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sábado, 29 de abril de 2023

Crónica de Maus Costumes 323

 

Vinte e cinco de abril, sempre!

               Numa crónica lúcida, Clara Ferreira Alves traçou o retrato do país, antes do vinte e cinco de abril, como a lembrar a alguns saudosistas que por cá sobejam a vida miserável que os portugueses tinham.

               Assim, desde o país analfabeto, às poucas mulheres que tinham uma licenciatura e direito ao voto, à necessidade de pedir autorização ao marido para viajar, à proibição do divórcio, ao alcoolismo, aos filhos criados com açúcar na chupeta para os acalmar, dada a ignorância sobre os malefícios do ingrediente, às cheias que deixaram inúmeros sem teto, tudo foi lembrado. Não falou a cronista nas crianças que ao pequeno-almoço ou ao lanche ingeriam sopas de vinho ou sopas de cavalo cansado, mas falou na mortalidade infantil. Não falou da Guerra Colonial… Há quarenta e nove anos o país pareceria um enorme acampamento de refugiados. Vivia sob uma mão férrea que impunha a miséria como virtude. Não havia acesso livre à cultura. Esta era interdita, por ser perigosa e o modo de vida europeu, nos países já democráticos, não chegava cá. Orgulhosamente sós, como acreditava o ditador. A imprensa era controlada e a coca-cola era proibida. Um país pequeno, miserável e inculto, cheio de gente a trabalhar de sol a sol, sem esperar nada mais da vida do que a sua sobrevivência. Quanto aos filhos, era como Deus queria… Da ninhada de dez, às vezes, havia oito vivos. Rara seria a mulher que não tivesse perdido um…. Viaja mais, hoje, um remediado (se o pretender fazer) do que o maior rico daquela época. Os que suspiram pelo retorno do ditador não sabem nada da História do país, caso contrário, evitariam pronunciar tais dislates. Era o país da moralidade, mas em simultâneo, dos filhos de pais incógnitos e do caso “ballet rose”. Era o país do medo e da hipocrisia.

               O vinte e cinco de abril foi, portanto, o que de melhor nos poderia ter acontecido. Planeada, nasci no junho do ano seguinte. Se viesse rapaz, já não iria para a Guerra, foi o pensamento dos meus pais. Cresci e vivi em liberdade, o maior bem que um povo pode ter e do qual deve cuidar. Nunca vivi em ditadura, mas sei ler e leio o suficiente para saber que qualquer regime autocrático é pavoroso. A democracia, mesmo que nos pareça doente, ainda é um bem de que dispomos, pelo que é necessário zelar pela sua permanência. Nada é adquirido e a liberdade custou a vida de muitos para ser desbaratada. É devido a esta consciência que me irrita a hipocrisia de uma classe política que muito celebra abril, mas que pouco faz para cuidar da democracia que temos, abrindo espaço para os extremismos. Não podemos admitir que as instituições que em primeira instância deveriam zelar pela democracia a façam perigar, pois são as suas ações ou inação que incitam descontentamentos que conduzem à expressão num voto extremista e populista.

               Na segunda década do século XXI, o país não pode esperar dez anos ou mais por um julgamento ou, pior ainda, deixar que o caso prescreva! A quem interessa o mau funcionamento da justiça e por que razão não é esta uma das preocupações fundamentais da Assembleia? Os parlamentares têm de olhar definitivamente para o problema e encontrar uma solução. Ela existirá. Se noutros países é possível, cá também o será! Haja vontade política e exigência dos cidadãos. O mau funcionamento das instituições democráticas e a desconfiança em relação a membros do Governo ou de partidos alavancam extremismos, tanto mais quanto mais casos surgirem. A César o que é de César. À justiça o que é da justiça, ao poder executivo e ao poder legislativo o que deles forem da sua competência e à Presidência da República a regulação do funcionamento das instituições. Porém, é preciso lembrar que não é suficiente alegar que compete à justiça o que ela deve tratar, se esta não for célere nem competente. Quanto à rapidez, estamos todos entendidos e quanto à competência, esta fica comprometida, se o primeiro pressuposto falhar.

