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quinta-feira, 29 de abril de 2021

Super lua

 Super lua!

Entre lábios de algodão 

Oferece-se  num beijo


Vela toda a alma nua

A brilhar na escuridão 

A sua ânsia e o seu ensejo


Pensa no seu silêncio

Lê nas suas crateras

O indizível pensamento


Sabe de todas as quimeras

Ocultas na intimidade

Em secretas primaveras


Legítimas e sem idade

Escondidas no seu brilho

Dão à noite claridade


Se o dia amanhecer 

Com o halo dessa prata

É a vida a acontecer


É o sonho que não mata



 













segunda-feira, 26 de abril de 2021

Estranho o perfume

Estranho o perfume

Do meu casaco emprestado

A outrem - bom por sinal -

Porém ausente de mim

Tão estranho como se a essência

Que me habita fugisse deste

Corpo literal feito de carne e de sangue

E então assim não seria eu

Que seria de mim sem o meu corpo?

Ser seria, certamente, mas não eu. 

Talvez só a possibilidade de mim

Ou um eu mutilado de mim

E sorvo o cheiro a golos pequeninos

Por ser bom mas estranho-me 

E percebo a possibilidade de ser

Apenas neste limite corporal que é o meu

E pergunto-me sobre o que será a morte

A finitude plena ou ensejo de alma que voa

E vejo Eça, Pessoa e Torga e Sophia e Saramago 

E reconheço-lhes as palavras encerradas no rosto

Dos retratos que nos mostram os livros

Eles são as palavras e o corpo que não possuem

Mas são corpo e alma. Assim os vejo e os ouço.

sábado, 24 de abril de 2021

Um só momento

Um só momento

E todo o tempo se suspende

Como quem inspira todo o ar

necessário a um novo respirar

Todo o ser se acomoda

Ao seu lar tão natural

Nem sombra de nuvem

Alegria virginal

Um só momento

E é a eternidade

Que se adentra


Crónica de Maus Costumes 229

 

O poder da literatura e a importância da leitura

                Assisti, com primordial interesse, a uma tertúlia digital promovida pelo Partido socialista, orientada pela Dra. Edite Estrela. Lembro-me do seu programa televisivo “Falar Português”, baseado em pequenos apontamentos sobre como escrever e falar corretamente, quando era ainda uma jovem liceal, a quem, desde já agradeço as lições e o facto de nos ter poupado uma aula aborrecidíssima de Português, por incompetência de quem a lecionava. Aprendemos, certamente, bem mais com o programa do que com a aula que teríamos. Infelizmente, sempre houve maus profissionais em todos os setores e a educação não escapa ao martírio.

