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sábado, 26 de março de 2022

Crónica de Maus Costumes 271

 

Desorganização crónica

                Ontem, não fui nada surpreendida pela ciência oculta dos signos que me acusa de ser absolutamente desorganizada e de não ter método. Não contesto e não o nego. No meio de tanta generalização, nalguma coisa há de acertar. Por natureza, não sou nem disciplinada nem metódica e não gosto de planificar. Detesto ter listinhas para cumprir e ementas programadas e coisas assim.

Aborrece-me profundamente essa planificação sem espaço para o improviso e a criatividade. Lembro-me de um episódio na faculdade com a professora Assunção Monteiro, em Literatura Portuguesa II, disciplina que era a minha preferida e na qual era suficientemente capaz. Acontecia-me amiúde faltar às aulas teóricas e chegar às práticas com o livro errado. Aquilo irritava-me. A professora era mais rápida que sei lá o quê; Levo Camilo, já estávamos em Garrett; levo o Almeida, deveria ser o Prosas Bárbaras, do nosso Eça. Irra! A professora saberia, com certeza, que eu não ia às teóricas. Estudava os preceitos teóricos pela História da Literatura do António José Saraiva e pelos apontamentos fidedignos das aulas, dos quais fazia novos apontamentos, mais concentrados e concertados com o que dizia o Saraiva. Bem, numa certa aula, a professora lembrou-se de enviar alguém, de supetão, para analisar e sintetizar um longo excerto (várias páginas) já não sei se das Prosas Bárbaras, se da Correspondência de Fradique Mendes… Talvez deste último. Sei que levei, como habitualmente, o livro errado. A técnica para selecionar alunos, na falta de voluntários (que nunca havia, porque a ironia da professora Assunção assustava) era espantosa: “Diga lá um número de quatro dígitos. Se fosse eu diria 1524 ou 25 só para impressionar. (Data provável do nascimento de Camões) ou 1825 (data de publicação do poema de Garrett aquando o seu exílio, intitulado Camões, e que marca o início do Romantismo, em Portugal). Quem foi selecionado não disse nada disto e escolheu aleatoriamente. A professora somou os quatro dígitos, o que resultou num número só, começou a contar as cabeças e bingo! Calhou-me a fava! Não teria sido grande mal, se tivesse estado na aula teórica anterior, mas não fazia a mínima ideia do que tinham falado. Estremeci interiormente e só tinha duas soluções: ou admitia a ausência ou teria de ir e de me safar. Foi o que fiz. Solicitei um livro emprestado à colega do lado, que tinha uns apontamentos nas margens. A professora deverá ter-me dado dois minutos para me organizar. Li na diagonal, vi as anotações da colega e lá fui para a frente da sala, incrédula… Com tanta gente que tinha estado na aula, calha-me a fava?! Fui. Iniciei a análise com a ajuda das anotações e com o auxílio da hermenêutica possível naquelas condições. A professora ia acrescentando informação e eu lia por avanço, em silêncio, a preparar rapidamente o que se seguiria… Lá passei a provação até ao final, até me ser dada ordem para me sentar, que cumpri, muito dignamente, sem manchar a reputação junto da professora (penso eu).

Certo é que depois disso, o improviso não poderia ser assim tão mau… Por isso não faço ementas certas. Ficaria louca, se soubesse que todas as segundas iria comer salada russa e, às terças, bife de frango e por aí vai… Nem pensar! Quando chego a casa, abro o frigorífico. Espreito. Se houver comida será reinventada, caso contrário, penso em alguma coisa… A menos que sobre comida, nunca sei de véspera o que vou comer no almoço seguinte e o que irei preparar. Só se houver convidados em casa. Nesse caso, tenho de planear; também não seleciono a indumentária de véspera, nem planifico atividades, a menos que seja imperioso fazê-lo, por ter de fazer marcações. Na verdade, gosto bem de fazer o que me apetece de momento, segundo a vontade do instante; não tenho dossiês impecáveis (a não ser os do estágio) e que sofrimento foi organizá-los! Valeu-me a Sandra (a minha eterna amiga) e a minha memória. Não sei usar agendas, apesar de as ter… E agora, que começo a esquecer-me das datas de consultas (o que antes nunca acontecia), registo-as e colo-as no frigorífico, mas depois esqueço-me de as consultar, ainda que abra inúmeras vezes o eletrodoméstico. Não elaboro planos para as histórias que crio. Surge a ideia e as personagens crescem e fazem-se por elas. Raramente sei, até me sentar, do que vos vou falar aos sábados à noite. Hoje calhou isto… Paciência…

