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sábado, 29 de fevereiro de 2020

Crónica de Maus Costumes 170



O direito à melancolia

Não sei exatamente como a sociedade chegou aqui. Tudo é líquido, rápido, perfeito, leve e alegre. Não há tempo nem paciência para a construção lenta e sólida, a imperfeição e o peso da existência. Não há mais tempo para a palavra, cada vez menos valorizada e até há quem julgue que uma imagem vale mais do que mil palavras.
Quem pensou assim criou o Instagram, onde se vê muito, mas onde normalmente se verbaliza tão pouco. Não é pois de espantar que seja a rede social predileta da gente nova, dos que já nasceram sem tempo a perder. Dos que não sabem o que significa matar o tempo. É o tempo da imagem e do imediato, mas a imagem para atrair deve ser bela e agradável, sugerindo a perfeição. Só isso é partilhável. Consigo compreender se o objetivo for a preservação da intimidade do ser. No entanto, parece-me haver a política do descartável. Tudo o que incomoda e não é partilhável nas redes sociais deve ser banido, o que cria uma falsa ilusão de vidas alheias perfeitas e alegres, conduzindo a comparações desnecessárias e geradoras de pequenas invejas infelizes.
Invejamos as viagens, as alegrias alheias e os amores perfeitos da Internet e ao fazê-lo, impossibilitamos o direito ao fracasso, esquecendo que nenhum ser humano se constrói apenas com sucessos. Talvez seja mais a soma dos seus malogros do que outra coisa qualquer… De modo que chegamos a um estádio em que exigimos a perfeição na nossa vida, não deixando margem para o erro, porque todos os que nos rodeiam na feira das vaidades nos esfregam a sua magistralidade. Não admira, portanto, que a melancolia não fique bem na fotografia e toda a gente possui o receituário perfeito para os tristes: “não penses mais nisso, não te isoles, devias sair mais, devia conhecer novas pessoas, faz uma viagem…”
Tudo placebos que significam apenas a mesma coisa: alheia-te de ti. É verdade que essa estratégia permite ganhar algum oxigénio, mas a alegria ou vem de dentro, apesar da tristeza, ou de nada servirá, porque tarde ou cedo o ser se encontrará consigo e não sobejará nada para além da dor. O ser humano tem direito à tristeza e precisa tanto dela quanto da alegria. Não confundamos com estados depressivos, o que configura um estado patológico. No entanto, há situações da vida que nos deixam angustiados e é bom viver essas emoções, identificá-las e saber a sua origem. Só assim nos conhecemos e as poderemos mitigar. Todas as opções que nos roubem de nós apenas adiam o problema que terá de ser olhado de frente.
A alegria não implica ausência de melancolia, implica saber o que a motiva e como com ela lidar. Não existem pessoas completamente alegres nem completamente melancólicas, por isso, deixemos que a tristeza de fim de tarde que às vezes possa surgir nos tome em seus braços e nos embale. Reclamemos o direito à melancolia e rejeitemos a alegria oca e impura que nos faz sentir descontextualizados. A alegria é boa quando vem de dentro e surge a momentos, nem sempre nem nunca.
Aprendamos a respeitar o nosso ritmo e vivamos melhor.

Nina M.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Fuga

Corro!
Para me sentir viva
O sangue quente
A fervilhar sob as veias
E um corpo que se mexe ao vento...
Fujo!
Do cheiro pútrido da morte
Da hora errada
Que sempre ganhará um dia...
O que escolher? Como saber?
insustentável leveza
Ou o peso soturno
Que intimida e nos verga
À nossa infinita pequenez?
Estala coração de vidro pintado!
Diria o grande poeta...
Quebrou-se e é de carne
Talvez por isso mesmo se regenere
Até à hora em que a ceifeira o queira levar!