            O debate orientado pela Dra. Edite Estrela teve como intervenientes a escritora Lídia Jorge e o Professor, ensaísta, crítico literário e também poeta, António Carlos Cortez. O tema tratado era sobre o papel da leitura nos dias de hoje, “A leitura hoje: para além do feitiço dos ecrãs”. Abordou-se, entre outros assuntos a falta de interesse dos jovens, os nativos digitais, pela leitura e as consequências nefastas que tal comportamento traz à sociedade, com a participação dos internautas que iam manifestando as suas opiniões nas caixas dos comentários. Naturalmente, quem assistiu seria um público leitor e, como tal, defensor do livro e dos tremendos benefícios da leitura. Genericamente, concordo com as posições dos intervenientes e compartilho a mesma preocupação evidenciada por ambos, relativamente ao facto de os nossos jovens não lerem. Na verdade, o povo português não é leitor. Nunca foi e o professor Carlos Cortez identificou razões históricas sobejamente conhecidas, capazes de explicar parte do problema: O facto de vermos instaurado O Tribunal do Santo Ofício, vulgo Inquisição, durante 285 anos (1536-1821). Todos nós sabemos o que foi Índex e a perseguição a vários intelectuais, portadores de novas ideias que pudessem fazer perigar o poder clerical, assim como o controlo das livrarias. O livro era, assim, o inimigo herege que era preciso combater. Mais tarde, já no século XX, o país viveria a ditadura salazarista, a mais longa da Europa, também ela inimiga do livro e das novas ideias, que o lápis azul da censura cerceava. Desta forma, se compreende a pouca afeição do português pelo livro. Paradoxalmente, quer nos regimes fascistas quer nos regimes totalitários comunistas, o livro e a palavra assumem uma importância vital para a sociedade. Da lista negra de autores portugueses faziam parte Urbano Tavares Rodrigues, Miguel Torga, Alves Redol, Natália Correia, Herberto Hélder, Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira, entre outros. Nos estrangeiros apareciam Jorge Amado, Jean-Paul Sartre e todos os que defendessem a ideologia marxista. Porém, a imaginação e a palavra vão mais longe e surgem as músicas e a literatura de intervenção, a mensagem que apela ao vento de mudança, por mais que este atrase a sua vinda. Nestas circunstâncias, nunca a literatura foi tão necessária. Lembro a poetisa russa Akhmatova, que caída em desgraça perante Estaline, por ter travado conhecimento com Isaiah Berlin, de origem russa, mas criado em Inglaterra e tido como um espião inimigo do país, se viu denegrida pelo aparelho estatal e remetida ao esquecimento, aquela que no auge havia sido apelidada de “A Safo russa”. Akhmatova não esmoreceu e o seu poema “Requiem”, que tanto perturbou Berlin, seria decorado e dito a um grupo restrito de amigas para não ser esquecido e mais tarde, impresso clandestinamente, num sistema de autopublicação (samizdat) e, posteriormente, no estrangeiro (tamizdat). É numa publicação Samizdat que a russa lê Soljenítsin, “Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch”, mais tarde agraciado com o prémio Nobel. Se a poetisa denunciava no seu “Requiem” o desespero da espera no exterior de uma prisão, sem esperança, na época da purga estalinista, Soljetsín narra cruamente um dia passado no “gulag”, que por experiência própria conheceu. Primo Levi fez o mesmo sobre os horrores do Holocausto, num relato vivenciado em primeira pessoa, numa descrição seca da crueldade. Tome o leitor para si a sua indignação. A literatura a interessar-se pela vida e pelo homem comum, a tornar-se o testemunho e a denúncia dos horrores.

Porém, o livro pode ser outra coisa para além de intervenção e veículo de comunicação: pode ser o refúgio de uma realidade insuportável. A criação de um novo mundo, uma nova vida paralela para quem escreve e para quem lê. O antidepressivo que os tempos modernos exigem, a suspensão e o congelamento do tempo, o alheamento lúcido tão necessário. Portanto, quando me dizem que não compreendem como se gosta de ler, contraponho que não entendo, como é possível não gostar de o fazer! E quanto mais lemos, mais exigentes nos tornamos nas escolhas. Para se ter um país de leitores é necessário educar para a leitura. É necessário recentrar o livro na sala de aula. Investir no texto literário (no currículos regulares). Quem interpreta um texto literário, mais facilmente lê uma reportagem, uma notícia ou qualquer outro texto de imprensa! É necessário apostar na formação literária e contínua dos professores. Considero absolutamente ridículo querer fazer ações de formação na área da literatura e não haver ofertas nos centros de formação! Um professor de Português precisa bem mais do livro do que da capacitação digital! A aula de Português deve ser a ágora, onde se aprende a interpretar, a analisar, a explorar ideias e a escrever. Os sucessivos governos vêm delapidando o ensino e os resultados estão à vista. Por último, relembrar a necessidade de criar maior equidade na sociedade portuguesa. Sem isso, a valorização do papel da escola e da cultura não será possível nem o livro será entendido como um bem de primeira necessidade. Por muito que nos esforcemos por passar a ideia, se a uma família lhe sobrar apenas quinze euros no final do mês, o investimento não será feito em livros. Não é feito por quem pode quanto mais por quem passa necessidade! Esta é a realidade portuguesa que observo no meu contexto laboral. Os alunos não leem autonomamente. Nem sequer têm livros em casa, mas gostam da leitura em sala de aula e aí querem ler! Os meus alunos lastimaram o término do estudo de Gil Vicente. Alguma coisa deverá ter ficado. Não sei se Camões será bem-sucedido. Veremos. O que não pode acontecer é, perante o meu entusiasmo camoniano, enquanto lhes explico a genialidade de construir 1102 estâncias que obedecem criteriosamente a uma apertada estrutura formal, enquanto narra a viagem à Índia e a restante História de Portugal e ainda as mistura com planos mitológicos e considerações do poeta, obter como resposta: “Isso é de quem não trabalha e de quem não tem mais nada para fazer”! A desvalorização da arte e do trabalho poético (que não é entendido como tal) cabe nesta observação que tratei de demonstrar ser errada.

