Costa, enquanto presidente do clube. Espero que os adeptos saibam honrar o enorme legado de quarenta e dois anos que nos deixa. É o fim de um ciclo. Todos os finais são difíceis e todos eles implicam um recomeço. Que o dia de amanhã possa ser de união para todos os portistas. Esperemos que, a partir de amanhã, só haja um Porto! Um Porto que saiba honrar o passado e preparar o futuro.

O nome de Jorge Nuno Pinto da Costa estará sempre ligado ao Futebol Clube do Porto e ficará, para sempre, na História do Clube, que sempre lhe fará justiça. Certamente, a nação portista continuará a vê-lo no estádio a apoiar o clube a que dedicou a vida, numa passagem de testemunho tranquila.

Eternamente obrigada, presidente!

 

Nina M.

 

 

 

 

terça-feira, 23 de abril de 2024

Alma

Não há outro apelo de alma
Que o teu, minha poesia!
Ainda que o dia seja vago e baço
E me invada a melancolia ou

Com a angústia me debata
E dela me desfaça
E em versos me trespasse

É tua a minh'alma etérea
Para ti em brasa se dirige
Fogo ardente ou brasido
Purificação onde não cabe

A desilusão

domingo, 21 de abril de 2024

Cacilda


 - Ai, ai, ai, quem me acuda! Ai que não me aguento nesta agonia!
A lamúria alastrava noite dentro, aldeia fora... Ninguém ligava. Subitamente a aldeia quedava-se no silêncio interrompido pelo balir da Cacilda. Nos primórdios, uma alma ou outra ainda se inquietava e forçava-se a levantar, quantas vezes, no frio do inverno, a cismar na gritaria. De candeia na mão, o benemérito seguia os gritos, lajedo afora, com pressa de valer à alma em sofrimento. Chegada lá, via a Cacilda contorcida, um esgar de lábios e os olhos arrelampados, surpreendidos pela visita. O garrafão vazio, aos pés da cama, raiado a vermelho tinto, denunciava-lhe o vício... Maldita mulher! Mata-se com o tintol e só lhe dá para o berreiro à noite! 
-Olha, Cacilda, se bebesses merda! Rais foda a mulher, que aflige meio mundo para isto...
A alma penada morava sozinha, ausente de homem emigrado, a carpir as mágoas com o vinho... Se a intenção era esquecer, pr'ó diacho com a pinga, que lhe renovava as recordações e a fazia pôr o lugarejo em sobressalto. Aconteceu uma e outra e ainda outra vez até que a lamúria caiu no esquecimento e já não punha ninguém em cuidados.
-Escuta! Escuta! Que é isto?
-Ora, mulher! Que raio há de ser? É a Cacilda e a sua loucura. Deixa pra lá isso e dorme...

sábado, 20 de abril de 2024

Crónica de Maus Costumes 370

 

Recordar é viver

               Ao ouvir os meus filhos falar dos avós, vou sorrindo…

Acham o avô cómico quando se gaba da carta que um dos netos (um dos primos) lhe escreveu pelo seu aniversário, onde afiançava que o avô era um homem de trabalho e de valor, porque passou o tempo da Segunda Guerra Mundial e duros sacrifícios. A avó discorda de imediato e repreende o marido, que tem a mania, mas que não faz nada e é ela quem faz tudo, incluindo o almoço para ele. Evidentemente, o avô responde com a tarefa que fazia no momento, porque andavam a arrumar lenha, mas deve-se ter esquecido que a esposa também lá andava. A verdade é que é a avó que trata das tarefas domésticas e o netos sabem-no bem e riem-se como perdidos dos chistes entre os dois! Disso e dos reparos do avô sobre o que a mãe deles deve ou não fazer! Como se não constituísse uma delícia para os filhos verem os seus pais repreendidos pelos seus próprios pais, independentemente, da idade que possam ter… Termina a Matilde com um “o avô é muito engraçado”! Faltou a prima para acrescentar que o avô, no outro dia, a vira com uma camisola larga e, muito sério a olhar para o braço, achou que a miúda ocupava a manga toda e há que recomendar uma dieta, porque ela estava com uns braços muitos gordos! Obviamente, não precisa de dieta nenhuma, a vegetariana da família, porque é uma menina elegante e bonita! Riem-se muito destas coisas! E eu lá lhes explico que o avô, aos 86 anos, já não percebe nada de modas…

Vê-los a conversar alegremente, faz-me recuar a mim no tempo e lembrar-me do maio quentíssimo em que a minha avó Matilde me fez ir para a escola, ainda por cima de tarde, com uma camisola de malhinha fina, mas de gola alta, debaixo de um sol e de um calor abrasador!

“Sonita, não tens calor?!” – Perguntaram. Foi a avó que me disse que estava frio e que tinha de me agasalhar, para vestir esta camisola… Ou então, a lembrar-me do ditado que a minha avó me dizia, quando cismava que a queria ensinar a ler. A minha avó só tinha ido meia-dúzia de meses à escola. Sabia escrever o seu nome: Matilde e copiar letras, mas não sabia ler. Lembro-me de me questionar por que razão, sendo a minha mãe professora primária (era essa a designação), nunca ensinara a mãe a ler! A determinada altura, queria fazê-lo eu! A minha avó não foi na conversa e respondia-me sempre que “burro velho não toma andadura, filha…” mas fazia-me as perguntas para saber responder ao senhor padre e poder fazer a primeira comunhão. Fi-la com seis anos. Quando me perguntaram se queria nesse ano ou no seguinte, quis logo nesse. Na verdade, tenho a memória de querer saber o sabor da hóstia. Eu queria prová-la e só havia uma forma de o poder fazer, de modo que quando me puseram a questão, decidi que seria breve. Depois, andei uns tempos angustiada, porque os miúdos que iam “provar a hóstia” insistiam que não se podia mastigar e eu aflita a pensar que se aquilo me ficasse agarrado à garganta poderia abafar ou algo do género… Não sei a quem confessei o meu medo… Talvez a minha mãe me tenha dito que Jesus se desfazia com a saliva, para não me preocupar. Fiquei mais tranquila. Vieram os ensaios, no Pinheiro Manso, no Porto, por motivos de agravo entre os meus pais e o  padre da paróquia, na altura. Chique! Comunguei, pela primeira vez, no Porto. Um ambiente estranho onde não conhecia ninguém. Certamente, todas as crianças me foram apresentadas, mas eu não me lembro nem agora e também não me lembrava na altura, porque distraída nos pensamentos, não ouvira nada do que fora dito. Felizmente, há meninos muito atentos e, no dia, uma menina muito solícita, vestida de branco, tal como eu, veio chamar-me (até sabia o meu nome! Mistério para mim! Eu não sabia o dela…). Há que Deus que eu era o seu par… Certo. Se era para ir, siga! Lá entrámos na igreja, de vela em punho (a que tinha sido já do meu batismo, em filinha de dois a dois… Só me lembro de fazer playback nos ensaios, porque se ainda hoje canto mal, na altura não era diferente e sempre tive sentido do ridículo. De modo que decidi não espantar ninguém, mas para que não me aborrecessem com a cantoria nem estragar a melodia aos outros, fazia playback. Uma miúda denunciou-me e disse para a colega, espantada: “Olha, ela não canta! Está a fazer playback!” Pensei de imediato que ela haveria de ter muito a ver com isso! Homessa! Já uma pessoa não se pode poupar ao ridículo! E continuei na minha santa atuação… Tive como prenda o famoso relógio de pulso, o primeiro, oferta do meu padrinho e um boneco que imitava um bebé, oferta da madrinha e que levava para todo o lado, porém, quando me cansava, a mãe lá o carregava e chegou a enganar várias pessoas, porque ao longe parecia uma criança de verdade. A minha tia deu-se ao trabalho de lhe fazer roupa e carapins e tinha uma alcofa e tudo. Para o meu pai era o martelão! “Lá vai ela com o martelão”, dizia-me invariavelmente…

