Seguidores

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Aniversário

Se o dia gélido de um nascimento
Se transforma em chama ardente
Brilho, luar de alma inquieta
Incendiária de uma existência discreta
Cumpriu a tarefa promissora
De vida autêntica e concreta
Muros altos que se erguem
E separam da ilusão
Esta vida definida
Vivida só em solidão
Existe o sonho e a vontade
De embalar a despedida
Em harmoniosa saudade
Do ser nascido ao contrário
Sobeja centelha clara e reluzente
É pura vida imanente
Em cada aniversário

domingo, 29 de dezembro de 2019

Quando o sol repousa e namora o mar

Quando o sol repousa e namora o mar
À hora das lassas vontades
Vejo o meu ser recuar
Procura no íntimo de si cruas verdades
Vê ao longe nas memórias
Breves traços do que já foi
Olha-se no agora do tempo
Inveja a incauta alegria de criança
Que volteia solta na areia e no mar
No tempo onde tudo ainda é esperança
Sonhos são castelos e estrelas-do-mar
Ouriços resguardados nas covas dos rochedos
E se o futuro não é o suave marulhar
Trazido pelas ondas espraiadas
Fixa bem fundo o fundo do meu olhar
E diz-me se não vês todo o futuro
Envolto nestas despidas palavras! 

sábado, 28 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 161


Falências

Deve haver verdadeiro motivo para que o verbo falir seja defetivo pessoal, isto é, não pode ser conjugado em todas as formas. Se disser: eu falo, imediatamente se associa ao ato de comunicar (falar) e não ao ato de falir. Talvez porque ninguém goste de assumir o insucesso e assim aquele que faliu é sempre um outro alguém que não eu. Eu não falo, no sentido de falir, mas posso ser insolvente.
Em falência ou em processo de insolvência estão as instituições públicas deste país. Tenho um familiar que sempre diz que um país que faz revolução sem sangue e o substitui pelos cravos não vai a lado nenhum… Sempre achei disparatado. Somos caso único, mas a ditadura foi derrotada sem guerra civil e derramamento de sangue. Deveria ser motivo de orgulho. Não deixa de ser curioso, estranho e até mesmo ridículo a forma como se conseguiu pôr cobro a um regime daquela forma. Uma pesquisa rápida pela Internet permitir-vos-á ler na íntegra uma entrevista feita a Salgueiro Maia, por Adelino Gomes. O amadorismo do processo, as três horas de viagem para fazer o trajeto entre Santarém e Lisboa (os tanques saíram às três da manhã de Santarém e entraram no Terreiro do Paço às seis), as viaturas velhas foram arranjadas pelo pessoal miliciano e havia o receio de que pudessem avariar. Felizmente, parece que só houve um furo, nada de especial e lá conseguiram fazer a viagem até Lisboa à velocidade estonteante de 60 km por hora! Certo é que o professor Marcelo Caetano rendeu-se quase prontamente, apesar de a PIDE ter ainda tentado dispersar a multidão que se aglomerava, percebendo o movimento de revolta, a tiro. Ainda morreram cinco pessoas e houve uma dezena de feridos. O golpe de estado mais pareceu uma passagem tranquila de testemunho. Tempos mais conturbados viriam depois, com o PREC e com novas tentativas para instaurar um regime também totalitário e pernicioso e que culminaria a 25 de novembro de 1975.
Finalmente, abria-se caminho ao pluralismo partidário e à instauração da democracia. Os anos de ditadura salazarista, a miséria e o atraso em que se encontrava o país deveriam ser suficientes para colocar em alerta quem já cresceu em liberdade, assim que pressentisse quaisquer sinais, por ínfimos que sejam, de totalitarismo. Desta forma, entristeço de cada vez que sinto desvalorizada e desrespeitada a democracia. Sucessivos governos têm ferido de morte a democracia. Fizeram-no com a greve de enfermeiros, com a greve de professores (alterando nos primeiros dias de agosto a legislação que regula o funcionamento dos Conselhos de Turma para tornar legal o que sempre foi ilegal), com as sucessivas formas abusivas de pressão através do medo que plantam nas pessoas e com a pressão constante sobre a comunicação social (as recentes notícias sobre o atraso do programa Sexta às Nove, de Fátima Felgueiras e as suas declarações à Comissão Parlamentar, tornam-na visível). Vive-se, nas instituições deste país, o novo tempo do “quero, posso e mando”, num regime democrático e ninguém se incomoda com isso! De repente, quem se revolta contra os continuados abusos perpetrados sobre quem paga impostos desfasados por excesso do parco salário que recebe, é olhado de soslaio e entendido como o revolucionário sindicalista que nunca está satisfeito!
Irrita-me solenemente que volvidos 45 anos após a revolução, ainda haja um espírito servil e acabrunhado no povo português que o impede de lutar por aquilo que lhe pertence por direito! Não fosse a resiliência dos sindicatos e do povo e ainda estaríamos a trabalhar doze horas diárias, sem muitos dos direitos adquiridos! De cada vez que se permite que injustiças sejam cometidas, sem reclamar, por medo, estamos a compactuar com o estabelecimento de regras próprias de regimes totalitários. De cada vez que censuramos aqueles que lutam sabiamente pelos seus direitos, damos uma machadada na democracia. De cada vez que perdemos a noção da força que comporta uma classe e nos desunimos na luta, estamos a beneficiar os tiranos do regime. De cada vez que pensamos que não vale a pena lutar, porque quem nos governa faz o que quer, estamos a abrir-lhes portas para fazerem mesmo isso!
Não! Haja consciência e sentido de bem comum! Leia-se! Leia-se muito, porque a melhor forma de controlarem as massas é através da ignorância e da inconsciência! Perceba-se definitivamente que o verdadeiro poder está na rua e que devemos ser o regulador do bom funcionamento democrático e das suas instituições. Só o faremos se mostrarmos a indignação enquanto cidadãos, exigindo respeito pela nação e pelo povo que representam a quem nos governa! Digamos claramente não a todo e qualquer comportamento abusivo, que ponha em causa a noção de democracia! Quanto ao poder executivo do país, que o faça respeitando a História da bandeira que representa, lembrando-se só chegaram até ali, porque viveram em democracia. Quando perguntaram a Salgueiro Maia, após a revolução, “e agora?”, ele respondeu: “o povo tem de aprender a viver em liberdade e a saber que a dele termina quando começa a do outro”.
Parece-me que nem o povo nem quem nos governa nem quem exerce cargos de decisão neste país compreende o exato sentido dessas palavras.

Nina M.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Que será o tempo?

Que será o tempo?
O pulsar dos segundos mensurável
Sempre o que falta ao Homem apressado
Tivesse eu tempo...
Pudesse parar, congelar ou resgatar o tempo...
E posso porque o tempo significativo
É o que se inscreve na memória alojada na alma
Mesmo que seja um momento
Um pequeno instante ou aparente nada...
O tempo é um beijo apressado na sua ânsia de ser
ou o beijo que é e deseja demorar
A mão que não se quer largar e o abraço de dois
Olhares resgatados
Vivências perdidas
Conceito vazio se o encontro não se dá
E se te fazes presente, meu bem,
Contam todos os segundos também!
Emoções colecionadas
Por quem gosta de parir amor
Mas não há parto sem dor
E o tempo em que ocorre
É princípio, meio e fim.
É o mundo e o seu tempo em mim!