           

Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho

Destemperada e a voz enrouquecida,

E não do canto, mas de ver que venho

Cantar a gente surda e endurecida.

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Düa austera, apagada e vil tristeza.

Camões, in Lusíadas, Canto X

Nina M.

 

sábado, 17 de abril de 2021

Crónica de Maus Costumes 228

 

Infância

            É sempre tão bom recuperar pedaços da nossa infância! O tempo da inocência em que não se percebia nada de política nem se sabia da maldade do mundo…

            Lembro-me de certo dia, uma senhora parar à minha porta, num mini, e perguntar sobre a localização da casa da minha tia. Eu teria por volta dos sete ou oito anitos e tentava explicar o trajeto. Não deveria estar a ser bem-sucedida, pois a condutora sugeriu que lho fosse indicar, que depois me voltaria a trazer ao destino, o que fiz prontamente. Escusado será dizer que tal comportamento me custou uma descompostura da minha mãe, que eu não compreendia, porque afinal estava apenas a ajudar alguém. Era essa a justificação que apresentava à pergunta furiosa da minha mãe “Então não sabes que não se vai a lado algum com desconhecidos? Se a senhora fosse má poderia ter-te levado. Há adultos maus!”

Bem, penso que a partir desse dia, compreendi que não era exatamente verdade que deveríamos ajudar todos os que de nós precisassem e, apesar da minha mãe, muito zangada, me falar de raptos de crianças, eu pasmava e interrogava-me sobre o motivo de alguém me querer levar, pois não serviria para nada a não ser dar trabalho! Não fazia qualquer sentido e eu insistia que a senhora precisava de ajuda e que cumpriu direitinho com o prometido, porque me trouxe de regresso a casa. Pelo meio, tinha de ouvir o meu irmão mais velho a dizer à mãe que bem tentou dissuadir-me, mas sem qualquer efeito. Normal, claro. Se ele dizia que não, mais um motivo para eu ir, porque é sabido que os manos mais velhos não têm nada que mandar nos mais novos!

Fui, naturalmente, sob ameaça e coação, proibida de repetir a façanha! Compreendo, hoje, a aflição retardatária da minha mãe, ainda que naquele tempo os perigos fossem menores, também existiam. Se fosse a minha Matilde a fazer algo do género ficaria doida! A miúda desapareceu-me num sonho e eu acordei numa aflição e num sofrimento atroz!

Sei que esse episódio quebrou, de alguma forma, a minha ingenuidade e o meu encanto. O primeiro contacto com a hipotética maldade que nos mostra que afinal há adultos que não são confiáveis e que nos podem fazer mal… Por algum motivo o recordo.

