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sexta-feira, 30 de junho de 2023

Ruínas do tempo

Sobre as ruínas do tempo
Se reconstrói o ser
Múltiplas vezes
As vezes necessárias
Até aprender a viver

Percorrem os olhos
Salões de guerra
Crueldade indistinta
Pasmam na escuridão
Abertos e inquietos

Observam de longe o mundo
Que não lhes pertence
Como alma acabada
De abandonar o corpo
Pousam os olhos sobre

A criança assustada que chora
O velho de Steinbeck que mama
Na mãe acabada de perder o filho
Vida renovada à custa da morte
Hospício humano a raiar a loucura

Pousam os olhos sobre a luz
Claridade intensa matinal
A iluminar o  espírito
É o amor como só o amor seduz
A chegar tarde à vida
A salvar, afinal...

Da ruína do tempo
E do desencanto que traz
O mundo conspurcado
De humanidade perdida
Onde a esperança jaz

No vazio da existência
E na angústia do nada
Na busca do sentido
Pelo propósito da vida
Se restar amor...

A vida é ganha. Não perdida.


sábado, 24 de junho de 2023

Crónica de Maus Costumes 331

 

Cultura e lazer

 Iniciou, hoje, a Feira do Livro na urbe com os convidados António Mota e Afonso Reis Cabral. Não estive presente na conversa com o primeiro, mas não faltei ao segundo.

Trouxe comigo “O meu irmão” devidamente autografado e obtive umas pequenas informações sobre o trisavô do escritor, de que precisava. Ainda não li nada de Afonso Reis Cabral, mas fica a promessa de lhe pegar, ainda durante o verão. Rapaz simpático, muito comunicativo, a quem o bichinho da palavra mordeu cedo e que publicou o seu primeiro livro, de poesia, aos 15 anos. Questionado pelo moderador sobre o processo de construção de um livro, lá foi esclarecendo sobre o trabalho de partir pedra que é necessário fazer para se escrever. A inspiração não chega. Pode haver um conjunto de páginas inspiradas, mas as restantes são fruto de trabalho árduo e dos silêncios ruidosos do autor. Em “O teu irmão”, o narrador relata a história entre dois irmãos e um deles é acometido pela inveja, porém, Afonso Reis Cabral inverteu os termos. É o irmão mais inteligente, professor universitário e bem-apessoado, aparentemente mais bem-sucedido, que sente inveja do seu irmão que é portador de Síndroma de Down, mas que parece beneficiar de uma predisposição para a felicidade. A literatura sempre a desconstruir e a procurar o que foge ao tangível.

 Não resisti perguntar-lhe, no final, se ele, Afonso Reis Cabral, acreditava na existência de uma predisposição genética para a felicidade, uma vez que o ser humano tende a procurar o hedonismo, ainda que possa haver alguma confusão entre o que são momentos de  prazer e o conceito de felicidade, porque esta implica a vivência de momentos agradáveis e, se, por outro lado, essa predisposição para a felicidade do irmão portador da síndrome, se prendia com a questão da consciência infeliz de Pessoa, isto é, se tende mais à felicidade aquele que preserva a sua inocência. Ouvi a resposta. Não haverá propriamente predisposição genética, mas todo o ser humano deseja a felicidade. Ela aparece sob a forma de desejo de algo que se pretende alcançar. O problema é saber no que consiste a felicidade e que talvez a preservação da inocência, da pureza pueril ajudasse. Foi uma pergunta difícil, eu sei. Não é questão à qual se consiga responder com total convicção sem ter tempo para refletir, mas creio que esta questão já lhe terá perpassado pelo espírito diversas vezes…

Depois, como disse Pessoa, só os seres mais superficiais têm convicções absolutas. Parece paradoxal, mas não é. Quem reflete sobre as coisas terá sempre mais dúvidas e, como tal, poderia adormecer republicano e acordar monárquico. Afirmar-se republicano e criticar veementemente a República… Assim, há sempre tempo para analisar e reformular pensamentos e mudar de opinião, no caso de não sermos superficiais.

Certo é que saí de lá com mais dois livros, que serão para ler e não servirão apenas para enfeitar estantes.

Nina M.

Crónica de Maus Costumes 330

 

Cartazes, lamúrias e artimanhas.

 

A semana foi marcada pelos famosos cartazes que foram erguidos para vaiar o senhor primeiro-ministro, António Costa, que não gostou e os apelidou de racistas.

Vejamos: pessoalmente, não os empunharia. São de mau gosto; são agressivos e são desnecessários. São tudo isso, mas não são racistas, como os apelidou António Costa! O facto de estar representado no cartaz com o nariz do animal não tem a ver com a sua origem goesa, mas antes com o seu comportamento relativamente à classe docente.

O senhor António Costa é o agressor da classe, mas numa jogada manhosa e de mestre, tenta passar-se por vítima, enquanto mostra a Portugal os professores que os filhos têm, esses selvagens, que merecem tudo o que lhes tem vindo a ser feito pelos inúmeros governos socialistas e um que afirmava ser social-democrata, mas que afinava a pauta por um neoliberalismo voraz.