Crónica de Maus Costumes 160


                Ética, precisa-se!

A minha Matilde é um encanto. Ontem, aprendeu da pior forma o que é a desonestidade. Percebeu que não pode confiar em todas as pessoas, mesmo sendo crianças como ela. E o seu coraçãozinho puro, sensível e sem maldade entristeceu. Chorou dececionada e sem compreender o motivo que levam os outros a serem maus. Olhava-me chorosa em busca de uma explicação que eu não conseguia arranjar, a não ser a verdade crua de saber que há pessoas desonestas e que não se incomodam se prejudicarem terceiros com as suas ações.
Ao que parece, teria combinado com outra menina, através dos jogos online a troca de certos componentes. O irmão, mais velho e já com outra maturidade, bem tentou demovê-la, mas a Matilde, doce e ingénua menina, decidiu confiar, afinal, por que motivo não o faria? Se a outra criança prometeu, tal como ela, por que razão não cumpriria com a sua palavra?! A minha filha sentiu-se enganada, traída, sem nada poder fazer para remediar a situação.
Expliquei-lhe que deveria fazer trocas apenas com os seus amiguinhos conhecidos e falei-lhe das vantagens das relações interpessoais. Se acontecer um problema desse género, quando as pessoas estão frente a frente, a situação é facilmente resolvida. Quando se trata de redes e de realidade virtual, sem se saber quem está por detrás de uma tela, tudo se complica. O episódio infeliz traz, porém, a sua vantagem: a minha Tita, ontem, cresceu mais um palmo. Acabei por consolá-la, como sempre as mães conseguem fazer e dizer-lhe que apesar de tudo estava muito orgulhosa dela, que preferia que fosse ela a ser enganada do que a enganadora. Ela era quem tinha agido corretamente e com dignidade. A outra menina é que deveria estar a chorar por desconhecer o significado de ética.
A Matilde esbugalhou os olhos, já de si imensos, duplicando-lhes o tamanho. Não sabia o que era a ética. Expliquei-lhe que é uma qualidade imprescindível ao ser humano. Uns têm e outros não. É o ímpeto que nos leva a agir corretamente, mesmo se isso nos é desfavorável. É talvez das maiores qualidades que o ser humano pode ter e das mais difíceis, porque não se vende em supermercados nem é estática. A ética exige de nós uma construção permanente e não há ninguém que consiga ser absolutamente ético o tempo todo, pelo simples facto de sermos humanos.
- Se a menina tivesse isso não me teria enganado, mamã?!
- Não.
- Mas eu tive com ela e fiquei sem as minhas coisas!...
- É verdade. Nem sempre quem é honesto ou quem tem ética é respeitado, porém, há algo muito precioso que não perdeste: a tua dignidade e a consciência de teres agido corretamente. Vale mais do que tudo. O que perdeste conseguirás recuperar, já a ética da menina relativa àquele momento, fica perdida para sempre. Pode vir a reconquistá-la noutras ocasiões, oxalá venha a verificar-se, no entanto, desta vez, já a perdeu.
A ética é uma virtude que pode ser ensinada (segundo Aristóteles) e que exige responsabilidade e respeito pelo limite estabelecido pelo outro. Eu não devo ouvir música alto em lugares públicos, porque posso incomodar o outro. Assim, o comportamento ético é revelado tanto nos mais ínfimos gestos como nos mais grandiosos. Desviar dinheiro público é um comportamento deplorável e condenável, mas apropriar-se da fotocopiadora da empresa para fins pessoais também é. Qual a diferença entre ambos? Na sua génese, o comportamento é similar. A diferença está no valor do desvio. Desta forma, a ética não parece que possa ser relativizada ou avaliada em graus. Ou se tem ou não. O valor do produto adquirido pela falta de um comportamento ético é que poderá ser variável e tornar o comportamento mais ou menos gravoso. Assim como as circunstâncias que o proporcionaram podem servir ou não de explicação para a falha. No entanto, com ou sem atenuantes, o comportamento continuará antiético.
A Matilde aprendeu que nem sempre quem age bem é recompensado pela vida. Aprendeu também que, infelizmente, não pode confiar em toda a gente, porque, estranhamente, nem todos se pautam por uma conduta que consiste em não fazer o mal deliberado a outrem. A Matilde, ontem, chorou por se sentir injustiçada, vilipendiada nas suas boas intenções, mas é a mesma menina que uns minutos depois, quando a irritação passou, ao ouvir o vento sibilar lá fora e a chuva a bater nos vidros, me perguntava onde é que as pessoas que vivem na rua iam ficar, porque não deveriam ficar à chuva! É a mesma menina doce que passa pelas ruas da cidade e não fica indiferente aos pedintes e que me quer obrigar a dar uma moeda a todos os que encontramos. Lá lhe explico que não podemos dar a todos. Convenço-a a ficarmos por dois ou três e que os outros haverá alguém que também os irá ajudar. É a mesma a quem se alguém lhe der uma guloseima, pergunta de imediato: “E para o Rodrigo?” É a menina sempre disponível para ajudar quem precisa, sensível até ao tutano, perspicaz e que se entristece se vir alguém triste. É a menina persistente até ao limite, até me vencer pelo cansaço, por vezes! A menina que tem as suas manhas, que adora ver o seu trabalho reconhecido.
- Mamã, tive muito bom! Ficaste feliz?
- Fiquei, meu amor, mas fico mais feliz ainda por saber o coração enorme que albergas no peito! Por saber a tua candura, a tua sensibilidade, a tua generosidade a par da tua irrequietude e malandrice, porque tudo se quer na exata medida das coisas!

Nina M.
          









domingo, 15 de dezembro de 2019

Saudade

A saudade quando vem
E é esta melancolia
Nada mais do que existe
Nada lhe vale e assiste
Sobra apenas a poesia
Não se sabe como surge
Nem o que a faz aparecer
Parece um ser autónomo
Que assim nos quer vir ver
E é tão boa companhia
Lembra-nos de conversas antigas
Êxtases e pequenos milagres
Coisas boas desta vida
Há quem não a queira sentir
Aninhada ao seu lado
Falta-lhes descobrir
o suave sabor da saudade
Mesmo que a não queira
Aloja-se em mim, não me larga
Trago-a sempre na algibeira
Garanto que não é grande carga
"Saudade é o amor que fica"
Ouvi certa vez dizer
Gostei tanto que assim fosse
Que nunca a quis perder
Saudade do que nos falha
Neste tempo que é finito
Será o amor roubado
No fundo da alma inscrito
Assim a guardo com cuidado
Ciente do seu valor
Pode causar desagrado
A mim, só me traz amor

