Deixa falar-te de dualidade...
Ser alma
Mas esperar que o corpo não desgoste
Inteligência
Mas gostar que lhe vejam a beleza
Alegria
Mas de pilares angustiados
Força
Mas construída na sensibilidade
Desejo
Mas sempre um pouco aquém
Brio
Mas sem excessos perfeccionistas
Leitura
Mas com impulso para a escrita
Borboleta
Mas poisa em terra firme
Impulso
Mas não quer causar dano
Solidão
Mas não suporta o vazio
Silêncio
Mas povoado de vozes
Serenidade
Mas no peito um tumulto
Loucura
Mas regulada pela lucidez
Dualidade
Mas convertida em poesia
Seguidores
terça-feira, 30 de abril de 2024
Dualidade
sábado, 27 de abril de 2024
Crónica de Maus Costumes 371
Tributo a Pinto da Costa
Fui acompanhando,
ao longo do dia, as eleições do Futebol Clube do Porto (FCP). O tempo do senhor
presidente Jorge Nuno Pinto da Costa à frente dos destinos do clube acabou.
Não
sou sócia. Não votei. Entendo que o clube precisa de uma nova organização. Mesmo
que o Pinto da Costa continuasse por mais quatro anos, seria necessário começar
a acautelar o futuro do clube sem a sua presença. Algum dia teria de ser,
senhor presidente. Não foi como gostaria que tivesse sido, mas talvez olhando
para o trajeto pessoal de Pinto da Costa, talvez não pudesse ser de outra
maneira… Nas suas autobiografias, afirma que não faria campanha por um suposto
sucessor, no sentido de lhe preparar caminho, porque o Futebol Clube do porto
não era nenhuma monarquia. Cumpriu. Não só não apoiou como não se retirou e
lutou até ao fim. Pode ser acusado de muita coisa, mas nunca de cobardia. Pinto
da Costa entende ser como as árvores e morre de pé.
Eu
só me lembro do meu clube com Pinto da Costa no comando. Chegou à presidência
em 1982, tinha eu sete anos. Tenho imagens de um presidente ainda novo. Não
tenho qualquer imagem do seu antecessor. Assim, apesar de acreditar que a
vitória de André Villas-Boas é o melhor para o futuro do clube, não deixo de me
sentir triste. Acredito que muitos portistas sintam esta cisão. Há um vínculo
emocional forte entre os adeptos e aquele que foi presidente do clube durante
quarenta e dois anos. O presidente Jorge Nuno Pinto da Costa merecia sair em
apoteose, mas teimou em trilhar este caminho. Sabe, senhor presidente, faz-me
lembrar o Santiago de “O Velho e o Mar” de Hemingway. A luta travada aos
oitenta e seis anos, por não poder ser de outra maneira, que o fez chegar à
meta sem a vitória, tal como o velho pescador chegou à costa, mas só com o
espinhaço do espadarte, depois de tanta luta. Estas personagens épicas
comovem-me. São os meus anti-heróis tão mais perfeitos que qualquer deus da
antiguidade. Normalmente, no final, terminam de mãos vazias, mas de alma cheia.
Talvez seja assim que o ainda atual presidente se sinta, com a consciência de
ter dedicado toda a sua vida ao clube.
Os
portistas só podem mostrar gratidão pelo que fez pelo FCP, pelas inúmeras
vitórias e troféus, pela inscrição do clube nos pergaminhos europeus. Será
sempre o presidente dos presidentes. Será sempre o presidente honorário de
todos os portistas.
Amanhã,
será dia de jogo grande, o último clássico de Pinto da Costa, enquanto
presidente do clube. Espero que os adeptos saibam honrar o enorme legado de
quarenta e dois anos que nos deixa. É o fim de um ciclo. Todos os finais são
difíceis e todos eles implicam um recomeço. Que o dia de amanhã possa ser de
união para todos os portistas. Esperemos que, a partir de amanhã, só haja um
Porto! Um Porto que saiba honrar o passado e preparar o futuro.
O nome de Jorge
Nuno Pinto da Costa estará sempre ligado ao Futebol Clube do Porto e ficará,
para sempre, na História do Clube, que sempre lhe fará justiça. Certamente, a
nação portista continuará a vê-lo no estádio a apoiar o clube a que dedicou a
vida, numa passagem de testemunho tranquila.