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Morte

A morte fria que teima
Em visitar cedo a gente
Que se afaste em agonia
Deixe viver o presente
Leve o Caronte a Hades
As almas cansadas da vida
Saiba respeitar aquelas
Que vivem cheias de fúria
As que sentem
As que dizem
Haver tanto por fazer...
Teima a foice gélida
Em ceifar sem razão
Colher sem eira nem beira
Queiram as almas ou não
Sob o manto escuro e dorido
Com que cobre o desalmado
Principiam prantos mudos
De quem não está preparado
De que adianta a revolta
Se a morte fez a sua escolha?
Não resolve nem evita
A rigidez eterna maldita
Mas se me vem antes do tempo
Renuncio veemente a desdita!



Ser poeta

Ser poeta é gostar
De gostar de olhar a vida
Das estrelas e do sol
Da lua e do vento
Até da chuva desmedida...
Não custa qualquer dinheiro
Ser feito de evasão
Gostar do sossego do rio
Na sua margem sentar sem razão
E o marulho das ondas de fim de tarde
Trazê-lo dentro da alma
Escutá-lo sempre que se quer
É música que sempre acalma
Ser poeta é viver
Sabiamente na sua angústia
Ver outros tantos sofrer
Ausentar-se de seu lamento
Trazer o mar nos olhos
O céu no coração
Viver numa outra alma
Desejar outra dimensão
Traz consigo os seus amores
Guardados na algibeira
Sempre que os queira ver
Lança a mão
E sai poeira...