sábado, 14 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 159


Inveja e felicidade

                Não tenho paciência nenhuma para tutoriais de youtube, por isso, espanto-me com o gosto da juventude pelos youtubers (filhos incluídos para mal dos meus pecados!) supostos “influencers” da parvalheira e da ignorância. A lei da proporcionalidade funciona bem para eles, porque quanto mais parvos mais seguidores! Há, no entanto, uma exceção: sou capaz de ouvir indefinidamente um pensador brasileiro, historiador de formação, mas um grande intelectual que já devorou muitos, todos os bons livros que cada ser humano deveria consumir e que eu não sei se terei tempo para o fazer. Invejo-o e admiro-o por isso. Sim. A inveja é uma coisa feia, o “pecado envergonhado”, como Karnal lhe chamou no seu programa “Café Filosófico”.
                Dizia, então, Leandro Karnal que poucos são os seres que reconhecem que são invejosos, mas que, na verdade, quase todos nós somos permeáveis a essa emoção. Devemos é estar disso cientes para que a emoção não se torne desregulada e perigosa. Explicava a diferença entre a cobiça e a inveja, na sua perspetiva. A primeira pode ser positiva. Pode significar desejo por alcançar o mesmo que o vizinho e trabalhar para o realizar. No entanto, a inveja é mais perniciosa. Por detrás da inveja estará a incapacidade de o ser humano se regozijar com a felicidade alheia, sobretudo se lhe forem próximos. A inveja é assim o reconhecimento do fracasso próprio por comparação com alguém. O olhar foca-se no outro e não em si mesmo. O outro é sempre o mais inteligente, o mais afortunado, o que possui o que não se tem e tanto se deseja, gerando ressentimento. Desta forma, muita gente se acha muito invejada, mas não se reconhece invejosa. Inveja vem do étimo latino “invidere”, que significa não ver. Ora o invejoso não se vê a si, permanece numa cegueira tola pelo foco que coloca no outro e que, geralmente, considera ser bafejado pela sorte e não um trabalhador esforçado.
“Sabe, Leandro, você hoje está bem. Tem muito sucesso, mas isso passa, viu?!” Ter-lhe-á dito uma amizade, certa vez. Claro azedume pela conquista do amigo! Ao que parece, segundo um estudo americano, a generalidade das pessoas prefere continuar a ganhar menos, desde que os outros ganhem menos do que elas a ver o seu salário aumentado, mas os outros a ganharem salário igual! Parvoíce humana!
 Pensando sobre as reflexões do Karnal, tendo a concordar com ele, embora prefira ser menos cínica. Ele quase não acredita que haja seres límpidos o suficiente para não se deixarem arrastar pela lama dessa emoção. Já eu acredito que ainda há seres suficientemente inteligentes para compreenderem o perigo e a torpeza da inveja e tentarem contrariá-la. Por isso, Leandro, há em mim um misto de pequena inveja e de admiração pelo teu saber, pela tua brilhante capacidade de comunicação, mas não há qualquer desejo para que fracasses, bem pelo contrário! Sei bem que há o atlântico de permeio, logo a condição proximidade para que a inveja floresça não existe, mas ainda assim, gosto de sentir a inteligência vibrante neste planeta! Não será inveja, antes cobiça, talvez dissesses. Talvez seja, porque fico feliz por haver gente que me deixe feliz quando os ouço. Se o Homem se deixa encarniçar por estes sentimentos como poderá ser feliz? Centremo-nos no que verdadeiramente importa. Combatamos todos os cinismos, cobiças e invejas. Não sejamos cegos e tenhamos a capacidade de nos olharmos e procurarmos fazer o melhor de nós, sem comparações.
Talvez possa deixar como solução a fórmula de Edgar Morin: “Para mim o problema da felicidade é subordinado àquilo que chamo de  ‘o problema da poesia da vida’. Ou seja, a vida, a meu ver, é polarizada entre a prosa – as coisas que fazermos por obrigação e não nos interessam para sobreviver - E  a poesia – o que nos faz florescer, o que nos faz amar, comunicar. E é isso que é importante.  Então, eu digo que o verdadeiro problema  não é a felicidade. Porque a felicidade é algo que depende de uma multiplicidade de condições e eu diria mesmo o que causa a felicidade é frágil, porque, por exemplo, no amor de uma pessoa, se essa pessoa morre ou vai embora, cai-se da felicidade à infelicidade.
[…] Em outras palavras, não se pode sonhar com uma felicidade contínua para a humanidade. É impossível porque a felicidade, repito, depende de uma soma de condições. Então, pelo outro lado, o que se pode dizer, pode-se tentar favorecer tudo o que permita a cada um viver poeticamente sua vida e, se você vive poeticamente você encontra momentos de felicidade, momentos de êxtase, momentos de alegria e, na minha opinião, é isso”.
É isso sim, porque tudo o que vale a pena é poesia e do que ela se faz. O sabor dos dias que não se perdem no vazio e na ausência de sentido, nem que seja por um breve momento.

Nina M.

               





quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Cai sobre a noite a melancolia

Cai sobre a noite a melancolia
Repousa serenamente no seu colo
Saudade feita poesia
Frágil e belo reflete o cristal
Memórias felizes em agonia
Angústia triste e letal
Teima em abalar o triste dia
Comporta a grande dor do mundo
Esfumou-se a euforia
Se eu pudesse sepultá-la
Num vazio magistral
No templo do esquecimento remoto
Talvez a nostalgia tivesse fim
Se para ela houvesse
Mágico veneno à alegria devoto
Bebê-lo-ia de um trago áspero e seco
Mataria os lugares de meu luto
Sem saber se me absolvo ou se peco
Em ânsia de sublimação pura
Rasgue-se ao meio esta amargura
Sedimento de alma extenuada
Vazia de tudo e cheia de nada

domingo, 8 de dezembro de 2019

Dánae

No silêncio de mim
Ouço o eco da tua voz
Sempre cristalina e límpida
Serena, segura e triste
De que longe vem?
Procuro-te no fundo da alma,
Dánae, bela desejada!
Que clausura te impuseram?
Que grades de mim te separam?
Louco! De meu desejo te afasta!
Descerei sobre ti
Chuva de ouro divina
Qual Espírito Santo!
Queima este desejo incandescente
Ardem-me as têmporas
Trémulas as mãos
Pousarei sobre ti
Em pó fecundo e invisível
Tu, ó sagrado templo virginal
Onde germinará fruto,
Doce e inocente pecado
Roubado em ardiloso delito
Das águas ressurgirás,
Protegida de Poseidon,
Terás a tua liberdade
Condensada num só grito!

