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sábado, 26 de maio de 2018

Crónica de Maus Costumes 84


            Lembro-me de Torga e do seu reino maravilhoso. Do quanto lhe fugiu, inicialmente, porque se viu a isso obrigado para melhorar as suas condições de vida. Depois, já médico e regressado do Brasil irritava-se com as quezílias simplórias dos seus habitantes, que se aborreciam por conta do uso da água ou da parede que dividia o terreno dele da do vizinho. Questões do quotidiano e que são as preocupações maiores destas gentes que da terra retiram os bens que consomem.
            Afligem-lhes o espírito as surpresas da natureza caprichosa que tanto decide ser cúmplice e amiga como escolhe ser cruel e com um temporal imprevisto destruir o fruto acabado de nascer, mas cuidado desde antes da nascença. Perante tanta adversidade e dureza rude do trabalho, o transmontano desenvolve uma resiliência descomunal. Ao longo da vida, tem de recomeçar inúmeras vezes por perder subitamente o que tinha plantado, sem pré-aviso nem complacência. Sabe da injustiça, mas também está consciente de que nada pode contra a natureza. O calo das mãos trabalhadas pela enxada aloja-se também no coração, porque dos fracos não reza a história.
            Assim, estas gentes não têm tempo a perder com questões filosóficas ou metafísicas. A sua inquietude é a terra que pisam e trabalham, os animais que alimentam e aos quais são apegados. A inveja maior é verificar o lameiro do vizinho com o pasto mais verdejante do que o seu e que vai deixar as vacas saciadas e gordas para vender na feira.
            Esta sabedoria popular ignorante da ciência irritava o escritor. Teve de montar consultório em Coimbra para sobreviver, mas o tempo e a idade sempre sábia soube adoçá-lo e era ao seu reino, num regresso às origens, que retemperava forças e se equilibrava. Era um trabalho interior apreciado e cada vez mais estimado à medida que envelhecia. Soube perceber a autenticidade dentro de si, oriundo daquele reino que também a ele lhe havia moldado o caráter, revestindo-o da mesma dureza das penedias das suas serras.
            Acabou por perceber que a identidade original, franca e genuína, mesmo que por vezes sisuda e dura, é infinitamente melhor à hipocrisia do mundo citadino, onde há um código instituído que obriga a um jogo constante e delicado nas relações humanas. Parido das fragas, Torga recusava-se a adotar um comportamento que lhe era estranho. A franqueza desbragada impedia-o de jogar no tabuleiro das influências e, como bom transmontano que afinal era, haveria de triunfar só.
            Serviram-lhe de inspiração para a sua obra as múltiplas personagens conhecidas, com os seus defeitos e as suas qualidades, registando-as sublimemente nos seus contos, tão maravilhosos quanto o seu reino, as paisagens agrestes, mas belíssimas de um Douro imortal que lhe emolduram a poesia. A ele, quem quiser conhecê-lo melhor, sorva deliciado as páginas de Criação do Mundo e deleite-se.











sábado, 19 de maio de 2018

Crónicas de Maus Costumes 83




            No final de um dia cheio, pleno de trabalho e de obrigações, nada mais precioso do que o descanso merecido em frente da folha em branco que me aguarda pacientemente e com tolerância perante a demora.
            A ânsia para que esse momento chegue é um sinal inefável do meu envelhecimento, mas que aceito, sem birras ou tergiversações desnecessárias.
            O envelhecimento do ser humano é uma realidade irrefutável, mas envelhecer bem é uma escolha. Eu tento fazê-lo, mantendo um corpo são numa mente sã, de acordo com a máxima latina “mens sana in corpore sano”, por isso, me são tão fundamentais as atividades de leitura e de escrita, conjugadas com as corridas. Estimulo o corpo e o pensamento. Outrora quisera preferencialmente distrair-me com noitadas entre amigos e barulho, todavia, atualmente, prefiro o sossego do lar e o aconchego do meu sofá ou do meu leito. Sinais dos tempos e de maturidade. Estas pequenas alterações no paradigma comportamental permitem-nos perceber a passagem do tempo.
            As características basilares permanecem: sempre me vi bem-disposta e divertida, tentando sorver da vida o melhor que esta tem para me oferecer, salvo algumas vezes em que ela me presenteou com alguns dissabores para, em primeiro lugar, poder apreciar os momentos de felicidade quando esta me bate à porta e, em segundo, para me fazer crescer, porque é na dor que o ser humano se constrói e evolui. Felizmente, os tropeços não me dotaram de cinismo que me impedisse de ver a beleza da vida, apesar da feiura que também a rodeia.
            Quando me dizem que não querem perder o contacto comigo, mesmo que não estejamos no mesmo local de trabalho, no próximo ano letivo, enchem-me de alegria, primeiro pela manifestação sincera e espontânea de carinho, depois por ser um dos elogios mais bonitos que me poderiam fazer. O sentimento é recíproco, naturalmente. Dou-me conta, nessa altura, de que não desejo novas mudanças, inimigas da idade adulta.
Se antes não me incomodava a mudança anual de escola e até apreciava, pois conhecia sempre gente nova, neste momento, o cérebro liga os radares e avisa-me de que não quero novas alterações e que se fosse feita a minha vontade, tudo permaneceria como está. Esta resistência revela também envelhecimento, porquanto este seja avesso às transformações.
Não me apetece mudar de sala de professores uma vez mais. Gosto da que tenho e temo que não encontre melhor. A capacidade de adaptação nunca me faltou, porém, agora, trata-se de uma recusa consciente do que não se sabe o que vem e a valorização extrema do que se tem!
No carrocel de emoções e na instabilidade de que por vezes sou feita, tenho a certeza de querer esta permanente monotonia…

Nina M.

           

domingo, 13 de maio de 2018

Verbo



Verbo

Que seria do Homem

Sem o verbo?

Pensamento no sepulcro

Mutismo indefinido

Palavra gume e pedra

Atirada de fisgada

Palavra beijo

Carícia sussurrada

Palavra poeira

Levada pelo vento

Sementeira de ódio ou de paz

Palavra celebrada

No abraço apertado

Na mão enlaçada

Que se quer eternizada

Palavra amor

Que afasta a dor

E leva o temor

Palavra…