Corria o dia 8
de dezembro, do ano de 1921, quando Arminda deu à luz o seu terceiro filho.
Rompera as entranhas ávido de vida e de saber. Extenuara a mãe por conta da
pressa que revelou em vir ao mundo. Arminda tivera uma hora pequenina, como
desejava o povo à mulher que ia parir breve, mas enquanto durou o parto, não
tivera sossego. As dores não amainavam e a mãe, apesar da farta experiência da
maternidade, suava frio e transfigurava-se-lhe o rosto a cada contração. O
sangue afluía à face, que se contorcia em caretas incontroláveis, obrigando a mãe
a respirar fundo, assim que o filho lhe concedia uma ínfima brecha de
bem-estar. Mal terminava a pontada que lhe dava cabo dos rins e a impelia a
puxar para extrair aquele corpo estranho que a atormentava, logo surgiam outras
ininterruptamente, sem qualquer comiseração pela mulher que se debatia para
manter a calma e a coragem (ainda ninguém lhe ouvira um grito), mas que sentia
as forças fugirem-lhe e uma exaustão profunda que teimava em se instalar. A
criança não se dava por vencida e sempre que sentia sua mãe apática, bombardeava-a
com uma sucessão de esticões, para a relembrar de que o seu papel ainda não
terminara.
António aguardava por notícias,
do lado de fora da porta, já que uma mulher a parir não era coisa bonita de se
ver. Não gostava de pensar que aquela provação era fruto do pecado original e
da desobediência de Eva. Que Deus urdiria tal horror como castigo, se a todos ama
e tudo perdoa? Antes via naquele tormento o sacrifício que sempre precede um
grande feito. Nada se conseguia na vida sem esforço, dedicação, trabalho,
suplício e perseverança. Sabia-o pela própria experiência. Obrigava-se a
trabalhar de sol a sol para criar os seus filhos, garantir o sustento da casa,
como qualquer homem honrado. Não era a primeira vez que a mulher se encontrava
nestas aflições e sempre se saiu bem, logo desta vez não seria diferente, dizia
a si próprio com o intuito de se acalmar, porém, pressentia que desta vez algo
divergia. Via Arminda mais afogueada, dorida e apressada. Parecia que o bebé
tinha urgência em nascer, não lhe deixando outra opção senão a de cumprir com o
que a natureza lhe exigia. Perdia-se nestes pensamentos, quando ao cabo de uma
hora ouviu o choro pujante de quem está determinado a realizar grandes feitos
no mundo. Quase em simultâneo, a cabeça de Isaura, a parteira, assomou à porta,
gritando:
- É um rapaz,
Tónio! Não te apoquentes que a tua Minda está bem. Uma valentona, esta mulher!
Pariu-o sentado e de rabo para a porta! Comeu o pão que o diabo amassou, mas cá
temos um belo rapagão, cheio de saúde! Já to levo.
António ficou
quedo. Emocionado, só conseguia balbuciar: “graças a Deus, graças a Deus…”
Quando lho trouxeram, ainda embrulhado em toalhas, o pai olhava-o com ar
embevecido e certo de que aquele pertencia a uma estirpe diferente. A forma
como se nasce pode dizer muito sobre uma pessoa e esta criatura desbravara
caminho para sorver o primeiro pedaço de ar que lhe coube em sorte. A viragem
do ano prometia gerar uma belíssima colheita. Em junho de 1922, o sucesso da
primeira travessia aérea do Atlântico Sul, entre Lisboa e Rio de Janeiro,
efetuada pelos brilhantíssimos Gago Coutinho e Sacadura Cabral, só podia ser
sinal de bons auspícios e de futuros homens de coragem e de visão, predestinados
a marcar a História do país
Isaura regressara ao quarto para
arranjar a criança e a mãe. Quando todos os trabalhos terminaram e se arrumaram
as toalhas e lençóis ensanguentados, pediu a António que aguardasse só um pouco
mais. O tempo de Arminda acabar o seu caldo de galinha, para retemperar as suas
forças e ajudar a subir o leite que seria o sustento do rapaz. António anuiu
com um sinal afirmativo que fizera com a cabeça. Desejava ver a mulher para
confirmar com os seus próprios olhos de que tudo estava bem. Assim que a
parteira saiu com a tijela vazia, António entrou e delicadamente depositou um
beijo na testa de Arminda.
