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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Rendição

 Algures entre a realidade e o sonho

A meio caminho da transcendência

Agitam-se bandeiras brancas de rendição

Deposito o meu coração em tuas mãos

Cofre sagrado que não profanas

Pulsar de vida 

Como a brisa leve quando me ausento

Deixo para trás breve lamento

E já em serena despedida

Não cruzo as mãos sobre o peito

Rejeito a tradição por despeito

E no entanto enquanto viva

Não me via desesperada

Apesar da certeza de não ser nada

Da futura ausência da carne e dos ossos

Dos meus pensamentos que são palavras

Assim mortas, perdidas e vagas


sábado, 28 de novembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 208

 

O direito inviolável à vida

                Cada vez gosto mais do Valter (Hugo Mãe). Além de grande escritor parece-me um ser humano gigante! Viveu parte da sua infância na minha cidade, numa casa cor-de-rosa, no centro, que tinha um jardim enorme! Passava lá amiúde, com os meus pais, ao domingo, dia de ir ao café, em frente à casa, que era da dona Alicinha Batista, uma velha muito velhinha, imagem que a minha memória guarda.            Nunca conheci o Valter (com muita pena minha), mas eu também não morava na cidade, em catraia.

Ele contava, ontem à noite, na Comercial, que quando veio de Angola, frequentou a escola na minha cidade. Engrossava a lista dos retornados que não eram vistos com bons olhos pelos que cá residiam. Essa é a verdade. Para os continentais, essa gente que saiu do país, onde a miséria reinava, à procura de melhores condições de vida e regressaram com a guerra colonial, com uma mão à frente e outra atrás, apanharam os parcos empregos, passando “à frente” dos que cá estavam e que aguentaram toda a miséria sem nunca terem saído. Já se sabe: numa casa onde falta o pão, todos ralham e ninguém tem razão!” De modo que o Valter contava que a funcionária da escola, a ele, só lhe servia meia caneca de leite, enquanto aos outros meninos a enchia. Eu também sou desse tempo! O leite era servido em canecas de plástico. Branco. Imaculadamente detestável! Só o cheiro do leite quente já me revirava as tripas e arrancava-me vómitos tremendos! Acontece que a professora que tive no primeiro ano (antiga primeira classe), achando que eu não bebia leite por questões de casmurrice de canalha, todos os dias me fazia beber um bocadinho (devia ser a teoria de que temos de experimentar dez vezes até o nosso paladar se habituar). Eu segurava o vómito como podia… Certo dia, lembrou-se de me fazer beber meia caneca. O horror percorreu-me as veias. Nesse dia, não segurei o vómito e foi a libertação! A professora não voltou a insistir e eu não voltei a beber leite até aos dias de hoje! Nem natas. O cheiro é-me insuportável. Tal como o sabor. Valter, teria todo o gosto em ceder-lhe a minha caneca de leite!

Porém, o horror da história é o motivo racista que levava a funcionária a agir dessa forma. Comentava, enquanto o servia, que os meninos escuros não precisavam de beber tanto leite! O Valter, bom ser humano, já lho perdoou há muito, mas não esqueceu o episódio. A nossa memória guarda o que nos marca e ele aprendeu o que significa ser discriminado sem razão e perguntava-se o motivo de ser mais escuro, embora não pareça nada. Inconcebível é o comportamento da senhora, sobretudo, com uma criança. A falta de sensibilidade e de bom senso é de facto imprescindível para se lidar com seres humanos, mas ainda mais com crianças… Creio que todas essas dificuldades, aliadas a uma timidez que lhe é natural, ao que parece, fizeram dele o que é hoje. Seguramente, um dos melhores da atualidade, mas que conserva uma humildade e uma simplicidade própria dos gigantes. O Valter escreve sobre as inquietações de todos nós. Na verdade, não somos assim tão diferentes. Uns dão-se ao trabalho de as descobrir e de as pensar e outros optam por viver na superfície das emoções. Nenhum estará mais certo do que o outro e apenas faz o que lhe permite viver melhor ou o que, pelo menos, lhe causa a impressão de viver melhor (uma questão de má-fé sartriana, que não é propriamente inconsciente, mas antes o nosso consciente a querer aplacar os nossos receios. Autoproteção, na verdade, da qual todos padecemos, uns mais do que outros. Somos nós a querer enganarmo-nos). “Contra Mim” é o título do seu novo romance (de cariz autobiográfico e que, naturalmente, terei de adquirir e de ler). É uma satisfação saber que o Valter morou por aqui (mesmo que considere a Póvoa do varzim, onde vive, a sua terra). Saber que alguns dos episódios da infância foram passados cá, mesmo os maus episódios como o relatado, porque tudo serviu para o construir, é um orgulho e uma satisfação. Uma pequena vaidade ilegítima e um pouco parva, mas que ninguém me tira!