Para quem nasceu assim, as palavras ordem e disciplina fazem estremecer. Nunca na vida poderia ser militar (também só a ideia de me acordarem às seis da manhã, com uma corneta estridente, dar-me-ia vontade de a partir na cabeça do corneteiro). Não, obrigada! Porém, a vida não se compadece dos desorganizados e obriga-nos a uma adaptação. Não sou organizada, mas não gosto da desorganização excessiva. Tendo consciência das minhas limitações, lá me vou impondo alguma autodisciplina para que as coisas caibam no meu dia. Aprendi a rotina certa com o nascimento dos filhos. Agora, com eles maiores, já me desmazelo mais, novamente. Há quem diga que gosto de viver no limite… Não sei se é isso. Talvez goste do inusitado e das surpresas boas, apesar de me obrigar ao trilho, mas não deixo de cumprir com as minhas obrigações e responsabilidades.

Quem não descarrila de vez em quando para ter a certeza de que está vivo?!

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 25 de março de 2022

Sei que esperas

Sei que esperas
O sol penetrar-te em ângulo completo
Reflexo de luz num teatro de sombras
Esperança
Promessa
Felicidade adiada
De quem pesa os dias a retalho
De quem conta os segundos
E os sorvos de vida
Como o sol que se funde lentamente
No mar e nele espelha o último fulgor



sábado, 19 de março de 2022

Crónica de Maus Costumes 270

 

 O meu pai

            O meu pai tem oitenta e quatro anos, feitos em fevereiro, quatro dias antes do aniversário de uma das suas netas (a minha Matilde). A minha família é de homens. Os meus pais têm quatro netos rapazes e apenas duas netas. Têm dois filhos e apenas uma filha, que sou eu. Os primos com quem mais convivi são homens, no entanto, as mulheres da minha família são extraordinárias! A começar pela minha avó materna, Matilde, de quem a minha pequena herdou o nome. A tecedeira que também fazia de parteira e me punha a dormir durante o dia, na alcofa pousada sobre o tear. Adormecia ao deslizar da lançadeira e das teias que viriam a ser mantas. A sua primogénita, a nossa Tia (sem nome, porque todos sabemos quem é) que enviuvou cedo (eu tinha apenas dois anos quando o meu tio Agostinho morreu. Não me lembro dele. Só lhe conheço as fotos) e ficou com quatro filhos para criar e fê-lo bem. Uma mulher de trabalho, sempre de mangas arregaçadas e que aos oitenta julgava ter quarenta, porque nunca se cansava. Adoeceu uma única vez, aos oitenta e três, e deixou-nos.

            O meu pai veio jantar a minha casa, porque nesta idade o melhor que se pode oferecer no dia do pai é a companhia. Olho-o, de soslaio, enquanto come o bacalhau, o seu prato favorito e vejo o pai que me contava invariavelmente a mesma história, ao domingo de manhã, na sua cama, enquanto a minha mãe já andava na lida. A cama dos pais é sempre melhor e qualquer filho que se preze sabe disso. Talvez seja por isso que gosto do aconchego da cama pela manhã. Eras tão mais novo… Já tinhas as tuas cãs, a marcarem-te a maturidade, mas as mãos, pai, eram infinitamente mais lisas e mais ágeis… Agarravas-me pelos braços e fazias-me rodopiar, como uma pena (era uma pena, de tão magrita!) enquanto entoavas o pirata da perna de pau/orelhas de burro/ e cara de mau. Lengalenga repetida à exaustão, enquanto voava cada vez mais alto! Vejo o pai que nos acordava às sete da manhã, na época balnear, com as cantorias (que detestávamos e tu fingias não perceber), enquanto tratavas da tua higiene pessoal. Já ficava doida nessa altura com o chinfrim matinal. A idade não me melhorou… Invariavelmente, fazias-nos chegar às 08:30 a Mindelo, montavas o estaminé para passarmos o dia e escapulias-te para o café. Lias os jornais e falavas com o Eusébio, o pescador. Lá regressavas para o almoço e a sesta da tarde, mas ninguém te apanhava na areia, muito menos no mar! Deveria ser um suplício para quem não gosta de praia, mas que se convence de que é o melhor para a saúde dos petizes e lá fazias o esforço… Nós não compreendíamos! Como é que não se gosta de praia?! E corríamos como doidos, explorávamos os penedos e saltávamos nas dunas, mas a nada assistias. Lá nos trazias as pastilhas de mentol e compravas a melancia ou melão na dona Lurdes, para depois do almoço. Ainda hoje te esqueces de que não gosto de melão e continuas a oferecer-mo, de cada vez que o há às refeições. Digo sempre o mesmo:

- Ó papá, não gosto de melão!