Assim, olhando para o país, inteirando-me do que sucedeu na Assembleia, no vinte e cinco de abril e nos episódios subsequentes, seja com a conversa supostamente particular entre os três representantes máximos da nação, seja com as novas galambices, só me apetece correr todos à espadeirada perante a falta de compostura institucional e desejar, como o João da Ega, uma invasão! Não a espanhola, que esse povo é tão bruto e bárbaro quanto o português, mas um banho de civilidade e bons princípios democráticos, precisa-se! A festa coletiva tornada bravata de rapazotes, com as comadres a comentar, mais tarde, os incidentes.

 Seria cómico se não fosse triste, mas como a comicidade e a tragédia andam, por vezes, a par, deixemos fluir tranquilamente os acontecimentos, neste reino do faz de conta, onde desde sempre uma montanha pariu um rato!

 

Nina M. 

 

 

sábado, 22 de abril de 2023

Crónica de Maus Costumes 322


Filhos, pedidos & companhia…

-        Mamã! Vais escrever a tua crónica?

-        Sim, Matilde, vou.

-        Podes escrever sobre mim?

-        Por que razão queres que escreva sobre ti?

-        Estás a dizer que não queres escrever sobre mim?

-        O que queres que escreva?

-        Sei lá… O que quiseres…

Mentira. Se escrevesse o que quisesse e se a Matilde se sentisse lesada ou injustiçada iria ficar triste e ofendida. Ela é assim: um poço de sensibilidade, mas muito responsável e briosa no que faz, desde pequenita. Ainda andava no infantário, quando percebi que os dias em que ela tinha de ir com tio para a escola, porque os pais não tinham horário que a pudessem levar, eram fonte de angústia. Reclamava, pois custava-lhe compreender os motivos de não a podermos levar… Lembro-me de lhe perguntar, já agastada com a choraminguice, qual o problema de ir com tio, se afinal, gostava tanto de estar com os primos!…  A explicação vinha a seguir: quando ia com o tio, às vezes, chegava um pouco atrasada e a professora, aos meninos que chegavam atrasados, dizia-lhes: “Bom-dia, turista!” A minha Matilde detesta dar azo a que se lhe chame à atenção, pela exigência que se impõe a si mesma. Detesta falhar e tem dificuldade em lidar com o insucesso. Tive de lhe explicar que a professora só chamava turista aos meninos que chegavam sistematicamente atrasados, o que não era de todo o caso dela. Fui obrigada a ligar para a educadora e a explicar o sucedido para acalmar a sua angústia. Só serenou depois de me ouvir explicar que ela tinha mesmo de ir com o tio e que se este se atrasasse um pouco, a responsabilidade não seria dela. Aproveito para mandar um beijinho à educadora Denise, que teve um papel importantíssimo no desenvolvimento da Matilde. Uma profissional de excelência, muito carinhosa e preocupada com os meninos, mas também exigente no cumprimento de regras. O gosto pelas atividades manuais, a Matilde ganhou-o com a educadora, porque eu tenho duas mãos canhotas para essas coisas e nem o facto de ser esquerdina me salva! Ainda hoje a Matilde assume as suas responsabilidades. Joga vólei e o que o treinador lhe diz é lei. Se porventura falhar e o treinador ralhar fica possessa com ela mesma. Não se permite errar num ponto crucial para a equipa. Aplicada e responsável, quer chegar sempre a tempo ao treino e só se estiver doente o falha. Na escola, não gosta de dar motivos aos professores para se desgostarem com ela.

Na verdade, a Matilde gosta de se sentir apreciada e reconhecida. Precisa enormemente do reforço positivo e de sentir que os pais gostam do seu desempenho. Talvez estivesse a precisar que a mãe escrevesse sobre ela como forma de sentir concretamente o amor que lhe tenho.