Eternamente obrigada,
presidente!
Nina M.
terça-feira, 23 de abril de 2024
Alma
Que o teu, minha poesia!
Ainda que o dia seja vago e baço
E me invada a melancolia ou
Com a angústia me debata
E dela me desfaça
E em versos me trespasse
É tua a minh'alma etérea
Para ti em brasa se dirige
Fogo ardente ou brasido
Purificação onde não cabe
A desilusão
domingo, 21 de abril de 2024
Cacilda
sábado, 20 de abril de 2024
Crónica de Maus Costumes 370
Recordar é viver
Ao ouvir os meus filhos falar dos
avós, vou sorrindo…
Acham o avô cómico quando se gaba da
carta que um dos netos (um dos primos) lhe escreveu pelo seu aniversário, onde
afiançava que o avô era um homem de trabalho e de valor, porque passou o tempo
da Segunda Guerra Mundial e duros sacrifícios. A avó discorda de imediato e
repreende o marido, que tem a mania, mas que não faz nada e é ela quem faz
tudo, incluindo o almoço para ele. Evidentemente, o avô responde com a tarefa
que fazia no momento, porque andavam a arrumar lenha, mas deve-se ter esquecido
que a esposa também lá andava. A verdade é que é a avó que trata das tarefas
domésticas e o netos sabem-no bem e riem-se como perdidos dos chistes entre os
dois! Disso e dos reparos do avô sobre o que a mãe deles deve ou não fazer! Como
se não constituísse uma delícia para os filhos verem os seus pais repreendidos
pelos seus próprios pais, independentemente, da idade que possam ter… Termina a
Matilde com um “o avô é muito engraçado”! Faltou a prima para acrescentar que o
avô, no outro dia, a vira com uma camisola larga e, muito sério a olhar para o
braço, achou que a miúda ocupava a manga toda e há que recomendar uma dieta,
porque ela estava com uns braços muitos gordos! Obviamente, não precisa de
dieta nenhuma, a vegetariana da família, porque é uma menina elegante e bonita!
Riem-se muito destas coisas! E eu lá lhes explico que o avô, aos 86 anos, já
não percebe nada de modas…
Vê-los a conversar alegremente,
faz-me recuar a mim no tempo e lembrar-me do maio quentíssimo em que a minha
avó Matilde me fez ir para a escola, ainda por cima de tarde, com uma camisola
de malhinha fina, mas de gola alta, debaixo de um sol e de um calor abrasador!
“Sonita, não tens calor?!” –
Perguntaram. Foi a avó que me disse que estava frio e que tinha de me agasalhar,
para vestir esta camisola… Ou então, a lembrar-me do ditado que a minha avó me
dizia, quando cismava que a queria ensinar a ler. A minha avó só tinha ido
meia-dúzia de meses à escola. Sabia escrever o seu nome: Matilde e copiar
letras, mas não sabia ler. Lembro-me de me questionar por que razão, sendo a
minha mãe professora primária (era essa a designação), nunca ensinara a mãe a
ler! A determinada altura, queria fazê-lo eu! A minha avó não foi na conversa e
respondia-me sempre que “burro velho não toma andadura, filha…” mas fazia-me as
perguntas para saber responder ao senhor padre e poder fazer a primeira comunhão.
Fi-la com seis anos. Quando me perguntaram se queria nesse ano ou no seguinte,
quis logo nesse. Na verdade, tenho a memória de querer saber o sabor da hóstia.
Eu queria prová-la e só havia uma forma de o poder fazer, de modo que quando me
puseram a questão, decidi que seria breve. Depois, andei uns tempos angustiada,
porque os miúdos que iam “provar a hóstia” insistiam que não se podia mastigar
e eu aflita a pensar que se aquilo me ficasse agarrado à garganta poderia abafar
ou algo do género… Não sei a quem confessei o meu medo… Talvez a minha mãe me
tenha dito que Jesus se desfazia com a saliva, para não me preocupar. Fiquei
mais tranquila. Vieram os ensaios, no Pinheiro Manso, no Porto, por motivos de
agravo entre os meus pais e o padre da
paróquia, na altura. Chique! Comunguei, pela primeira vez, no Porto. Um
ambiente estranho onde não conhecia ninguém. Certamente, todas as crianças me
foram apresentadas, mas eu não me lembro nem agora e também não me lembrava na
altura, porque distraída nos pensamentos, não ouvira nada do que fora dito.