sábado, 7 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 158


Deambulações


                Hoje, ao pôr o filho mais velho a estudar (o eterno castigo!), vejo-o empolgado com assuntos que se relacionem com o Universo e os seus planetas. Interrogada sobre a constituição da atmosfera de Vénus, lá respondi que não fazia a mínima ideia, porque era um assunto que não me interessava muito.
                - O quê? Não gostas desta matéria? Perguntou sinceramente espantado. Tive vontade de lhe responder que essa matéria desperta tanto a minha curiosidade quanto as rochas que ele tem de estudar em Ciências, mas não julguei aconselhável, apesar de verdadeiro, por dever do exemplo.
- De que gostas, então? Quis saber.
- Literatura, poesia, Filosofia, História, Psicologia, Mitologia… Tudo o que está relacionado com o Homem. Respondi.
- E não queres saber do Universo?
- Se eu fosse capaz de saber o Homem, já seria muito feliz. Sentenciei.
Não percebeu exatamente o que quis dizer e também não lho expliquei. Seja como for, hoje teve a perceção de que afinal a mãe também é ignorante e não se incomoda com as distâncias e períodos de órbitas dos planetas. Os adultos, afinal, também não se interessam por tudo e desconhecem factos que eles são obrigados a estudar. Que injustiça! Bem, fiquei a saber que Vénus tem movimento inverso ao dos ponteiros do relógio, o que não acontece com os outros planetas, muito provavelmente devido a uma colisão.
- Então, não sabias?
- Não. Isso, não, mas sou bem capaz de te explicar quem era Vénus (para os romanos) Afrodite (para os gregos) e a paixão que revelava pelo nosso povo luso devido à coragem, ousadia e também pela língua que “com pouca corrupção/julga que é latina”.
- Ó mãe, e por que motivo gostas tanto de histórias?
- Boa pergunta.
Talvez cada narrativa contenha uma busca de sentido, das mais diversas formas. Vê-lo nas personagens que me parecem de carne e osso cria-me a ilusão de aprender alguma coisa sobre o Homem. Talvez porque goste de viver em dimensões paralelas onde ficciono e dialogo com esses amigos que vou fazendo e me alargam horizontes. Talvez porque a nossa própria vida seja uma narrativa que nos vamos contando e também aos outros. Uma narrativa que se constrói ao longo dos tempos, cheia de oscilações já conhecidas dos nossos avoengos. Talvez porque a humanidade se alicerce nos mitos antigos que são explicação para algumas das nossas questões. Património fundador da humanidade que o preserva ao longo dos tempos e o perpassa pela arte. Talvez para compreender que, em última análise, são os deuses os responsáveis pela forma como a mulher ainda hoje é entendida: a sedutora perigosa, responsável pelos males do mundo. Ah! Triste e vilã Pandora que seduziste Epimeteu e que com a tua curiosidade condenaste a humanidade a padecer de todos os males! Sobejou a esperança. Depois, veio Eva, a mãe, cuja curiosidade contamina Adão e desafiam as leis divinas. Trouxe o pecado (símbolo dos males) à humanidade. No entanto, é no ventre terreno da mulher onde o Verbo se faz Homem, com uma diferença, porém. A eleita é mulher sem mácula! Maria devolve a dignidade e a candura à mulher, no entanto, torna-a assexuada. A mulher vê-se mutilada na sua liberdade e a sua concetualização varia entre dois polos: a sua divinização e a sua diabolização.
- Sabes, filho, não é o Universo nem as suas rotações que me permitem pensar nestes assuntos.
- E para que serve pensar nessas coisas?
- Na verdade, talvez para nada, mas elas surgem-me sem que as chame e aninham-se em mim. Obrigam-me a tratá-las com carinho e eu gosto.
- És um bocadinho estranha.
- Eu sei. Já me afeiçoei à peculiaridade.

Nina M.  











domingo, 1 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 157


Sono Matinal

                Gosto de ler um pouco de tudo, pelo que o tempo que vou perdendo nas redes sociais serve para ler algumas das coisas interessantes que por lá se vão partilhando. Aí está uma benesse desse meio de comunicação. Não aparecem apenas supostos “influencers” meio parvos e sem nada de útil para dizer, mas também gente de bom gosto, que aprecia boas leituras.
Assim me deparei com uma entrevista a uma poetisa que dizia que o mundo se dividia em dois géneros de pessoas: as que preferem Paris e as que preferem Londres. Fiquei a pensar que talvez preferisse Paris, mas pensei para mim que a divisão em dois grupos é feita com base noutros critérios: as pessoas que acordam muito bem-dispostas pela manhã, a cantar, se for o caso e as outras! Aquelas que põem o despertador cinco ou dez minutos mais cedo, mas invariavelmente o corpo se recusa a levantar de supetão e os dez minutos transformam-se, sem se saber muito bem como, em vinte. Depois, é a azáfama habitual, sem a qual uma manhã não seria manhã. Preferivelmente, em silêncio absoluto até se tomar o abatanado obrigatório para começar a acordar. Há gente assim… Esticam a noite mais do que o que devem e as manhãs, até determinada altura são terrivelmente sofredoras. Pertenço a este grupo e gosto pouco que me louvem as vantagens de acordar cedo. Deveria ser proibido ter que começar a trabalhar antes das nove e meia. Não mudaria muito, porque o impacto de acordar ninguém consegue minimizar. Não que não queira despertar pela manhã! Pretendo continuar a fazê-lo durante muito tempo! Gostaria era de o fazer com calma e mais tarde. De modo que sou acusada de alguma agressividade matinal, principalmente, antes do café!
Perdoem-me as pessoas que pertencem à outra fação, mas são verdadeiramente irritantes! Ouvir canto matinal ou verborreia desenfreada em volume proibitivo para aquela hora da manhã é tortura!
A higiene pessoal deve ser efetuada em absoluto silêncio e sem ter que se pensar nas tarefas imediatas, quando o cérebro ainda está a acordar. Depois, o café, se for tomado na solidão silenciosa tem um gostinho especial. Depois deste, aos poucos, a vontade de agir e a energia vão aumentando gradualmente e logo que se chega ao local de trabalho, começa-se a  estar preparado para o dia, mas sem abusos! O silêncio recolhido continua a ser bem-vindo! Um simples bom-dia educado chega.
Normalmente, a caminho do trabalho, no carro, ouço a rádio e não posso deixar de ficar espantada com a energia dos locutores e as suas gargalhadas matinais. Depois, penso: Estes já acordaram às seis da manhã, os níveis de energia já estão regulados! Haja coragem!
Assim, logo pela manhã, quem convive comigo sabe que não é hora de muitas perguntas nem de observações, porque pode ter a maior razão e a maior delicadeza do mundo, mas eu não serei propriamente simpática. Digamos que um mau feitio, que se desvanece depois de efetivamente acordar, toma conta de mim e atira umas respostas secas e ásperas. Quem convive comigo não liga, até porque sabe que o tempo de me interpelar não é esse. Sabe que a noite passou demasiado rápido sem respeitar o meu biorritmo. Por isso, se me perguntam: Já acordaste a criançada? A que horas? Obterão como resposta um “Sei lá! À hora que o relógio marcava e que não vi!”
Na infância, nada me irritava mais do que quando o meu pai, para nos acordar, se punha a cantar desenfreadamente, como se não houvesse amanhã! Que nervos! Que vontade de fechar a porta do quarto, de virar para o lado e continuar como se nada tivesse ouvido!
Não se trata de uma apologia à má-disposição matinal, apenas uma sugestão de regulação de comportamentos excessivos! Grata.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Libertem-se-me as palavras

Libertem-se-me as palavras
Desfaçam-se no amor que te sinto
E te envolvam a alma
E neste pouco que te oferto
Sou toda eu
E tens-me por inteiro
Mas se vier o dia negro e triste
Da última palavra não dita
Do terno e doce olhar finito
Se os músculos se tumeficarem 
E enegrecerem como a alma
Antes da partida  
Do virar de costas absoluto
Deixar-te-ei ir
Sem palavra que te impeça
Sem que a dor que me trespassa a alma
Se torne visível
Nesse brevíssimo momento indefinível
De rigidez tortuosa e belígera
Ainda assim terei a mesma alma quente e doce
Sob a capa de gelo que se cristalizou no instante
Ainda serei eu e as palavras não ditas
Recolhidas em mim
Tesouro não desperdiçado!

sábado, 16 de novembro de 2019

Narciso

- O que vai ser de nós?
Pergunta o belo Narciso
De borco sobre a água
A contemplar a sua imagem
Só assim se sacia de amor
Satisfaz a paixão que o consome
Por momentos
A distância e o afago impossível 
Quase parecem reais
- O que vai ser nós?
Se não posso sair da fonte
Se hora que te não vejo
Mutila a minha alma?
Se amor é o meu reflexo
Tenha garras para me extirpar
Possa sair de meu corpo
Ser outra carne e a mim contemplar
Ser outra vida e a mim abraçar
Ah! Estás louco, meu Narciso!
Quis gritar Eco, num aviso:
No dia em que em ti te fundires
Será o dia da escuridão brutal
Definharão o corpo e a alma
Não sabes que o amor não brota 
Se é unilateral?