A dor do crescimento está relacionada com a perda da inocência e com o desencanto do mundo. Não acontece de uma vez só, na maioria dos casos, mas à medida que vamos vivendo… Talvez por isso, a absoluta felicidade nos seja interdita a partir de certa altura. Quando o olhar virginal se esvai não mais se recupera…

 Sei que tenho momentos na memória de irremediável e de inequívoca felicidade, daquela de fazer inveja. Lembro-me bem de ser jovem universitária e de me sentir, em certos momentos, despudoradamente feliz. E sei olhar e ver ali muita inocência há muito perdida. Ou então recuar aos tempos de meninice e ver três gabirus absolutamente felizes por irem fazer um piquenique numa ilhota perdida no meio do Tâmega, no Marco de Canaveses, transportados em barco a remos até ela para passar o dia, com direito a banhos, ou das corridas loucas e dos saltos nas dunas de Mindelo, cuja água, hoje, me eriça a pele, mas que naquele tempo estava sempre boa, até ao momento em que o disco alaranjado decidisse repousar e adormecer no mar. E recordo os jogos no monte ao pé de casa, uma espécie de paintball sem armas e sem tintas, apenas com a senha: “tau! Estás morto! Vai para o penedo!” E íamos e de lá gritávamos com a força que os pulmões permitissem que estávamos mortos para a nossa equipa perceber a baixa. Nunca vi mortos tão satisfeitos! Ou a descoberta de minas de água e da apanha das amoras, dos agriões nas presas, enfim… Um bando de ganapada à solta com um mundo por descobrir.

Recordo tudo com saudade e com a consciência de que tive uma infância tão feliz! Muito mais feliz do que a de muita gente, sem o merecer mais ou menos… Até para se nascer é preciso ter sorte. E nada se prende com dinheiro, porque não havia em excesso. Porém, sobrava amor. Disso estou certa.

 

Nina M.

 

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Abril

Se avistar o fim deste meu cansaço
E se sentir em mim o doce encanto
Renascer como o riso a compasso
Do amor que traz consigo o seu espanto  
 
Acreditar num possível futuro
Feito de fraternidade e justiça
Na coragem de derrubar o muro
E ver que o Homem rejeita a preguiça

Sai à rua pedindo aos seus iguais
Revolta que já foi também dos pais
E nessa ânsia e sede de uma vitória

Se fizer de novo um melhor abril
Soltam-se hinos à ação meritória
Festa do povo, delírio febril




Mil poesias me habitam

 Mil poesias me habitam

 Num excesso louco de ser

De mim se rasgam

E brotam em verso

Pingam as sílabas

Pensamento disperso

Sangue jorrado em  êxtase

Espanto por ser real

A palavra que não se silencia

Procura a denúncia do mal

Catarse de uma vida que angustia

Ao ver o crime de Caim repetido

É  humanidade em demasia

Que profana sem cessar

O Santo Graal

Que divindade porá fim à heresia

De ver um homem o seu semelhante

Ultrajar?



Maternidade

O sangue por entre as pernas

Possibilidade desfeita de um novo ser

Esvai-se...

Milagre que se perdeu

Vida que não viveu

Num eterno parto repetido

Quem quer prenhes os

Vasos coletores de esperma

Quebrados depois do ofício?

Vê-los albergue de gente

A qualquer preço?

E no fim da missão

Ver a sua eterna devoção

De mãe escarnecida

Reduzida ao ínfimo papel natural

De fêmea parideira esquecida



 




segunda-feira, 12 de abril de 2021

Liberdade condicionada

 Sou livre

 Entre mim e o meu íntimo

Apenas se interpõe o outro

Cujo sangue me recuso a verter

Fui ensinada assim

E nesta consciência dolorosa

Ou dádiva disfarçada de cobardia

- Conservadorismo que condena o eu -

Entre sofrer uma injustiça ou praticá-la

É melhor sofrê-la - Diz Sócrates (o verdadeiro)

Corroborou mais tarde Cristo

E eu filha dessa cepa ancestral

Acredito

Verto o meu sangue não o alheio

O sangue do outro tem de importar

Memoro o poeta sentado no banco 

De permeio

Mesmo por baixo da esperança

Haveria de se matar

O génio que é um santo

Com dois tiros certeiros

Por ver morrer o Ideal

Pela morte se fez libertar

Mors liberatrix!