Felizmente, há meninos muito atentos e, no dia, uma menina muito solícita,
vestida de branco, tal como eu, veio chamar-me (até sabia o meu nome! Mistério
para mim! Eu não sabia o dela…). Há que Deus que eu era o seu par… Certo. Se era
para ir, siga! Lá entrámos na igreja, de vela em punho (a que tinha sido já do
meu batismo, em filinha de dois a dois… Só me lembro de fazer playback nos
ensaios, porque se ainda hoje canto mal, na altura não era diferente e sempre
tive sentido do ridículo. De modo que decidi não espantar ninguém, mas para que
não me aborrecessem com a cantoria nem estragar a melodia aos outros, fazia
playback. Uma miúda denunciou-me e disse para a colega, espantada: “Olha, ela
não canta! Está a fazer playback!” Pensei de imediato que ela haveria de ter
muito a ver com isso! Homessa! Já uma pessoa não se pode poupar ao ridículo! E
continuei na minha santa atuação… Tive como prenda o famoso relógio de pulso, o
primeiro, oferta do meu padrinho e um boneco que imitava um bebé, oferta da
madrinha e que levava para todo o lado, porém, quando me cansava, a mãe lá o carregava
e chegou a enganar várias pessoas, porque ao longe parecia uma criança de
verdade. A minha tia deu-se ao trabalho de lhe fazer roupa e carapins e tinha
uma alcofa e tudo. Para o meu pai era o martelão! “Lá vai ela com o martelão”, dizia-me
invariavelmente…
Isto e do avó Chico do Marco (o meu
pai é natural do Marco de Canaveses), com o seu mata-ratos no canto dos lábios
amarelados, já calejados do cigarro que se me afigurava interminável e que se
alimentava, à noite, com duas petingas fritas e uma chávena de chá com bolacha maria.
Ria-se, de olhos pisqueiros, quando dava aos netos o copo de vinho tinto para
molhar os lábios e depois de perguntar: Então? E a resposta: é bom! Não me
lembro que o avô Chico falasse… Acho que não o ouvi falar, só a rir de boca
torcida para não deixar cair o seu Kentucky ou Definitivo, enquanto relembrava
com os filhos histórias passadas ou melhor, as partidas que pregava à
vizinhança, por ser pândego e malandro.
Talvez um dia, seja o Rodrigo ou a
Matilde a eternizarem as memórias dos avós. Por enquanto, divertem-se com eles
e aproveitam-lhes a companhia e os muitos mimos e vontades que lhes fazem!
Nina M.
Fel
A minha alma nem sempre é mel
Por vezes é felAcolhedora de cinismos implacáveis
Dolorosos, cruéis
A terrível realidade
Oferecida diante dos olhos
Sentida nos ossos
Mas que não se quer ver
Impõe-se. Fétida.
A esboroar o coração...
terça-feira, 16 de abril de 2024
Nome
Melodia matinal
Gota de orvalho
Sobre a folha verde e límpida
Por entre as sílabas que te saíam
Escaparam, ao de leve, as três
Do meu nome
Leves, suaves e soltas
Como quem traz novidade
Embrulhada na doçura
Soa-me quase belo
Equilibrado quase perfeito
Como se não fosse o meu
Dito assim, num instante,
Um murmúrio quase suspiro
sábado, 13 de abril de 2024
Crónica de Maus Costumes 369
Cheiro a bafio hipócrita
Alheada
que sou da televisão, metade da polémica em torno do livro que Passos Coelho
teve a infeliz ideia de publicitar e de apresentar passou-me ao lado. Ouvi apenas
meia-dúzia de palavras a uns comentadores, manifestamente, insuficientes para
formar qualquer opinião. Porém, hoje, sempre fui ler a notícia do JN em torno
da questão e que englobava algumas citações das pessoas que assinaram os
artigos de opinião reunidos no livro.
Devo
dizer de antemão, que apesar da minha total discórdia em relação ao teor do que
é apresentado, defendo totalmente o direito que essas pessoas têm de exprimir a
sua opinião. Têm direito a ela como eu tenho à minha e o direito de a exprimir.