- Sentes-te bem, querida? – Queria saber. Este deu-te mais trabalho,
apesar do parto nem ter sido demorado…
- Sim. Foi curto, mas mais difícil e intenso. No final, começava a perder
forças, mas o nosso rapaz não havia meio de desistir… empurrava-se a si próprio
cá para fora e olha… já acabou. Sinto-me cansada, mas feliz por estarmos ambos
bem.
- Sabes, acho que este vai ser o cabo dos trabalhos… ainda agora nasceu e
já mostrou ser casmurro… Tenho pra mim que vai ser dos que quando se lhe mete
uma ideia na cabeça, não mais a larga!
E olhava com ternura para o neófito deitado no berço tosco e humilde, de
madeira, feito pelo próprio António.
- Ó homem, sempre tens cada uma! … Sabemos lá como irá ser! Olha, será
como Deus mandar! Que seja de trabalho e honrado é o que peço. O resto… está
nas mãos do Criador. Que nome lhe havemos de pôr?
- Celestino - decidiu, perentoriamente, o pai.
António tinha razão. À medida que ia crescendo, Celestino, como fora
batizado, distinguia-se dos demais companheiros. Exibia um porte altivo e
elegante, o que lhe custava algumas piadas, pois, tal como os outros, era oriundo
de uma família com poucos recursos. Às vezes, um dos seus colegas comentava:
- Lá está o Tino com a mania de que é mais do que os outros!... Puxa bem
o lustro que os teus tamancos são mais valiosos do que os nossos! Ainda vais
dar doutor! E cascavam todos uma risada em uníssono.
- Só porque somos pobres, não precisamos de ser desalinhados – respondia
Celestino, sem nunca se zangar com as diatribes dos amigos.
Talvez por esse bom humor, apesar das suas manias de grandeza, os colegas
não o estigmatizassem e lhe perdoassem o seu ar empertigado e que, às vezes,
até dava jeito, como fora daquela vez que o menino Carlinhos, filho do Sr. Doutor
Varela, lhes saíra ao caminho, à vinda da escola, escarnecendo dos seus trajes
e dos seus modos. O Zé saltara logo para a frente, com vontade de o esgadanhar
e dar-lhe dois sopapos bem assentes, para que ele visse quem era valente, mas
logo o Manel, seu irmão, o puxava para trás, por saber que quando chegassem a
casa, a novidade já lá teria chegado primeiro e não haveria quem os livrasse da
sova com que o pai os castigaria, pelo facto de se terem engalfinhado com o
menino, coitadinho, que era tão enfezado, que não era capaz de se defender
daqueles mariolas, que abusavam da sua debilidade. Celestino salvaria a honra
de todos com diplomacia e tato. Seguro de si e ufano da sua honradez, dizia-lhe
que se quisessem, qualquer um deles o poderia derrubar num ápice, mas só porque
eram pobres, não eram menos educados e só por essa razão sairia incólume do
desacato. “Somos humildes, mas instruídos e educados”, acrescentava com
orgulho. Perante isto, o Carlinhos rodou sobre os calcanhares e retirou-se
humilhado e fervilhando com a ousadia do garoto. Celestino olhava-o com altivez
e sobranceria, regozijado com o efeito das suas palavras.
O rapaz tinha sempre resposta pronta. Todos na aldeia lhe reconheciam
essa capacidade e lastimavam a sua sorte. Apesar da sua inteligência, Celestino
não iria além da quarta classe, como todos, por falta de posses dos pais e
bocas em demasia para alimentar. Todavia, o que não pudera aprender com a
continuidade dos estudos, tentava suprir com a leitura dos compêndios e livros
que o mestre-escola lhe ia emprestando, por perceber a capacidade do rapaz e
animava-o, afirmando que o facto de não se poder estudar não podia votar
ninguém à ignorância nem vedar-lhe o acesso à cultura e que um homem podia não ser
muito instruído, mas ser culto. Celestino bebia-lhe sôfrego, as palavras, sem
compreender bem o seu alcance, mas suspeitando de que o seu mestre teria razão.