Houvesse mais Antero

Esse Ideário nobre

Talvez Portugal não fosse 

este famigerado opróbrio

Eterno Descanso se quer

Na mão direita de Deus.







sábado, 10 de abril de 2021

Colo

Estende-me o teu regaço

E oferece-me o teu colo 

Meu abrigo seguro,

Fecha-me delicadamente as pálpebras

dá-me a mão e afaga-me o ventre.

Talvez assim abafes esta minha labareda

Inquietação ardente de misérias humanas

Abriga-me, meu lar, meu ninho ...

Que hoje sou pássaro pequenino

caído do beiral

Assustado com a algazarra infernal

Ferido na asa 

Com medo de não voltar a casa ...

Minha poesia, 

Só a ti assim despida me posso dar...

A ti me entrego feliz ou desesperada

Possuída por paixão desvairada

Repara, bela Calíope,

Não volteio ou te firo na linguagem,

Minha musa tão amada

Consolo da resignação

Nos difíceis dias de sangue em fulgor

Por minha sanidade te escrevo

A salvar a alegria com que me atrevo

Nua, inteiramente tua em ti me deitar

Fazer de ti o meu leito, o meu aconchego

Embala-me com palavras de amor

Só para em ti poder morar



Crónica de Maus Costumes 227

 

Indignação, pessimismo e resignação

            O final do dia de ontem e o dia de hoje foram marcados pela ira e pela impotência ao sentir que vilipendiam o país. Nada que não esperasse. Por fim, a montanha pariu um rato e o mesmo sucederá com os restantes casos.

            A (in)justiça portuguesa é uma vergonha! Nem é cega e a balança está desequilibrada, pois pende sempre para o lado do poder. Não sou jurista nem sei nada de leis e não significa que não admita que o Senhor Meritíssimo Juiz não tenha efetivamente feito cumprir a lei, mediante os pressupostos que ela exige. Não sei se o senhor doutor fez uma interpretação alargada do espírito da lei ou se efetivamente a seguiu à risca. Dura lex sed lex. Isto, porque independentemente dos factos provados ou por provar, das prescrições e dos erros processuais que tornam as provas inválidas, só significa uma coisa: a Justiça em Portugal não condena gente poderosa. Desde Gil Vicente que o sabemos. Quem redige as leis que nos regulam? Com que interesses, omissões e linguagem pouco clara são redigidas? Como poderemos alguma vez confiar na justiça e acreditar na efetiva separação de poderes? A quem interessa um Ministério Público incompetente por falta de meios humanos e materiais? A quem interessa uma Justiça que emperra nos megaprocessos e deixa prescrever crimes? A quem interessa uma Justiça que não vê má-fé nem corrupção em nada? Foi assim com Sócrates (nem admito chamar-lhe engenheiro, porque ninguém faz cadeiras a um domingo), com o Oliveira Costa, com o Joe Berardo e assim será também com o Ricardo Salgado. A ironia suprema será ainda o país ter de pagar uma indemnização choruda a esse grande animal político (confirma-se a sua autodefinição) e vê-lo ainda a rir-se descaradamente na cara dos portugueses, tal como fez já o Berardo.

Estas injustiças apoderam-se do meu espírito e transtornam-me verdadeiramente. Conseguem perturbar a minha paz de espírito e, por mais que o tente evitar, retiram-me o sossego. Fervem-me as entranhas e geram-me uma irritação tamanha, fazendo-me vociferar impropérios e soltar o que de pior tenho. O que eu mais desejo a estes senhores, que escapam das malhas da justiça como as enguias por entre os dedos molhados, é que sejam apupados, verdadeiramente enxovalhados em praça pública. Estimo que uma vez na vida os portugueses mostrem nervo, se indignem e sobretudo que não esqueçam! Como pode a desfaçatez chegar a tanto?