Isto e do avó Chico do Marco (o meu pai é natural do Marco de Canaveses), com o seu mata-ratos no canto dos lábios amarelados, já calejados do cigarro que se me afigurava interminável e que se alimentava, à noite, com duas petingas fritas e uma chávena de chá com bolacha maria. Ria-se, de olhos pisqueiros, quando dava aos netos o copo de vinho tinto para molhar os lábios e depois de perguntar: Então? E a resposta: é bom! Não me lembro que o avô Chico falasse… Acho que não o ouvi falar, só a rir de boca torcida para não deixar cair o seu Kentucky ou Definitivo, enquanto relembrava com os filhos histórias passadas ou melhor, as partidas que pregava à vizinhança, por ser pândego e malandro.

Talvez um dia, seja o Rodrigo ou a Matilde a eternizarem as memórias dos avós. Por enquanto, divertem-se com eles e aproveitam-lhes a companhia e os muitos mimos e vontades que lhes fazem!

 

Nina M.

 

 

Fel

A minha alma nem sempre é mel

Por vezes é fel
Acolhedora de cinismos implacáveis
Dolorosos, cruéis
Quem sabe verdadeiros

A terrível realidade
Oferecida diante dos olhos
Sentida nos ossos
Mas que não se quer ver

Impõe-se. Fétida.
A esboroar o coração...

terça-feira, 16 de abril de 2024

Nome

Julguei ouvir uma canção
Melodia matinal
Gota de orvalho
Sobre a folha verde e límpida
Por entre as sílabas que te saíam
Escaparam, ao de leve, as três
Do meu nome
Leves, suaves e soltas
Como quem traz novidade
Embrulhada na doçura
Soa-me quase belo
Equilibrado quase perfeito
Como se não fosse o meu
Dito assim, num instante,
Um murmúrio quase suspiro
A desmoronar a saudade


sábado, 13 de abril de 2024

Crónica de Maus Costumes 369

 

Cheiro a bafio hipócrita

               Alheada que sou da televisão, metade da polémica em torno do livro que Passos Coelho teve a infeliz ideia de publicitar e de apresentar passou-me ao lado. Ouvi apenas meia-dúzia de palavras a uns comentadores, manifestamente, insuficientes para formar qualquer opinião. Porém, hoje, sempre fui ler a notícia do JN em torno da questão e que englobava algumas citações das pessoas que assinaram os artigos de opinião reunidos no livro.

               Devo dizer de antemão, que apesar da minha total discórdia em relação ao teor do que é apresentado, defendo totalmente o direito que essas pessoas têm de exprimir a sua opinião. Têm direito a ela como eu tenho à minha e o direito de a exprimir. Defendo a liberdade, acima de tudo e defendê-la implica defender o direito de as pessoas declararem o que pensam, desde que isso não constitua uma instigação ao ódio e à arruaça, mesmo que eu não as acompanhe no seu juízo de valor.

               Não foi o Passos Coelhos quem escreveu os artigos que integram o livro, mas ao aceitar apresentá-lo, permite-nos concluir que subscreve se não todos, pelos menos uma boa parte dos artigos. Estranho muito esse posicionamento e questiono inclusive o que terá levado um liberal a assumir tal posicionamento. O Passos Coelho pertencia à ala mais liberal do PSD, desvirtuando, inclusivamente, a génese do partido, na minha opinião, uma vez que, a par de políticas económicas mais liberais, sempre reservou um quinhão da sua preocupação para políticas sociais. Este era o partido fundado por Francisco Sá-Carneiro, liberal na economia e também nos valores, sem, no entanto, descurar a preocupação para com uma política social. Passos Coelho, quando assumiu a liderança do partido, assumiu uma posição liberal plena, o que prejudicou o partido, no meu entendimento. Ora, questiono como um homem que não se enquadra na tipologia do conservador, pode vir defender um conservadorismo rançoso e ultrapassado. Passos Coelho divorciou-se e casou novamente, pelo que fica excluído da “família tradicional” e defendeu a lei do aborto. O partido deu liberdade de voto nessa matéria (e bem), portanto, como pode agora assumir este posicionamento? O Passos Coelho terá mudado de opinião ou não passa de uma estratégia política para reunir o maior número possível de votos à direita, a pensar numa eventual candidatura à presidência da república? Se assim for, e basta aguardar para ver, o meu voto não o terá. Não é possível ser-se um defensor da liberdade individual e o seu contrário, em simultâneo. Perde a sua credibilidade e a confiança que poderiam nele depositar. Até ao momento, poder-se-ia detestá-lo devido à sua teimosia em ir para além da troika, em aconselhar os jovens à emigração, pela sua crueza e insensibilidade perante o sofrimento de muitos. O funcionalismo público foi absolutamente fustigado nesses anos. Tudo isso é matéria para que tantos o desprezem, mas não me lembro de alguém alguma vez o ter apelidado de mentiroso. Caso se verifique tratar-se de jogada política, Passos cairá na teia da hipocrisia, daquele que não olha a meios para alcançar os fins e tornar-se-á no político que desprezo. Se mudou mesmo de opinião e acredita no que  apresenta, só me ocorre que não poderá estar na posse de todas as suas faculdades, para efetuar tal viragem… Venha o diabo e escolha, nenhuma das hipóteses lhe é favorável.   