O escritor escreveu, a propósito da generosidade do General Ramalho Eanes, que afirmou que os velhos dariam os seus ventiladores aos mais novos em caso de necessidade, por causa da COVID -19, que não queria que o fizesse. Na sua opinião, o país não pode colocar os velhos nessa posição, porque ele não gostaria que a sua mãe, que já tem oitenta anos, mas ainda tem vitalidade, fosse obrigada a morrer em prol da vida de um mais novo, porque não temos o direito de escolher qual das vidas é mais válida. Dizia ele que cada um sabe de si e da sua vontade de viver, sempre individual e única. Há velhos de oitenta com mais vontade de continuar por cá do que muitos jovens. Portanto, o dever de um país é providenciar os mecanismos para que todos tenham direito a serem tratados. E isto é de uma clarividência exemplar. Pelo menos, parece-me. Não consigo não concordar com ele, porque para mim, a vida de cada um não é entendida num sentido utilitarista ou economicista, mas um direito inviolável, que poderei admitir ser interrompido se for essa a vontade a quem ela pertence, em determinadas e raríssimas exceções! Eu, que tenho a mania de querer viver pelo menos até aos noventa e, se a medicina ajudar, quem sabe até mais, isto se conseguir manter a sanidade e a força física, não poderia estar mais de acordo! Há coisas que preciso fazer, na tentativa de me cumprir e, portanto, quem sabe da disposição para o fim da linha sou eu! Neste momento, não tenho nenhuma. Desconfio que mais tarde também não. Plenamente consciente da sua inevitabilidade, eu passo muito bem sem ela.

Sim, Valter, se a sua mãe ainda está cheia de vitalidade e vontade de viver tem tanto direito à vida quanto qualquer um de nós. Não pagamos impostos elevadíssimos para que os médicos tenham de escolher, mas para que todos possam ter o melhor atendimento possível, independentemente da idade.

Bem-haja!

Nina M.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Noivado

Era assim num dia como o desta noite

Ou o dia como o deste dia 

De céu limpo e luminoso

De azul celeste tão belo

Sem novelos de algodão

Que sonhei que me pegaste na mão

E a levaste aos lábios num ósculo

Comprometido

Gesto tão antigo para gente tão de agora!

E sorrias enquanto ma guardavas na algibeira

- Gosto das tuas mãos pequenas, delicadas e suaves

Repetes sem cessar...

(E não as julgo perfeitamente belas

Talvez sejam perfeitas de tanta imperfeição)

Na esperança de não veres a esperança desfeita

Fitas-me seriamente sem revelar medo de se quebrar a ilusão

(Ou eu não soube ler os sinais e os teus olhos enganaram-me)

E era quase certo o sim que esperavas de mim

(Mas no amor e na dor nunca se sabe bem ... )

E sem mais nada... Sem cerimónias ou preces

Tomaste-me a alma por palavras de presente

Que garantes guardar eternamente

sábado, 21 de novembro de 2020

Crónica de Maus Costumes 207

 

O saber não ocupa lugar

                Ler o texto de opinião “Sem tecto, entre ruínas”, de José Matias Alves, do jornal Público e o autor escreve ao abrigo do anterior acordo ortográfico, daí a manutenção do (c) na palavra teto, não posso deixar de fazer a minha leitura relativamente a algumas ideias apresentadas.

                De referir que a base estrutural do texto foi escrita há cerca de 25 anos e publicado no Correio Pedagógico e adaptada aos dias de hoje. O título do artigo retoma o título do livro de Augusto Abelaira (1982).

