Seguidores

sábado, 28 de abril de 2018

Crónica de Maus Costumes 80





Hoje, quero prestar um tributo ao amor. Ousam os poetas descrevê-lo, pô-lo em versos lascivos, em palavras que se desfazem na dor ou que clamam enlevo. Registam-no os autores em largas páginas de encontros furtivos e desencontros duradoiros de que são feitas as saudades.
Amor, arma letal e redenção-purificação. O amor é necessariamente dialético: vive da tese e da antítese, à espera que os apaixonados sejam sábios o bastante para conseguirem fazer a síntese.
Se há amor destrutivo que queima tudo ao seu redor, é também das cinzas que o fogo purificador deixa que surja o ser renovado, capaz de amar uma vez mais.
Não é possível viver bem sem amor. Aprendemo-lo desde o berço. De progenitores negligentes resultam crianças infelizes e traumatizadas. Ser amado é imprescindível à construção da identidade, à existência de seres confiantes e seguros, capazes, eles mesmos, de amarem e de espalharem a boa nova.
Amam-se os pais, os filhos, os irmãos, o ser amado e cúmplice na vida, deveria também amar-se o próximo. Se a lei do retorno, a causa-efeito estiverem corretas, amor gerará amor e o mundo será contaminado pela semente boa e a humanidade salva, apesar da sua vil condição.
Em minha casa, o amor tem sempre permissão para entrar e permanecer. Só não pode sair, porque recuso-me a deixá-lo escapar pelas frinchas de portas e janelas. Assim, tenho uma casa cheia que gosta de acolher quem lá entra, desde que queira deixar um pouco de si e levar um pouco de nós. Um lugar feliz onde também há dias maus, mas que são amenizados pelo beijo que se recebe e pelo abraço apertadinho, acompanhado de palavras doces e meigas.
Quando olharmos o passado de frente não haverá lugar para o remorso do que não se disse e se algum arrependimento houver da palavra destemperada que saiu mais abruptamente, por rebeldia, desobediência e ímpeto, será aplacado pela misericórdia do amor, que toca o divino.
Se porventura o tempo selar os meus ouvidos e a minha boca, ainda assim sobrarão os meus olhos que pousarão sobre outro olhar e falarão sem palavras, numa valsa lenta e benigna. Restarão as mãos que se enlaçarão com ternura e os braços que se serram em amplexo profundo.
Se todos os meus membros perderem as forças e não for sequer capaz de um brando e leve toque ou de um suspiro profundo, sabei que morri, mas continuo viva nos vossos olhares, gestos e palavras que ajudei a construir.
Nina M.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Quando um dia eu for velhinha


Quando um dia eu for velhinha
De mãos e rosto sulcados
Pelas rugas e cansaços
Trarei rosas brancas no regaço
O Passado florirá nos lábios
Num sereno e terno sorriso
Tu enlaçar-me-ás as mãos
Como no primeiro dia
E fixarás num momento a eternidade
Não exaltarás a pele flácida e vazia
Nem os olhos gastos pelo tempo
Não quererás colher de mim
A seiva bruta do meu corpo
Nem beijos ardentes na aurora
Desejarás tão somente estar presente
No meu pensamento pela vida fora
Sonharás veemente a minha alma toda
Se te fere a sensibilidade sibilina
Não escutes
Mas vem e senta-te a meu lado
E em silêncio contempla-me enlevado 
Nina M.

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Pus os pés em terra firme



Pus os pés em terra firme
Pisei o árido alcatrão
Pulsa o sangue que irriga o coração
Corro de mim em ânsias de fugir-me.

Inquieta-se e flameja a alma
No domingo  morno e pachorrento
Não sei o que causa o tormento
Quero da brisa e do sol quente a calma

Fujo do meu sobressalto, não nego
Anseio a calmaria que me apraz
Do ardor da alma tenho medo

Lentamente a inquietude jaz
Esvaziei-me do meu desassossego
Momentaneamente encontro a paz

Nina M.

sábado, 21 de abril de 2018

Crónica de Maus Costumes 79

Crónica de Maus Costumes 79

        
Esta crónica surge inspirada pelo bodo aos pobres, tradição secular no nosso país, que se arrastou até aos inícios do século XX e que ainda hoje subsiste numa nova roupagem. Ao que parece, este gesto caritativo terá sido introduzido no nosso reino no século XIII, pela mão da nossa rainha Santa Isabel, do milagre das rosas.

Todos lhe reconheciam a generosidade que praticava às escondidas do seu marido, El-rei D. Dinis, mais amante dos prazeres da vida do que dos pobres. Assim, enquanto el-rei se elevava no seu tanger de trovador e nos deixava um legado literário, no que na lírica trovadoresca diz respeito, a sua mulher distribuía dinheiro, alimentos, vestuário e até palavras de consolo. Fosse na era moderna e seria capaz de destronar a princesa Diana, a quem foi atribuído o cognome de “princesa do povo”.

Desta forma, a distribuição de alimentos, dinheiro e roupa em dia de festa tornou-se prática comum, uma forma de aqueles que mais tinham ostentarem a sua profunda benignidade e espalharem amor ao próximo.

Consequentemente, o que terá começado com uma vontade genuína, altruísta, desinteressada e oculta transformou-se em feira das vaidades. Ironicamente, parece que até dava jeito perpetuar a miséria para que pudesse haver pobres a quem deitar a mão e ungir o peito de palmadinhas e orações bem-intencionadas. Assim se distingue a caridade da caridadezinha e percebemos a riqueza da nossa língua, que através de um sufixo é capaz de diminuir o brilho da palavra mais impoluta. A caridade é elogiável, mas a caridadezinha é deplorável. Ser-se bonito é admirável, mas ser-se bonitinho é apenas uma esmola para o ego. Ser engraçado é apreciável, mas ser engraçadinho é uma tristeza e poderíamos continuar incessantemente, porque os exemplos abundam.

A verdade é que para o miserável, o resultado prático da caridade ou da caridadezinha com hora marcada era exatamente o mesmo: em dia de festa, a saciedade do bandulho ficava assegurada e, com um pouco de sorte, talvez tivesse direito a um casaco ou sapatos em bom estado. Não é mau, ainda que as razões que a motivam possam não ser afinal tão nobres, porém, caridade seria conseguir proporcionar as condições necessárias para que os pobres ascendessem a uma dignidade a que todo o ser humano deveria ter direito. Matar a fome ao pobre durante um dia, não lhe resolve os problemas para o resto do ano, mas dar-lhe um trabalho justamente remunerado, que lhe devolvesse a autoestima, talvez fizesse toda a diferença.

Triste é constatar que a caridadezinha continua por aí à solta, em pleno século XXI. Sobreviveu à Monarquia, foi resgatada na República, atravessou o Estado Novo e insiste em acompanhar-nos no virar do século. É mais fácil fazer-se um donativo digno de fazer arregalar os olhos ao maior desprendido uma vez no ano do que repartir com os empregados uma parte dos lucros que eles ajudaram a gerar, por exemplo. Em vez da referida recompensa, prefere-se premiar os funcionários com o bolo-rei já acostumado ao Natal ou então, para quem é das mãos largas, um fausto cabaz de meter inveja!

A tudo isto o pobre agradece, desfazendo-se em humildes vénias, porque a ingratidão dos que nada têm é um desaforo difícil de engolir.

Só ainda não decidi se o texto é uma provocação ou uma provocaçãozinha! Decida o leitor ou o pobre como mais lhe convier…


Nina M.