Seguidores

sábado, 27 de janeiro de 2024

Crónica de Maus Costumes 358

 

Vivendo e aprendendo

               Gosto sempre de aprender e de saber mais, no que às áreas do meu interesse diz respeito e aprendo com outros, com o que estes também já aprenderam e agora replicam, com a marca do seu olhar, naturalmente. Pensando nisto, percebe-se que a aprendizagem não é um ato solitário, mesmo quando feita autonomamente, porque sempre nos baseamos no que outros já disseram sobre o assunto. Esta consciência é a base da humildade, porque nos permite reconhecer e validar o outro como essencial para a nossa evolução.

            Depois que me fizeram descobrir o programa radiofónico Quinta Essência, apresentado por João de Almeida e que pode ser recuperado na RTP play, adquiri o hábito de o procurar sempre que passo a ferro. A tarefa torna-se menos aborrecida, porque enquanto a executo em modo piloto automático, concentro-me no que estou a ouvir. Os episódios sobre imensas personalidades estão à disposição de quem quiser aprender. Muitos deles são baseados em livros. Já acompanhei, por exemplo, a biografia de Pessoa, tendo por base o livro de Pedro George, Super Camões, ao longo de dez programas; de Salazar, que foi tratado por Sua Eternidade pelo Papa, em resposta ao cumprimento de Salazar: sua Santidade, ao longo de três episódios. Neste momento, acompanho a vida do Santo Condestável, Nun’Álvares Pereira, com muita informação sobre a dinastia de Avis, a Ínclita Geração, naturalmente. Sei que de seguida irei em busca de Fernão Magalhães, que também lá está entre os contemplados. Os autores dos livros são convidados e o João de Almeida guia a conversa com muita mestria com o seu homónimo, professor universitário e historiador, João Gouveia Monteiro. A improvável vida de quem foi um guerreiro exímio e a quem D. João I ficou a dever o trono e se dedicou, mais tarde, à vida monástica, despojando-se de todos os seus bens, no convento que ele próprio mandou construir, em Lisboa, o convento do Carmo. Nuno Álvares Pereira era o homem mais rico do reino, depois do rei. Foram-lhe sendo dadas terras como recompensa das suas vitórias. O Condestável era uma figura notável, senhor de si, enfrentando o rei e contrariando-o, quando assim entendesse. Certo é que D. João I, após a consolidação do trono e já depois de Aljubarrota e Valverde, começou a recuperar os territórios que havia doado aos nobres que tinham lutado a seu lado. Tal atitude gerou desconforto e revolta e alguns nobres passaram para o lado de Castela. O próprio Nun’ Álvares Pereira ponderou fazê-lo. Porém, o rei chegou a um consenso. Deixou-lhe as terras e apenas lhe retirou a possibilidade de ter vassalos. Só o rei os tinha e os que prestavam serviço ao Condestável passaram a estar sob a alçada do Mestre de Avis, então rei de Portugal. As relações entre ambos esmoreceram, mas o Santo, ainda iria pelejar ao lado do rei na tomada de Ceuta, em 1415, apesar de contar já com 55 anos. Vale a pena ouvir.

            O que fui ouvindo, obriga-me a perspetivar o que vamos lecionando, a propósito da crónica de D. João I, objeto de estudo no décimo ano. Fala-se da consciência coletiva e da afirmação da identidade nacional, da união popular em prol da independência e ocorre-me de memória a frase: “com talente de o vingar numa só vontade e num só coração”, quando o povo acorre aos paços da rainha Leonor Teles por julgar que mantavam o Mestre. Na verdade, o Mestre matava o Conde Andeiro. Ao que parece, a estocada final não foi perpetrada por ele, mas por um dos seus nobres. O povo teve um papel importante no cerco de Lisboa, indiscutivelmente, e cabe ao povo a maior genuinidade: lutou e aguentou a fome. A refrega só correu bem aos portugueses, porque a peste foi providencial e obrigou os castelhanos a desmobilizar. A nobreza portuguesa estava dividida e era interesseira. Álvaro Pais terá aconselhado o Mestre, nos dois anos da crise, a prometer e a dar o que não possuía e mais tarde recuperar. Rei que é rei dá e tira quando lhe apraz! Ou seja, os nobres escolhiam o lado que mais benefícios lhes garantissem, podendo num dado momento estar ao lado de D. João I, como no momento seguinte fazerem-se aliados de Castela e lá se exilarem. Não havia neles sentimento de pertença nem de consciência coletiva. Lucraram e enriqueceram com as campanhas. A arraia miúda, apesar do papel preponderante durante o cerco, ficou como estava, pobre como Jó.