                O artigo é escrito na voz de um narrador autodiegético, de quinze anos de idade, Daniel Rocha. O jovem confronta-se com a situação pandémica, que obrigou a alterações profundas nas dinâmicas da organização da escola. Lamenta, por isso, as trinta e uma horas compactas semanais que lhe “promete uma vida futura, enfim liberta da maldição que parece tudo querer destruir”. Até lá, sofre do longo tempo preso e sozinho em casa, da turma numerosa de 28 alunos, em que respiram uns para cima dos outros, da redução dos intervalos para evitar os contactos e do contrassenso que isso constitui com o facto de, dentro das salas de aula estarem a 50cm. Fala do tempo insuportável de distância e de solidão. O suposto jovem de 15 anos vai apresentando, ao longo do texto, as razões que os vários professores invocam para a valorização do papel da escola, enfileiradas umas nas outras, à medida que as matérias vão sendo lecionadas. Assim, o professor de Filosofia fala da escola e da educação como alavanca do progresso social, da emancipação do homem, constituindo um elevador social; a docente de História lembra que a escola, com os títulos académicos, democratizou a sociedade e veio a substituir a estratificação de sangue, permitindo a mobilidade social; de seguida, a professora de Português invoca a Literatura como a morada do ser, a revelação do mundo, dos outros, dos próximos mesmo mascarados (ao ler isto, esta professora de Português já me conquistou)! Finalmente, o professor de Latim aborda a estruturação da língua e do raciocínio, base para se poder comunicar bem. O aluno termina a referir que no livro de Filosofia leu que resistimos à mudança, receamos a incerteza, mas que o tempo não se suspende, acabando com uma série de interrogações retóricas: “e para onde vai [o tempo]? E para onde é que eu vou? E que faço em casa, numa tarde de sol, a mergulhar em séculos de saber? Onde poderei ler o sentido da minha adolescência, a confusão da minha respiração? Onde poderei encontrar as respostas para as minhas inquietações? Onde?”

                Antes de mais, manifesto o meu apreço pela esclarecida e brilhante reflexão. Quem me dera que os nossos jovens fossem, efetivamente, capazes de pensar e de escrever desta forma. A maioria, nesta idade, não é. A ser verdadeira a existência deste narrador, com certeza, ele estará de parabéns. Ocorre-me, então, que quer com pandemia quer sem ela, estas questões em torno da escola e da preparação dos jovens para o seu futuro já vêm de longe. Pois se a base do texto já foi escrita há 25 anos!

A dada altura, o jovem diz que ouviu o pai comentar com um amigo que “o mundo moderno esmaga o homem com a precariedade de todos os horizontes, ainda mais nestes tempos pandémicos” e, mais tarde, que terá lido no computador do pai um documento intitulado “teses sobre o sem-sentido da escola” onde leu que a preparação da escola será um fracasso se a organização social e a organização do trabalho não se organizarem de modo a dar um sentido diferente à vida, pois haverá uma falta de motivação dos professores e dos alunos se a vida ativa não fornecer perspetivas de promoção. A ser assim, os alunos e os professores dificilmente acreditarão no sentido da vida escolar.

Parece-me que o cerne da questão está na revolução que ocorreu sobretudo nos últimos anos, perante o facto de, salvo raras exceções, o canudo já não ser a garantia de uma vida estável e confortável. O saber já não garante os bons empregos e já não constitui a certeza de ser o elevador social que tanto se preconiza. Desta forma, parece que todos os argumentos usados pelos professores caem em descrédito. Na verdade, mediante uma reportagem que vi, nestes últimos tempos não se tem diminuído a diferença entre as condições sociais e económicas de geração para geração. São necessárias cinco gerações para que uma criança oriunda de um meio pobre consiga atingir um salário médio, segundo um estudo da OCDE. Julgo ser esta constatação que leva o jovem ou o José Matias Alves a afirmar que se “sente esmagado pelo vazio da incerteza”.

Penso que esta tendência veio para ficar. Não será a sociedade a adaptar-se ao homem, mas antes este a ter que se reinventar para caber na sociedade que ele próprio criou!