sábado, 22 de fevereiro de 2020

Crónica de Maus Costumes 169


Ainda o Marega…

O caso Marega fez a semana e a propósito do assunto li e ouvi muita parvoíce. Já agora vale a pena ouvir a rubrica “Extremamente desagradável”, de Joana Marques, na Renascença e rebolar a rir. O humor também serve para isto, para colocar o dedo na ferida e, com graça, alertar para assuntos sérios.
O tema Marega deveria suscitar uma reflexão bem mais profunda do que o saber se foi racismo ou não. Vale a pena questionar sobre o caminho que se trilha no futebol português. Em primeiro lugar, devo esclarecer que a produção de urros guturais, na tentativa de imitar símios, talvez fazendo acompanhar os guinchos com murros no peito e dirigidos a um atleta de cor negra, reveste-se de um insulto de cariz racista. O propósito poderia ser ligeiramente diferente. Talvez a pretensão dos adeptos vitorianos fosse a de perturbar, a de achincalhar o jogador que já tinha passado por aquela casa. Facto que deveria ser ainda mais estranho. À partida, se um ex-jogador volta à sua antiga casa, deveria ser aplaudido. O certo é que o jogador foi insultado não pelas suas características futebolistas (e ele até dá aso a que tal pudesse acontecer), mas foi insultado pela sua cor e isto não tem outro nome a não ser racismo, sendo essa ou não a intenção. Contra factos não há argumentos. 
O problema é que Marega tomou uma atitude inesperada: revoltou-se contra o que é suposto ser aceitável no futebol e virou costas à partida, prejudicando inclusivamente a sua própria equipa para defender a sua condição de ser humano. Se houvesse mais Maregas no futebol, talvez houvesse mais respeito por parte dos adeptos, dos dirigentes e da própria classe política. Há gente que vai ao estádio para destilar veneno e todas as suas frustrações contra os jogadores da equipa adversária e até da sua, contra os treinadores e árbitros! Ora, talvez esteja na hora de lembrar que no futebol, tal como na vida em sociedade, nem tudo é permitido, ainda que às vezes pareça que sim…
Nesse sentido, o comportamento dos adeptos vitorianos foi repugnante. No entanto, este não é só um problema dos adeptos deste clube. Acontece com frequência em todos os estádios, porém, não houve até ao momento alguém com a coragem do Marega e as gentes da bola foram compactuando com comportamentos inaceitáveis. Deixem lembrar-lhes que a própria polícia recebe ordens para não atuar e permanecerem serenos perante episódios destes. Conduzem os adeptos da equipa visitante até ao estádio e sim, nesta cidade, é frequente receberem os adversários com calhoada que chove sem se perceber bem como das janelas dos prédios. É o pior estádio da zona Norte que a polícia tem de fazer. A localização do recinto de jogo na cidade não ajuda, mas o comportamento dos vimaranenses é condenável. Desta forma, durante os 90 minutos da partida, parece que qualquer cidadão deixa de estar submetido à lei e pode fazer e dizer o que lhe apetecer, que nada de mal lhe acontecerá, porque, afinal, é apenas futebol e desestabilização do adversário!
Aos que defendem que o Marega deveria ter suportado todos os insultos estoicamente porque é bem pago para isso, pergunto qual será o valor da dignidade humana?! Quem aufere um salário acima da média é obrigado a aceitar ser enxovalhado em praça pública? Quando é que as pessoas aprendem a respeitar a dignidade do outro? Isso significa não usar de violência verbal nem física gratuitamente!
O problema no futebol e na sociedade é mais fundo. Não é apenas a questão do racismo, mas a incapacidade de respeitar e de não violar a dignidade alheia! Se um adepto pode demonstrar desagrado? Com certeza. De forma polida e educada. Não precisa de insultar a mãe do senhor árbitro para mostrar o seu desagrado. Todos nós gostamos de ser tratados com respeito no nosso ambiente laboral, sem ofensas nem insultos. Pois bem, basta tratarmos os outros da mesma forma e ter a consciência de que o facto de não gostar de alguém não nos dá o direito de insultar.
Este tipo de comportamento tem que começar a ser severamente punido, independentemente das cores das camisolas que os atletas envergam. Usar o argumento de que Marega provocou ao festejar o golo virado para o adversário, é tão estúpido quanto dizer que a mulher que enverga uma minissaia ou sai sozinha pede para ser violada! Tenham juízo! Respondeu com um belo golo e essa foi a melhor provocação que poderia ter feito, até porque é para isso que lhe pagam! Para defender a camisola que de momento veste!
Aos que comparam a situação de Marega a situações graves, mas diferentes e que nada têm a ver com o caso, convém não misturar tudo… Se houve omissão anteriormente é bom que se comece a atuar a partir de agora, com discernimento e imparcialidade. Desta forma, aos que vieram a terreiro atacar Marega, relativizando a situação, lembrando o cântico absolutamente infeliz de uma das claques portistas, relativamente à queda do avião do chapecoense em que diziam “que pena não ser do benfica”, lembro que o Futebol Clube do Porto demarcou-se e condenou o cântico e a claque deixou de o entoar. Lembro a essa gente que não tem qualquer superioridade moral, uma vez que o seu grupo de sócios organizados entoaram alto e bom som, para quem quis ouvir o seguinte: “O Marco ficou e o Marco ficou quase sem cabeça, quase sem cabeça”, durante o encontro entre um Sporting – Benfica, numa clara alusão à morte do italiano Marco Ficini, junto ao estádio da Luz. Numa final da taça de Portugal entre as duas equipas, o cântico do very-light voltou a sair da boca dos adeptos benfiquistas, com a gravidade de em nenhuma circunstância se ter ouvido qualquer palavra de condenação por parte dos dirigentes benfiquistas. Quem tem telhados de vidro, vale mais estar caladinho, sob pena de ser acusado de hipocrisia…
Esta violência deve ser combatida e gente que não sabe estar deve ser proibida de assistir a jogos de futebol. É o que acontece nos países civilizados há muito! As claques organizadas e adeptos devem começar a ser obrigados a ter um comportamento exemplar, independentemente da camisola que vistam. Faça-se cumprir a lei num país de brandos costumes e de gente mansa que tudo aceita sem espernear!
Por fim, dizer que há racistas em Portugal e no futebol também, mas acrescentar ainda que não é esse o maior mal, mas antes a violência gratuita e o sentimento de impunidade criado pela falta de uma atuação imediata e enérgica!
Já agora, o caso Marega não é mais grave do que o dos professores, médicos e polícias agredidos e ofendidos na sua dignidade. O que lhes falta é a espinha dorsal do jogador, pois a cada falta de respeito imputada, deveriam despir a farda e virar a costas… O problema é que o Marega obteve a solidariedade dos políticos. O aproveitamento político está sempre à espreita! Os outros, quando muito, ser-lhes-ia movido um processo disciplinar… Afinal, são pagos para aguentar tudo estoicamente!