            Gosto de descobrir estes tesouros para falar aos alunos com outra propriedade. É importante que saibam que apesar da defesa cerrada da cidade e da coragem inegável do povo, os portugueses contaram com a sorte, caso contrário, teria sido uma carnificina, pois morreriam à míngua de mantimentos. Fernando Pessoa não usou o facto, mas poderia, para mais uma vez provar a sua tese de que Portugal estaria predestinado à construção do Quinto Império.

Depois de ouvir um dos episódios, compreendi melhor a referência à espada do Condestável, no poema em sua memória, que podemos ler em Mensagem, de Fernando Pessoa: “É Excalibur, a ungida, /Que o Rei Artur te deu”. Para além do significado óbvio da Excalibur, sobejamente conhecido, a pureza de alma de quem a erguesse, referindo-se simbolicamente à santidade de Nun’Álvares Pereira, fiquei a saber que o Condestável apreciava os romances de Cavalaria. As histórias do Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda não lhe seriam desconhecidas. Teria Fernando Pessoa esta informação? Eis o que me interrogo. E partilharei estas questões com os alunos, certamente, que quando me ouvem falar entusiasticamente destes pequenos pormenores, noto um certo esgar e um arregalar de olhos de quem pensa que a professora é um bocadinho maluca, porque não lhe basta o português e ainda gosta de escavar outros caminhos. É-me inevitável. Normalmente, ficam entristecidos e admirados quando sabem que o Mestre é filho de D. Pedro I, mas não de Inês de Castro. Lá lhes digo que dois anos depois da morte de Inês, D. Pedro foi pai uma vez mais, agora de uma ligação com Dona Teresa, uma das aias de Inês de Castro, relação da qual nasceu D. João I. Os Castro foram também das famílias expropriadas pelo Rei D. João I, por se terem aliado a Castela e os seus bens reverterem a favor de Nun’Álvares Pereira.

Não sei o que lhes fica, mas ensinar também é partilhar o que vamos aprendendo.

 

Nina M.

 

 

Troquemos as voltas aos deuses

Que se pode contra a tirania
Que os deuses do Olimpo tecem?
Subjugam vontades em demasia
Fazem dos homens marionetas

Manejam bem os fios
Que lhes determinam a vida
Num assomo de crueldade
A sua existência é fadiga

De que lhes valem projetos
Planos e congeminações
Quando os tiranos querem
Impedem as suas realizações

Novos Zeus e Afrodites
Ares, grandes guerreiros,
Cronos que governa o tempo
Mas o final é do barqueiro

Troquemos as voltas aos deuses
Numa revolta funda e calada
Erga-se a faísca humana
Em busca da vida ansiada

Sempre que o poder corrompe
E impede a revolução
Com uma aparente calma
Pode haver subversão 

Troquemos as voltas aos deuses
E os fios da teia de Clio
Para urdir um novo tempo
Longe do tempo sombrio

Troquemos as voltas aos deuses...










segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Não deixemos o cinismo entrar

Não deixemos o cinismo entrar
Essa emoção pesada que cerceia
Desconfia do mundo e da alma alheia
Impede o ser de amor de se alegrar

Saibamos que a vida são só instantes
Pedaços de cuidado e de ardor
As águas levem as mágoas errantes
Fiquem só belos instantes de amor

No fim o que de nosso levaremos?
Essas memórias que são uma vida
Demorarmos nesses parcos momentos

É sinal de uma vida bem vivida
Fechemos bem a alma aos tormentos
De nosso, só o imaterial teremos








sábado, 20 de janeiro de 2024

Crónica de Maus costumes 357

 

Evitar a falência da democracia é imperioso

               Tenho vindo a observar com crescente preocupação a adesão de jovens a discursos autoritários e populistas. O crescente gosto por discursos que hipervalorizam o individualismo e a meritocracia que exclui o contexto social e familiar do indivíduo, centrando-a apenas no esforço da pessoa, fazendo-a olhar o outro que não obtém os mesmos resultados com desdém, é preocupante.