Crónica de Maus Costumes 156


Leituras e conversas

Há dias nefastos para a escrita. Hoje é um deles. As ideias pairam e sobrevoam, mas nenhuma se concretiza de forma acertada e consistente e, assim, a minha alma vagueia dispersa e móbil, sem se consubstanciar em matéria.
Quando tal acontece, talvez seja sinal de ser preferível o silêncio, porém, a filhota vai atirando para o ar: “ó mamã, escreve sobre nós!” E as palavras teimam em dançar à minha volta e fugir-me. Não me abraçam e fazem-se tão difíceis quanto uma mulher caprichosa.
Neste impasse e na incerteza do que possa dizer, opto pelo seguro: falar de livros e do que eles nos proporcionam e talvez assim as ideias comecem a surgir. Enquanto ajudava o meu mais velho a preparar a leitura de O Cavaleiro da Dinamarca, sou surpreendida pela sua interrogação. O meu filho é capaz de fazer as observações mais brilhantes, mas também as mais idiotas, em pequenos momentos em que parece ausentar-se do mundo e de nós. O pai estrebucha por tudo quanto é lado e suspira, acrescentando que bastava uma cá em casa dessa espécie. Calo-me, porque há coisas do meu filho que são tão minhas que seria falta de pudor desmentir. Exceto a idiotice, porque essa fica toda com os homens como todas as mulheres concordarão. Depois de aprender quem foi Dante Alighieri e da fantástica viagem que este fez à morte ainda em vida, perguntou-me:
- Por que motivo estava escrito à entrada do inferno: “Vós que entrais abandonai toda a esperança?”
Respondi que era o aviso de que as almas condenadas ao sofrimento eterno não poderiam ter esperança de ter dias sem dor.
- E quem vai para lá?
- Os que tiveram uma conduta deplorável e fizeram muito mal a outras pessoas.
- Mas Deus não perdoa todos?
- Sim, mas é preciso que se tenham arrependido verdadeiramente.
- Ah! Achas que o Bin Laden está no inferno?
- A haver inferno, naturalmente, será o seu lugar. – Respondi.
Ficou admirado com o purgatório e as almas que por lá passam e voltou a questionar:
- E para aqui quem é que vai?
- Aqueles que erram, mas cujas ações não são assim tão prejudiciais.
- Para pessoas como eu e tu? Insistiu.
- Talvez. Respondi.
- Mas podem chegar ao céu…
- Podem.
- Olha, ó mãe, e Dante será que foi para o paraíso?
- Com certeza. Dante era poeta e esses têm o paraíso ganho. Sentenciei. Esperava algo de volta, mas nada disse. Parece-me ter concordado com a ideia.
Sorri de satisfação, porque o livro tinha cumprido a sua missão. Inquietou o espírito do meu filho de doze anos que se diz ateu e que gosta pouco de ler, mas confessou ter gostado da história.
Querendo provar-lhe as vantagens da leitura disse-lhe não haver motivo para não ler, pois como verificou até tinha gostado e deveria fazê-lo mais vezes.
- Ó mãe, eu gostei da história, mas não gostei de a ler…
Quase como quem diz que se lha tivesse contado, continuaria a gostar dela e tê-lo-ia poupado à tarefa!
Ainda não compreendes, meu filho, mas se ta tivesse contado, talvez não tivesses tido o tempo necessário para te inquietares. Talvez um dia consigas compreender a importância dos livros e os universos que nos abrem e o que hoje é sacrifício, amanhã, será prazer imenso inadiável. Necessidade básica de sobrevivência e a garantia de fuga à imbecilidade!
Como tua mãe posso conceber que sejas um pouco distraído a momentos, mas não um adulto profundamente estúpido. Sabes, a estupidez é deveras insuportável e a melhor prevenção para tal dano ainda é a leitura.

Nina M.





















quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O Eco de Narciso

Eis no silêncio abrupto
A voz do vento que passa
Traz consigo o eco distante
Por ver Narciso prostrado
Definha, por si mesmo encantado.
A sua imagem não alcança
Revolve as águas com fúria
Por entre os delicados e alvos dedos
Escorre líquida a desventura
A sua imagem é a guardiã dos seus segredos
E  de sua alma inconformada
Ama-se o filho de Liríope
Atónito, mostra por si encanto
Sabe bem que não é míope!
Põe a amorosa Eco à margem
Que repete os seus ais
Enquanto revolve a água turva
Ao seu toque fugidia
Deram-lhe os deuses esta ironia
De ser sua a voz que repudia!
Por desamar todo aquele que o amou
De dura ordem se fez vaticínio
Pobre Narciso, a si mesmo apenas desejou
Nunca ninguém lhe causou fascínio!
Merecerá tal fado quem procura seu igual?
Por sua exigência foi castigado
Transformado em simples mortal!
Renasce em flor de mesmo nome
Que se curva na fonte para o ver
De si conserva a beleza
A inocência de seu igual
A brancura ou o ouro te contemplam
Eternizam-te em eterno ritual!


sábado, 9 de novembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 155


A agonia da escolha

A escolha faz parte da vida e nem sempre é fácil suportar o caminho escolhido, porque o mundo é perigoso, injusto e nem sempre é bonito. Muitas escolhas são também um ato exemplar de coragem e os exemplos são muitos. São eles que nos permitem continuar a ter esperança na humanidade.
Nomes como Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela, Madre Teresa de Calcutá são alguns dos que se destacam pela escolha que fizeram e que exigiu, certamente, uma coragem gigantesca para ultrapassar barreiras. Nada os impediu e considero-os verdadeiramente admiráveis. Seres dignos de profundo respeito, porque tiveram a grandeza de se despirem de si em favor do bem comum. Quando penso neles, a consciência da minha pequenez e da minha insignificância torna-se nítida. Obviamente, nem todos têm esta capacidade, mas o facto de serem homens de carne e osso, atacáveis na sua humanidade, pelo que não estão isentos de mácula, mas donos de um ideal capaz de romper fronteiras e de fazer verdadeiramente a diferença é assinalável. Sei que há muitos outros seres anónimos que diariamente dão de si para tornar a vida de alguém melhor. Essa espécie algo rara, que assume com coragem essa missão de fazer a diferença, permite que eu não perca a fé na humanidade, apesar do enorme pessimismo. Nos tempos que correm, acreditar no Homem é mais um ato de fé do que de inteligência, no entanto, há sempre alguém que se supera.
O tema horripilante da semana comprova a desumanidade galopante. Uma mãe abandona o neófito à morte num caixote do lixo. Um arrepio percorre-me o corpo. Sou mãe! Como não me horrorizar?! Não conheço os contornos da história, desconheço as dificuldades ou situação da jovem mãe. Não me atrevo a tecer considerações sobre os motivos que a terão levado a tal comportamento nem quero tecer uma condenação em praça pública. Será provavelmente alguém a precisar de ajuda, porém, uma coisa a minha consciência me diz: não se abandona um ser como se fosse lixo, talvez ainda menos acondicionado do que as sobras do jantar. Posso compreender a decisão de não querer o bebé. Criar um filho é um projeto de vida. Independentemente da idade, ele será sempre fonte de preocupação para os progenitores. Será talvez a grande desvantagem da maternidade. Como me disse uma colega que na altura já era mãe, quando eu tinha apenas os meus 25 anos (a maternidade, para mim, era uma ideia longínqua ainda): “Todos falam nos benefícios da maternidade, mas ninguém alerta para os prejuízos que também existem.” Na época, terei julgado a crueza das palavras, porém, verdadeiras. Ser mãe não é fácil e não comporta só aspetos positivos. É um amor imenso que exige cuidado contínuo e abnegação. Essa é a verdade. O amor dedicado é incondicional, mas exigente. Muitas vezes suga todas as nossas energias e obriga-nos a esquecermo-nos de quem somos em benefício dos filhos. É amor, mas nem sempre é fácil. A sociedade impõe que a mulher se realize no projeto da maternidade, todavia, nem sempre é assim. Desta forma, a mulher tem o direito de não querer ser mãe. Consigo entender perfeitamente a opção. O que me causa náuseas no caso referido nem é o abandono do bebé em si. Se não o quer, é melhor que não o tenha do que o negligencie. Porém, forma como se descarta um ser acabado de romper das entranhas, absolutamente desprotegido e se entrega  à morte como se fosse lixo, é demasiado cruel. Foi uma questão de escolha e esta nem sempre é fácil, no entanto, há opções mais aceitáveis do que outras. Haveria certamente outros lugares onde deixar a criança: hospital, igreja, à porta de casa de alguém, etc… Não foi a melhor escolha nem a mais humana e o problema da decisão é o facto de termos de viver com as consequências que dela advêm.
Ainda assim, talvez seja preferível viver com as escolhas que fazemos do que com as que os outros nos possam imputar. Esta mãe terá de viver o resto da sua vida com a sua.
Nina M.