Nina M.








terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

O sorriso que se abre

O sorriso que se abre
A cada olhar que perpassa
É metamorfose, magia
Que dá ar de sua graça
Que é de ti
Ó minha alma
Que te dás nessa torrente
Escondes-te
Pedes calma
Num fim de tarde dolente
Cedo de mim voou
Outros mundos continentes
Ave rara e dispersa
Que se encontra em sua mente
Se é sonho ou poesia
Quimera de absoluto
Vive pura e não sabia
No seu mundo impoluto
Traz amor traz alegria
Combate o absurdo
Salva-se da esquizofrenia
De um mundo cego e surdo
Não se deixa adoecer
Coberta por um ideal
Diz quem a viu nascer
Que tal alma irá sofrer
Perecer sob golpe fatal
Mas poderá haver engano...
E Ser Fénix renascida
Superar todo o dano
Tomar as cinzas por seu manto
Regressar incandescida
Porque o milagre de ser
Exige alma comovida




sábado, 15 de fevereiro de 2020

Rio

O rio da alma grande
Corre entre vales profundos
Escondido em seus mistérios
Quer ocultá-los do mundo
É cioso da corrente
Que extravasa pela margem
Nem todos merecem tê-lo
Nem todos sabem da coragem
Há quem não goste quando vê
A corrente cristalina
Querem-na ferida de morte
Com o entulho maldade felina
Mas a corrente que tem vida
Contorna todos os obstáculos
Pedras, montes e pinheirais
É líquida toda esta vida
Perpassa como perdida
Não para nos umbrais
Para a reter só vivendo
Esgotando-a do que já foi
Só assim a renovando
Com o que se vai guardando
Antes agora e depois


Crónicas de Maus Costumes 168


Às amizades delicadas, suaves e verdadeiras

            Deparei-me, há tempos, com uma crónica de Miguel Esteves Cardoso dedicada aos pouco confessionáveis “odiozinhos de estimação”. Odiozinhos secretos porque, na verdade, não temos nada contra a pessoa em questão, que nunca nos fez qualquer mal e que até pode ser bom ser humano e, portanto, a nossa falta de empatia é apenas irracional. Dizia ele que também não era grave, contando com o discernimento que cada um deve ter para saber ocupar o seu lugar. Saber que o facto de não simpatizar com A, B ou C, não confere o direito à maledicência ou outros comportamentos menos dignos, passíveis de prejudicar terceiros, só porque não se simpatiza com alguém.
            Parei a pensar nas minhas alergias epidérmicas. Não lhes chamo de ódio pelo simples facto de não odiar ninguém, verdadeiramente. Lembro-me de sentir sanha contra a Lurdes Rodrigues, relativamente à sua postura enquanto Ministra da Educação, na altura. Foi a grande responsável pela campanha maquiavélica e difamatória de uma classe que tem, naturalmente, erros que lhe podem ser apontados, mas muitas virtudes também. Um atentado contra aquela que deveria ser a classe profissional mais respeitada em qualquer parte e que ainda hoje é tantas vezes aviltada em praça pública. Não tenho ódios. Posso honestamente, com o que há de mais verdadeiro, afirmá-lo, mas tenho algumas alergias. Julgo que todos nós as temos, porque somos humanos e não gostamos de todas as pessoas da mesma forma. Uma questão de feitios e de personalidades. Tento sempre, de qualquer forma, ser correta. Não prejudicar nem me meter deliberadamente no que não me diz respeito. Há uma fronteira estabelecida pelo outro ser que faço questão de respeitar muito seriamente e evito, conscientemente, comentários intrusivos. A privacidade e a intimidade de cada um é, para mim, inviolável. Com ou sem alergia. Ainda que possam não o saber fazer comigo. A isto chama-se caráter. Tal como não entendo que as pessoas possam deixar interferir questões pessoais nas questões laborais. O bom profissionalismo e o seu reconhecimento devem estar sempre associados. Não pode haver de todo prejuízo ou dano apenas porque não se gosta de alguém, se a pessoa for competente, deverá, certamente, ser reconhecida pelo seu bom trabalho. Julgo haver alguma incapacidade, no mercado laboral, para saber lidar com algumas destas questões e lamento que assim seja…
 Estas reflexões surgiram no seguimento de uma conversa boa, suave, delicada e sempre respeitadora do espaço de cada um, como deve ser, com alguém de quem muito gosto, uma das minhas manas de coração, de quem gosto genuinamente de cuidar! Imediatamente me lembro mais das amizades delicadas e leves como as gotas de orvalho frescas e claras que nos limpam o rosto sem que nos apercebamos. São tão delicadas e preciosas que nos cuidam sem que o saibamos. Sem que o peçamos, apenas porque há a gentileza no coração que permitiu a ligação afetiva. O reconhecimento de que o outro merece a nossa estima por ser quem é. Não que seja alguém infalível. Não há ninguém que o seja, mas talvez a constatação de que se trata de um ser humano que se esforça por ser íntegro seja suficiente. Felizmente, também há amizades assim no seio do trabalho. Sinto-as e sei tê-las sem que seja preciso afirmá-lo. No entanto, hoje, senti vontade de expressar um agradecimento aos que sabem que eu sei quem são e que, certamente, em algum momento, já foram as minhas gotas de orvalho cristalinas, tão dignas, tão preciosas e tão generosas que, com os seus gestos discretos e até secretos me cuidam.
Saibam que em mim terão um coração aberto para vos acolher e mimar. Sempre que de mim precisarem.
Sentido obrigada.
Nina M.