Eu não li o livro e nem tenciono fazê-lo, mas o que escreverei de seguida baseia-se, essencialmente, nas citações que o jornal apresenta, ou seja, em excertos do famigerado “Identidade e família”. Acreditam os autores que a família tradicional é a “única sociedade natural, universal e intemporal” e contestam as iniciativas legislativas que entendem condicionar e lesar essa instituição, como por exemplo, a eutanásia, o aborto, a ideologia de género e o casamento entre casais homossexuais. Analisemos, então, o discurso… Defender a família tradicional não significa, portanto, promover valores de tolerância, de respeito, de equidade entre o casal que se pressupõe de sexos opostos, mas antes impedir outros de usarem da sua liberdade individual como quiserem, uma vez que em nada atentam contra a sociedade! Este raciocínio perverso e faccioso deixa-me perplexa. Ó meus caros senhores, defender a família tradicional, seria promover uma organização social em que as mulheres pudessem ser mães sempre que quisessem sem que fossem prejudicadas na sua carreira. Seria haver uma qualquer compensação para as empresas que criassem creches para onde as mães pudessem levar os filhos, por exemplo. Seria admitir que pudesse ser o pai o cuidador da criança e não a mãe e atribuir-lhe os mesmos benefícios. Seria prolongar a possibilidade de os cuidadores ficarem mais tempo em casa com os filhos, sem penalização monetária excessiva, por exemplo. Seria educar e promover a igualdade de género, saber  que a mulher tem tanto direito a uma carreira profissional quanto o homem, se assim desejar, e que trabalho igual pede salário igual; saber que a violência doméstica é crime e que não deve ser calado nem admitido e que as vítimas devem ser verdadeiramente protegidas; saber que a mulher é um indivíduo com pensamento próprio e capacidade crítica para formar as suas opiniões, apenas não tem a mesma força física que o homem, mas possui a mesma inteligência. É um ser com direito à sua liberdade plena, tal como o homem. Se estas bandeiras forem defendidas, então, estarão a trabalhar em prol da família tradicional harmoniosa, com capacidade para educar as suas crianças num ambiente seguro e saudável. Quem trabalha no setor da educação sabe que a maioria das crianças negligenciadas vivem no seio de famílias tradicionais que as maltratam! São muitos os casos, mais do que o desejável, o que prova que a família tradicional não garante nada! A maioria dos abusos vem precisamente dela. Ocultar este facto ou fingir não o saber é pura desonestidade intelectual e moral. Assiste-se apenas à vontade de impor uma visão de mundo aos outros. Pode-se defender o que se pensa, mas não se tem o direito de impor a sua crença ao outro. Desta forma, não se pode impor a heterossexualidade a quem tem natureza diferente, apenas porque se acredita que este é o caminho. Poderá ser para a maioria, mas não para todos e aqueles que não se identificam com esta via estão no seu pleno direito de viverem a vida em conformidade com a sua natureza, sem serem discriminados por isso. O mesmo é válido para o aborto e para a eutanásia. O facto de existir essa possibilidade não obriga ninguém a praticá-los. A isto chama-se respeito pela liberdade alheia. Não temos o direito de proibir aquilo que é do foro da liberdade de cada um. Quanto ao argumento de que a vida é um valor inviolável, resta perguntar aos olhos de quem. Se me responderem que é aos olhos de Deus, então, esse é um argumento meramente religioso e aqueles que não o são têm o direito de escolher o que querem. Cada um tem o direito de achar que ficar preso a uma cama não é vida e o direito de pôr fim a esse tomento, assim como quem acredita que a vida vale por si mesma tem o direito de a preservar, independentemente, das circunstâncias. É uma questão de liberdade individual e de uma tomada de decisão pessoal e consciente, devidamente acompanhada por uma equipa médica multidisciplinar, naturalmente.

Querer proibir o que só a cada um diz respeito é ser ditador e impor pelo meio da força legislativa o que não lhe compete. Quando um dos autores do manifesto usa o humanismo cristão como forma de combater tudo quanto lhe parece ser uma ameaça à família, só me apraz dizer que Jesus foi o maior progressista: defendeu as mulheres (os tais seres que um dos autores nega serem oprimidos, pois nunca se queixaram! Se não fosse um assunto tão sério causaria gargalhadas, pela estupidez!), os pobres, os leprosos, os samaritanos, enfim, as minorias ostracizadas! Este é o verdadeiro Evangelho: o amor, a aceitação e a tolerância. Qualquer outra coisa é uma subversão de vendilhões do templo e estes foram expulsos, pelo próprio Jesus, mediante a hipocrisia manifesta nas suas ações.

 

Nina M.

 

sábado, 6 de abril de 2024

Crónica de Maus Costumes 368

 

Relato de viagem

            Voltei a fazer o que dizia que não voltaria a cumprir: ir com alunos a Paris de autocarro. Dezasseis intermináveis horas quase sempre sentados, com curtas e poucas paragens, garantem dores nos joelhos e nas costas, o rabo calcinado e uma enxurrada de insultos a nós mesmos… Não cumpri, é certo, mas aguentei-me uma data de anos sem repetir. O Rodrigo tinha 20 meses quando cometi esta insanidade que agora repeti, e, neste momento, o meu filho tem dezasseis.

            Cá em casa riem-se e erguem as mãos à cabeça, quando não meneiam três vezes a cabeça, qual Velho do Restelo! Dizem-me incapaz de resistir a uma viagem, mesmo que me saia do pelo e que para me verem feliz é meterem-me num autocarro!… Exageram, evidentemente, porque ser obrigado a pernoitar em transportes é horrível! Bem… à ida, não preguei olho, mas à vinda já dormi. Significa que já evoluí. Quem sabe se à terceira sou capaz de dormir à ida e à vinda!... Brinco… Não desejo propriamente uma terceira vez, desta maneira. Nem de avião gosto de muitas horas! Um massacre! Se a viagem for de autocarro, mas implicar paragens amiúde para visitar as cidades com que nos vamos deparando e estadia para dormir, ainda vai, mas andar horas a fio para se chegar o mais rapidamente possível ao destino, quando este fica longe, é muito duro.

            Apesar destes constrangimentos, não deixa de ser uma experiência enriquecedora. Tivemos alunas que choravam emocionadas quando se depararam, pela primeira vez, em frente à Torre Eiffel. Cumpriram um sonho de infância e observavam atentamente a cidade que veem nos desenhos animados “Lady Bug e o gato Noir”, admiradas com o realismo dos bonecos. Afirmavam querer morar ali e os olhos brilharam quer na Champs Elysées quer no mundo mágico da Disney. Outra agradecia o facto de ser filha única, porque se tivesse irmãos, teriam idade aproximada à dela e não haveria dinheiro para todos, por isso, o mais certo seria ficar em casa. “Se tivesse irmãos – dizia ela- não estava neste paraíso!” No entanto, a frase que me marcou foi a de um aluno aflito com a possibilidade de fecho do restaurante onde iríamos jantar… Desatou aos gritos aos colegas para que se despachassem e a mim, preocupado, afirmava: “professora, eu tenho de comer… E se o restaurante está fechado? Na minha opinião, comer é mais importante do que ver monumento…” Tranquilizei-o a rir-me perdidamente com o seu receio de passar fome em Paris… Que se lixe a Torre Eiffel! Rapar fome é que não!

            A beleza consola o meu olhar e Paris é um museu a céu aberto, uma cidade sumptuosa e altiva, vigiada por Montmartre e o Sacré-Coeur, do alto da colina. Os telhados de xisto preto com a suas belas mansardas de janelas abertas sobre o Sena… Prédios simétricos e alvos, enfeitados pelas varandinhas de ferro forjado, cheias de rebiques e berloques. Paris é uma mulher altiva e bela, dona de si, requintada e que se sabe admirada, olhando com certo desdém os que não a sabem apreciar.

Apesar de ser a minha terceira vez, sei que terei de voltar a Paris a título particular para cumprir o que lá me falta fazer ainda… e tenho ainda tanto para descobrir e lugares onde me perder! Quero a Paris menos turística e mais íntima, a Paris dos poetas, dos escritores, dos artistas e dos filósofos… A mulher misteriosa que guarda segredos… Só tive um bocadinho de Quartier Latin… e quase nada de Montmartre (infelizmente, o bairro está vendido ao comércio… Sinais dos tempos…). Precisarei de tempo no Louvre e no Orsay, precisarei de visitar a Madeleine e a Sainte Chapelle, de visitar o museu Rodin e o museu Picasso, talvez voltar a Notre Dame, depois das obras, antes de rumar a Versailles… Paris é uma cidade à qual se volta sempre. Não admira, portanto, a comoção de quem com ela sonhava.