sábado, 2 de novembro de 2019

Definição

Sou poeta
Bebo das palavras e elas são o meu cálice
Cristalinas, opacas e obscuras
Como a alma de quem as pensa e as projeta
Ora se abrem e beijam e abraçam
Ora se fecham e isolam e imolam
O poeta não precisa da compreensão alheia
De olhares suaves e sorrisos complacentes
Apenas do silêncio profundo
Para nele poder ouvir os sons do mundo
E é deles de que enche a alma azedada
Filha do demónio em dia de trovoada
O canto do poeta nem sempre é belo e límpido
Às vezes é o canto triste do cisne
Sabe a veneno letal que traz a morte
Mas não é para Sócrates o canto mais belo?
O do cisne que sabe o seu destino e o aceita placidamente?
Canta, belo cisne, e enfeita a terra
Fecunda os ouvidos do Homem
Prepara-os para uma beleza maior
E depois da tarefa feita
Podes abrir o teu peito à maleita
E sucumbir com prazer e dor
Porque ninguém é tão sonhador

Crónica de Maus Costumes 154


Os desmandos da lucidez ou da loucura…

                As notícias sobre a (des)educação têm feito estragos durante esta semana, nas redes sociais. O possível fim das retenções até ao final do terceiro ciclo tem indignado muitos colegas. Neste momento, a mim, já só me causa indiferença. Já senti repulsa visceral em aceitar tal ideia. Aliás, olho bem lá para trás, no início da minha carreira, e quase me apetece pedir desculpa aos ex-alunos pelo nível de exigência imputado!
Meus caros, não o faço porque, antes de mais, não tenho como chegar até vós. Esta modernidade do facebook é relativamente recente e eu já conto com uns modestos 20 anos de serviço docente, pelo que nenhum de vós figura como meu amigo facebookiano. Depois, as coisas são o que são e naquele tempo era assim. No entanto, dá-me uma enorme vontade de rir porque a minha mãe, que era professora primária (no seu tempo era esta a designação) já deitava as mãos à cabeça por ver os textos fabulosos, em português escorreito, dos meus alunos. Não acreditava! Nenhuma professora que se dignasse deixaria um aluno transitar com tamanhas lacunas a Português! Há vinte anos era isto. De lá para cá não sinto grandes melhorias, apesar da enorme evolução que querem fazer crer…
Na verdade, caros colegas, vejamos… No ano transato retiveram muitos alunos?! Eu julgo que tive a maior taxa de sucesso de sempre! Irei repetir-vos o que me disseram numa pseudoformação, quando tinha apenas os meus 25 anitos e ainda tinha sonhos grandiosos: “chumbar um aluno não resolve o problema na essência. Desmotiva-o e não faz com que ele aprenda o que não sabe, para além de que custa um balúrdio ao país!” Estávamos no ano letivo de 2000/2001. Eu sorria e atrevidota respondi-lhe que viesse para a minha aula de sétimo ano ensinar uma menina com Necessidades Educativas Especiais a ler, porque eu não era capaz de o fazer nem tinha formação para tal, tendo também a meu cargo mais dezanove alunos, nessa turma. Julgo que o senhor cujo nome não me lembro não terá ficado com boa recordação minha. Não faz mal, porque foi recíproco. Porém, hoje, reconheço-lhe razão, em parte. Obviamente, a punição do chumbo por si só não resolve a questão, porque efetivamente os alunos não melhoram as aprendizagens apenas com a punição. Nenhum professor gosta de reter alunos, olhar para uma pauta e ver insucesso, porém, doem-lhes as entranhas e o brio profissional quando têm de os deixar progredir sem as aprendizagens efetuadas. Depois, em torno destas questões, surge uma panóplia de estudos a aconselhar os melhores placebos.
Há pilares que são fundamentais para podermos melhorar as aprendizagens: disciplina na sala de aula, consolidação, aplicação e verificação das aprendizagens de forma sistemática, apoio efetivo para os alunos que apresentam lacunas e exigência parental no que concerne os resultados escolares. Sem isto, podem chamar-lhe o que quiserem, porque continuaremos a falsear e a branquear resultados.
Assim sendo, quanto a mim, se o Ministério que nos tutela decidir pôr termo às retenções até ao final do 9º, desde que se mantenham os níveis que os discentes verdadeiramente merecem na pauta, para que os seus progenitores saibam que em alguns casos se trata de uma passagem meramente administrativa, esteja à vontade. É mais honesto do que a horrível legislação que está em vigor e que não impõe qualquer limite de níveis inferiores a três para a progressão do aluno, deixando a decisão para o Conselho de Turma. A maioria das escolas, através do Conselho Pedagógico, estabeleceu critérios internos, mas que não se sobrepõem à lei, o que na prática significa que se o Conselho de Turma quiser invocar o espírito da lei e usar de futurologia, dizendo que as dificuldades do aluno não o impedem de atingir as competências previstas para o final de ciclo, pode transitá-lo, mesmo que este apresente uma quantidade avassaladora de níveis inferiores a três. O que se faz para evitar cair no descrédito? Os níveis inferiores a três não aparecem na pauta, mas todos nós sabemos como são fabricados e se operam verdadeiros milagres de última hora, com votações de notas, agastamentos e lamúrias à mistura.
Desta forma, se as coisas forem transparentes e os Encarregados de Educação alertados para o facto de que o menino transitará sempre independentemente das notas até ao nono, mas que a avaliação justa será a que consta da pauta, tudo certo, para mim. Se o Encarregado de Educação considerar que as bases adquiridas no básico não são importantes para depois fazerem o Ensino Secundário com aproveitamento e deixar o menino andar à sua vontade, então, boa sorte, porque eu já estou cansadinha de que transformem os professores em tapetes onde qualquer um limpa os pés. Depois, só não se admirem por verem as assimetrias sociais cada vez mais intensificadas. Estas só poderão ser resolvidas pela educação na escola pública, mas se esta se preocupa mais com falsas taxas de sucesso e números bonitos para a OCDE, então os mesmos das classes mais favorecidas continuarão a serem os melhores e os que não têm em casa gente capaz, sempre correrão atrás do prejuízo, porém, na maioria das vezes, não o conseguem recuperar… Começo a ficar verdadeiramente fartinha destas discussões inócuas. Será a velhice, talvez…
Seria maquiavélico, mas possivelmente a melhor forma de perpetuar as hierarquias sociais existentes será perpetuar a ignorância. Quem ainda acredita nas boas intenções dos nossos políticos?