Ora bem... A discussão sobre o interesse de certas matérias para a vida futura dos estudantes sempre se colocou. Não é porque o latim não é falado que perdeu a sua utilidade. Não é porque ninguém pretende licenciaturas em História ou Literatura que estas perderam a sua validade. Talvez o Homem precise de uma mudança de paradigma e de procurar mais intelectuais pensadores do que tecnocratas. Esse é o grande flagelo da escola e da sociedade. Os professores, que deveriam ser instigadores do amplo saber, foram transformados em técnicos, que cumprem um programa e umas aprendizagens essenciais limitativas. Eu devo, obrigatoriamente, estudar os poemas X, Y, Z, mesmo que para aqueles alunos e para aquela turma sejam mais adequados o C, D, E! Ah! Já é possível alterar currículos. Pois… Só a parafernália de documentação e projetos exigidos fazem qualquer um perder a vontade. Trabalho mais intensamente e de forma mais limitada e padronizada, hoje, do que no início da carreira, há 23 anos! Todos os alunos têm de ser formatados para escrever um texto de opinião, obedecendo cegamente às regras instituídas, quando seria mais importante fomentar  a criatividade, por exemplo. Num mundo democrático e de plenas liberdades, exigimos exercícios padronizados. Que remédio! São objeto de avaliação em exame! Agora que penso nisso, a mim, nunca nenhum professor de Português me ensinou a escrevê-los e as opiniões escritas não me têm faltado! Penso também que podem discordar delas, mas não será pelo texto mal escrito.  Os alunos, por sua vez, precisam de entender que a sua formação deve ser holística e articulada. Sem as ciências sociais e humanas perde-se a empatia, a capacidade de se dar, de se ouvir, de formular e de reformular pensamentos, expressos através da língua, conjunto de signos comuns a uma sociedade. As ciências sociais e humanas servem, antes de tudo, para humanizar os humanos desumanizados. Um médico ou engenheiro não se valoriza por saber um pouco de História ou de Literatura ou de Artes Plásticas? Fará algum mal aos futuros informáticos, engenheiros e afins saber quem foi Padre António Vieira, Eça de Queirós, Pessoa ou Saramago e conhecer os seus escritos, parte integrante da nossa cultura e do ser-se português? Será normal que tenha de esclarecer um aluno do ensino secundário sobre os cristãos-novos, a influência da comunidade judaica em Portugal e o empreendedorismo que eles emprestavam ao país? Sobre o massacre dos judeus, as políticas de expulsão do reino, a violência exercida sobre as crianças retiradas aos pais para serem criadas por famílias cristãs? Não deve o básico da nossa História ser conhecido de todos, independentemente da área de estudos?  

Enfim, talvez seja idealismo, mas seria bom que a escola fosse também apreciada pelo saber que em si proporciona e não apenas pelo futuro ou ascensão social que possa trazer, infelizmente em declínio. O gosto que a escola me deu pelo conhecimento combate o cinismo que nos rodeia e as frustrações de uma profissão cada vez mais desgastante, mais difícil e menos atrativa. Precisamente, porque de mim querem uma técnica, que é o que me recuso ser! Há algumas coisas de que não gosto na minha profissão. Desde logo a abominável burocracia que nos destrói. Não obstante, uma permanece intacta: a possibilidade de falar de literatura, esse mundo especial e incrível vivido por dentro e que tento aperfeiçoar a cada momento. A oportunidade de o poder cruzar com a História e com a Filosofia, alargando horizontes. Também tenho de saber de gramática. Temos todos e, ao contrário do que dizem, também é importante, porque é ela que regula a língua e a torna percetível e clara. É ela que regula o nosso património maior, a nossa língua, guardiã da nossa História. É na língua, portanto, que se guarda quem fomos, o que somos e para onde vamos, o Quinto Império do porvir. Talvez, por isso, desconfie sempre quando se questiona sobre a utilidade desta ou daquela matéria. Aprendi que tudo tem sempre a sua utilidade, mais tarde ou mais cedo. Esqueceremos algumas aprendizagens, mas não se tornam inúteis por isso. Trata-se, evidentemente, de uma clarividência que surgiu apenas com a maturidade.

Assim, ao “para que precisamos disso se não serve para nada?” Respondo: também respiramos o ar que não vemos ou sentimos. No entanto, mantém-nos vivos.
Que os jovens pensem assim é normal, mas que os adultos os acompanhem, já me causa um certo prurido…

Por fim, às questões colocadas pelo jovem, lamento, mas não há respostas prontas. Terá de ser ele a encontrar o seu caminho, o seu sentido e a resposta às suas inquietações. Aviso que é um caminho que se faz ao longo da vida, às apalpadelas, para o qual é necessário um arsenal de conhecimentos, porque só tem inquietações quem as pensa.