Ter o privilégio de proporcionar esta comoção aos miúdos e vê-los absolutamente felizes compensa as malogradas dezasseis horas de viagem! Para além disso, conheci novas colegas, pessoas agradáveis, afáveis, e boa companhia. Conheci novas facetas de colegas. Na escola, conhecemos tão pouco… Todos somos mais do que o que mostramos e entristece-me que, por vezes, a distinção não passe do que é mais ou menos profissional. Certo é que não há bom profissional sem haver boa pessoa, no entanto, há, vezes além da conta, juízos de valor apressados e injustos, como se nunca falhássemos, como se fôssemos sempre a perfeição, quando todos nós estamos longe dela. Tento sempre não o fazer precipitadamente e ser cautelosa em relação às certezas. Desprezo a mesquinhez. Prefiro a boa vontade e a melhor versão de cada um. Venham lá mais horas de autocarro para as descobrirmos!

 

Nina M.

 

sábado, 30 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 367

 

Viajar de autocarro

            Amanhã, repetirei a insanidade que cometi em 2009 com um grupo de amigas, noutra escola: ir a Paris de autocarro com muitos alunos a reboque.

            Nessa altura, apenas existia o Rodrigo. Era um bebé de vinte meses e eu era mãe de primeira viagem, que o deixava pela primeira vez, durante uma semana, e de coração contrito. Ele sempre teve o seu génio e teimosia, mesmo pequenino. Aos vinte meses, o Rodrigo já falava bem, mas os cinco dias que por lá andei, ele recusou-se a falar comigo por telefone. Tinha um bebé de vinte meses, que dia após dia, zangado com a mãe ausente, recusava falar-lhe! Eu dizia incrédula às colegas: “o meu filho não me quer falar”! Felizmente, numa atividade destas a ocupação é sempre muita, mas a cada anoitecer interrogava-me se ele falaria comigo, nesse dia… Eu… Mortinha de saudades… Nada. Zero. Irredutível.

Quando cheguei, só queria pegar nele ao colo, encostá-lo a mim e enchê-lo de beijos. Fi-lo com dificuldade… Não me queria! O meu filho castigava-me pela minha ausência! Pacientemente, tive de comprá-lo com o carro de bombeiros que lhe tinha trazido de uma loja da Disney, depois de muito o namorar…

Desta vez, o castigo não se repetirá. Já são dois filhos e ambos mais crescidinhos e, como tal, já não se apoquentam tanto com as ausências maternas. Também não vai uma Lurdes Martins, a mulher que dorme “super bem” (palavras suas) em autocarros e que levou panados para uma semana inteira, pelo que insistia em oferecê-los a cada refeição, para ver se os arrumava de uma vez, mas já ninguém os podia ver à frente!... Como vês, Lurdes, a viagem ainda nem começou e já me lembro de ti… Desgraçadamente, apesar da idade, ainda não aprendi a dormir bem em bancos de transportes coletivos pouco ou nada reclináveis… Se pensar muito nisso, fico a achar que sou pouco ajuizada…

Porém, Paris é sempre Paris! A cada regresso é um maravilhamento! Uma cidade que nos deixa arrebatados pela sua beleza, pela sua sumptuosidade, pela sua cultura. A cidade para onde rumavam os intelectuais do princípios e meados do século XX. Não havia quem não passasse por Paris! Nem tudo era fácil, no entanto. Muitos deles viviam numa certa indigência, passavam fome, vivam em pequenos quartos, em bairros miseráveis e levavam uma vida boémia e bastante promíscua. Oscar Wilde, Gertrude Stein, Ernest Hemingway, Guilherme S. Burroughs, Henry Miller, Anaïs Nin, James Joyce, Samuel Beckett, Julio Cortázar, Vladimir Nabokov, Edith Wharton e Eugène Ionesco, Picasso, Ducham, Klein, Chagall, Modigliani, são alguns dos grandes que por lá passaram. Referir também o nosso Eça de Queirós, que lá morou, enquanto cônsul português.

Voltar à bela Paris é ficar imbuído deste espírito, desta efervescência e deste pasmo, ainda que um pouco tomada pelos vendedores ambulantes (o preço da modernidade) não desiludirá, certamente. Diz-se que não há duas sem três, cá vai a minha terceira vez, mas Paris é sempre lugar onde se deseja voltar.

 

Nina M.

 

quarta-feira, 27 de março de 2024

São tão difíceis as despedidas

São tão difíceis as despedidas
Algumas tão indesejadas
Que por pequenas que pareçam
São pequenas mortes anunciadas

Será então necessário
Acreditar na ressurreição
É somente pela vida
Que se dá na alma a redenção

Nunca tanto é necessária
A fé num bem maior
Acreditar que voltar à vida
É possível com amor

segunda-feira, 25 de março de 2024

Não se é o que se pensa

Não se é o que se pensa
Sempre aquém, nunca além
Quem pensa nem tudo vive
Quem pensa nem tudo tem

Se por pensar matar
Não faz o matador
Sentir só o que se sente
É saber-se um ator

Sente no palco da vida
Sujeito às humanas sensações
Se a condição da alma é ser volátil
Passeia-se nas emoções

Há de haver contudo
Algo que seja a raiz
Algo imutável se sente
O ser não o contradiz

Assim se fixa a essência
Na alma em busca de si 

sábado, 23 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 366

O populismo da nova direita radical

               Deparei-me, hoje, com um artigo jornalístico sobre o CHEGA e os deputados que elegeu. O partido é considerado um partido populista da nova direita radical, à luz do que se vai vendo por essa europa fora, desde logo a começar pelo VOX, da vizinha Espanha.

            Afirma-se como um partido liberal-conservador, ainda que os termos nos pareçam antitéticos. É um partido liberal no que à economia diz respeito, o que significa que pretende um Estado mínimo, na sociedade portuguesa. Para estas eleições, o partido deixou cair o aniquilamento da Escola Pública e a extinção do Ministério da Educação, assim como do SNS, no entanto, entre os seus deputados e apoiantes há quem continue a defender estas bandeiras. Questiono-me se quem votou neste partido tem esta consciência, se sabe que um dos objetivos passa por acabar com a educação gratuita e pública. Quem quiser que os filhos aprendam, pois que pague pelo serviço e se não o puder fazer, paciência, voltar às taxas imensas de analfabetismo deve ser algo positivo, na perspetiva destes senhores. Isto e ter de pagar por todo e qualquer serviço médico. Para ele são funções soberanas do estado, apenas isto: “defesa, segurança, justiça, finanças públicas, política externa e arbitragem/regulação”. O CHEGA implantou-se através da retórica do seu líder e da flexibilidade ideológica do mesmo. Quem esteve atento aos debates das últimas eleições, viu um Ventura bem mais comedido nas suas posições. Quando lhe interessa capitalizar votos junto dos abstencionistas, dos ressabiados com a democracia e dos salazaristas rançosos que ainda existem, radicaliza o seu discurso, enquanto continua a hastear a bandeira do combate à corrupção, através de um discurso disruptivo e segregador entre um povo moralista e virtuoso e uma elite corrupta e vergonhosa. Obviamente, todos os casos políticos mais escusos que vão surgindo, o partido tenta capitalizar e aumentar a desconfiança do cidadão comum nas instituições democráticas.