Assim se foi formando e moldando um caráter que não se vergava à pobreza nem ao
que era convencional. Só porque os outros deixaram a escola e não queriam saber
dos livros, ele não teria que fazer o mesmo e lá ouvia com um encolher de
ombros as provocações dos rapazes que lhe diziam que os livros não lhe poriam
dinheiro na algibeira. Não se aborrecia, mas sentia que não pertencia àquele
meio, tinha sonhos e projetos que queria realizar e um deles era ver o mundo. Não
se contentava com os limites tacanhos que lhe tentavam impor, o que lhe custou
algumas guerras caseiras. Os pais lamentavam-se deste feitio que não sabiam
como explicar nem de quem o rapaz o tinha herdado, porque a família era toda
muito sensata e ciente do papel que lhe cabia. Mas este mancebo fosse pelo que
fosse, não deixava que lhe arrastassem o pé para o chinelo.
- Tens a mania, mas ainda vais torcer essas orelhas, Tino. Convence-te de
que não são os teus modos corteses nem as tuas ideias demasiado liberais que te
vão pôr o pão na boca – dizia-lhe a sua mãe, preocupada com o seu temperamento.
- Eu cá sei o que faço – retorquia-lhe o filho - fechando-se cada vez
mais no seu orgulho, sem que lhe deixassem traçar um caminho que não desejava
para si.
Enquanto não atingisse a maioridade, não poderia fazer nada, tinha que se
sujeitar e aceitar a sua sorte. De momento, aprendia o ofício de sapateiro com
o orgulho ferido por não poder provar a toda a comunidade que a inteligência
não é um dom dos mais abastados. Ele sabia-o bem, pois muitas vezes fora citado
como exemplo pelo seu professor primário em detrimento do menino Carlos Vilela.
E o mestre não era de elogio fácil! Para lhe arrancar uma palavra de aprovação,
o aluno tinha que suar de verdade as estopinhas e provar realmente o que valia!
Quando isso acontecia, em todos os seus colegas observava um sorriso de
admiração e também de orgulho, como se a sua existência servisse para limpar a
honra de todos aqueles que, no meio da escassez monetária, se esforçavam por comprovar
as suas competências cognitivas. Sentiam esse louvor como se fosse em causa
própria e vingados da sobranceria com que o Carlinhos os tratava a todos. Era
verdade que esporadicamente o Carlinhos empregava uma palavra cujo significado
era desconhecido de todos para cair nas boas graças do professor, mas tinha que
ter cuidado com o que fazia, para que o estratagema não se mostrasse
infrutífero. Houve uma altura em que inchado como um sapo, o Carlinhos dissera
que na tarde anterior o Sr. Gregório da venda tinha sido um verdadeiro
pusilânime com ele, pois recusara-se a aceitar que todos os trocos que trazia
consigo fossem gastos em rebuçados. Tal comentário custou-lhe, de imediato, uma
vergastada, porque o Sr. Gregório não tinha sido cobarde, mas sim consciente,
explicava o professor. “Ora onde já se viu? E como é que o Sr. Gregório saberia
que tinha sido o Dr. Vilela a dar-lhe os trocos? Todos sabiam que o Dr. Vilela,
apesar de rico, não gostava de mimos em excesso.
A fraqueza de caráter de Carlinhos devia-se mais à sua mãe, a D. Ana, que
sub-repticiamente contradizia todas as ordens do pai, protegendo em demasia o
filho que se tornara nesse convencido apático e incapaz de uma atitude enérgica
e segura. Na realidade, os insultos velados que dirigia aos colegas eram fruto
da sua insegurança, que inutilmente tentava combater de forma pouco honrada.
Humilhava para se exaltar. Invariavelmente, o resultado era sempre o mesmo:
primeiro, num momento de assombro sentia-se superior e feliz consigo próprio,
para logo de seguida a sua consciência o martirizar e lhe sussurrar com o que
ele sabia ser verdade, mas não gostava de admitir: admirava profundamente todos
aqueles folgazões arrojados que não se deixavam abater pelos seus comentários
nem revelavam quaisquer complexos de inferioridade e, no entanto, não tinham
acesso nem a um quinto do que lhe era facultado! Esse era o seu segredo e a sua
frustração e o próprio pai o fazia assim sentir. Carlos desfazia-se em
cortesias para obter a admiração do pai, mas em vão. Muitas vezes detetava-lhe
no rosto uma crispação que não compreendia. O Dr. Vilela dava consigo a pensar
que o seu filho era um mimado inseguro e não lhe perdoava essa falha que tanto
o desgostava! Sonhara com um garoto audaz, dinâmico e perseverante e só
vislumbrava uma criatura débil e pouco assertiva. Esses pensamentos mordiam-lhe
o coração e culpava a mulher que arranjava sempre forma de resolver todos os
problemas ao filho e a sua própria cria que não mostrava desejo ou laivos de
independência e de ideias próprias.