 -  Ai não?! – Questionas sempre e intervém a mãe irritada, “francamente, ó homem, és sempre a mesma coisa! Ainda não sabes que nem ela nem o Miguel gostam de melão?!

            Eu rio do teu ar de espanto, sempre renovado… Para a próxima, a história repetir-se-á, mas não faz mal nenhum.

            Hoje, pai, quando soltaste que querias chegar aos oitenta e cinco e perguntei a sorrir se agora o peditório era anual e dizes que sim… “Ai queres que diga de dez em dez!” - Dizes, rendido ao tempo e às evidências, porém, acrescentas, ufano, que cortaste a lenha para o fogão e para a lareira… Mas sabes, pai, os teus olhos verdes perderam o fulgor de outrora. Há um brilho sem luz de quem já não espera muito. Talvez sintas que já cumpriste a missão e vivas nessa tranquilidade de vida feita. E, de repente, surge a evidência de que fui tanto a menina do papá!

Felizmente, ainda tens qualidade de vida. Conduzes e quando perguntei se ainda vias bem ou se era preciso levar-te (uma pequena provocação), perguntas-me se estou tolinha… Ainda não perdes os jogos do nosso Porto (nem de nenhum outro, se puderes) e manténs a cadeira na Mata Real, apesar de já não ires ao estádio…

 Dou comigo a pensar que a pandemia veio interromper certos hábitos que devemos retomar. Almoçamos e jantamos menos vezes juntos. Perdeu-se a rotina e a vida corre, voa-nos pela janela, mas teremos de a segurar nestes pedaços de eternidade, porque um dia será tudo o que restará.

Nina M.

 

 

quarta-feira, 16 de março de 2022

Não sei o que abarca a mão

Não sei o que abarca a mão 
Se o corpo fremente
Se ardor em combustão

Não sei o que abarca a mão
Se as carícias desejadas
Se a alma e o coração

Não sei o que abarca a mão
Se loucuras divinas
Se a alma em rendição




domingo, 13 de março de 2022

Pode a ausência não pesar

Pode a ausência não pesar
Não ser pedra que esmaga
Sobre o coração
Antes sopro ou o brilho de um luar
Vida, canto...
Pássaro pousado na mão

Canção do que partiu
Sem ter partido
Terra, chão de amor plantado
Voz que se ergue e se levanta
Ao ouvido
Não temas nunca ser abandonado

Procura-me nas estrelas
Na branca orla do mar
No dourado das areias
Transfigurada em brisa breve
Leve sussurro
No canto das sereias

E ao ler-me nestes sinais
Ausência humana feita natureza
Não me perderás jamais
Viverás seguro nesta certeza
Ausência nunca é a partida
Antes a morte em nós adormecida

sábado, 12 de março de 2022

Crónica de Maus Costumes 269

 Antes da crónica, obriga-me a consciência, a bem da honestidade intelectual e do rigor da análise a retratar-me.

Na semana passada, escrevi que considerava indesculpável a abstenção dos eurodeputados Marisa Matias e José Gusmão, no que concerne ao empréstimo de 1,2 milhões de euros à Ucrânia, pelo que interpretava esse comportamento como uma não condenação velada a Putin. Os factos não foram esses, do que vim a aperceber-me a posteriori. Efetivamente, houve abstenção, mas quando essa aconteceu a guerra ainda não tinha estalado abertamente, pois foi a 14 de fevereiro. O Bloco de Esquerda alega que a abstenção prende-se com os moldes em que a assistência financeira da UE seria feita, por se tratar de um “programa do tipo dos memorandos da Troika”. Logicamente, a abstenção poderá ser eventualmente contestada, mas o paradigma muda por completo. Na verdade, o Bloco de Esquerda condenou, sim, a invasão da Rússia à Ucrânia, em sede de Parlamento Europeu. Deixo o meu pedido de desculpa ao partido e fico, honestamente, satisfeita pelo voto no sentido da condenação. Acrescento ainda que fui incauta. Por cuidados que tenhamos, uma pequena distração pode levar-nos a cometer injustiças. A opinião que emiti foi veiculada pelo DN, que mais tarde desmentiu, e por comentadores da cena política, que movidos por interesses partidários, desvirtuam e manipulam a informação, em nome de interesses pelos quais não me pauto nem subscrevo.