Como negar o pedido a quem no outro dia, muito segura de si e na certeza de me deixar feliz, me diz que quando eu morrer, me enterrará com um livro e uma bandeira do Porto?! Lembrou-se de seguida que a mãe lhes dissera (aos filhos) que queria ser cremada, caso não surja uma opção que lhe agrade mais e logo deixa cair:

- É verdade! Tu queres ser cremada! Não posso queimar um livro nem a bandeira do Porto, pois não?!

Lá lhe disse que seria melhor não o fazer, efetivamente. Ela não se lembrou, mas noutra ocasião, já me tinha prometido arranjar maneira de espalhar as minhas cinzas no Dragão! Comecei-me a rir e disse que seria um bom local para passar a eternidade!

Toda esta conversa porque os proibi terminantemente de venderem a minha biblioteca, após o meu desaparecimento. Se porventura não herdarem o gosto da mãe pelos livros, que os doem a uma biblioteca, mas mostrei-me aborrecida, caso não conservem o espólio que sabem ser tão valioso para a mãe. O aborrescente de serviço (nem sei como) lá afiançou que os conservaria, após me ver desgostosa com a pequena, que entristecida se via a perder uma oportunidade de negócio, acrescentando que eu já nem estaria por cá e, como tal, já não veria nada…

A menina que quer vender os livros após a minha morte é a mesma que me vem trazer um bouquet em miniatura, fruto dos seus trabalhos manuais com que se vai entretendo, para me aquecer o coração.

Vós, leitores, que nada tendes a ver com isto, tende lá paciência, mas há pedidos de filhos que não devem ser recusados. A Matilde ficará feliz e vós podeis sempre ler outra crónica qualquer.

 

Nina M.

sábado, 15 de abril de 2023

Crónica de Maus Costumes 321

 

E a luta continua…

                Luís Sottomaior Braga, professor de História e subdiretor de um Agrupamento de Escolas da Abelheira, em Viana do Castelo, encontra-se em greve de fome desde as 24h00 de segunda-feira.

            Já lhe agradeci o gesto, através das redes sociais, assim como a sua determinação, força e coragem na defesa da escola pública e de todos os professores. O Luís faz o que eu não conseguiria fazer. Como diz alguém: “Viva a fartura que a fome, ninguém atura!” Eu aturo mal a fome. Se a sinto, tenho de a saciar naquele momento e pode ser até com pão seco! Não importa se a refeição que vai ser servida prestes é um manjar… Quero é consolar o estômago que se lamenta da falta de alimento e, depois, se não apetecer comer tanto, come-se menos ou nada. Com a fome, chega a impaciência e a irritabilidade; também é verdade que depois de uma certa altura, se não alimentarmos o corpo, a sensação de fome parece desaparecer. De qualquer forma, sei que não seria fácil colocar-me nessa situação. Para além deste incómodo, há todos os riscos que uma greve de fome implica. Certo é que esta decisão foi tomada por um conjunto de pessoas. O Luís dá o corpo às balas, mas há um grupo de retaguarda que lhe presta todo o apoio e que merece também o nosso agradecimento.

