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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Crónica de Maus Costumes 73



         Aquele que nunca viveu uma paixão imensa passou ao lado da vida. Falo daquela que nos arrasta para o precipício, que nós vemos, sabemos existir, mas que não conseguimos, por impotência genuína, evitar.
            Essas paixões autodestrutivas, que alagam tudo por onde passam, são incompreensíveis aos olhares alheios. Como pôde ela apaixonar-se por um ser execrável, sendo tão boa alma? Interrogar-se-ão alguns. Já diz o ditado: “O amor é cego.” Discordo. O amor é outra coisa. Cega é a paixão que arrebata, sufoca e destrói, vicia prazenteiramente. Alucina e remete-nos para outra dimensão. Para a viver é preciso ser bafejado pela (des)ventura e ser-se corajoso para enfrentar os despojos que sobram e que se carregam uma vida toda na alma. Essa emoção cumpre alguns requisitos: deve ser proibida (o fruto proibido é o mais apetecido), súbita e vertiginosa. A razoabilidade e racionalidade não cabem nesta dimensão. Os seres tornam-se emoção e empirismo puro, num abandono sofrível e patético da intelectualidade. A paixão imbeciliza, porém, é inebriante e hiperbólica, capaz de manipular o conceito de tempo. Um dia ou uma semana longe do sujeito devotado é, como diria Camões,  “(…)Num' hora acho mil anos, e é de jeito/Que em mil anos não posso achar um' hora/Se me pergunta alguém porque assim ando,/Respondo que não sei; porém suspeito/Que só porque vos vi, minha Senhora.”
            Quem passa por dentro deste furacão não tem qualquer possibilidade de lá sair ileso e há almas que não têm amplitude emocional para suportar tal embate. A paixão sempre acaba, não se eterniza e, atrás de si, deixa um rasto de destruição, escombros que se amontoam dentro do ser e que vão sendo removidos pouco a pouco e com custo. Quem lhe sobrevive é um bravo que, provavelmente, repelirá outra experiência semelhante, mas que, no mais íntimo e recôndito de si, recorda com nostalgia essa sensação de abandono e dádiva total, que sugere uma felicidade inexplicável. Por esse motivo, no romance de Eça, Carlos da Maia, mesmo já sabendo que era irmão de Maria Eduarda, não resistiu a sentir-lhe o sabor mais uma vez. Não a reconhecia como carne da mesma carne. Tudo era sensualismo e paixão arrebatadora. O nojo e repúdio vieram depois, mas não foi capaz de resistir e sucumbiu ao delírio e arrebatamento vertiginoso que tal sentimento sempre causa. Estar sob o efeito da paixão é como estar sob o efeito de uma substância psicotrópica, é ter fogo que consome por dentro, é combustão desenfreada, loucura e desvario. Ninguém consegue viver sempre assim e, portanto, a paixão consome-se a si própria e extingue-se. A partir deste ponto, ou se transformou em amor (conheço poucos casos) ou morre e deixa um lastro de cinza incandescente da qual se demora a recuperar e nunca se esquece o que se viveu. Das cinzas se renasce, se cresce e aprende, mas um pouco de nós morreu também.
            Para os mais avisados, o amor é mais aconselhável. É feito de calmaria protetora, mas há sempre quem sinta uma atração fatal pelo abismo!
Nina M.

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