As minhas opiniões são fruto das minhas reflexões, mediante o que vejo, ouço e leio, sem qualquer outro interesse e se há algo que não quero fazer é contribuir para a divulgação da desinformação. Peço desculpa a quem me lê se, porventura, induzi em erro, ainda que inadvertidamente. Feito o mea culpa posso, de consciência limpa, passar à crónica semanal.

 

  Zelensky, o anti-herói

            Hoje, quero homenagear Volodymyr Zelensky, o homem do momento. Aquele de quem esperamos ouvir algumas palavras diariamente e também por quem torcemos e a quem queremos bem e de saúde. O mundo gosta de Zelensky e atreveria a dizer-me que as mulheres gostam mais, porque o presidente é um herói improvável.

            Obviamente, ele não será perfeito, terá os seus pecadilhos, mas granjeia a simpatia e a admiração do mundo pela lição de coragem e de resistência. Lembra-me o General Charles De Gaulle, durante a França ferida e ocupada, depois da cobardia de Pétain. Dos fracos não reza a história, costuma dizer o povo. Porém, neste caso, em poderio militar, o fraco é o ucraniano, mas não tenho dúvida de que o seu nome se inscreverá na história pelos melhores motivos. Ao contrário, Putin será lembrado como um ditador imperialista cruel e desumano, o coveiro dos ucranianos, mas também da Rússia.

            Zelensky tem uma história inusitada. É judeu e três irmãos do seu avô pereceram vítimas do Holocausto, porém, o avô sobreviveu à Segunda Grande Guerra, tendo sido um dos combatentes na infantaria soviética e morreu coronel numa Ucrânia independente. Homem ligado às artes, que frequentou o curso de Direito, mas que escolheu o palco para fazer vida e que a ganhava a arrancar gargalhadas ao público, transferiu a sua personagem de “O Servo do Povo” para a realidade. Neste caso, temos a realidade a imitar a ficção. Tal como a sua personagem, Zelensky torna-se o presidente do país, contra todas as expetativas, sem qualquer experiência política e ganha as eleições por uma maioria incontestável. A sua bandeira de campanha foi a luta contra a corrupção. O cancro que destrói o seu país e também muitos outros.

No entanto, nem tudo são rosas, pelo meio, há algumas contradições… A sua campanha política foi financiada por um oligarca ucraniano, investigado por fraude nos Estados Unidos da América. Já depois de eleito, em 2019, Zelensky é apanhado numa conversa com Trump, em que este o tenta convencer a investigar os negócios de Biden no país de leste e, mais tarde, em 2021, dá-se a revelação do envolvimento de Zelensky nos Panama Papers. Documentos mostram a sua presença numa companhia offshore, que alegadamente foi transferida para um amigo, semanas antes da eleição. Recém-chegado à presidência, dissolveu o parlamento e antecipou as eleições legislativas, ganhas pelo seu partido, ou seja, alcançou o pretendido: uma assembleia que lhe fosse favorável. É responsável por uma reviravolta política e tenta proceder à ocidentalização da Ucrânia. Quer ser membro da União Europeia e até da NATO, se bem que já tenha compreendido que esta organização não reúne condições, pelo menos de momento, de proceder à sua integração, por motivos políticos: tentativa de não acossar Putin. O presidente, apesar da sua origem judaica, é acusado de conivência com o grupo neonazista chamado Batalhão de Azov, para conter os separatistas russos na região de Donetsk e Luganks. Para certas fações políticas posicionadas mais à direita, Zelensky é um homem de esquerda, mas paradoxalmente é acusado de colaboração com neonazis… Vá-se lá perceber onde começa e onde termina a verdade dos factos… Para uns, Zelensky é um fantoche nas mãos do ocidente, especialmente de Biden, a quem atribuem a responsabilidade da guerra, que afirmava querer evitar. Para outros, simplesmente, não aceitou ser fantoche de Putin, nem de alguns oligarcas, ao contrário do Poroshenko (que, apesar de tudo, luta ao lados dos seus concidadãos. Honra lhe seja feita), e pretende fazer evoluir o país apoiado na União Europeia. Inclino-me para esta segunda visão e compreendo-a. Lembro-me perfeitamente do Portugal dos anos oitenta e da luta tão bem travada, há que dizê-lo, do Dr. Mário Soares para a entrada de Portugal na então CEE, em 1986. E se não fosse esse passo político, se hoje não estamos bem, acredito seriamente que estaríamos pior.