Nina M.







quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Ícaro

- És feliz, amor meu?
Anjo caído do céu...
Assim sem asas prostrado na terra...
- E alguém é feliz na guerra
Em meio do que não tem
Próximo do que almeja?!
Sei a cura para o absurdo
Tudo o que espanta o mundo surdo
Até descobri o ideal
Sei da esperança final...
Se sou feliz?!
A momentos para além do tempo
Sou Ícaro desassombrado
Comporto a mesma alegria
De quem se queimou no sol
E na terra vive prostrado
Porém sempre que sou tudo
Tempo infinito e absoluto
Poema vivo no coração de alguém
Sei não estar aquém...
A alma eleva-se por magia
Sem asas voa numa correria
Ao encontro do sagrado imutável
Se sou feliz?
Fui-o neste instante passageiro
Onde se inscreve o amor derradeiro

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Caronte

Eis  o carrasco.
Chega Caronte à beira-rio
Atravessa o silêncio da noite
Pálido e frio
Observa sarcástico a rebelião
Dos que atrasam a partida
Não mostra pressa
Perde-se no sabor da tortura
Revolta sadia contra o tempo
Finitude injusta e prematura
Não é chegada a hora!
Nunca será a hora
Se a consciência não dorme ainda
Se o corpo balanceia no movimento...
Tirano, implacável, o tempo é surdo
Arrasta consigo as vozes que quer calar
Dor, angústia e solidão
Murmúrio, séquito de quem sobeja
Silêncio absoluto sepulcral
Cala a alma dorida, amarrotada da viagem
Mortalha do ser efémero
A vida... Essa foi agora
O depois... O que a morte quis

domingo, 27 de outubro de 2019

Crónica de Maus Costumes 153


Costela cristã
Já me disseram, por outras palavras, que a minha esperança e bonomia para com o outro reside na minha costela cristã. Sorri. Não tenho só uma costela cristã. Tenho várias. É a minha matriz cultural e a de quase todos os que nasceram neste país e a minha matriz educacional também. Não a larguei. Poderia tê-lo feito, mas escolhi não o fazer.
Assumo, assim, a minha identidade cristã, de pertença a uma comunidade católica. Também assumo as minhas dúvidas e as minhas críticas face a uma igreja (diferente de Deus) que nem sempre soube ou sabe dar o exemplo e que é falível, porque é feita de homens. Há erros mais desculpáveis do que outros. O que mais me inquieta e desgosta na posição da Igreja (entenda-se representante de toda uma comunidade crente) é o isolamento e a necessidade de ocultação de factos por sentirem que fragilizam a sua estrutura e a sua importância. A transparência será sempre o melhor caminho. Sinto que falha principalmente junto dos jovens. A sociedade não é mais a mesma e se é verdade haver valores imutáveis que devem continuar a ser preconizados, também não é menos verdade que o conhecimento torna as pessoas mais críticas e questionadoras, faz com que haja dificuldade em lidar e em acreditar em determinados dogmas instituídos. Ou se sabe valorizar a mensagem da Boa Nova, o essencial do Cristianismo, ou se perde a identidade. Sinto e vejo muitas vezes esta identidade perdida, à deriva, no seio dos que deveriam ser os primeiros a darem o exemplo.
Se escolhi permanecer ligada a esta comunidade, ainda que me recuse a embarcar na ideologia de rebanho, como a apelida Nietzsche, e, por isso mesmo, manter um espírito crítico, é devido à sua mensagem de amor. É o convite constante à vigilância do ego e o reconhecimento da imperfeição, fruto da vil condição humana. Porém, é sobre esta consciência de pequenez que se constrói o ser dia após dia, com paciência e numa tarefa árdua que exige resiliência, um exame introspetivo quase diário, a humildade de se reconhecer pequeno e ser que falha; a humildade para recomeçar diariamente um trabalho de Sísifo, que sabendo não alcançar a perfeição, permite, no entanto que se evolua. Tal só será viável se a mensagem frutificar e se houver terreno que a saiba acolher e olhar-se. É difícil confrontarmo-nos com as nossas angústias e olhá-las de frente, com o fariseu que habita em cada um e domesticá-lo, mas é do nada que se ergue o melhor templo.
Humano é o que erra e pede desculpa, o que fracassa e recomeça, o que assume a sua insignificância no universo, mas tenta fazer o melhor que pode com as circunstâncias em que vive. Humano é o que se preocupa em responder sem subterfúgios à sua consciência, a única a quem deve verdadeiramente justificações. Humano é o que nem sempre é corajoso, às vezes é frágil, mas luta para ser melhor. Eu vejo poucos seres humanos e muitos super-heróis decadentes. Como diria Pessoa, ou melhor, Álvaro de Campos no seu “Poema em linha reta”:

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
[…]
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
[…]
Vale certamente a pena ler na íntegra… “Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena”.
Nina M.

sábado, 26 de outubro de 2019

Tempo

Tempo finito da realidade,
Querer-te-ia antes
Indistinto e perene
Ser de outra dimensão...
Tempo congelado
Tempo reunido
Manta de retalhos...
Nessas memórias de tempo
Mora a alma crua e gasta
Poder segurar-te entre as mãos
Antes de partires novamente
Revelar-te imortal e sem fundo
Permanecer nesse tempo irreal
De completude total
De quem chegou ao fim do mundo
Olhar-te
Ver-te inteiro
Encontro transfigurado
No tempo sacralizado

domingo, 20 de outubro de 2019

Hoje afasto o sonho

Hoje afasto o sonho
Quimera longínqua 
Sou tristeza enraizada
Sinfonia triste amargurada
O azul do céu espreitou
Só para me fazer sorrir
E entre as nuvens me mostrou
Estranheza pela angústia sentir
- És sol e abóbada celeste
Queria que acreditasse
Mas se o dia é agreste...
- O céu limpo faz milagres!
Não retira a poeira 
Em que se tornarão os ossos
Nem a carne nua e fria
Debaixo da sepultura escura
O que sobrará no tempo infindo?
O nada em que me tornei...
A possibilidade que não fui...
A memória gasta e escassa de alguém...
E entre o dia em que se nasce
E o dia em que se parte
Sobram dias de ninguém.
- Olha a tua obra, dizem.
Não sei se vale um vintém
Nem almejo imortalidade
Essa vinga nos genes que ficam
Quero só a paz serena de alma
Saciada!
Ou morrerei assim... Sempre
Sempre inconformada!