            Ouço-os e reconheço os síndromas autoritários: a agressão verbal contra aqueles que são diferentes do que eles consideram a norma, a aceitação acrítica dos valores convencionais, a admiração por autoridades morais idealizadas, a incapacidade para fazer introspeção. Desconstruir-lhes os preconceitos e fazê-los entender que o outro tem o pleno direito de ser diferente, desde que essa diferença não ofereça qualquer perigo para a sociedade, é difícil. Normalmente, quando os ouço a apontar o dedo às escolhas dos outros, seja no que diz respeito à orientação sexual, à identificação de género, à indumentária, à crença religiosa ou não crença, começo por lhes perguntar no que é que essa diferença os prejudica a eles e à sociedade. Tento sempre explicar-lhes que tentar impor as suas crenças a outrem é uma falta de respeito e “uma tentativa de colonização do outro”, como diria Saramago. Fazer com que entendam que a democracia foi a melhor conquista da sociedade portuguesa e que houve quem tivesse de dar a vida por ela nem sempre é fácil e é muito desconcertante. Sabemos que estudam História e as ditaduras de Salazar, de Franco, de Mussolini, de Hitler e de Estaline. Em português, são estudadas obras em que a crítica social às desigualdades, às injustiças e a imposição acrítica das convenções são uma constante. Em Filosofia, estudam Sandel, Rawls e Nozick, o comunitarista para quem o indivíduo quase não existe fora da comunidade e com quem tem obrigações e os libertaristas, ainda que os dois últimos, apesar de liberais, sejam diferentes. Rawls preocupa-se com a justiça social, com a equidade, a liberdade e a diferença e com o papel que o Estado deve ter para que isto seja uma realidade; já Nozick é o ultraliberal do Estado mínimo, cuja função deve ser a preocupação com a segurança e a justiça e ter apenas sob a sua alçada a polícia, as forças armadas e os tribunais. Invoco as matérias escolares apenas para mostrar que a escola fornece as ferramentas e os conhecimentos necessários para que pudessem processar a informação de outra forma.

A escola está a falhar, dirão muitos. No entanto, discordo. À escola, imputa-se mais do que se deveria. A preocupação com a democracia deveria ser transversal à sociedade e um valor a ser trabalhado, em primeira instância, pela família. Muito facilmente se aponta o dedo às estruturas políticas, atribuindo-lhes a responsabilidade do que nos parece uma falência democrática. É inegável que o sistema político também tem a responsabilidade de zelar pelos valores democráticos, mas essa preocupação deveria ser, antes de mais, a de todos os cidadãos. A democracia, na verdade, depende mais do cidadão comum do que de qualquer outra estrutura. Depende da capacidade que ele revela para absorver os valores democráticos e tolerar aqueles que se movem em contextos culturais, ideológicos, sociais, religiosos e étnicos diferentes. Para isso, é preciso prestar muita atenção aos discursos e aos apelos afeitos. A escolha de um ou dois grupos sociais, a quem se imputa a responsabilidade de todos os males sociais e a quem se dirigem todos os ataques, por exemplo, os imigrantes, os ciganos, entre outros, é prática comum dos que chegados ao poder instauram práticas autoritárias, como por exemplo, mandar prender jornalistas, intelectuais, manifestantes, opositores políticos e todos os que ousem falar ou ter um pensamento contrário ao seu.

A única forma de preservar a democracia é estar atento aos sinais de intolerância e evitar que essa gente se instale no poder. Para isso, é necessária uma cidadania ativa que não compete apenas à escola, e a formação de cidadãos atentos, cultos e tolerantes. Há que contar também com a ajuda biológica, porque segundo um estudo feito aos cérebros de um grupo de universitários britânicos conservadores e liberais concluiu-se que a estrutura física de uns e de outros era distinta. Os liberais possuíam mais massa cinzenta na região cerebral conhecida por resolver conflitos cognitivos. Já os conservadores mostravam mais massa cinzenta na amígdala, região responsável pelo processamento das emoções, incluindo o medo e a recompensa. Talvez por isso, a estratégia de incutir o medo resulte muito bem (o medo dos que vêm retirar os empregos e usufruir de subsídios, o medo de que a nossa cultura e os nossos valores ocidentais se percam), apontando-se o dedo a um ou vários “inimigos” a abater, fomentando-se o ódio e a polarização extremada. Só os populistas ganham com isso. Quem perde é a democracia e sem ela, aí, sim, perdemos o valor ocidental da liberdade que tanto custou a alcançar.

A sociedade não pode divorciar-se da política nem deixar de exercer o seu direito ao voto. Esta é a melhor forma de combater os autoritarismos e as autocracias e todo aquele que deixa de o fazer, contribui ativamente para uma democracia moribunda.

Democracia, sempre!