Para além desta bandeira, o partido hasteia outras: pode ler-se no seu programa o “primado da moral”. A expressão causa-me arrepios, porque me lembra de imediato a polícia da moral e dos bons costumes. Dentro deste ponto, surge a criminalização do aborto e da eutanásia, que não aparece assim escrito no programa, mas é claro como a água, quando se lê que defende “a inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases e dimensões, com todas as consequências jurídicas daí decorrentes”. Só por aqui se sente o cheiro a ranço e à hipocrisia de que acusa os outros. O aborto sempre existiu e a sua proibição e criminalização não os impediu. Só o faz quem quer, sendo também dada aos médicos a possibilidade de serem objetores de consciência, mediante o posicionamento filosófico que tenham sobre a questão, que vai para além da consideração de haver vida, mas antes se há pessoa e só existe pessoa havendo consciência de si, o que é impossível existir até à data-limite estipulada para poder interromper voluntariamente a gravidez. Peter Singer explica-o melhor do que eu. Pessoalmente, julgo que seria incapaz dessa decisão, mas o facto de pensar assim, apenas me vincula a mim e não tenho o direito de impor a minha visão aos outros. Diz-se também defensor da família tradicional portuguesa. Ora, não sei se as pessoas estão lembradas do que isso significa exatamente. Implica que apenas sejam reconhecidas famílias tradicionais aquelas em que há um casamento religioso, filhos, um chefe de família que garante o provimento do lar e uma mãe doméstica e esposa que se anula, porque o máximo da realização pessoal a que pode aspirar é o cumprimento desses três papéis. Entretanto, se a mulher quer ser dona de si, ter a sua profissão e até poder nem ser mãe ou nem se casar, não interessa para nada. Deve ter sido para isso que a mulher nasceu. Resta esperar que não seja contemplada com uma madre seca, porque isso seria, em última análise, a anulação de toda a sua feminilidade, porque se não pode procriar, não serve para o mundo, quando muito servirá de objeto sexual para a satisfação do homem. Também não tenho nada contra a mulher que escolhe por gosto esta forma de vida, caso sinta esse apelo. Somente a ela diz respeito, dentro da sua liberdade individual. Só não quero que me imponham nem a mim nem às mulheres futuras uma vida que não desejam.

            Depois, evidentemente, vem a oposição ao que designam de “marxismo cultural”, vulgo cultura “woke”, que incorre, devo dizer, em muito excesso e parvoíce também, quando tentam impor a sua visão de mundo a uma maioria. O que é para uns é para outros. Se querem sentir-se cães, gatos, periquitos, não binários ou o diabo é lá com eles, mas não me queiram obrigar a olhar para uma pessoa e concordar que é um cão nem usar a parvoíce da linguagem inclusiva que é só a destruição do nosso maior património cultural: a nossa língua! Nem o “senhoras e senhores” (que não passa de uma redundância estúpida, sem qualquer fim literário) me apanham quanto mais o “todes”, “amigues” e outras sandices! No entanto, não haverá questões de maior relevo a serem tratadas?! Tanta polémica com as casas de banho e balneários… Não se arranjam simplesmente umas casas de banho e balneários só para essas pessoas, mantendo-se as masculinas e femininas? Pronto. Caso resolvido. A verdade é que prefiro também uma casa de banho só para mulheres, mas não me oponho a que haja uma casa de banho específica para quem se sente diferente. E sim, já estive em países em que são mistas.

Quanto à imigração… Pois bem, precisamos de gente nova, porque somos, juntamente com a Itália, o país mais envelhecido da Europa, para além de que somos nós mesmos um país de emigrantes. Há uma espécie de obrigação moral para com o acolhimento de outros. Concordo que deve haver uma maior regulação e acompanhamento, até para evitar as máfias que se criam e a escravização de pessoas em torno da imigração ilegal. Defender isto não é o mesmo que fazer dos imigrantes o inimigo ou o alvo a abater.

Estas são as bandeiras defendidas pelo partido que elegeu cinquenta deputados, cinquenta anos depois de abril. Nos seus quadros, tem inúmeros dissidentes do PSD, gente de uma ala mais liberal, no que à economia diz respeito, mas preferir o Ventura à Iniciativa Liberal é o que não consigo entender, em gente que é oriunda de um partido que, na sua génese, tal como está escrito defende “o direito à diferença” e que é “estruturalmente avesso a qualquer tipo de xenofobia”. Também há dissidentes socialistas e democratas-cristãos. Para mim, é um fenómeno incompreensível. Não se pense que os acólitos do Ventura são gente sem formação. Encontram-se jornalistas, advogados, professores… Mais incompreensível se torna aos meus olhos. Fico fulminada ao ver tantas mulheres dentro deste partido estruturalmente patriarcal e machista! Aliás, nem sei o que lá andam a fazer! De acordo com o modelo da família tradicional, deveriam estar em casa a cerzir meias ou a tricotar… É uma pena que não leiam programas eleitorais ou que não os saibam interpretar. Em alternativa, será estupidez natural incorrigível. O pior é que terá vindo para ficar, basta olhar para o panorama europeu. Esperemos que não cresça e que alguns dos seus votantes ganhem juízo.

Nina M.

 

 

segunda-feira, 18 de março de 2024

E se no vazio da noite escura e eterna

E Se no vazio da noite escura e eterna
Não me lembrar mais dos rostos
Da minha vida
Nem das encruzilhadas dos caminhos e
De todas as interseções
Que me fizeram a vida
Que me fez mais do que eu quis
E depois de vivida e percorrida
Tendo-a como minha
Sentir que a perdi...
Se esse escuro de noite
Sem estrelas nem luar
Apagar a memória dos passos
Dos gestos do modo de andar
Às vezes de coxear na vida
Roubar-me de mim e dos outros
Há outros que importam
Outros significativos e outros essenciais
Assim, sem permissão
Num apagão vil
Num aviltamento de alma
Se no vazio da noite escura e eterna
Já não souber de mim e a angústia
Ocupar o espaço imenso do ser
Sem saber sequer que é angústia
Ou outra coisa qualquer
O fim

domingo, 17 de março de 2024

Desconhecimento

Quem seria
Sem o olhar doce
A cobrir-me a face
De ternuras?

Sem os olhos rasos
D'água
Se me falas de amor
E das suas amarguras?

O toque de desejo
Num abraço apertado
Um anseio uma urgência
Que se afaga com um beijo

Quem seria na ausência
No vazio e no escuro
A viver na emergência
De um sonho sem futuro

Não sei de que matéria
Se fazem as sensações
Talvez poeiras cósmicas
As que invadem corações

sábado, 16 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 365

 