Os anos foram passando e o destino traçou o caminho esperado para alguns:
Carlinhos tinha-se formado doutor, em Coimbra, tal como o seu pai, ainda que
tivesse demorado um pouco mais a obter o canudo. O Zé e o Manel eram
carpinteiros. Seguiam o ofício dos homens da família. Celestino era sapateiro,
mas contrafeito. A graxa que lhe sujava as mãos envergonhava-o e, no fim do
trabalho, invariavelmente, dia após dia, esfregava-as com lixívia até as ver
novamente brancas e reluzentes. Com uma espátula de madeira, fininha e aguçada
que ele próprio fizera, retirava o lixo que se entranhava nas unhas e lhe
lembrava a sua condição. A sua família não compreendia bem este comportamento
obsessivo, diziam, porque no dia seguinte, teria de voltar ao mesmo, então,
melhor seria que se preocupasse com o asseio das unhas ao fim de semana. O que
não podiam perceber é que essa sujidade maculava-lhe também a alma. Sentia-se
aprisionado numa vida que não queria, que não tinha sonhado para si, por
acreditar estar talhado para feitos maiores. Sabia que os seus familiares não o
compreendiam e achavam que ele tinha a mania das grandezas, uma ambição
desmedida que o haveria de conduzir à ruína. O fosso causado pelas diferentes
formas de pensar, impedia que Celestino partilhasse os seus sonhos e projetos
de futuro com os seus pais e irmãos, no entanto, a mãe adivinhava-lhe a
inquietude na voz, no olhar, nos pensamentos distantes e na resposta mecânica e
invariavelmente igual: “em nada de importante, na vida…”, sempre que a sua mãe
o questionava sobre o que ele andava a cogitar. Certo dia, a mãe surpreendeu-o
a observar atentamente um mapa, perscrutando as terras longínquas, sinónimo de
novas oportunidades e o seu coração estremeceu, por isso, quando Alina surgiu
na vida de Celestino, sua mãe agradeceu a Deus, em silêncio, por nunca se ter
atrevido a partilhar a sua angústia com mais ninguém, nem com António, seu
companheiro de uma vida e pai dos seus filhos. Estava certa de que se o filho
decidisse partir, ninguém o poderia impedir e decidiu guardar o seu receio como
se de um segredo indigno se tratasse.
O único benefício que a profissão trouxera a Celestino foi o seu primeiro
amor, Alina. Apareceu-lhe para mandar arranjar umas sandálias e Celestino
perdeu-se na imensidão dos seus olhos e na elegância da gaiata que, apesar de
pobre, sabia apresentar-se. Ela rendia-se aos encantos, porte elegante e modos
cavalheirescos que Celestino evidenciava. Nenhum dos outros pretendentes que
lhe fizeram a corte tinham causado tanta admiração. Celestino exprimia-se de
forma diferente e caminhava como um príncipe! Não fosse tê-lo encontrado na oficina
de sapateiro e julgaria tratar-se de um fidalgo das mais nobres famílias! Além
do mais, Celestino era bem-apessoado e muito cobiçado pelas outras moças
casadoiras, de sorte que quando o rapaz lhe falou dos seus sentimentos e
intenções, Alina sorriu e ficou feliz por ser a eleita do seu coração,
afiançando-lhe que era correspondido, entregando-se à paixão que a devorava. Dessa
união resultara uma filha, mas o matrimónio não.
Noivaram longo tempo e casaram como era de esperar, até porque a segunda
cria fora gerada e não era bonito nem visto com bons olhos a mancebia desavergonhada,
sem resquícios de pudor. Alina não se cansava de alertar o filho para a
condição a que votava Alina: a mulher que se entregara antes do casamento,
aquela que não tinha pudor, pois já tinha feito uma filha e encomendava já a
segunda. Dois jovens atrevidos e pouco convencionais que se aventuravam a
desafiar os preceitos e as regras instituídas!