 

Nina M.

 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Tento com olhar aguçado

Tento com olhar aguçado
Olhar e ver a vida
Compreendê-la e vislumbrar-lhe
Os sentidos
Viro-a do avesso e examino
Olho as esquinas quebradas
As marcas nas paredes
Os grelados e as humidades
Marcas ligeiras
Nunca conheci fome nem guerra
Nem orfandade
A morte que me chegou cedo
Foi a da velhice
Um coração que no ocaso do dia
E da vida esgotou os batimentos
Assim partiu o avô António
Como quem deu o último suspiro
No final de um dia de trabalho
No fim da poda, depois de passar
O dia a amarrar vides, de acordo
Com uma ordem que nunca fui capaz
De entender. As fiteiras desfiadas
A servirem-lhe de cordas
Enfiadas nas presilhas
Enquanto conversava alegremente
Podara-se, nesse instante, a vida dele.
[...]
O choro, o corpo depositado numa caixa
Via-o inerte, ao de leve, à entrada da porta
Sem me atrever a entrar
Os adultos a enxotar as crianças
Que não percebem estas ausências
A atmosfera triste, pesada e
Sem preparo
Fui dormir à vizinha, com as filhas
As cachopas dividiam-se na mesma cama.
Três em cima e três em baixo
Uma confusão de pés.
Era um final de Dezembro frio
A passagem de ano que o avô não fez.
Morrer era assim um desaparecimento
Longínquo.
Não sei mais. O avô Tónio morreu e era tudo o que os cinco anos se permitiam saber.
Não vi mais o avô chegar de balde na mão
Para pensar as galinhas
Nem lhe pus mais a minha perna esquerda sobre a sua direita
A dizer-lhe que essa perna era dele
E a outra, a direita, da avó
Enquanto dormia de permeio entre ambos
Na casa velha de pedra, com pedra de lar na cozinha. O ferrolho na porta. Pequeníssima e de um quarto só.
E o Lino das toiras a chamar-me,
à porta de casa e à espera...
"Já vens minha papagaia!"
Todos os dias... Conhecia-me a voz...
Vejo o rosto do avô António, ainda nítido. Só o conheci velho e calvo já.
O Lino das toiras é difuso...
Dava uma personagem de conto.
Queimado do álcool  e do cigarro
"Já lá vem a minha papagaia..."
Todas as noites com a candeia a iluminar
O caminho.
Gosto de pensar que o avô Tónio entrou no céu de candeia na mão como quem regressa a casa sem se perder no caminho




sábado, 13 de janeiro de 2024

Crónica de Maus Costumes 356

 

Essência de viajante

               Tenho essência de viajante. Não de turista. Procuro o primeiro olhar sobre algo e, com sorte, conto com a comoção do espanto. É-me, literalmente, tão essencial quanto o ar que respiro, porque representa, precisamente, um novo sorvo num mundo esquizofrénico, feito de rotinas obrigatórias e que nos roubam tempo de qualidade.

            É também nesse sorvo de novidade, que permite a comoção, que a alma é, se encanta, se renova e fortifica para não ceder ao cinismo perante um mundo doentio. Esse encontro com a beleza, seja ela natural seja resultado da criação humana, renova. Há quem não compreenda bem esta necessidade premente de ir, de ver e de ouvir. Talvez considerem capricho esta inquietude desconcertante, que na realização de uma etapa começa a pensar na outra. Ainda assim, faço-o menos do que gostaria.

Nunca desejei joias ou outros bens valiosos, mas desejo uma volta ao mundo. Fá-lo-ia por etapas, porque nos intervalos precisaria do regresso a casa, ao meu território.

            Nunca te sacias, atiram. Se pudesses, ninguém te apanhava. Nem tanto, mas riem-se da minha predisposição para andar. Literalmente. Gosto de percorrer a pé os lugares por onde passo. Chegar ao final do dia com os pés maçados das caminhadas. Descalçar as sapatilhas e pô-las a arejar, para as preparar para o dia seguinte. Repousar o corpo debaixo da água quente para, de seguida, deixá-lo ao abandono, prostrado de cansaço na cama que lhe há de dar o descanso para que volte a funcionar. Gosto de alugar casa em vez de hotéis. É como se durante aqueles dias pertencesse àquele lugar. Entro em museus, mas também em supermercados. Ando de metro e procuro as vielas, os lugares mais pitorescos e antigos que sussurram histórias.