Nina M.

 

 

domingo, 15 de novembro de 2020

Hoje

Cai a noite sobre o silêncio

Desfere a escuridão húmida 

De noite outonal

Fria  inóspita e indesejada

Silêncio sobre os silêncios do ser

Deveria ser verão 

Gosto mais dos silêncios quentes do verão

Sobre as risadas dos petizes na rua

Do céu estrelado e sem nuvens

Que se abre à esperança de mundos

Este inverno que se instala nos ossos

Leva-nos os gestos amorosos e pueris

Rouba-nos as almas amadas

Deixa o lastro imenso da sua ausência

Quero ver-te e abraçar-te

Afastar a solidão e a linha vermelha

Sempre o vermelho a interpor-se

A cor proibitiva e funesta

Sangue que brota das almas enxutas

Já sem palavras

Com tempo e sem poder de estar

De ser com os outros e de amá-los

De reinventar alegrias 

Antes que a eternidade os leve

No seu azul celeste mas longínquo





Crónica de Maus Costumes 206

 

Pulhitiquices

 

            Não consigo passar ao lado do tema da semana, uma vez que não vivo alheada da realidade que me circunda, na qual me movo e que é a realidade do meu país e dos meus filhos.

            Faço desde já a minha declaração de interesses para não ser mal interpretada na reflexão que farei, que é apenas isso, a minha visão e análise, à luz do que sou e do que sei e do que vou procurando saber. Naturalmente, haverá quem concorde e quem discorde e ainda bem. A democracia admite sempre o pensamento divergente e plural. Normalmente, eu tenho problemas com o inverso: a admissão de um pensamento único e totalitário. Porém, para não me perder, começo por referir a minha absoluta independência partidária. Não sou, nunca fui e não tenciono ser filiada em qualquer partido político, pelo motivo mais egoísta que pode haver: a manutenção da minha liberdade, da minha individualidade, da minha consciência e da minha integridade. Teria muita dificuldade em seguir a orientação do partido, se não concordasse com o sentido de voto. Seria vender a minha alma ao diabo e ela pode não ser a melhor coisa do mundo, mas é minha e não está à venda. Há quem a tenha toda, mas é uma dádiva que faço, no exercício da minha liberdade. Dito isto, acrescentar que repudio todo e qualquer regime repressivo das liberdades e qualquer regime totalitário, seja ele de direita ou de esquerda.