Temos gente a viver miseravelmente neste país. Gente com pensões de miséria e que trabalharam honestamente uma vida inteira para estes vendilhões do templo tomarem o país a saque. Felicito-os a todos, porque acabam de carregar a arma Ventura com extraordinárias munições! Apetece-me esbofeteá-los até à exaustão!

Sinto a alma ferida com um tiro de morte. A inocência e a ilusão que nos são devassadas e o nosso ser que sangra. Para os escroques nada importa o sangue dos outros. Tento inutilmente livrar-me desta lucidez agreste que angustia. Olho para trás e sei que sempre foi assim e não vejo melhor futuro. A política portuguesa está tomada pelas oligarquias de certas famílias. Vivemos numa república com vícios antigos de monarquia… Hoje, os pais, amanhã, os filhos e sobrinhos e netos... Gente que não sabe o valor do trabalho, mas sabe o preço de tudo, o deles inclusive.

Perco-me na biografia do senhor Nabeiro, do senhor Rui, e a sua alma generosa parece-me ainda maior. Noventa anos de bom exemplo e de boa gestão. Noventa anos de amor à sua terra e às pessoas. Sempre o sorriso e o otimismo… Noventa anos de humanismo. O verdadeiro socialista (como faz questão de afirmar). Ele pode efetivamente afirmá-lo.

Ponham os olhos, vermes sanguinários! Ah! Quanto ofertaria pela inconsciência – a garantia da tranquilidade – mas a maldita lucidez não o permite e o pessimismo penetra nas veias como veneno célere. Traz a cólera e o cinismo ao qual não me quero render. O que fazer com a raiva que nos consome? Invariavelmente, tudo termina em tinta sobre o papel. E percebo porque escrevo. Em última instância para tornar o mundo mais suportável. Eu, que paradoxalmente, sou munida de alegria e de gosto pela vida… Eu que procuro o melhor lado das coisas… Hoje, fui vencida e reinou a ira. Um país que mereceria melhor gente…

E ao longe dos anos vejo o largo oceano com uma imensidão de verde nas costas sob a abóbada azul celeste e penso que poderá ser o último refúgio para terminar os dias longe desta doença numa feliz resignação…

Um dia sem morte, pedia o Tribuno romano, um dia sem morte…

Nina M.

           

 

               

 

sábado, 3 de abril de 2021

Crónica de Maus Costumes 226

 

Reacionarismo

            Ao que parece, por estes dias, o Sr. Engenheiro Carlos Moedas, candidato à Câmara Municipal de Lisboa, pelo PSD e CDS, terá tido um comentário pouco elegante e muito machista sobre a Mónica Bellucci, a bela atriz e modelo italiana, no programa do Ricardo Araújo Pereira. A intenção terá sido provavelmente aligeirar a conversa e fazer uma piadita que soou a piadola de mau gosto.

            Segundo o senhor engenheiro, a dama em questão já não será a embaixadora ideal para Lisboa, por já ter uma certa idade… Ora, em primeiro lugar, eu vi uma fotografia da senhora para uma campanha publicitária da Cartier e vejo tudo menos uma mulher acabada! Bellucci transpira beleza, sensualidade, mas também elegância e bom gosto. Mais do que a beleza plástica é a ideia de sofisticação que a Cartier está a vender. Qualquer mulher ficaria encantada se fosse portadora da beleza, elegância e da sofisticação desta senhora, do alto dos seus cinquenta e seis anos. Muito mais interessante e atrativa que qualquer gaiata. Evidentemente, a campanha é o engodo que se sabe. Não é por ostentar uma joia Cartier que a beleza e a classe se apoderam da mulher. A elegância prende-se muito mais com a atitude do que com os objetos caros que se pode ostentar. Nem todos a possuem.