Tanto gosto da cidade e da sua componente cultural quanto da natureza. Gosto é de ir! A comoção chega, seja a olhar a Pietà, de Michelangelo, seja, a Manta de Retalhos, na Serra do Cume, depois de subir a pé 545 metros, ao longo de oito quilómetros. O prémio é a vista de inúmeros tons de verde retalhados que culminam com a vista sobre um atlântico azul que se confunde com o céu, em dia limpo. No fim das caminhadas, a terapia do mergulho em água salgada, no oceano calmo e tépido é o melhor prémio.

Gosto de ir. Nem que seja ao bosque encantado da minha pequena cidade, onde encontro sempre novidade, porque a natureza é renovação.

Creio que nasci com um olho virado para dentro e outro para um terraço que dá acesso ao mundo que contém em si a manifestação divina, nas suas paisagens e a beleza que o génio humano também é capaz de criar, talvez a maior prova da beleza da alma humana.

Gosto de ir. Em pequena, fui embalada ao som das batidas do tear manual da minha avó Matilde, que era tecedeira. Os mais novos nem imaginam que pudesse existir tal profissão… Talvez o sibilar da lançadeira que levava os fios de uma ponta a outra me parecesse o vento, porque a lançadeira, para mim, já mais crescida, era uma espécie de barquinho que levava o fio a passear, movendo-se com leveza e velozmente no mar de um tear.

No verão, nos anos em que os meus pais alugaram casa em Mindelo, durante uma quinzena, os meus irmãos desejavam vir a casa. Sentiam saudade. Para mim, durante quinze dias, a minha casa era Mindelo.

Eu gosto de ir, porque me é imperioso e não compreender esta necessidade é passar um bocadinho ao lado da minha essência.  Estar em palcos de outras civilizações, ver as obras de arte que povoam o nosso imaginário, apreciar a beleza que outros antes de nós nos deixaram é um privilégio indescritível.

Quando não vou com o corpo, voo com a alma. Vou com os livros e voo com a imaginação.

Sempre gostei de ir e não sei ser diferente.

 

Nina M.

 

 

sábado, 6 de janeiro de 2024

Crónica de Maus Costumes 355

 

Quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré

               Vejo pouca televisão. Se estiver só por casa, só raramente a ligo e quando o faço, normalmente, é para ir em busca de um programa específico, que normalmente até já passou e eu recupero.

Ontem, fui recuperar o terceiro e último episódio da temporada 1, não sei se haverá uma segunda, sobre o Hezbollah. De seguida, calhou de ver O Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer, com a participação do Ricardo Araújo Pereira, o Pedro Mexia e o João Miguel Tavares, moderados pelo Carlos Vaz Marques. Tenho de ver se me lembro que é à sexta, porque gosto de ouvir os três marretas sobre os temas que marcam a atualidade.

A pré-campanha eleitoral já está ao rubro. Sempre desejamos que se discutam ideias concretas e definidas para o país e se deixem de politiques a bem da democracia, mas não vejo jeitos de tal acontecer. Voltaremos aos ataques pessoais e tentativas de sabotagem da imagem do adversário, de parte a parte, ainda que para atingir o Pedro Nuno Santos não seja necessário muito, a sua prestação, enquanto ministro das infraestruturas fala por si e a imagem não é boa. Detestei que o PS tivesse posto à frente do partido tal figura, mas ainda hoje, ouvi na TSF um socialista entrevistado, a propósito do congresso, a dizer que não faltavam figuras ímpares no partido socialista para se apresentarem como candidatos a Presidentes da República, pois não têm sabido arranjar consensos nessa matéria. O senhor foi citando os nomes que lhe mereciam respeito: Santos Silva (detesto a sua arrogância e a sua vaidade bacoca, nunca terá o meu voto), o Carlos César, o açoriano que a dada altura quase transformou a Assembleia numa empresa familiar, o António Costa, o agora ex-primeiro-ministro demissionário e António Vitorino. Ora, de tantas figuras mencionadas, só o António Costa, apesar de tudo, mas sobretudo o António Vitorino me parece, efetivamente, um bom candidato.