            A polémica estalou com o acordo feito pelo PSD Açores relativamente a algumas matérias com todos os partidos do espectro político alinhado à direita, incluindo o CHEGA. Eu compreendo as razões, mas discordo da estratégia. Penso que o PSD de Rui Rio, enquanto partido passível de ser eixo governativo, não deveria ter sucumbido à tentação. Fez o mesmo que o primeiro-ministro na sua primeira legislatura. Na altura, também não me pareceu ético a geringonça arranjada. Foi mero assalto ao poder, tal como o é agora, mesmo que a legislação o preveja. Estou completamente à vontade para o poder dizer, já que não votei em nenhum do candidatos. Ora, os socialistas estão a provar do próprio veneno e fazem-se de virgens ofendidas e o PSD a fazer o que tanto criticou. Hipocrisias políticas que detesto solenemente. Levantaram-se de imediato vozes contra (incluindo dentro da própria estrutura partidária) e a opção pode ser criticada (eu mesma já afirmei discordar da estratégia), já o argumento de que o CHEGA é um partido de direita radical e que não deveria sequer existir, lembro que se existe, obteve o aval do Tribunal Constitucional, instituição idónea e que, certamente, analisou cuidadosamente o seu programa e não encontrou matéria de fundo para impedir a formação do novo partido. Se gosto dele? Não. Se o aceito? Pois se vivo em democracia e a defendo, tenho de o tolerar. Posso ter o dever cívico de contestar a sua ideologia, mas a democracia não abre exceções para o que se não gosta. Tal como não gosto deste partido conotado com a direita radical, também não gosto dos partidos de extrema-esquerda e que, na minha humilde opinião, também existem em Portugal, mas tolero-os e, neste momento, até são parte da geringonça. Instalada a polémica, não faltaram debates e comentadores a saltar a terreiro utilizando o argumento de que o CHEGA não pode ser viabilizado na nossa democracia e que não se pode confundir o PCP ou o BE com ele. É apresentado o argumento da luta do partido comunista contra o fascismo e do papel vital da ex-União Soviética no combate contra o nazismo. De facto, não se pode negar nem uma coisa nem outra, todavia, é preciso lembrar que os russos libertaram diversos países europeus, mas de seguida impuseram o seu totalitarismo. Não falta literatura a relatar os malefícios feitos ao povo, que se viu livre do jugo alemão para passar a estar sob o jugo soviético. Quem lê Milan Kundera, por exemplo, no seu romance mais famoso, A Insustentável Leveza do Ser, percebe o que foi e como foi e compreende porque o escritor checo se mudou para Paris e escreve, atualmente, em francês. De salientar que ele viu a sua nacionalidade retirada pelo partido comunista da ex-Checoslováquia e que lhe foi restituída há relativamente pouco tempo, quarenta anos depois. Tudo gente muito democrática! E se acaso se lembra o genocídio perpetrado por Estaline, as ditaduras atuais na Venezuela, Coreia do Norte, China e Rússia e a miséria daquele povo, bem como a falta de liberdade, perante este contra-argumento, surge a justificação de que o comunismo português não tem as mesmas características nem é um partido extremista. Pois muito bem… Lembram-se que Chávez também começou por ser democraticamente eleito, certo?! Lembram-se da situação da Venezuela antes de Chávez e depois dele e pior ainda com Maduro, correto?! Também era suposto esses senhores respeitarem a democracia e os seus valores! Em Portugal, o partido comunista nunca conseguiu fazer o mesmo, felizmente! Porém, foi só por falta de oportunidade, pois quem lutou por um verdadeiro regime democrático, no 25 de abril não deixou! O que foi o 25 de novembro? Uma tentativa revolucionária falhada para instaurar uma ditadura de esquerda, apoiada no regime soviético! O que foi a COPCON e de que forma foi utilizada? De repente, parecem todos uns meninos de coro e já não há paciência para essa complacência para com uma esquerda totalitária e castradora da dignidade e da liberdade do Homem! Não significa isto que defendo o Ventura ou fascismos (detesto a sua figura machista e hipócrita). Pelo contrário, repudio-os com toda a força da minha alma e bastou uma época de terror e de perseguições e de morte cruel! A era das trevas já passou e que fascismos e nazismos sejam definitivamente sepultados. Porém, não acredito na ideia romantizada que muitos portugueses fazem do movimento comunista no nosso país. Dei-me ao trabalho de ler os programas políticos portugueses e, pela forma como estão redigidos, parece que qualquer um deles serve! Todos preconizam as liberdades, o desenvolvimento político, social e económico, a melhoria das condições de vida dos cidadãos, etc. Só não especificam exatamente como pretendem fazê-lo. O PCP lá vai falando na reforma agrária e no combate aos latifúndios e criação de cooperativas (significa isto nacionalizações e expropriações, acabando com a iniciativa dos privados, com a propriedade e, logicamente, matando a economia) e o CHEGA fala no liberalismo como antónimo de totalitarismo, no direito à diferença e não à igualdade imposta por regimes totalitários, na não obrigatoriedade da escola pública ou de serviços de saúde pública (significa isto retirar a saúde e a educação das mãos do Estado, setores que lá devem permanecer por uma questão de justiça e de equidade social e capitalismo mais selvagem ainda). Refira-se que no programa deste não há qualquer menção xenófoba ou racista, porém, sabemos bem o terreno que pisam. Sempre a diferença entre o que se escreve e o que se poderia fazer e a eterna hipocrisia… Curiosamente, são estes dois partidos tão antagónicos que mais usam as palavras liberdade e democracia. Nos programas do PS e do PSD ela não é uma constante. Concluo, portanto, que para o “bloco central” a liberdade já está instituída e deve ser respeitada e para os outros dos extremos seja um conceito novo a reinventar e, por isso, o PCP fala numa “democracia avançada” e o CHEGA na “IV República”!