            O colega em questão não é consensual. Pelo que percebo e vou lendo, há os que dele gostam e os que o detestam. Há quem o acuse de uma certa hipocrisia, pois defende com afinco a sua classe, o que é inegável, mas no exercício das suas funções, acusam-no de autoritarismo e alguém que cria mau ambiente na escola. Não teço juízos de valor sobre quem não conheço e eu não conheço o colega. Certo é que o Luís foi um dos professores representantes da Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC), tendo sido o porta-voz na audição da Comissão da Educação e da Ciência (CEC), em 2019, tendo defendido sem medo e sem papas na língua a recuperação do tempo de serviço, perante a arrogância insuportável e bacoca dos deputados que estavam presentes. Estes senhores esquecem-se          que ocupam os lugares com os votos dos cidadãos (muitas vezes uma minoria de cidadãos votantes) e que foram eleitos para os servirem e não para se servirem deles. Depreendo, pelo que vou lendo, na maioria, textos escritos pelo punho do próprio Luís, que se trata de um colega com uma cultura muito acima da média e com um conhecimento bastante sólido de legislação, quer pela natureza do cargo que ocupa, quer pela formação em administração escolar quer pelo curso de Direito que também chegou a frequentar, mas que não concluiu. Não que o seu currículo possa interessar para o efeito, mas também não se pode esquecer que é um elemento de uma direção a desencadear ativamente várias formas de luta. O Sottomaior Braga tem contribuído com ideias e tem espoletado várias formas de luta e não é de agora. Quem acompanha o movimento dos professores e as razões do seu descontentamento há muito lê ou ouve o colega. Foi um dos intervenientes, juntamente com o Paulo Guinote, num debate televisivo sobre a escola pública e que teve como convidada a Maria de Lurdes Rodrigues, que teve a desfaçatez de dizer que não sabia como se tinha chegado até aqui, no que concerne a falta de professores. Há muito que se pode acompanhar o Sottomaior Braga através do facebook. Certo é que nunca o vi desistir da luta começada ou deixar de lutar. Essa determinação e essa coerência têm de lhes ser concedidas. A partir deste momento, creio que o colega pode ficar de consciência tranquila quanto à sua participação no movimento pela dignificação da carreira docente.

            Ao longo da semana, o Luís foi sendo noticiado. Obteve alguma visibilidade, mas a luta da classe começa a desinteressar à Comunicação Social. O objetivo, dito pelo próprio, não é tanto a visibilidade nos media, mas espoletar uma ação política do senhor Presidente da República, apelando ao veto do diploma dos concursos, que não obteve qualquer acordo com nenhuma das organizações sindicais. Este gesto seria significativo, mas até ao momento, o senhor Presidente da República não teve tempo de dirigir umas palavras ao professor em greve de fome. Ele, que comenta tudo sobre todos, que está sempre disposto a tirar umas fotos com o populacho, porém, neste caso concreto, faz-se de cego, de surdo e de mudo, porque na falta de argumentos para justificar o que o Governo faz aos seus professores, vale mais o silêncio. Alguém tem de ser sacrificado em nome da estabilidade. Portanto, ficamos com a sensação de que esta maioria incompetente pode fazer o que bem entender, que não há escândalo capaz de fazer com que o senhor Presidente dissolva a Assembleia. Podemos desperdiçar milhões em indemnizações, podemos fechar os olhos a nomeações de familiares, às mentiras, perdão, à falta de memória de um governante que não se lembrava de ter sido informado sobre o que quer que fosse relativamente à senhora Reis, enfim, podemos relevar quase tudo, exceto a possibilidade de eleições antecipadas. Este Governo está a merecer há muito um enorme puxão de orelhas e de ser travado em relação a algumas opções políticas. Compete ao Presidente da República esse papel. Se entende não o dever fazer, entendo eu tal comportamento como cumplicidade e acordo com a ação governativa.

Os professores pedem o veto do diploma, senhor Presidente. Estão de olhos postos em si. O professor em greve de fome fê-la com esse propósito: sensibilizar para o problema e desencadear uma ação política, mas palavras não chegam, professor Marcelo. Precisamos de ações concretas. Mostre com ações que a razão está do lado dos professores, como já declarou. Sem tergiversar, sem meias-verdades e com toda a consciência. Uma palavra dirigida ao colega corajoso também não lhe ficaria mal.

 

Nina M.