Defendo a liberdade, acima de tudo e defendê-la implica defender o direito de
as pessoas declararem o que pensam, desde que isso não constitua uma instigação
ao ódio e à arruaça, mesmo que eu não as acompanhe no seu juízo de valor.
Não
foi o Passos Coelhos quem escreveu os artigos que integram o livro, mas ao
aceitar apresentá-lo, permite-nos concluir que subscreve se não todos, pelos
menos uma boa parte dos artigos. Estranho muito esse posicionamento e questiono
inclusive o que terá levado um liberal a assumir tal posicionamento. O Passos
Coelho pertencia à ala mais liberal do PSD, desvirtuando, inclusivamente, a
génese do partido, na minha opinião, uma vez que, a par de políticas económicas
mais liberais, sempre reservou um quinhão da sua preocupação para políticas
sociais. Este era o partido fundado por Francisco Sá-Carneiro, liberal na
economia e também nos valores, sem, no entanto, descurar a preocupação para com
uma política social. Passos Coelho, quando assumiu a liderança do partido, assumiu
uma posição liberal plena, o que prejudicou o partido, no meu entendimento. Ora,
questiono como um homem que não se enquadra na tipologia do conservador, pode
vir defender um conservadorismo rançoso e ultrapassado. Passos Coelho
divorciou-se e casou novamente, pelo que fica excluído da “família tradicional”
e defendeu a lei do aborto. O partido deu liberdade de voto nessa matéria (e
bem), portanto, como pode agora assumir este posicionamento? O Passos Coelho
terá mudado de opinião ou não passa de uma estratégia política para reunir o
maior número possível de votos à direita, a pensar numa eventual candidatura à
presidência da república? Se assim for, e basta aguardar para ver, o meu voto
não o terá. Não é possível ser-se um defensor da liberdade individual e o seu
contrário, em simultâneo. Perde a sua credibilidade e a confiança que poderiam
nele depositar. Até ao momento, poder-se-ia detestá-lo devido à sua teimosia em
ir para além da troika, em aconselhar os jovens à emigração, pela sua crueza e
insensibilidade perante o sofrimento de muitos. O funcionalismo público foi
absolutamente fustigado nesses anos. Tudo isso é matéria para que tantos o
desprezem, mas não me lembro de alguém alguma vez o ter apelidado de mentiroso.
Caso se verifique tratar-se de jogada política, Passos cairá na teia da
hipocrisia, daquele que não olha a meios para alcançar os fins e tornar-se-á no
político que desprezo. Se mudou mesmo de opinião e acredita no que apresenta, só me ocorre que não poderá estar
na posse de todas as suas faculdades, para efetuar tal viragem… Venha o diabo e
escolha, nenhuma das hipóteses lhe é favorável.
Eu não li o
livro e nem tenciono fazê-lo, mas o que escreverei de seguida baseia-se, essencialmente,
nas citações que o jornal apresenta, ou seja, em excertos do famigerado “Identidade
e família”. Acreditam os autores que a família tradicional é a “única sociedade
natural, universal e intemporal” e contestam as iniciativas legislativas que
entendem condicionar e lesar essa instituição, como por exemplo, a eutanásia, o
aborto, a ideologia de género e o casamento entre casais homossexuais.