Assim, o presidente ucraniano não é impoluto e não estará a salvo de críticas. Não é o herói sem mácula dos contos de fadas, contudo, tem-se revelado um homem de coragem que acompanha o seu povo e que defende o seu país. Poderia ter escolhido colocar-se a salvo, mas preferiu ficar. O mundo em geral e as mulheres em particular gostam de Zelensky, porque ele é um ser humano que erra, mas que está determinado a lutar pelo seu povo e pelo seu país. Lidera pelo exemplo, enquanto nos chegam imagens de um presidente comediante, de um presidente cantor (e canta bem), enfim, de um ser humano de carne e osso que comove. Temos alguém que aprendeu a ter sentido de estado e que transmite confiança. Temos um anti-herói à maneira da boa literatura, porque não está isento de falhas, mas que luta determinadamente, com caráter, não para agredir, mas para se defender, porque os seus olhos não são vazios nem de gelo, mas porque neles lemos a preocupação, a emoção, o receio, a confiança, a determinação e a coragem.

Viva Zelensky! Slava Ukrayini!

 

Nina M.

 

quarta-feira, 9 de março de 2022

Prostração

Há dias de cansaço
Fadiga indolente
Dias como pedras
Maciços duros impenetráveis
Dias de alma parada
Estuprada pelo torpor
Ferida no seu íntimo
Sem facas nem pistolas
Ferida por omissões
Nem atos nem palavras
Longos silêncios paridos
Na estranheza
Dias de cinzas e de lutos
Sempre há lugar para o nojo
Para a solidão que abarca
Num forte amplexo
Com doce melancolia
A dizer que há dias assim
De falha cósmica de energia 

sábado, 5 de março de 2022

Crónica de Maus Costumes 268

 

De coração dilacerado

 

Esta semana não foi fácil. Pesa-nos a guerra. Pesa-nos o sofrimento. Pesa-nos essencialmente o absurdo e a ausência de sentido. Perante isto, a alma enegrece, diminui enrugada pela dor do outro. Poderia ser connosco. Bastaria ter nascido na Ucrânia…

Pensamos no absurdo que nos retira o chão. Nas vidas perdidas, nas que ainda se vão perder. Neste impasse em que um sociopata coloca a Europa. Sinto todos os meus músculos contraírem e um desejo feroz de justiça que reconheço misturado com vingança, que sei não ser um bom sentimento, mas aquela besta desencadeia vontade de lhe causar dor. Ficaria feliz se desaparecesse do mapa.

Putin está descontrolado. Pensaria, talvez, que a invasão e a capitulação do país vizinho fossem ser rápidas. Enganou-se. Os ucranianos têm revelado uma resistência, um sentido patriótico identitário e de defesa da sua liberdade admiráveis, liderados por um comediante que aprendeu a ser um verdadeiro líder, que inspira confiança, dono de um carisma invejável. Assim, de repente, lembrar-me de um líder com tal presença, só me ocorre o Obama, que me deixa saudade… Certo é que o desvario do russo não é bom sinal e o que impede a NATO, os Estados Unidos, a Inglaterra e a França, países que unidos têm uma capacidade nuclear infinitamente superior à da Rússia, de resolverem a questão e de acabarem com o massacre vergonhoso, é o facto de haver um chefe de governo descompensado, cruel o suficiente para levar a cabo a ameaça das armas nucleares. Obviamente, no instante em que o senhor o decidisse fazer, nem ele nem o seu país ficariam intactos. Seriam absolutamente arrasados. No momento em que fosse detetado o lançamento de uma ogiva haveria uma resposta e seria desencadeada uma destruição mútua. Essa é a linha vermelha impensável e que não pode ser ultrapassada! Putin vai brincando e vai pisando alguns limites e o Ocidente mune-se de toda a paciência e vai tentando dissuadi-lo com as sanções económicas que vai agravando. A diferença é que o Ocidente tem o juízo suficiente para saber que há linhas que não podem ser ultrapassadas. Já com Putin, ninguém o garante… Não se coíbe de impor a um país livre e independente a proibição de incorporar a NATO. Putin sabe que se a Ucrânia incorporasse a NATO, nunca teria o atrevimento da invasão, que mais não passa de uma tentativa de anexação, porque não teria poder bélico para aguentar o confronto. De modo que perante a sandice de um louco, os ucranianos vão-se aguentando sozinhos. A ajuda não tem sido suficiente e, no intervalo, o déspota vai arrasando aquele país…