Panorama nacional
No rescaldo das eleições, o país preocupou-se e o comentário político diário não ajuda a serenar os ânimos. De certa forma, estranho o espanto. A votação espartilhada já era esperada. Não previa que o CHEGA alcançasse os 19,4 de votação, mas conseguiu-os, talvez junto dos ressentidos e de uma parte da anterior abstenção. Representam cerca de um milhão de eleitores e estes não serão todos, com certeza, racistas, xenófobos e fascistas.
Certo é que eles têm cerca de cinquenta deputados no hemiciclo e é certo também que que Luís Montenegro terá de dialogar e negociar com Ventura, medida a medida. O acordo parlamentar está fora de questão: Não é não. Esta situação que parece de quase ingovernabilidade, na realidade, se fosse num país de democracia verdadeiramente solidificada, que olha mais ao bem comum do que à partidarite crónica e aguda, seria resolvida com boa vontade. A AD e o PS juntos apresentam 63,81% dos votos. Para mim, a mensagem passa cristalina: os portugueses querem partidos e gente moderada à frente do destino do país (o que me deixa satisfeita). Significa que os cidadãos eleitores estão a dizer a ambos que deveriam deixar as partidarites e olhar aos reais interesses do país. Para isso, o novo governo e o maior partido da oposição deveriam conseguir entender-se e chegar a um pacto de regime relativamente a três áreas fundamentais: saúde, educação e justiça, para ver se não andamos constantemente em experiências que não chegam a ser avaliadas. Se os partidos não conseguirem dialogar e chegar a consensos, isso dirá muito sobre a faceta democrata e a (ir)responsabilidade de cada um. Este cenário é comum na Europa. Por exemplo, o sistema eleitoral alemão faz com que seja difícil que um só partido forme governo. Têm de, obrigatoriamente, formar coligações. Para que a composição de maiorias não seja comprometida pela presença de partidos pequenos e até minúsculos, existe a cláusula de exclusão, a barreira de 5%. Neste momento, o governo alemão é formado por três partidos: os partidos Social-Democrata (SPD), Os Verdes e Liberal Democrático (FDP). Atualmente, o governo do Luxemburgo é uma coligação do Partido Socialista dos Trabalhadores de Luxemburgo (LSAP), Partido Democrata (DP) e o Partido Verde. A Bélgica é governada por uma coligação de sete partidos, de várias orientações, incluindo liberais, socialistas, verdes e democratas-cristãos, dirigida por De Croo, que pertence ao partido liberal-democrata flamengo. A Dinamarca é governada pelos sociais-democratas, pelos liberais e (o partido centrista) Os Moderados, numa coligação dirigida pela social-democrata Mette Frederiksen. Poderia continuar com os exemplos. Uma pesquisa rápida mostra-nos que a Bulgária, a Chéquia, a Estónia, a Irlanda, a croácia, a Grécia, entre outros, são também governos de coligação. Se os partidos rivais de outros países conseguem pôr-se de acordo, por que razão Portugal não há de fazer o mesmo? A pluralidade é o melhor para um estado democrático saudável, desde que se tenha o verdadeiro sentido da política: o serviço público em prol do bem comum e isso implica deixar de lado egos partidários que não cabem mais num parlamento que se quer desempoeirado e moderno. Ficou claro que grande parte dos portugueses quer uma viragem e quer responsabilidade no hemiciclo. O partido que deixa o Governo tinha uma maioria e foram os seus desmandos que atirou o país para a crise política e a necessidade de eleições. Creio que é preciso que os partidos se mentalizem para a nova realidade: os portugueses, finalmente, perceberam que as maiorias são prejudiciais. Criam vícios e governos surdos, demasiadamente afastados do país real. É preciso que os parlamentares saiam das suas bolhas e vejam com olhos de ver o país em que vivem. Quando os ouço falar das opções políticas tomadas e da situação do país, parece-me que vivem num lugar que eu desconheço e que não é a mesma nação que a minha!
As eleições não foram inventadas para satisfazer partidos, mas para que o povo soberano expresse a sua vontade. O dever do hemiciclo é cumpri-la. Assim se vive em democracia e os partidos serão julgados, futuramente, pelo seu comportamento. Parece-me ainda que se o Partido Socialista quiser realmente evitar uma ação preponderante e decisiva do CHEGA nas decisões para o país, só pode tomar um caminho e esse será o do entendimento, caso contrário, poderá ser responsabilizado por ter contribuído e fomentado a instabilidade governativa, por um lado e, por outro, promover um papel de relevo do partido que tanto criticam, para que as medidas preconizadas por quem agora chegou possam ser implementadas.
Acompanharemos os desenvolvimentos.
Resta-me deixar uma palavra de apreço aos jornalistas que fizeram greve, algo que não é usual na classe. Vivem tempos complicados e um país precisa de bom jornalismo de investigação, que contribua para o bom funcionamento das instituições democráticas. Seria uma perda irreparável o desaparecimento de certos órgãos de comunicação social. O ideal seria encontrar uma solução que não implicasse a injeção de dinheiros públicos, pois, por um lado, ficaria sempre a pairar a nuvem negra da tentativa do controlo dos meios de comunicação e, por outro, a injeção de capital público em empresas privadas tem a sua bizarria. No entanto, a existência de uma imprensa capaz e livre é absolutamente indispensável. Não sei o que a sociedade poderá fazer como coletivo, mas sei que tem o dever de agradecer aos que, mesmo sem salários, têm continuado a trabalhar com o profissionalismo de sempre. Bem-haja!
Nina M.

sábado, 9 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 364

 

Ser Mulher

Quem me conhece sabe que não atribuo grande importância a certas datas convencionadas para se celebrar certas efemérides. O Dia dos Namorados, por exemplo, não passa de um artifício comercial. Mesmo as datas de significado profundo e simbólico da cultura ocidental começam a ser banalizadas e transformadas em mera oportunidade de negócio.

É o que fazem com o Natal. Se para os crentes se celebra a data de nascimento de Jesus (ainda que ninguém saiba, na verdade, o dia certo em que Ele terá nascido, mas como já se celebrava, de forma pagã, o solstício, a Igreja acabaria por adotar esta data para fixar o nascimento do Deus-Menino), para os não crentes deveria ser, no mínimo, a festa da família. O Natal é a festividade mais bonita do ano, desde logo, porque se celebra o nascimento e este é sempre símbolo de esperança e de renovação. Ver esta simbologia adulterada por gastos exagerados e supérfluos, numa avidez de consumo inexplicável, mata o espírito natalício. Natal é família, reunião, amor e paz. Tudo o resto se dispensa.