Ao invés de discutir a justiça das reivindicações da classe, que se arrastam há meses, o senhor primeiro-ministro preferiu a tática da artimanha e da virgem ofendida. Poderia ter optado por fazer uma leitura mais didática e pedagógica do cartaz e associá-lo ao Triunfo dos Porcos, de George Orwell, que escreveu o livro desencantado com o estalinismo, numa altura em que a imprensa e os intelectuais não ousaram criticá-lo. Tal ousadia fez com que tivesse de esperar anos para ver o livro cá fora, mas também foi uma espécie de ensaio para o 1984, que põe a nu as ideologias e os métodos usados para a conservação de um regime totalitário.

Os professores estão cansados da retórica vã de sua excelência e mais do que porco, quiseram chamá-lo de ditador. Sabe como terminam todas as ditaduras? Com os porcos gordos que dominam o sistema bem cevados e os restantes à míngua. O regime democrático que alberga o capitalismo selvagem não é muito diferente, dirão alguns... Ainda é, apesar de tudo. Na democracia, as instituições reguladoras devem funcionar com imparcialidade e sem medo, para que o bem comum prevaleça. No regime democrático, os professores até podem fazer cartazes de mau gosto! O problema não está na deselegância das ilustrações, mas na mensagem cristalina que elas passam.

Está na hora de colocar as mãos na consciência, de deixar de ser ardiloso e de cuidar dos temas fraturantes. A educação é um deles.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Lago azul

Pouso o meu olhar sobre o lago

Azul dourado do sol em brasa

E ele devolve a minha imagem

Tocada ao de leve pela aragem


As leves ondas como lágrimas 

Que no lago azul se formam

Beijam-me a alma na margem

Com elas trazem-me a calma


Num ardor que se faz lava

Magma ardente desfeito

Como pode ser se é água 

Lago azul que alaga o leito?


Derrama pela campesina

A regar os arrozais

O lago azul da minha sina

Que me inunda contra o cais


E nas leves ondas vem

A ligeira brisa morna

Aquecer o lago azul

Que a minha alma toma


Esse azul que vem do céu 

Fundir-se na água do lago

Na sua calma adormeceu

Nos meus braços de mago







domingo, 11 de junho de 2023

Crónica de Maus Costumes 329

Indecisões

 dia disse a alguém que ninguém vinha para a nossa vida por acaso… Talvez precise de reformular a frase. São as circunstâncias e o acaso que trazem pessoas até nós, mas não em vão. Talvez todos os que se cruzam connosco venham para aprendermos algo com eles, mesmo com aqueles de quem gostamos menos…

Desde logo, aquilo que nos irrita no outro, a fiar no que nos diz a psicologia, pode ser projeção, ou seja, projetamos no outro emoções, qualidades e defeitos próprios. Pode ser gerador de conflitos. Eu fico em pulgas com essa ideia, porque há comportamentos de que não gosto, que tento a todo o custo evitar e que sei não ser projeção, mas nunca fiando… É preciso estar vigilante. Sempre. 

O ser que mais me desafia, no momento, é o meu aborrescente preferido, porque é único, porque veio do meu ventre, porque não admite com a sua sobranceria calada que o olhem sob um ponto de vista utilitarista. Ele nasceu para nada, de momento, porque ainda não o descobriu, talvez não tenha nascido para nada de importante, além de ser. E essa liberdade com que o faz tanto me irrita como me apaixona. O meu pequeno é rebelde por inação. Não contesta as recomendações, nem responde, mas no seu silêncio vai agindo como lhe apraz. Não tens de ser útil, meu filho, por enquanto, pelo menos. Tens de ser. E eu devo ajudar-te a ser com toda a proteção e toda a irritação de mãe. 

Tem os pés nas nuvens, o seu espírito não está cá. Disse-lhe, ainda hoje, que pusesse no papel um terço do que pensa. Nem me respondeu… Terá pensado que a mãe é doida… E tem tanto de mim quando se perde no seu mundo, calado, absorto. É aborrecido quando a realidade bate à porta e os afazeres de que não gostamos nos esperam. Eu sei, mas já ganhei estratégias para contrariar tudo isso. Há de procurar as suas. É do ar e exigem-lhe o chão. Terá de se adaptar. Esta minha pessoa desligada do mundo, que detesta a escola e que insiste que está organizada para formatar gente e os tornar meros assalariados e bons cumpridores de ordens, veio para me ensinar a reorganizar ideias e perceber que cada um tem o seu ritmo. Há quem insista que a vida não se compadece dos ritmos mais lentos. São os mais agitados produtores que tentam impor uma pressa opressiva, útil e produtora, numa sociedade voraz onde deixou de haver tempo. 

Não sei o que quererá, nem ele sabe. Sei que as escolhas lhe serão difíceis. São sempre difíceis para quem quer abarcar o mundo e sabe que uma escolha deita outras possibilidades ao lixo. Fruto deste mundo novo, falta-lhe resiliência e compromisso. Falta-lhe a maturidade de quem já tem objetivos estabelecidos. Ganha em sentido de humor e de calma, capaz de fazer inveja a um estoico pelo nível de ataraxia revelado.