Analisemos, então, o discurso… Defender a família tradicional não significa,
portanto, promover valores de tolerância, de respeito, de equidade entre o
casal que se pressupõe de sexos opostos, mas antes impedir outros de usarem da
sua liberdade individual como quiserem, uma vez que em nada atentam contra a
sociedade! Este raciocínio perverso e faccioso deixa-me perplexa. Ó meus caros
senhores, defender a família tradicional, seria promover uma organização social
em que as mulheres pudessem ser mães sempre que quisessem sem que fossem
prejudicadas na sua carreira. Seria haver uma qualquer compensação para as
empresas que criassem creches para onde as mães pudessem levar os filhos, por
exemplo. Seria admitir que pudesse ser o pai o cuidador da criança e não a mãe
e atribuir-lhe os mesmos benefícios. Seria prolongar a possibilidade de os
cuidadores ficarem mais tempo em casa com os filhos, sem penalização monetária excessiva,
por exemplo. Seria educar e promover a igualdade de género, saber que a
mulher tem tanto direito a uma carreira profissional quanto o homem, se assim
desejar, e que trabalho igual pede salário igual; saber que a violência
doméstica é crime e que não deve ser calado nem admitido e que as vítimas devem
ser verdadeiramente protegidas; saber que a mulher é um indivíduo com pensamento
próprio e capacidade crítica para formar as suas opiniões, apenas não tem a
mesma força física que o homem, mas possui a mesma inteligência. É um ser com
direito à sua liberdade plena, tal como o homem. Se estas bandeiras forem
defendidas, então, estarão a trabalhar em prol da família tradicional
harmoniosa, com capacidade para educar as suas crianças num ambiente seguro e
saudável. Quem trabalha no setor da educação sabe que a maioria das crianças
negligenciadas vivem no seio de famílias tradicionais que as maltratam! São
muitos os casos, mais do que o desejável, o que prova que a família tradicional
não garante nada! A maioria dos abusos vem precisamente dela. Ocultar este
facto ou fingir não o saber é pura desonestidade intelectual e moral. Assiste-se
apenas à vontade de impor uma visão de mundo aos outros. Pode-se defender o que
se pensa, mas não se tem o direito de impor a sua crença ao outro. Desta forma,
não se pode impor a heterossexualidade a quem tem natureza diferente, apenas
porque se acredita que este é o caminho. Poderá ser para a maioria, mas não
para todos e aqueles que não se identificam com esta via estão no seu pleno
direito de viverem a vida em conformidade com a sua natureza, sem serem
discriminados por isso. O mesmo é válido para o aborto e para a eutanásia. O
facto de existir essa possibilidade não obriga ninguém a praticá-los. A isto
chama-se respeito pela liberdade alheia. Não temos o direito de proibir aquilo
que é do foro da liberdade de cada um. Quanto ao argumento de que a vida é um
valor inviolável, resta perguntar aos olhos de quem. Se me responderem que é
aos olhos de Deus, então, esse é um argumento meramente religioso e aqueles que
não o são têm o direito de escolher o que querem. Cada um tem o direito de
achar que ficar preso a uma cama não é vida e o direito de pôr fim a esse
tomento, assim como quem acredita que a vida vale por si mesma tem o direito de
a preservar, independentemente, das circunstâncias. É uma questão de liberdade
individual e de uma tomada de decisão pessoal e consciente, devidamente
acompanhada por uma equipa médica multidisciplinar, naturalmente.
Querer proibir
o que só a cada um diz respeito é ser ditador e impor pelo meio da força
legislativa o que não lhe compete. Quando um dos autores do manifesto usa o
humanismo cristão como forma de combater tudo quanto lhe parece ser uma ameaça
à família, só me apraz dizer que Jesus foi o maior progressista: defendeu as
mulheres (os tais seres que um dos autores nega serem oprimidos, pois nunca se
queixaram! Se não fosse um assunto tão sério causaria gargalhadas, pela estupidez!),
os pobres, os leprosos, os samaritanos, enfim, as minorias ostracizadas! Este é
o verdadeiro Evangelho: o amor, a aceitação e a tolerância. Qualquer outra
coisa é uma subversão de vendilhões do templo e estes foram expulsos, pelo próprio
Jesus, mediante a hipocrisia manifesta nas suas ações.
Nina M.
sábado, 6 de abril de 2024
Crónica de Maus Costumes 368
Relato de viagem
Voltei a
fazer o que dizia que não voltaria a cumprir: ir com alunos a Paris de
autocarro. Dezasseis intermináveis horas quase sempre sentados, com curtas e
poucas paragens, garantem dores nos joelhos e nas costas, o rabo calcinado e
uma enxurrada de insultos a nós mesmos… Não cumpri, é certo, mas aguentei-me
uma data de anos sem repetir. O Rodrigo tinha 20 meses quando cometi esta
insanidade que agora repeti, e, neste momento, o meu filho tem dezasseis.