Acontece o mesmo com o Dia da Mulher. Não preciso que me felicitem nesse dia por ser mulher, porque não tive qualquer responsabilidade no assunto, pelo que não tenho o hábito de sair para comemorar a data. No entanto, o Dia da Mulher tem um significado importante. Lembra as vítimas de incêndio, na sua maioria mulheres, que lutavam por melhores condições laborais, numa fábrica. O Dia da Mulher serve para lembrar que continua a ser necessário combater as desigualdades vigentes numa sociedade, desde sempre, patriarcal. Todos reconhecem a importância fundamental do papel da mulher. A maioria das famílias, talvez, assente num matriarcado forte e esforçado. Eu sou oriunda de uma família de mulheres assinaláveis, mas que a sociedade sempre remeteu para o anonimato. A minha tia Lavínia e a minha tia Luzia (bela como uma atriz de cinema, na sua juventude) foram criadas de servir, no Porto, para criar os filhos que lhes fizeram, tendo sido, depois abandonadas. Ser mãe solteira era um sacrilégio e a sociedade, em vez de responsabilizar o macho que abandonava a prole, culpava e abandonava a mulher que não soube ser firme no propósito com que nasceu: manter a virgindade até ao dia do casamento. Uma canalhice! Um reconhecimento do direito à sexualidade masculina e a proibição de uma vivência plena da sexualidade feminina. Um abuso de poder para mero controlo da mulher. Bem dizia Torga que, na sua viagem pela europa, quando conheceu uma belga, esta lhe dizia que a mulher portuguesa guardava a honra num sítio muito estranho! E tantas outras que mesmo casadas eram abandonadas e maltratadas. Outras, escravas de trabalho, varonis, feitas da dureza vinda das agruras da vida. Não havia tempo para fragilidades. Perdiam-se filhos como se tem uma constipação e o papel da mulher, apesar de muitas vezes ser ela a manter uma casa em pé, não era reconhecido. Ser doméstica e trabalhar na lavoura ou ser criada de servir era o destino mais certo das pobres e eram analfabetas ou quase, porque a escola não era necessária. A minha tia enviuvou cedo, aos quarenta anos, e criou os quatro filhos sozinha. A minha avó Matilde, tecedeira, serviço que acumulava com a casa e o cultivo do quintal, era também a parteira (não remunerada, entenda-se) da freguesia. Mulher de poucos sorrisos como convém ou, então, seriam as dificuldades da vida que não permitiam sorrir mais. Não me lembro de qualquer ralhete que a minha avó me tivesse dado… Coitada, ela e o avô António, comigo pela mão e a candeia na outra, pelo caminho afora, em direção à casa de ambos, para que deixasse os pais dormir. Certamente, depois, tornou-se hábito, porque tenho memória de mim, a acordar na cama deles, sozinha, chamar e ninguém responder e eu a achar que tinha sido esquecida. Levantei-me e vesti-me, mas a saia, nesse dia, apertava atrás e as mãozitas de cinco anos não atinavam com os colchetes. Meti-me ao caminho, a segurar a saia atrás com uma mão… Valeram-me as primas, já moçoilas. Não sei se foi a Nelita se a Rosa (que partiu cedo, de ataque cardíaco) que me viram na triste figura e sozinha e me perguntaram “ó Sónita! O que estás a fazer aqui sozinha?” Lá lhes expliquei a história… A avó e o avô não responderam, já deviam ter ido para a casa da minha mãe… E uma delas foi avisar a avó (que também era delas) para que ela não entrasse em cuidados com o meu desaparecimento. Apertaram-me a saia, pois claro! Maldita saia! Nunca gostei dela… Acastanhada de rosas miudinhas…

A minha mãe foi a única dos irmãos a estudar. Era a mais nova e contou com a ajuda da família dos Ferreira Gomes (sim, da família do bispo exilado por se opor ao Salazar), o Dr.  Alberto, senhorio da minha avó, que na altura fazia uma quinta em Bustelo, Penafiel. Mais tarde, com um dos irmãos dele, o Dr. Joaquim, que era da Polícia Judiciária e que a alojou no Porto para ir de comboio para Aveiro, onde fez o Magistério Primário.  A minha mãe foi a primeira a quebrar o grilhão da ignorância a que as mulheres eram votadas, com muito sacrifício dos pais que eram pobres, dos irmãos mais velhos que apoiavam e da família Ferreira Gomes que também o tornou possível. Queria ser professora. A minha madrinha, filha da minha tia, que é (era) só tia, terá sido a segunda. Formou-se, já a trabalhar, em educação de infância. De seguida, nas gerações seguintes, já os filhos que quiseram estudar,  puderam-no fazer sem grandes dificuldades.

Olhar para o passado de Portugal e para a minha história familiar é avaliar o quanto se mudou e o quanto se evoluiu. Porém, saber que há ainda muito por cumprir. Lembro-me de o meu médico me dizer, quando soube que ia frequentar um curso via ensino, já em 1993, que era uma boa profissão para as mulheres. Não precisaria de fazer noites como as enfermeiras ou até mesmo médicas, porque depois com filhos era uma chatice… Nunca mais esqueci isto. Não porque estivesse de acordo. O curso surgiu porque era o que me permitia a ligação à Literatura. Ainda nesse tempo se achava que havia cursos mais ou menos apropriados às mulheres… Convinha que não a impedisse de estar em casa, à mercê dos filhos e do marido.

Assinale-se o Dia da Mulher, mas que a simpatia não se quede por aí. Reconheça-se o valor das mulheres que o têm, deem-lhes as mesmas condições que são oferecidas aos homens, não as penalizem por serem mães nem as diminuam porque são mulheres. Tratem-nas como seres iguais em direitos e deveres. Quanto a elas, que nada as diminua nem ofenda a sua dignidade, independentemente do trajeto que escolherem, desde que para elas faça sentido.

 

Nina M.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Sou mulher

Sou mulher
Por acaso ou talvez não

Uso salto, bota alta ou sapatilha
Saia curta ou comedida
Raramente comprida
Consoante a disposição

Uso decote com decoro
Não porque se impõe
Antes por exigência estética

Gosto de calças justas ou largas
Batom pouco pronunciado
Gosto do lápis verde sobre os olhos
A iluminar-lhes a cor
Gosto da máscara de pestanas

Sou de elegância simples
(A elegância é sempre simples)
Pauto pelo comedimento

Gosto de me sentir bonita
Com discrição
Sou mulher, assim,
Porque assim sou

Mãe quando quis
Por tanto querer
Mãe que cuida, mas não se anula
Mãe doméstica e mãe profissional

Mãe que gosta de escrever
Sem jeito e paciência
Para bordados nem costura
Mãe que gosta de ler

Mulher de poucas lamúrias
De olhar doce ou endurecido
Indiferente ou divertido
Dependendo  da ocasião

Mulher pouco sujeita à opinião
Mesquinha e ao juízo fácil
Mulher de alma funda
E de seus mistérios

Inquieta e falha
Humana









sábado, 2 de março de 2024

Crónica de Maus Costumes 363

 

Caminhar e aprender

A semana foi imensamente corrida. Desde quarta-feira acompanho alunos em visita de estudo. Primeiro, ao teatro; depois, nos dois dias seguintes, a Lisboa. Gosto de proporcionar estas experiências aos miúdos, se entendo que eles são merecedores e, talvez, para alguns, fique a experiência de uma vida.

Para muitos, foi a primeira vez que foram a Mafra e a Lisboa e puderam ver ao vivo e a cores alguns dos monumentos mais emblemáticos do país. Visitaram o Convento de Mafra, a começar na basílica e a terminar no palácio, puderam percorrer os corredores com séculos de História, os mesmos que foram percorridos por alguns reis e rainhas do país e apreciar a sua grandeza.

Gosto particularmente das saídas que aliam a descontração à aprendizagem e percorrer a cidade de Lisboa em busca dos locais já referenciados no século XIX, n’Os Maias, pisar o mesmo chão que Fernando Pessoa, ver alguns dos seus objetos pessoais e manuscritos é um privilégio. Talvez eu aprecie mais a atividade do que os próprios alunos, mas seja como for, tenta-se que aprendam de forma mais lúdica. Viram representada a peça Memorial do Convento e que lhes fornece um bom resumo do que é a obra. Os momentos representados em palco são os mais importantes e também objeto de análise na sala de aula. Já vi três obras-primas de Saramago em palco e é importante observar como os caminhos da arte se cruzam. A literatura a originar a representação, mas poderia ser canto ou bailado ou uma amálgama de tudo isso. Nos passeios literários pela capital, os miúdos relembraram a grande obra de Eça, já estudada no ano anterior, até porque o guia foi muito preciso e competente. Talvez até tenha pecado um pouco por excesso, dado o cansaço que os alunos revelavam. Seja como for, foram dois dias de aprendizagem e de consolidação de conteúdos, de forma mais descontraída e atrativa.