Veio para ensinar a aceitação, a tolerância e a paciência. Saber que tudo tem o seu tempo e que o tempo dos outros é diferente do seu. Veio para ter a liberdade de ser e o coração de mãe aconselha a serenidade e a paciência, porque sabe que, um dia, tudo estará mais claro e no seu devido lugar. 


Nina M.

sábado, 3 de junho de 2023

Crónica de Maus Costumes 328

 

Revisitação

 

Durante esta semana, por motivos profissionais, regressei à casa que me formou. Apreciei mais o belíssimo espaço onde se concentra o campus universitário e apreciei-lhe as diferenças. Agora, todos os cursos se concentram na quinta, pelo que o Ex-DRM, local de estudo durante os meus primeiros três anos e o CIFOP deixaram de ter serventia. Mesmo o curso de enfermagem passou para o campus. Há edifícios recentes e outros em fase de construção. Há novos projetos.

Fomos recebidos pela provedora dos estudantes e pelo senhor reitor. No tempo em que lá estudei, o senhor reitor teria mais o que fazer do que receber miúdos do secundário, em dia aberto, para lhes dirigir umas palavras e a figura do provedor do estudante não existia. Sinais dos tempos. Também as universidades se adaptam à evolução, com maior ou menor dificuldade.

Curiosamente, tinha lido, durante essa semana, um queixume da Raquel Varela, que indignada, dava conta das reclamações que os pais dos alunos e os próprios faziam chegar às reitorias. Umas descabidas, pois com certeza e outras nem tanto. Mostrava-se chocada pelo facto de, nalguns casos, a reitoria não sugerir, delicadamente, aos pais que fossem dar uma voltinha ao bilhar grande. Contava a professora universitária que os encarregados de educação (figura que não existe na universidade pelo facto de os alunos serem de maioridade) lamentavam e questionavam os currículos e a pertinência das matérias abordadas pelas cadeiras, modernamente apelidadas de unidades curriculares. Quando li sobre o atrevimento, um sorriso escapou-se-me dos lábios. Os comportamentos manifestados na base da pirâmide, começam a chegar ao topo e os professores universitários, que se veriam intocáveis, ficam perplexos com o atrevimento destes encarregados de educação. Dá o que pensar. Habituem-se. Tanto se quis promover a presença da comunidade na escola, que inevitavelmente, a situação resvalou para o ridículo de todos se acharem no direito de palpitar sobre o ensino, como se fossem especialistas. Há anos que a escola se vê demasiadas vezes afrontada por gente irresponsável que não sabe do que fala, mesmo que pertençam a organizações com ligação à escola. A CONFAP é disso exemplo. Não consigo parar de rir ao imaginar que certas situações que acontecem amiúde nas escolas secundárias se estão a reproduzir no ensino universitário.

Este comportamento mostra-nos duas coisas: por um lado, finalmente, o povo português reclama mais, mesmo que com pouco critério. O tempo do “come e cala” começa a esgotar-se; por outro lado, a superproteção que os pais atuais dão aos filhos começa a tornar-se ridícula.  Obviamente, quando se trata de assuntos sérios como os escândalos de assédio de que se ouviu falar, os pais têm e devem mesmo agir, no entanto, quando os queixumes são sobre a quantidade de matéria a estudar para a frequência ou o comentário mais rude do professor, que do alto da sua cátedra, não hesita em fornecer um banho de humildade ao aluno, provando-lhe que ele pouco sabe da matéria e nada sabe sobre a vida, pelo que deve estudar, se quiser fazer a cadeira, é tão somente deplorável!

Ao que parece, na UTAD, a senhora provedora tem tido muitas queixas de alunos. Alguns deles lamentam-se da rudeza dos seus professores, que não os tratam como príncipes nem génios. Eu já tenho parado para pensar se a minha geração seria, porventura, intelectualmente desprovida. Não se viam dezoitos a rodos como agora e ninguém era brilhante. Aceitávamos humildemente a nossa condição de aprendizes sem reclamar.  Eu entendo que os professores devem refletir sobre a sua prática e os docentes universitários não são exceção, porque se os encontrei excelentes, também é um facto que encontrei os que pedagogicamente eram uma nulidade e, tal como outros, devem exercer o seu ofício com competência, porém, haverá que pôr freio a jovens que, nalguns casos, serão pouco ou nada aplicados e que viveram uma vida a sacudir a responsabilidade de cima dos ombros, porque é mais fácil a vitimização do que assumir as consequências da sua escolha. Na verdade, ao longo do percurso, fizeram-no acreditar que as coisas se conseguiam sem esforço. Essa cultura enraizou-se e começa a frutificar.

Assim, do lugar mítico que frequentei, apenas sobra o espaço, atualmente, ocupado por seres que não eram os meus. Cheguei com saudade e com ela vim, sem resgatar o passado e sem poder trazê-lo no bolso. Tudo me pareceu distinto e desigual. A minha universidade fica no mesmo espaço físico, mas já só existe na minha memória.

Perante os factos, resta concluir que o regresso a um lugar de saudade fora do que já foi não será sinónimo de felicidade. Não se volta ao lugar onde já se foi feliz, dizem.

 

Nina M.