Já agora, faço um parênteses para prestar um agradecimento aos jornalistas da TSF, Diário de Notícias, jornal de Notícias, entre outros, que vivem momentos aflitivos, inacreditáveis e inadmissíveis. Enfrentam a ameaça de um despedimento coletivo e há quem não esteja a receber salário, mas continue a trabalhar, a fazer-nos chegar a informação. A TSF, que se impôs como uma rádio de referência na informação e que é feita dos seus trabalhadores, merece mais, tal como os outros órgãos de comunicação. Manifesto a minha solidariedade para com aqueles que nada fizeram para se encontrarem nestas dificuldades, que colocam perguntas a quem tem a responsabilidade de gestão, mas não obtêm as respostas pretendidas. Em particular, envio um beijinho à Rute Fonseca. Desculpem-me o pequeno tergiversar, mas não podia deixar de mencionar aqueles que, para além de informar, acabam por ter um papel preponderante na regulação da democracia.

Retomando o assunto, a política portuguesa está sedenta de figuras de referência. Sempre que assisto à Circulatura do Quadrado, lamento a ausência do Pacheco Pereira e do Lobo Xavier no hemiciclo. São rostos credíveis, com sentido de estado, com a postura desejável. Parece-me que aqueles que mais poderiam dar à política fogem dela a sete pés e eu devo confessar que esses meandros são, demasiadas vezes, um lodaçal e há quem não goste de usar galochas.

Depois de ver o terceiro episódio sobre o Hezbollah, se a crença nos políticos é débil, não ficou melhor. Ficou provado que esse “Partido de Deus” (é o que significa o nome) não passa de uma associação criminosa. Não são “apenas” fanáticos religiosos, o que por si só já é mau o suficiente. O Hezbollah é uma associação de criminosos que trafica drogas, armas e efetua lavagem de dinheiro, num esquema internacional, com tentáculos espalhados pelos diversos continentes. O DEA (departamento policial americano responsável pela investigação de crimes relacionados com o tráfico de droga) foi quem fez a investigação que durou oito anos. Chegaram a prender cabecilhas importantes, por exemplo, um tal de Fayad, traficante de armas. O responsável por fazer chegar as armas à Síria. O povo libanês vive iludido e os pais sonham em gerar filhos para morrerem mártires e não percebem que, a troco do apoio monetário do Irão ao Hezbollah, são os seus filhos que são enviados para o terreno de combate. Foram eles que estiveram ao lado dos soldados de Bashar Al-Assad. Agora, não combatiam o infiel, não eram a resistência, matavam irmãos árabes. O número de baixas foi terrível para estes jovens que integraram o Hezbollah, mas o número de iranianos mortos foi residual. Espantem-se ou não… Há ligações do Hezbollah a Putin. Certo é que a investigação estava a correr bem, estava tudo preparado para a desmontar e prender o cabecilha responsável pela lavagem de dinheiro em Paris, quando a mais alta política se intrometeu. A ideia era derrotar a célula terrorista através da falência económica, mas o DEA começou a incomodar em demasia. Em 2016, a França, por intermédio de François Hollande, assinava cerca de trinta acordos com o Presidente iraniano, acordos comerciais e o acordo sobre o nuclear iraniano. Também Obama, juntamente com Biden, seu vice-presidente, saudaram o acordo nuclear alcançado com o Irão. A comunidade internacional rejubilou. Certo é que não há coincidências e enquanto a comunidade internacional saudava os referidos acordos, a investigação foi abortada, de um momento para o outro. Os investigadores foram transferidos para outras funções. Os prisioneiros que iriam responder pelos seus crimes (Fayad foi preso em Praga para poder ser extraditado e julgado nos Estados Unidos) foram soltos e outros nunca chegaram a ser presos. Os Estados Unidos da América e a França preferiram o acordo do nuclear e, no caso da França, também as relações comerciais, a acabar com a célula terrorista.

O Hezbollah e o seu séquito de mortandade continuam a espalhar impunemente o terror. São eles que controlam o Líbano, tal como o Hamas controla a Palestina e ambos são marionetas do jagunço iraniano. A mim, causa-me repugnância, extremo nojo e um descrédito total na que deveria ser a mais digna das atividades humanas: a política.

Cá pelo burgo, a coisa não se adivinha fácil, mas quase aposto, assim, sem quaisquer sondagens nos resultados do próximo dia dez março. Continuaremos a ter um partido socialista vencedor, mas sem maioria, com acordos à esquerda, porque para que a oposição laranja pudesse ser Governo em coligação, teria de conseguir capitalizar muitos votos ao centro, para não precisar do senhor Ventura, esse papagaio populista e oportunista, mas não me parece que tal aconteça. Continuaremos um eterno país periférico e com um distanciamento assinalável da Europa, continuaremos a sua colónia de férias e pobres, como sempre fomos. Quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré, já dizia o outro…

 

Nina M.