            Pela minha parte, espero que nenhum deles chegue ao poder como a maior força política e espero bem que façam os dois maiores partidos portugueses olharem para dentro e corrigirem seriamente as suas asneiradas sucessivas. A corrupção massiva a que se assiste nestas duas forças políticas (e estas verdadeiramente democráticas), as negociatas, os conluios, os esquemas que desgraçam este país são os responsáveis pelo extremar de posições e pela procura de alternativas que não o são verdadeiramente. Recuperem rapidamente os verdadeiros ideais e de pouco mais precisaremos! Por esta altura, Francisco Sá-Carneiro e Mário Soares conversam um com o outro, levando as mãos à cabeça, apesar das suas diferenças…

            Se não for viável a reestruturação destes dois partidos sem socratismos, Varas, Loureiros, Duarte Limas e afins, talvez prefira encomendar um Governo à Europa: Finlândia, Suíça, Suécia, Luxemburgo… Qualquer um deles servia, a avaliar pelo nível de vida desses cidadãos e das suas liberdades inquestionáveis! A dada altura, o nosso Eça, através do seu alter-ego, João da Ega, desejou a bancarrota e a invasão espanhola. A bancarrota, já veio por três vezes depois do vinte e cinco de abril (sempre pelas mãos dos mesmos, em abono da verdade), quanto aos espanhóis, a avaliar pelos últimos escândalos, a corrupção que temos já nos é suficiente! Deve ser mal endémico da Península!

            O panorama político português é um vazio de ideias e de valores. Os partidos abandonaram os ideais pelos quais valia a pena lutar. De modo que é sempre uma dor  a cada eleição, por ver a hipocrisia estampada entre o que afirmam e o que fazem. Temos tecnocratas que se tornaram políticos de profissão, muitos deles nunca fizeram mais nada na vida e estão lá para se servirem e não para prestarem um verdadeiro serviço aos seus concidadãos. É um desalento, uma decadência moral sem fim à vista… Porém, apesar de tudo e ainda assim, prefiro uma democracia doente a qualquer totalitarismo saudável. Os que apregoam os benefícios de tais regimes e muitos encontram-se fora da sua pátria, não sei o motivo que os leva a escolherem países de matriz totalmente democrática em vez de experimentarem as infinitas liberdades oferecidas nesses lugares idílicos! Não me cansarei de repetir à exaustão: totalitarismos nunca mais! Nem de direita nem de esquerda.

 

Nina M.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Ainda

Ainda me vês depois do silêncio?

Ainda irrompo os teus sonhos diletos

E te esventro a alma com violência?

Átomo em espera

Vida em suspenso

Aérea, leve e desalento 

Conto de fadas gasto

Exausto e vencido

Do outro lado da vida

Poesia em chama

(A exigir verdade)

Vive em mim e devora

Monstro sagrado

De um templo polido a dor...

Ainda me sabes 

Na exata escuridão das palavras?

Sem aurora ou futuro 

Anúncio de morte prematuro?

E ainda me queres assim... Despojada...

Só de alma inteira 

Mas perdida na estrada?

Se ainda me vês no silêncio 

Na exata escuridão das palavras

No anúncio prematuro de morte

Na poeira dos caminhos...

No tudo que se despreza e do que se foge 

Sabe que me encontras mais fundo

Do lado imaterial do mundo

Onde os pássaros não cantam

Onde o céu escurece

E as árvores secam 

Bebe... Bebe do leito desse rio

De águas paradas em pousio

Para no esquecimento viver






sábado, 7 de novembro de 2020

Embriaguez

Poder saciar o desejo no teu corpo

Cinzelar a pele o meu barro a gosto

Despudoradamente livre e sã

Fazer nova vida novo amanhã 

Morrer depois do amor

No teu abraço 

Morreres-me de paixão 

Em mim e de cansaço 

Lava ardente que nos una

A verdade da essência nos consuma

Eu nos teus olhos veja o desejo crescer

Tu nos meus saibas o suave renascer

Nessa dádiva divina e secreta

Um fogo que se alastra pela sesta

Abraçados um no outro a mesma sina

Destinados à eternidade

Profecia sibilina

O universo é meu e teu

 Vida que se não perdeu  

No meio da neblina






Crónica de Maus Costumes 205

 

Tareia de cócegas e de beijos

Um dos livros mais ternurentos que li é O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, descendente de portugueses. É sobejamente conhecida a história e já foi imortalizada também em telenovela e filme. A novela passou e eu era catraia. Tenho uma vaga ideia da Godoia (a irmã que melhor compreendia o Zezé), a atriz Cristina Mullins, com rosto de lua cheia e olhos gigantes cor de céu. Não vi. O livro leria muito mais tarde, já adulta, e o filme, ainda ontem, vi a sua versão mais recente.