Após o enlace, Arminda serenou. Agora o filho tinha assentado e
deixar-se-ia de extravagâncias, porque teria mais em que pensar. Mais dois
filhos apareceram, eram quatro no total. Embora Celestino trabalhasse com
afinco, o dinheiro era diminuto. Os anos quarenta foram penosos para a Europa e
também para Portugal. A guerra não atingiu diretamente o país, mas não se pode
dizer o mesmo das consequências. Portugal era um país maioritariamente rural,
com elevadas taxas de analfabetismo: muitos nem terminavam a instrução
primária. Mal saídos dos cueiros, as crianças deixavam de o ser precocemente. O
trabalho infantil não era penalizado, porque quem não estuda, deve trabalhar e trabalho de menino é pouco, mas quem o
desperdiça é louco, já dizia o ditado…
“Deus, Pátria e Família” era o lema de António Oliveira Salazar e com
este Deus apresentado, sob o olhar benigno do Cardeal Cerejeira, cada um nascia
para o que era, pois quem nasce para lagartixa, nunca chega a jacaré e assim se
conformava o povo com a sua sorte e pobreza, dando graças a Deus por não terem
nada a ver com a guerra! O medo era paralisador e ajudava à manutenção da
ordem! Não havia nem podia haver sublevação social. Portugal era um país de
corcundas, gente sem espinha dorsal e incapaz de reagir, demasiado complacente,
demasiado subserviente. Este ambiente tolhido, onde parecia que cada um já
nascia com o destino traçado, sem possibilidade de qualquer alteração, adoecia
Celestino, homem de largos horizontes. Já se martirizava por não ter conseguido
outro rumo para a sua vida, apesar de tentar a sua sorte na Polícia de
Segurança Pública, em 1947. Alistado a quatro de dezembro, pedira dispensa no
dia seguinte. Não era trabalho para si. Sentia-se um lacaio do regime contra o
qual não podia falar, mas que em consciência não podia servir. Além do mais, o
soldo era miserável! Acreditava numa sociedade democrática, onde o direito à
educação, independentemente das suas origens e possibilidades económicas, fosse
realidade. Talvez esta ideia fosse uma miragem, mas era esse o seu sonho. Com
estes anseios da alma, tomara a resolução de emigrar para o Brasil, país das
oportunidades, onde a Língua Portuguesa imperava. Comunicou esta decisão à
família no meio do parco jantar, entre uma colherada de caldo. Alina
empalideceu e ficou imóvel. Não imaginava a vida sem o marido a seu lado, mas
sabia da dificuldade que seria para conseguir o dinheiro para a viagem de
Celestino, quanto mais para o resto da família! Quando a consciência permitiu
que a notícia fosse digerida, Alina não conteve as lágrimas. Temia pela vida do
marido, receava o afastamento a que estariam votados, mas sentia que o
sacrifício era feito em nome dos filhos e o que é que uma mãe não suporta por
um filho?! Neste caso eram quatro. Imaginar que as suas crias poderiam ter os
estômagos mais aconchegados no final de cada dia, confortou-a um pouco.
Assim, em 1951, pedia licença para se ausentar para o Brasil e em janeiro
de 1952, revalidava-a. Chegaria à terra prometida em abril desse mesmo ano,
para não voltar a ver Alina. Aí permaneceria durante doze longos anos, com o
Atlântico de permeio. A distância não lhe fazia esquecer os filhos que deixara,
para quem enviava o sustento, fruto do seu suor. No início a adaptação não foi
fácil. A imagem de Alina invadia-lhe a mente e o corpo e sentia saudades do seu
calor. Celestino foi resistindo, até ao seu limite. No furor dos trinta, não
passava despercebido em terra alheia. A sua silhueta colhia simpatia junto do
público feminino e, na realidade, a sociedade era generosa e compreensiva com
os homens. Admitiam-lhes a vivência plena da sua sexualidade e todo o senso
comum sabia que o homem não podia viver sem mulher. Estas sim, deveriam
preservar-se, sobretudo, as que queriam constituir família. Deveriam ser um
modelo de virtude, o pilar da decência e dos bons costumes e aos olhos alheios
deveriam parecer um ser assexuado e frígido, mas muito penitentes, cumprindo
apenas com a sua obrigação de esposas, sem esboçar qualquer tremor que pudesse
contrariar esses princípios.