Na Casa Fernando Pessoa, o guia mostrava-se algo espantado com o facto de os alunos fazerem tantos quilómetros para usufruírem destas experiências, sobretudo quando ficou a saber que a visita era paga pelos próprios. Esclareci que para alguns encarregados de educação, a visita constituía um esforço financeiro. Parecia incrédulo e felicitou-nos pela iniciativa. Respondi que tentávamos que eles aprendessem de maneira diferente, que tentávamos proporcionar-lhes atividades culturais às quais, de outra forma, não teriam acesso, enfim, tentávamos dar-lhes um pouco de mundo, porque a escola também serve para dar mundo. Olhou-me sério, nos olhos, sorriu e respondeu: “sem dúvida”.

A primeira vez que fui a Lisboa também foi numa visita de estudo, na disciplina de História, e nunca mais esqueci. Estive nos Jerónimos, na Torre de Belém e na Assembleia da República. Faltou palmilhar pela baixa lisboeta, mas a experiência foi marcante, tal como será para muitos alunos que agora levei. Quem sabe não ficam contagiados pelo bichinho e passam a valorizar o turismo cultural.

Depois, o Agrupamento de Escolas Dr. Mário Fonseca tem alunos que sabem estar à altura de cada vez que saem. No Museu Soares dos Reis, os responsáveis pelas salas sorriam ao verificar o interesse dos garotos bem como a sua postura. Quando assim é, tudo é mais fácil e aprazível. Pelo meio, ainda se vivem algumas aventuras. Creio que jamais esquecerão que tiveram de agarrar num carro a pulso para o estacionar devidamente e, assim, o autocarro conseguir passar. Lembrarão também a pousada com vista sobre o tejo, a maluqueira do professor que os desafiou a irem ver o nascer do sol, junto ao Cristo-Rei, de Almada. Nascer do sol pouco viram e ao Cristo não puderam subir… Não esquecerão os quilómetros que fizeram a caminhar, nem o autocarro que quase arrancou um sinal, e levou uma esplanada, rebentando o para-choques! Eu e a minha colega Cidália devemos ter qualquer sexto sentido com os motoristas, quando organizamos as visitas. Este senhor conhecia minimamente os trajetos e era desenrascado, mas consegue ser mil vezes pior do que eu a gerir o tempo e quase nos fazia perder a peça de teatro. Só não deu para chegar à meta e no regresso, os últimos cem metros tiveram de ser feitos a pé, porque mais um minuto de caminho poderiam representar seiscentos euros de multa. Há que retirar malas e terminar o trajeto em fila indiana, até chegarmos à escola.

Aprendizagem com situações inusitadas à mistura, mas como diz o ditado: tudo fica bem quando termina bem e, como disse aos meus alunos de décimo segundo, esta terá sido a última visita que lhes organizei.

Aos colegas que nos acompanharam, um enorme bem-haja pela excelente companhia!

 

Nina M.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Crónica de Maus Costumes 361

 

Postal da noite

               Há quem não entenda a importância da cultura, mas o homem desprovido dela não passa de “cadáver adiado que procria”, para citar Pessoa. Este di-lo em relação ao sonho que está na base de todas as grandes realizações humanas, que permitiu aos portugueses desbravar mar e chegar à Índia e que permitiria, também, a este mesmo povo predestinado a construção do Quinto Império, que seria o baluarte da cultura e da civilização, primeiro europeia, depois, do mundo. Eu creio que se pode aplicar à cultura, porque um povo desprovido dela apenas existe, mas não é nem medra.

               Servem os espetáculos culturais e artísticos para nos encher a alma e foi de alma cheia que vim de “Ficheiros Secretos”, espetáculo de Luís Osório, que já nos habituou ao seu “postal do dia”. O postal da noite vai para ele, que foi capaz de encantar uma sala cheia, com o seu longo monólogo de mais de duas horas, recheado de histórias de vida e de morte. Mais de vida, porque a morte faz parte da vida. Hoje, em dia de perda de um amigo, o espetáculo do Luís a mostrar como o caminho de alguns seres se transfigura com a perda. Foi assim com Eduardo Lourenço, que só começou a escrever após a morte dos pais, com Eugénio de Andrade que carregava a perda da mãe sobre os ombros e se sentava numa pedra, em Serralves, a escutar o silêncio que lhe trazia a infância perdida e a mãe de volta. Por isso, detestava que o interrompessem para o felicitarem pelos seus livros. Abriu o espetáculo em Lanzarote, com José, o Saramago, a quem a vida roubou o irmão bem cedo e que depois via sumir-se nos olhos da mãe. Homens que carregam o peso da vida às costas e que sem ele não teriam sido o que foram. Luís conduziu-nos com mestria, por uma conversa muito bem alinhavada, por dentro da vida, dos pesos e da leveza de que é feita. Perfilou figuras políticas de esquerda e de direita e contou histórias deliciosas e secretas, mas não tão secretas que não se possam encontrar no seu livro “Ficheiros Secretos” e que dá nome ao espetáculo.

               Vimos, na mesma turma, Santana Lopes e Louçã. Este último, o aluno irrepreensível, que obtinha vintes e estava sempre de dedo no ar, com a resposta certa para o professor e não passava confiança a ninguém, o que irritava todos. Santana, o “enfant terrible” conseguiu juntar os colegas, fazer uma vaquinha para tentar corromper o Francisco. Davam-lhe o dinheiro se ele dissesse um palavrão terrível na aula: MERDA! (Às vezes, ouvimos bem pior no Norte, escapa-se-lhes sem que sequer se deem conta e, quando chamados à razão, fazem um esgar de quem patinou e pedem umas desculpas mal-amanhadas, mostrando toda a sinceridade do “foi sem querer” e sem necessidade de qualquer corrupção). Talvez tivesse mais piada se Louçã tivesse cedido à tentação, mas manteve-se estoicamente imperturbável. Quando lhe lembraram o episódio, terá dito que já nessa altura lhes fugia a inclinação para a corrupção. Vimos, na mesma mesa, Natália Correia, Francisco Sá-Carneiro e a princesa de gelo Snu Abecassis (como a apelidava Natália), estivemos reunidos na Alemanha, com Mário Soares e a sua esposa Maria Barroso para a decisão da formação do partido socialista. Maria votou contra a proposta que vinha do marido. A história de Edmundo Pedro é comovente: todos os Natais, ele abria a porta ao PIDE que lhe impediu a fuga, que lhe levava um presente, acompanhado de votos de um bom Natal. Nem só de figuras conhecidas se fazem as narrativas. Ouvimos também histórias de anónimos, porque o Luís tem a generosidade e a alma grande de reconhecer heróis entre gente comum. Foi lembrado o emplastro, o Fernando, e os pais do Rui Pedro, a criança desaparecida de Lousada. Momento especialmente comovente, porque o pai estava presente e voltou a falar de esperança. Afiançou que há quem diga que se houvesse a certeza da morte do filho, ele e a esposa poderiam fazer o luto e ter um pouco de descanso, ao que ele responde que se assim fosse, já não haveria esperança e que ela continua presente. A esperança que salva e que permite viver.

               Ficam apenas alguns dos exemplos. Mais de duas horas a ouvir a vida de que é feita a humanidade, porque todos somos feitos de histórias, algumas tão pesadas, que nos obrigam a seguir em frente com o peso do mundo sobre os ombros, mas que nos fazem ser quem somos.

               Num registo que circulou entre o comovente e também o cómico, entre a tragédia e a comédia, tal como a vida é: “just a charming joke”, Luís Osório conseguiu congelar o tempo.

               Obrigada.

 

Nina M.