Cá em casa
riem-se e erguem as mãos à cabeça, quando não meneiam três vezes a cabeça, qual
Velho do Restelo! Dizem-me incapaz de resistir a uma viagem, mesmo que me saia
do pelo e que para me verem feliz é meterem-me num autocarro!… Exageram,
evidentemente, porque ser obrigado a pernoitar em transportes é horrível! Bem…
à ida, não preguei olho, mas à vinda já dormi. Significa que já evoluí. Quem
sabe se à terceira sou capaz de dormir à ida e à vinda!... Brinco… Não desejo
propriamente uma terceira vez, desta maneira. Nem de avião gosto de muitas
horas! Um massacre! Se a viagem for de autocarro, mas implicar paragens amiúde
para visitar as cidades com que nos vamos deparando e estadia para dormir,
ainda vai, mas andar horas a fio para se chegar o mais rapidamente possível ao destino,
quando este fica longe, é muito duro.
Apesar
destes constrangimentos, não deixa de ser uma experiência enriquecedora.
Tivemos alunas que choravam emocionadas quando se depararam, pela primeira vez,
em frente à Torre Eiffel. Cumpriram um sonho de infância e observavam atentamente
a cidade que veem nos desenhos animados “Lady Bug e o gato Noir”, admiradas com
o realismo dos bonecos. Afirmavam querer morar ali e os olhos brilharam quer na
Champs Elysées quer no mundo mágico da Disney. Outra agradecia o facto de ser
filha única, porque se tivesse irmãos, teriam idade aproximada à dela e não
haveria dinheiro para todos, por isso, o mais certo seria ficar em casa. “Se
tivesse irmãos – dizia ela- não estava neste paraíso!” No entanto, a frase que
me marcou foi a de um aluno aflito com a possibilidade de fecho do restaurante
onde iríamos jantar… Desatou aos gritos aos colegas para que se despachassem e
a mim, preocupado, afirmava: “professora, eu tenho de comer… E se o restaurante
está fechado? Na minha opinião, comer é mais importante do que ver monumento…”
Tranquilizei-o a rir-me perdidamente com o seu receio de passar fome em Paris…
Que se lixe a Torre Eiffel! Rapar fome é que não!
A beleza
consola o meu olhar e Paris é um museu a céu aberto, uma cidade sumptuosa e
altiva, vigiada por Montmartre e o Sacré-Coeur, do alto da colina. Os telhados
de xisto preto com a suas belas mansardas de janelas abertas sobre o Sena… Prédios
simétricos e alvos, enfeitados pelas varandinhas de ferro forjado, cheias de
rebiques e berloques. Paris é uma mulher altiva e bela, dona de si, requintada e
que se sabe admirada, olhando com certo desdém os que não a sabem apreciar.
Apesar de ser a minha terceira vez, sei
que terei de voltar a Paris a título particular para cumprir o que lá me falta
fazer ainda… e tenho ainda tanto para descobrir e lugares onde me perder! Quero
a Paris menos turística e mais íntima, a Paris dos poetas, dos escritores, dos
artistas e dos filósofos… A mulher misteriosa que guarda segredos… Só tive um
bocadinho de Quartier Latin… e quase nada de Montmartre (infelizmente, o bairro
está vendido ao comércio… Sinais dos tempos…). Precisarei de tempo no Louvre e no
Orsay, precisarei de visitar a Madeleine e a Sainte Chapelle, de visitar o
museu Rodin e o museu Picasso, talvez voltar a Notre Dame, depois das obras,
antes de rumar a Versailles… Paris é uma cidade à qual se volta sempre. Não
admira, portanto, a comoção de quem com ela sonhava.
Ter o privilégio de proporcionar esta
comoção aos miúdos e vê-los absolutamente felizes compensa as malogradas
dezasseis horas de viagem! Para além disso, conheci novas colegas, pessoas agradáveis,
afáveis, e boa companhia. Conheci novas facetas de colegas. Na escola, conhecemos
tão pouco… Todos somos mais do que o que mostramos e entristece-me que, por
vezes, a distinção não passe do que é mais ou menos profissional. Certo é que
não há bom profissional sem haver boa pessoa, no entanto, há, vezes além da
conta, juízos de valor apressados e injustos, como se nunca falhássemos, como
se fôssemos sempre a perfeição, quando todos nós estamos longe dela. Tento
sempre não o fazer precipitadamente e ser cautelosa em relação às certezas. Desprezo
a mesquinhez. Prefiro a boa vontade e a melhor versão de cada um. Venham lá
mais horas de autocarro para as descobrirmos!
Nina M.