E nesta hipocrisia social, havia sempre as despudoradas que tentavam os
homens, sem lhes ser ao menos reconhecido o mérito de serem as responsáveis
pela ordem serena das coisas. Eram as concubinas que satisfaziam os humores
masculinos e lhes comprovavam a virilidade, sendo, depois, as proscritas. A muitas
sabia-lhes bem a fina ironia de sentirem que lhes era vedado o papel de esposas
devotas e fadas do lar, porém, era nos seus braços que eles requebravam, após
lhes sentirem o corpo quente e o estremecimento do desejo. Ah! Se a suas
esposas pudessem ser menos rígidas, talvez não tivessem esta necessidade
urgente de se sentirem desejados, amados, de conhecerem a satisfação de ver no
rosto da companheira a alegria do prazer e saberem-se, por isso, mais viris.
Estas sensações eram provocadas por mulheres sem rumo e perdidas numa moral que
não cabe nos preceitos de uma religião. Essa alienação, Alina sentira-a e
tivera coragem suficiente para a enfrentar por duas vezes. Talvez por isso ele
se tenha decidido casar. À sua maneira, Alina compreendia-o e não o repudiou
após o primogénito, pelo contrário, continuou a acolhê-lo, ciente da sua
loucura, submersa no amor, acolhendo novo rebento no seu ventre, mesmo sem a bênção
oficial do Criador. E qual era o mal?! Eram fruto do amor e da paixão! Novas
vidas que só podiam ser acolhidas com bons olhos por Deus! Só o amor gera vida
e assim foi.
Celestino não se esquecia da mulher nem dos filhos, mas não podia viver
sem o conforto de um colo feminino que se dispusesse a ampará-lo e a saciar
seus anseios. Não sabia quando ou até se regressaria, portanto, que mal faria
aceitar esse consolo que lhe tornaria os dias mais aprazíveis? Quanto a Alina,
já lá diz o povo: o que os olhos não
veem, coração não sente!
Mas sentia. Alina pressentia. Adivinhava-lhe a vida longe de si e sofria,
em silêncio, para não macular a imagem do pai diante dos seus filhos. Também
nenhuma outra mulher a compreenderia. Todas lhe diriam que os homens são todos
assim, que têm as suas necessidades e que o importante era o seu sentido de
família e o dinheirito certo ao final do mês. Repetia-o para si vezes sem
conta, queria forçar-se a pensar da mesma forma. Não conseguia e essa
contrariedade desgostava-a.
Iam-se os anos levando consigo a mocidade de ambos. Alina trabalhava de
sol a sol para criar o melhor que pudesse os seus quatro filhos e o tempo
roubava-lhe saúde e o sossego. Sofria só a ausência do amor sem nunca o
censurar ou dar por perdido. Seu coração de mulher guardava-lhe o segredo que
não queria revelar, porque enquanto não fosse dito, não passaria de um delírio
de alma. Sentia-se menos abandonada e menos traída e, no entanto, mais saudosa.
Celestino, por seu lado, trabalhava e nunca faltou ao sustento das crias,
mas findo o trabalho, recompunha-se nos braços de Branca, a nívea mestiça, a
quem nunca fez juras de amor eterno e a quem sempre dizia que um dia chegaria a
hora de partir. Branca, que já nascera do amor condenado entre a sua mãe,
branca e de família burguesa e o seu pai, negro e morador de morro,
habituara-se a não esperar nada de ninguém. Daquele homem queria o presente,
por achar que quem se amarra ao passado e teme o futuro não vive o que tem. E
ela tinha-o. Sentia -o na intimidade dos corpos que se abandonam ao torpor trazido
pela noite de amor.
Assim, chegado o momento para o qual tinha sido desde sempre prevenida,
Branca não se desfez em lágrimas, ainda que sentisse o seu coração sufocado.
Sempre soube que Celestino não era seu, mas do mundo. Preparou-lhe a mala e abriu-lhe
a porta, empurrando-o ligeiramente para a saída, abençoando a liberdade. Tinha
a certeza de que não o veria mais, mas não o recriminava por isso. Celestino
deixava-lhe um pouco de terra, a recompensa pela sua dedicação, apesar da
relutância de Branca em aceitar.
Alina soube da nova viagem do marido. Desta vez, regressaria à Europa,
mas a terras francesas e sentiu-se aliviada.