Invariavelmente, eu fico sempre um pouco desgostosa depois de ver o filme, conhecendo o livro. A película não é má e trata os episódios que mais se destacam, mas o livro é infinitamente mais ternurento e violento também. Impossível ficar indiferente às travessuras de um Zezé arteiro, mas cheio de doçura, como a generalidade das crianças, desejoso de um amor que não tinha na família e que foi encontrar no amigo Portuga. O pé de laranja lima, o amigo em que Zezé montava para fazer as suas cavalgadas, é a prova de que a imaginação pode salvar o que sobra da alma de alguém. O último reduto de quem se sente só, abandonado por todos e incompreendido. A árvore com quem Zezé conversava conservou-lhe a sanidade mental. Ela foi, mais tarde, substituída pela presença do Portuga, a quem a criança adotou como pai, de quem lhe veio o sabor e o cheiro do amor. Zezé ficou órfão duas vezes: a primeira, do pai biológico, de quem levava surras monumentais e a quem matou, como explicou ao português, num diálogo comovente. Devagarinho, o coração da gente vai matando aos poucos e, quando nos damos conta, a pessoa já morreu, mesmo que viva. A segunda, do pai que ele escolheu, o seu amigo português.

A história enternece quer pelo conteúdo quer pela atualidade. Infelizmente, os maus tratos infligidos a crianças continuam na ordem do dia. A mão lesta de quem castiga terrivelmente, desmesuradamente o atrevimento e a travessura infantil não deixou de existir. Uma violência gratuita justificada pelo mau comportamento e pela necessidade de educar, mas essencialmente, um lavar de frustração e de raiva pela vida que se tem a cada bofetada desferida. Cada golpe manchava a autoestima do garoto, que pensou em suicidar-se para acabar com o seu tormento. O menino foi salvo pelo amor do Portuga a quem pediu que o levasse para sua casa e, quando confrontado com a morte dele, adoece emocionalmente. O pai tenta recuperar a sua imagem e o seu papel, depois de ter resolvido os seus problemas financeiros e com o álcool, mas nunca chegou a perceber que seria demasiado tarde, que o seu papel de pai já não lhe cabia, que o filho já o tinha morto há muito e nada do que fizesse poderia importar. A redenção do miúdo veio pela mão do amor que não mais o abandonou, mesmo depois da morte da fonte.

Os meus filhos viram o filme também, ainda que com alguma resistência do mais velho, que está na idade de rejeitar o que os pais teimam em aconselhar. Porém, depois da recusa teimosa, o interesse foi surgindo e, no final, ficou a satisfação. Em tempos de tanta mediocridade, é imperioso oferecer qualidade.

No fim do filme, depois de alguns esclarecimentos, a minha doce Matilde soube lembrar o tempo em que, mais pequeninos, a mãe os deitava e invariavelmente se despedia de cada um com uma “tareia de cócegas e de beijos”. Era a nossa despedida a cada anoitecer e, ontem, depois de a recordarmos, teve que se repetir, apesar dos pudores da adolescência de um (às vezes mais fingidos pelo dever que a idade comporta do que por vontade) e da relutância da outra, cujos nove anos já não justificam tal lamechice. O certo é que nenhum deles se furtou às carícias nem esquecem do beijo ou do abraço antes de deitar.

Ainda há quem julgue que o amor não cura?

 

Nina M.

 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Felicidade

Se um olhar de felicidade basta

E o vento com o seu sopro arrasta

A verdade do ser límpida e clara

Lar dos sonhos do amor mais puro

Preservado do mundo obscuro

Da volatilidade que magoa

Exige o dia um saber eterno

Exige a alma um beijo que voa

E pousa sagrado, doce, na noite estrelada

Morada das almas, a via dourada

E adormece feliz com a magia

De um regresso a casa ao fim do dia

E se alguém perguntar por onde errou

Saberá dizer a alma fugidia:

- No lugar onde a felicidade se encantou

 Por ver que o seu amor não morria