 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Lição

Não é sobre ser o mais rico
Nem sobre o mais forte
Nem sobre o mais capaz
É sobre saber a que sabe o sol
E a lua... E não, não é tanto faz...
É sobre saber dar a mão
Oferecer o ombro e ficar em paz
Não é sobre ser o mais belo
O mais culto e o mais desejado...
É sobre ser sábio, saber ser empático
E ter humildade...
Não é sobre ser influente
Nem sobre ser importante
Não é sobre a marca
O carro ou um diamante
É sobre sobriedade, recato e discrição
Sobre ter a coragem
De se não prestar
Saber dizer não!
É sobre saber olhar-se ao espelho
E rir da sua condição
Saber-se frágil e fraco
Mas não ceder à pressão
É sobre saber construir-se
A cada despertar...
Respirar bem fundo e saber... 
Não se pode parar...
Perseverar no aperfeiçoamento
Sabendo que se vai falhar
É sobre seguir o seu trajeto
Vencer cansaços e medos
Sobre saber que não há caminho reto
Nem quem guarde os seus segredos
Fazer o melhor que se pode
Nas circunstâncias que cada um tem
Caminhar de cabeça erguida
Sempre numa altivez desmedida
De quem se quer bem...





sábado, 8 de abril de 2023

Crónica de Maus Costumes 320

 

Jesus e o halo divino

                Neste momento, tenho três livros na mesinha de cabeceira: Exercícios de Humano, um livro de poesia, de Paulo José Miranda, Dr. Jivago, do russo Pasternak e Evangelhos Apócrifos, do professor Frederico Lourenço.

Vou alternando leituras, porque são todas diferentes e permitem-me fazê-lo. Uma poesia, um texto do Evangelhos e, quando é para ler mais tempo, a narrativa russa. Creio que os Evangelhos Apócrifos permanecerão por lá, a lembrar-me da Bíblia para crianças que também tinha na mesinha de cabeceira e que li e reli variadas vezes. Incidia sobre o Novo Testamento e a figura de Jesus e quando, agora, agarro neste livro, lembro-me de mim, também reclinada na cama, a ler antes de dormir. A figura de Jesus acompanha-me, por isso, desde sempre, creio. Em criança, quando ficava a dormir na minha avó, o que acontecia sempre, atirando o avô António para outra cama, antes de dormir, rezava ao Jesus, a repetir o que a avó Matilde me dizia.

Dizem-me que dormia mal, por isso, dormia dia sim, dia não, nos avós, para que quer os pais quer os avós descansassem à vez. Do que me lembro, isso deverá ter sido quando era muito pequena, pois estas memórias são já de criança dos seus três ou quatro anos e não me lembro de acordar durante a noite, excetuando aquela vez em que uma vaca, durante a madrugada, aterrou no telhado da casa do Lino das Toiras (assim era conhecido o senhor) e metade da aldeia terá sido posta em reboliço. O meu avô, o vizinho mais próximo, lá se levantou e foi ajudar como compete à boa vizinhança. O avô Tónio, como lhe chamávamos, morreu quando eu tinha cinco anos. A partir dessa altura, a minha avó passou a dormir em minha casa. Deixei de fazer o trajeto para casa dos avós e de ouvir, invariavelmente, o Lino das Toiras a dizer: “Já vens, minha papagaia?” Consta que era uma criança cheia de vida e que falava muito. Lembro-me, efetivamente, da minha mãe me pedir para me calar um bocadinho. Era difícil… Acho que falei tudo de uma vez, porque, agora, apesar de gostar de uma boa conversa, não me vejo propriamente faladora. Há momentos de maior expansão, mas sinto que produzo cada vez mais diálogos interiores, só por mim escutados. Aprendo com o Mia Couto, talvez, a “afinar os silêncios”.