Corria o ano de 1964 e aos quarenta e três anos, Celestino ia descobrir novas paragens. Gostava de viajar, conhecer novas terras, pessoas e culturas. Viesse a civilização! O centro do saber e da cultura! Embarcava para França com destino a Lyon, para trabalhar no calçado, o seu ofício de sempre. Era bom artesão, mas teria que se adaptar à maquinaria e ao trabalho industrial. Celestino encarava a nova situação como um desafio que não temia. Tinha força de vontade e fulgor suficiente para ser bem-sucedido. Foi com essa disposição que chegou a Villeurbanne Rhône, a nove de fevereiro de 1965. Aqui era mais fácil e mais célere comunicar com a família portuguesa. As notícias chegavam mais rapidamente, as boas e as más. Alina adoecia. Lentamente, o carcinoma roía-lhe a carne enrijecida pelas dores da vida. Acabaria por morrer sem voltar a ver o marido. Tinham passado anos, desde que se separaram. Alina nunca o confiou a ninguém, mas suspeitava que Celestino não tinha vindo despedir-se por não a poder olhar nos olhos sem que os seus descobrissem o que o seu coração lhe dizia há muito. E então ver-se-ia obrigada a perguntar e a ouvir a resposta que não queria. Talvez por isso lhe fosse dizendo que não valia a pena abalar-se até cá, que não se preocupasse, porque estava bem. A resignação de Alina perante a morte levava os que a rodeavam a pensar que ela a considerava um lenitivo para a perda maior, a do marido, que lhe calcinara a alma ao longo dos anos. Havia até quem achasse que o mal era fruto do desgosto e da saudade…
A notícia da morte de Alina não
apanhara Celestino totalmente desprevenido e, inexplicavelmente, sentiu-se só.
Viúvo de uma mulher que já não via há anos, Celestino foi tomado subitamente
por uma comoção que não sabia explicar. Tinha consciência de que não fora um
marido exemplar e isso sobrecarregava-o. Restava-lhe o facto de, apesar de não
ter sido um pai presente, ter sido seguramente um pai preocupado em assegurar o
pão de cada dia. Cumpriria agora inteiramente o seu papel. Deslocava-se à terra
para as exéquias da mulher e traria os filhos consigo, de quem cuidaria a
partir de então. Assim foi. Trouxe para França três dos seus filhos, porque a
sua segunda filha, já moça casadoira e de namoro certo, não o quisera
acompanhar. Eram já jovens, pelo que a sua tarefa seria um pouco mais fácil.
Os seus descendentes, embora não
conhecessem o pai por inteiro, fruto da distância, também não o estranharam.
Reconheciam-lhe as pausas nas frases, de tanto as ouvir reproduzidas pela mãe,
com a mesma cadência, para tornar o pai presente. Era o pai. Tinha voltado por
eles e os filhos acompanhá-lo-iam.
Voltaram a França, país das
novas oportunidades e de um novo recomeço. Celestino vivia agora asceticamente
e compreendia as dificuldades que Alina tivera para criar os filhos, sozinha.
No final do trabalho,
só pensava em regressar a casa e usufruir da companhia dos seus, de quem
estivera afastado durante tantos anos! E assim foi vivendo, na lassidão do
tempo, que tornou a memória de uma Alina jovem e robusta ainda mais longínqua.
Por vezes, era apanhado desprevenido, com o olhar vazio no futuro. Nesses
momentos, o coração era preenchido por lembranças da mocidade e ora recordava
Alina ora Branca: a primeira, a esposa e a segunda, a mulher que lhe tornara o
exílio e as saudades mais suportáveis.
Celestino era ainda uma figura
elegante, garbosa e apetecível. As mulheres continuavam a achá-lo sedutor e
interessante, mesmo que este não fizesse por isso. Na fábrica, Maria esforçava-se
para que ele reparasse nela. E assim aconteceu. Começou por ser uma singela e
desinteressada amizade, mas quer a natureza que o Homem não se quede só e o
previsível aconteceu. Celestino casaria novamente, agora com Maria, em 1981,
pelo civil. O enlace não foi do agrado de todos, nem traria a Celestino as
mesmas alegrias. Talvez os seus sessenta anos não lhe permitissem mais ilusões
e o que lhe parecera uma boa ideia para combater a solidão masculina, tornou-se
num fardo demasiado pesado para carregar.
No seguimento de
desentendimentos familiares, Celestino pediu o divórcio. Desta vez, o enlace
fora curto: uns meros quatro anos a que pôs fim por incompatibilidade de
humores. Não se pode pedir a um homem que escolha a mulher em detrimento dos
filhos e netos! Estar casado, implicava partilha e cumplicidade. A nova esposa
sabia que ele não era só, assim sendo, não deveria colocá-lo entre a espada e a
parede, mesmo que a argumentação fosse a de que a sua família nunca a aceitou.