            Numa pesquisa rápida, percebe-se de imediato que o senhor engenheiro foi muito infeliz. Associar Bellucci a Lisboa seria fazer da cidade uma mulher madura, sim, mas belíssima, independente, segura e sofisticada. Que melhor imagem se pode desejar? Porém, não é o episódio infeliz que me preocupa sobremaneira e até penso que o candidato não teria qualquer intenção de ofender ou de minimizar a bela italiana, mas o desejo de atribuir à capital qualquer toque de modernidade e procurar uma musa inspiradora da juventude?! Nada disso importa. Incomoda-me realmente é o discurso enraizado que traduz a sociedade ainda marcadamente machista e esta, sim, deveria já estar fora de moda. Com esse comentário, mesmo que não fosse a intenção do candidato, está implícita a ideia de que a mulher só é atraente e sensual até determinada idade. Depois, fica fora de prazo. Ora, senhor engenheiro, ocorre-me fazer uma brincadeira um pouco ordinária e dizer-lhe que deve ter um caixote do lixo invejável! Irrita-me esta exigência e pressão para com a mulher, que faz com que tantas de nós se sintam feridas na sua autoestima porque se acham gordas, barrigudas, velhas e sei lá o que mais!

            Cavalheiros, vamos lá ver se nos entendemos, as mulheres da minha faixa etária e até mais novas podem apreciar um George Clooney, mas nem todos os cinquentões que por aí circulam têm esta atratividade! O que pretendo dizer sem paninhos quentes é que muitos homens exigem das mulheres qualidades que eles não têm! As marcas da idade não vos tornam, forçosamente, mais charmosos e apetecíveis! Nalguns casos, sim, noutros nem por isso! O Ricardo Carriço está muito mais apetecível, neste momento, do que nos seus trinta, por exemplo. Porém, não é um caso muito vulgar… Vós, homens, também sois contemplados com as entradas, a barriguinha proeminente, as cãs (na melhor das hipóteses) ou calvície noutros casos! Também perdeis a juventude, aquela que exigis que a mulher mantenha ao longo da vida… A biologia é infalível e todos nós, sejamos homens ou mulheres, envelhecemos. É factual e irrevogável. Vale mais aceitar isso e tentar envelhecer bem. Não adianta procurar uma eterna juventude que não existe, que vai sendo prolongada com o ácido hialurónico e o botox e que culmina, tantas vezes, numa desfiguração e numa artificialidade indesejáveis.

As gordurinhas e a flacidez, as rugas e a celulite são provas de vida e de existência. Compreendo que as mulheres queiram gostar da imagem que o espelho lhes devolve e que façam alguma coisa para o alcançar, que se cuidem. Todas gostamos, não serei hipócrita e não corro os meus dez quilómetros à toa, mas daí a viver em função de uma imagem e de um corpo é apenas absurdo! É um insulto à inteligência com que se foi dotada. O que diz da mulher o elogio “és muito bonita”? Absolutamente nada. Quem o é nada fez para o ser. É mero fruto das circunstâncias e da natureza divina. Quanto muito poderá agradecer aos genes dos progenitores. Por outro lado, por que razão agradar ao elemento masculino é importante? Na natureza, é exatamente o inverso! O pavão macho é quem tem a bela cauda e aquele azul estonteante para agradar à fêmea! Esta pressão social para que a mulher seja sempre bela e jovem é insuportável e só serve para engordar o bolso da indústria cosmética e das cirurgias plásticas cada vez mais em voga. Francamente, incomoda-me que as mulheres se preocupem mais com a sua aparência do que com a sua essência. Compete a cada uma de nós descobrir o seu papel. Encher a nossa existência mais ou menos bonita com a melhor essência que conseguirmos. Se me dizem “és uma mulher bonita”. Agradeço, por educação, mas nada me acrescenta, porque não tive qualquer responsabilidade nisso. Porém, se me dizem, “pensas bem ou sabes pensar” fazem-me brilhar os olhos, porque aí talvez já tenha algum mérito. Um sobrescrito muito belo sem uma missiva bem escrita lá dentro carece de substância e isso nem o cirurgião plástico mais habilidoso poderá arranjar…

Certamente, hoje, a Mónica Bellucci será inteiramente mulher. E que bela mulher, diga-se!

 Nina M.