A leitura é uma forma de aprimorar silêncios. Não será à toa que ela exige um ambiente tranquilo e sem grandes ruídos à volta… Dizia eu que os apócrifos não sairão tão cedo da mesinha de cabeceira… Efetivamente, apesar de não serem os Evangelhos reconhecidos pela Igreja, há passagens semelhantes, isto é, que constroem a mesma narrativa, mas também há surpresas. Deliciei-me com o Evangelho de Tomé sobre a infância de Jesus, por exemplo. Nele, não vemos apenas um menino cândido e angelical. Vemos a criança humana que se aborrece e se zanga, que tem os seus caprichos, mas como também é divina, toda a Sua palavra se concretizava. Já falava por metáforas, com uma linguagem e um espírito incomum, mas nem sempre era positivo. Então, por exemplo, quando em certo dia ao atravessar a aldeia, uma criança embateu contra o seu ombro, Jesus, irritado, ter-lhe-á dito: “Não continuarás o teu caminho”. A criança, imediatamente, terá caído morta. Os pais da alma falecida recriminaram José, sugerindo que a presença deles era nefasta e que se assim continuasse deveriam abandonar a aldeia. Sugeriam ao pai adotivo que ensinasse o filho a abençoar em vez de amaldiçoar. Era a mesma criança que salvou Tiago, filho de José, quando foi mordido por uma víbora. No entanto, é-nos mostrada uma criança caprichosa, que desafiou o professor que o quis ensinar e que o confrontou com a sua ignorância. Após admitir que Jesus era prodigioso e que seria Deus ou um Anjo, a criança celestial alterou-se. Perante estas palavras, terá dito: “Que as tuas coisas deem fruto agora e que os cegos no coração vejam”. Por milagre, todos os que anteriormente tinham caído sobre a sua maldição se curaram. Doravante, ninguém ousaria “encolerizá-lo para que Ele o não amaldiçoasse e estropiasse.”

Não pude deixar de rir ao imaginar um Jesus nada complacente e nada tolerante. Antes uma criança algo excêntrica, facilmente irritável e que não admitia ser contrariada! Basta pensarmos no que seria entregar todos os poderes a um petiz para vermos os estragos! Ai não te calas com isso?! Toma lá, emudece!

Conta Tomé que certa altura Jesus e outras crianças brincavam num telhado. Uma delas caiu e morreu. Todos fugiram, exceto Jesus. Quando os pais da criança morta chegaram, tê-lo-ão acusado de o ter empurrado. Jesus indignou-se e terá dito: “Zenão! Levanta-te e diz-me: fui eu que te atirei?” O outro levantou-se e afirmou que não tinha sido Ele a empurrá-lo, mas que tinha sido Ele a levantá-lo.

Assim começava a extraordinária vida de Jesus, de sinal em sinal ou de milagre em milagre, a aprender a temperar-se.

Terminam os Evangelhos de Tomé, com Jesus, criança de doze anos, que se perdeu da comitiva que tinha ido a Jerusalém para celebrar a Páscoa, como era hábito. Os pais (Maria e José) encontram-no no meio de professores, interrogando-os e explicando as parábolas dos profetas. Ao ver os seus pais aflitos, terá dito: “Porque me procurais? Não sabeis que é necessário que eu esteja ocupado com as coisas de meu Pai?” Esta última passagem, sobejamente conhecida, já aparece nos Evangelhos oficiais, ainda que com uma tradução diferente, pois Jesus teria dito algo do género: Porque vos preocupais? Não sabíeis que estava na casa de meu Pai?”

Sejamos ou não crentes, Jesus é uma figura extraordinária que nos impressiona. Para uns, filho de Deus, para outros, apenas homem, mas independentemente da crença ou da descrença, saibamos guardar a Sua mensagem de amor ao próximo, porque se ela frutificasse, o mundo poderia ser efetivamente um paraíso terrestre. Pouco do que ele pregou vingou e muitos dos que em Seu nome falam, agem como se não O conhecessem.

Uma Santa Páscoa.

 

 Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 1 de abril de 2023

Crónica de Maus Costumes 319

 

Má-língua

 

Olho para o relógio. Só agora terminei o trabalho que tinha destinado para hoje. Ainda corrigi trabalhos e ultimei avaliações. Amanhã, é domingo. Terei de preparar a reunião de avaliação da minha direção de turma. Hoje, foram cerca de quatro horas e meia de trabalho. Amanhã, serão, certamente outras tantas, dada a burocracia exigida e que o diretor de turma leva pronto, caso contrário, a reunião, em vez das duas horas habituais, precisaria do dobro.