Celestino sabia-o, mas a consciência pesada por tantos anos de distância, não
lhe permitiam a defesa clara da esposa. Sabia que a questão não era financeira,
pois acautelara esse detalhe: tinha casado com separação de bens. Compreendia
que os filhos a vissem como alguém que procurava ocupar imerecidamente o lugar
da mãe, aquela que era insubstituível, que soube sofrer calada, sempre
abnegada, ensinando os filhos a respeitar o pai, seu marido, que tanto
sacrifício fazia para criarem o melhor que podiam os descendentes e se o preço
a pagar fosse a sua traição, paciência… aguentaria! Esta mulher era um exemplo
para os filhos e para ele próprio, pois nunca duvidou da honestidade da esposa,
ainda que o pensamento lhe ditasse que não era merecedor de tal respeito! Não
mancharia mais, por isso, a memória da primeira mulher e faria o que tinha de
ser feito: escolheria os filhos.
Assim foi. Estava determinado a
pôr os filhos à frente da vida pessoal. Viu-os crescerem, formarem família e
assistiu à chegada e desenvolvimento dos netos. Começava a ficar cansado e um
pouco só. Os filhos estavam criados, todos com a vida bem encaminhada e
Celestino sentia falta de uma companhia feminina. Outra Maria rondava o seu
coração, mas não de forma ostensiva, o que lhe agradava. Maria era uma senhora
discreta, mas bonita e arranjada, boa conversadora e boa companhia. Trabalhava
na mesma fábrica e aguardava placidamente a idade da reforma. Pouco tempo
depois da sua separação, Celestino iniciaria um novo romance. Apesar das
qualidades inquestionáveis da nova dona do seu coração, o português errante
decidiu não casar. Achou que não faria diferença, que esse vínculo não garantia
a felicidade, como lhe ditara a sua anterior experiência e, se porventura as
coisas corressem mal, a separação seria mais ágil e menos dispendiosa. Para
além do caráter prático que revestia a união de facto, Celestino assumia na
plenitude a sua irreverência. Sempre foi um mau cumpridor de regras, pese
embora face à pressão social, acabasse por ceder e fazer o que a sociedade
considerava correto. Passava assim, ao longo da sua vida, por entre os pingos
da coerência, protegendo-se com o guarda-chuva da hipocrisia: arranjara o filho
a Alina e só depois casara, para não a desgraçar a honra da moça, porém, não
cumprira com o que prometera diante de Deus no que concerne à fidelidade;
depois, casara apenas pelo civil e agora assumia-se, não casava de todo e
pronto! De qualquer forma, na sua terra ninguém saberia se casou ou deixou de
casar, pelo que não fariam juízos de valor. Moía-lhe este comportamento, mas não
estava disposto a comprar uma guerra por tão pouco. Apaziguava o seu espírito
com o ditado: “Não custa viver. Custa saber viver!” E, por outro lado, ninguém
tinha nada a ver com a sua vida! Desde que as pessoas aparentassem viver de
acordo com as regras instituídas, já ninguém se incomodava! Assim vivera toda a
vida e continuaria a viver…
A vetustez aproximava-se a
passos largos para ambos. Celestino aguardava que Maria se pudesse reformar,
com alguma impaciência! Sentia falta das suas raízes e do cheiro da sua pátria.
Desejava uma velhice mais tranquila e aprazível.
Com uma reforma que lhe permitia
viver com alguma folga financeira, principalmente para quem já tinha vivido com
dificuldade, Celestino regressou ao seu país, mas não à sua terra, demasiado
pequena e fechada para o seu espírito livre, onde se sentia confrangido e
obrigado a cumprir com os deveres das convenções sociais. Aos domingos,
engravatava-se e assistia à santa eucaristia. Da gravata, ele gostava, mas o
aperto que os olhares perscrutadores lhe infligiam era dispensável. Decidiu,
talvez por isso, e para que a sua liberdade não afrontasse ninguém, instalar-se
nas imediações Santarém. No ribatejo completou vinte anos redondos de uma vida
comum, cheios de tudo, por já não esperar nada. Conheceu bisnetos, ensinou-lhes
o prazer da viagem e da descoberta de novos destinos e paragens,
transmitiu-lhes o valor da liberdade e da vida.
Morreu em maio
de 2015, em busca de novos mundos.
Nina M.
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