sábado, 19 de outubro de 2019

Crónica de Maus Costumes 152


Fernando Gomes e os meus amigos

                Quero começar esta crónica semanal manifestando o meu desejo de sinceras melhoras ao ex-jogador do meu FCP, Fernando Gomes, o nosso “bi-bota”, como é conhecido. Para os mais distraídos, Fernando Gomes ganhou, por duas vezes (em 83 e em 85) a “Bota de Ouro”, troféu atribuído ao melhor marcador da Europa, pela UEFA. Considero que este país nunca lhe reconheceu o devido valor. Talvez acontecesse se a camisola fosse de outra cor… Felizmente, ele vestiu de azul e branco a maior parte da sua carreira desportiva!
O Gomes está doente. Foi-lhe diagnosticado um tumor no pâncreas. Desejo vivamente que consiga debelar a maldita enfermidade. Quero agradecer-lhe por tudo quanto deu ao meu FCP e confidenciar-lhe o seguinte: nunca fui de ídolos. Não tive paixonetas de adolescência por atores, cantores, jogadores, o que quer que fosse… Ainda hoje sou assim. Gosto muito de um poeta em especial e de algumas personalidades das mais diversas áreas, isto é, gosto muito do trabalho deles e não deles concretamente, porque na verdade não os conheço. Assim, admiro-os pelo que fizeram ou conseguem fazer, mas não sei se os estimo, porque teria que os conhecer pessoalmente para o saber. O Gomes foge à regra.
Sou a irmã do meio entre rapazes e, como eles não gostavam de bonecas, de vez em quando, gostava eu da bola e sempre que jogávamos aos penaltis lá em casa, invariavelmente, eu encarnava o Gomes e não se falava mais do assunto. Eu era o Gomes e os meus irmãos que escolhessem entre os outros do plantel azul e branco. Eles recorriam a alguns estrangeiros, o mais velho, por exemplo, era o Zico, apelido pelo qual ainda hoje é conhecido entre os colegas da escola… Eu era invariavelmente o Gomes. Gostava tanto dele, que fiquei absolutamente desgostosa com a sua transferência para o Sporting, onde viria a terminar a sua carreira. Sei que a responsabilidade da transferência foi mais da estrutura do que da sua vontade. Assim, anos mais tarde, voltaria àquela que sempre foi a sua casa para trabalhar na direção do seu clube. O Gomes foi, portanto, quem mais se aproximou de um ídolo para mim, na tenra idade dos nove ou dez anos. Ai de quem se atrevesse a dizer algo de menos positivo em relação à sua pessoa! Nem o Paulo Futre ou o Rabah Madjer conseguiram ofuscar o seu valor aos meus olhos!
Pelo sonho, pela ilusão, pela alegria e vitórias proporcionadas, o meu gigantesco obrigada!
Ao refletir sobre este assunto, constato que cresci num ambiente masculino: dois irmãos e os meus primos com quem mais convivi pela proximidade etária, todos rapazes! Foi sendo assim pela vida fora! Na faculdade, o meu grupo de amigos era constituído maioritariamente por rapazes e tenho amigos homens que foram ou são fundamentais na minha história de vida.
Sinto-me em dívida contigo, Zé Silva. Serás o único que vou particularizar, por querer há muito tecer-te um agradecimento público. Já o fiz, mas não estavas presente e ainda não nos tínhamos reencontrado no facebook!
O Zé é responsável pelas minhas publicações. Antes dele, tudo ficava na gaveta. Certo dia, convidou-me para colaborar com uma rubrica no jornal “Viver Valpaços”, o que fiz durante três anos (o prazo da sua existência). O Zé nem sabia que eu escrevia ou como escrevia. Fizemos um acordo, disse-lhe: eu escrevo-te um texto, dou-to a ler e tu prometes-me que só publicas se considerares ter qualidade suficiente. Era uma gaiata de 25 anos, desconfiada do que conseguiria fazer, tal como hoje ainda. A ideia de mediocridade sempre me afligiu! Não melhorei nada, nesse aspeto! Sugeri que pedisse colaboração a outra pessoa.
 Resposta pronta: “Sónia, se quisesse um artigo sobre moda até poderia ser. Não é essa linha que pretendo.”
Surgiu, dessa forma, o meu primeiro texto público: “O reino do faz de conta”. Poderia ser perfeitamente uma crónica destas. Consistia numa crítica a um estado de coisas neste país!
Julgo que o Zé nunca compreendeu o significado dessas palavras. Reconhecia-me, ele, alguém que admiro e estimo pelo ser humano que é e pela sua vasta cultura, capacidade para poder com ele colaborar, sem nunca ter lido nada meu! Deduzo que terá chegado a essa conclusão através das nossas conversas, da nossa convivência. Na altura, Zé, estarias próximo dos 40 anos, mais velho, mais experiente, bem mais culto do que eu e, no entanto, vislumbraste, vá-se lá saber como, algum potencial. Se o gosto pela escrita existia, depois disso, entranhou-se definitivamente. Obrigada. Julgo que não serei caso único, mas quem assim entender que se manifeste.
Sou uma felizarda, porque as circunstâncias da vida têm-me trazido os amigos de que preciso para crescer, para evoluir, para não me deixar sossegar e exigir-me cada vez mais. A verdade é que o fazem mais os amigos homens do que as amigas mulheres (perdoem-me a franca honestidade). Identifico-me mais com os interesses masculinos do que com os femininos, salvo raras exceções (pronto, Lurdes Martins, já te identifiquei, podes sossegar…).
Pode parecer estranho a olhos alheios, mas não quero saber, porque tenho o pleno direito às minhas idiossincrasias e estou-me literalmente nas tintas para o que possam pensar! Não me interessam malas nem sapatos ou a cor da berra do verniz e tampouco a conversa constante sobre a escola ou os filhos! Também os tenho e também os amo, mas sou muito mais além de mãe. Recuso depositar-lhes a minha vida nas mãos e esperar a síndrome do ninho vazio! Hão de voar que é para isso que os crio e, quando tal acontecer, alegrar-me-ei por ter cumprido o meu papel.  A minha vida será preenchida com o meu ser.
Se é para ter uma conversa, deem-me a Literatura, a Poesia, a Arte, a História, a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia e todos os domínios que pensem o Homem, a sociedade e a vida. Independentemente do género, venha até mim essa gente! Lamento, as ciências exatas são importantíssimas, mas não exercem qualquer fascínio em mim. Defeito meu, eu sei, mas tenho direito a ele!
Há em mim uma necessidade orgânica de me ligar a quem tem muito para me oferecer. Sou muito exigente, dizem-me constantemente em casa. Será a imperfeição que não consigo corrigir. Leio o que posso para aprender e evoluir, mas sempre se manifesta insuficiente, porque nunca terei tempo para ler o que preciso. Como ouvinte atenta que sou, aprendo também muito com os outros, assim eles possam partilhar o seu saber e bebo tudo sofregamente com ânsia de me cultivar. Ainda assim, sinto sempre ficar aquém. Nada nunca é suficiente e a ignorância que não quero mantém-se ao virar da esquina.
Aos meus amigos, na maioria homens que contribuem para afastar de mim tal cálice e manifestam interesses comuns, obrigada. Vou-me tornando uma versão melhor com a vossa indispensável ajuda. Sou um sorvedouro oportunista, reconheço-o, mas retribuo com o que me é possível… Perdoai se o saber não é tanto!
Nina M.