Significa que as horas da componente individual de trabalho, quase se esgotam nestes dois dias de suposto fim de semana. Escusado será dizer que ao longo da semana que passou, também houve correções e preparação de avaliações e muitas horas dedicadas à profissão. Esta constatação não é um queixume ou lamento. Muitos de nós, professores, dependendo da especificidade da disciplina, já conta com os fins de semana para conseguir orientar o seu trabalho, consoante lhe der mais jeito. No entanto, não deixa de me apetecer esmurrar a ignorância atrevida dos que enchem a boca para dizer que os professores só trabalham trinta e cinco horas semanais, quando não pensam que apenas se trabalha as vinte e quatro estipuladas no horário! As redes sociais são um depósito de impropérios de gente mal formada e ignorante que extravasa a sua ira, que destila ódio e inveja nos comentários que faz questão de deixar. Deram voz a toda a gente, seres pensantes e ponderados e seres parvos. Porém, o último grupo destaca-se largamente. Só assim se compreende o desfasamento relativamente à opinião dos portugueses em relação aos professores. Já ficou esclarecido que a maioria dos portugueses (não sei precisar a percentagem) considera que os professores têm razão nas reivindicações que fazem, mas se nos formos guiar pelos comentários com que nos deparamos nas redes sociais relativamente a notícias que impliquem os professores, pensamos que a maioria nos ataca e nos despreza. Efetivamente, a grande percentagem de mensagens denuncia malquerença pelos que exercem esta profissão! São os “haters” crónicos, sempre dispostos a achincalhar tudo e todos, libertando todas as frustrações acumuladas ao longo da vida.

Antigamente, só havia os jogos ao fim de semana para os homens libertarem as tensões acumuladas, arremessando-as contra os árbitros ou jogadores, ou melhor dizendo, contra as mães destes, porque o pior insulto que se faz a um homem é sempre através da mulher e da condição de um nascimento que ele não escolheu, já que o seu grave defeito é ser filho de uma grande meretriz … Tudo isto baseado numa suposição, porque quem insulta nem conhece nem sabe quem é ou quem foi a mãe do árbitro ou do jogador! Só pelo rigor do argumento se verifica a validade de tal insulto: nenhuma! No caso das mulheres… Estas libertavam as suas energias enquanto esfregavam a roupa na pedra dos lavadoiros públicos, lugar de trabalho, mas também o ponto de recolha da coscuvilhice e da má-língua. A contemporaneidade trouxe algumas alterações a estas dinâmicas. Ninguém precisa de sair de casa para de dedicar ao enxovalho. As redes sociais estão à disposição de um clique, a toda a hora e em qualquer lugar.

Curiosamente, se nos dermos ao trabalho de verificar o perfil de algumas dessas almas, verificamos que, aparentemente, elas são como os mortos: um poço de virtudes! De uma candura e de uma integridade que os seus comentários desmentem.

De uma forma ou de outra, todos temos as nossas máscaras. Ninguém é impoluto e a hipocrisia, em doses certas, é o preço a pagar pela paz social, mas há ou deveria haver um limite para a desfaçatez. E esta hipocrisia de tanto se criticar os professores, mas de ninguém querer abraçar a carreira maravilhosa, prestigiante, bem remunerada, com direito a tantas férias e tão fácil de executar, já causa náusea.

Neste momento, foi motivo de notícia o número de alunos que estão sem professor a uma das disciplinas. Dentro de pouquíssimos anos será a catástrofe. Custa ver uma das maiores bandeiras de abril, a escola democrática para todos, ser espezinhada até à sua implosão. Quando tal acontecer, não acusem os professores de não o terem tentado impedir.

 

Nina M.