Serve esta crise para que a Europa repense as suas políticas externas, repense a questão da segurança, por não poder ficar refém de gente alucinada. Deve, forçosamente, compreender que a união tem de ser efetiva e não apenas no sentido económico. O impensável aconteceu e apanhou a Europa desprevenida, por acreditar que tudo consegue resolver por via do diálogo. Acontece que com tiranos cruéis não há diálogo possível, porque os valores não são os mesmos. No meio disto, o senhor Putin conseguiu revelar as hesitações, os medos e as respostas tardias da Europa, mas também conseguiu uni-la em relação à invasão que iniciou. Acredito que depois desta crise, a União Europeia não será a mesma e perceberá que terá sido demasiado tolerante em relação aos que desconhecem o significado da Democracia. Não sei se uma intervenção direta na Ucrânia será evitável. Se, efetivamente, Putin conseguir impor a sua força, como reagirá a Europa? Se Putin não respeita e não se orienta pelos valores da Democracia e da Liberdade, pois então que fique a falar sozinho.

Por último, acrescentar que a posição do PCP em relação aos acontecimentos é lamentável e indesculpável. Também não é surpreendente. Como já escrevi algures, é apenas o PCP a ser o PCP! São tão democráticos quanto o senhor Putin, se tivessem oportunidade para isso. Se ficarem votados ao esquecimento, não terei qualquer pena. A mim, nunca me enganaram. Vergonha alheia! O Bloco de esquerda também não escapa, porque os deputados europeus Marisa Matias e José Gusmão, abstiveram-se no que concerne ao empréstimo de 1,2 milhões de euros à Ucrânia! Neste assunto, não se pode ficar em cima do muro, à procura de neutralidade. Interpreto-a como uma não condenação velada ao senhor Putin. Para um partido que gosta de passar a mensagem de liberdade e de humanidade é a maior das hipocrisias! Vergonha alheia também. Assim estão as esquerdas mais radicais deste país. Faço ressalva à sensatez de Rui Tavares do Livre. Pode-se discordar de políticas económicas, sociais e outras, mas sobre este assunto em concreto não pode haver hesitações. Rui Tavares repudiou sem titubear a ação de Putin, tal como deve ser. Seria bom que as esquerdas compreendessem que o país não quer novas ditaduras. Arre diabo!

Presidente Zelensky, que nunca perca a coragem nem a esperança e que os bons ventos da paz voltem rapidamente a soprar favoravelmente sobre as vossas searas e os vossos girassóis.

Slava Ukrayini!

Nina M.

 

sexta-feira, 4 de março de 2022

Girassol

O girassol murchou
Cabisbaixo, agredido,
Ferido

A borboleta pousou
Delicadamente
O beijou

Soube esperar
O pôr do sol
Na pétala escolhida 

Abriu-se o mundo
E a manhã anunciou
Um novo dia

O Girassol é chão
A Borboleta é ar
Os dois são o amor
Por fecundar








quinta-feira, 3 de março de 2022

A Volodymyr Zelensky


Não capitularemos sob a violência
A alma é plena de verdade

Não capitularemos sob ameaça
Prontos a morrer pela liberdade

Não capitularemos sob a arrogância
Defenderemos sempre a nossa casa

Não capitularemos sob o império
Uma borboleta não fica aprisionada

Olharemos longe, as searas ondulantes
Cobertas por um cristalino azul celeste

Sonharemos a nossa pátria amada
As crianças, o futuro e a paz desejada

Mesmo que a crueldade nos consuma
Saberemos resistir com humanidade

Reconstruiremos um país e o seu povo
Depois do mal virá a fraternidade

Daremos uma lição ao mundo inteiro
Ensinar-lhe-emos o sabor da liberdade

Não capitularemos sob a invasão
Sob a guerra em contramão

Não capitularemos sob a guerra
Que perdida é já ganha

Não capitularemos porque
Como árvores morreremos de pé

Não capitularemos...











terça-feira, 1 de março de 2022

Ucrânia

Troam os céus
Pintados a fogo laranja
Fogo de artifício cruel
A ornar a abóbada celeste
Algures, no meio da noite,
A criança segura um girassol
Estremece cada folha
A amparar o grito das bombas
Faça-se o silêncio do respeito
Pelos mortos inocentes
Sangue esvaído a conspurcar a terra
O girassol não se intimida
Ilumina a negritude do Homem
No meio do caos no meio dos tanques
No meio das bombas no meio dos destroços
Ergue-se o girassol, dia de amanhã...