 






sábado, 8 de fevereiro de 2020

Crónica de Maus Costumes 167


Às belas mulheres maduras

            Apesar da gripe que me debela e me tem deixado combalida desde sexta, julgo que a recuperação se dará a partir desta noite. Quem me conhece saberá porquê.
            Já há algum tempo que queria abordar esta temática, no entanto, por motivos que não interessam aqui explorar, foi sendo relegada para outra altura. Pois bem, chegou o momento.
            A sociedade ocidental é implacável com as mulheres em qualquer idade, mas principalmente, a partir do meio século, parece que lhes querem passar um atestado de óbito antecipado. Se há uns anos, no tempo em que o atraso de Portugal em relação a outros países europeus era notório, a imagem da mulher portuguesa não era a mais atrativa, de lá para cá muita coisa mudou. Lembro-me sempre das palavras da companheira de um dos meus primos, nascido em França, acerca das mulheres portuguesas. “Afinal, não é como dizem, afirmava ela.” Perguntei o motivo da admiração e a resposta foi que as portuguesas eram tidas em França como as mulheres de bigode. Ainda estudava na Universidade, por essa altura. Tive de lhe explicar, em traços largos, o Salazarismo e os seus malefícios. A falta de alimento, que era uma preocupação real, a mão-de-obra pouco qualificada e era essa que emigrava nos famigerados anos sessenta e a lenta recuperação após a entrada na União Europeia, à data CEE. Lembro-me também das mulheres de quarenta ou de cinquenta anos quando era criança e, de facto, a sua aparência denotava uma vida difícil, em que se adivinhavam os poucos cuidados que dedicavam a elas mesmas. As saias justas de costureira com pouco gosto e pouco ornamento reinavam. A maquilhagem era pouco usual e então as calças só chegaram nos anos sessenta! Que ousadia revelaram as primeiras mulheres ao vesti-las nos meios rurais! A educação religiosa e repressiva no que diz respeito ao papel da mulher teve os seus efeitos nefastos na sua imagem. Impunha-se a mulher recatada, que não usava decotes nem saias curtas e mostrava pouca pele… Esta era a imagem da mulher de família, esposa e mãe. À socapa , os homens procuravam o atrevimento de outros braços desnudos e menos rígidos e bem mais livres. Eram perfeitas para os entusiasmos da alcova, mas não para andar de braço dado na rua, onde a hipocrisia reinante impunha os seus cânones. A revolução demorou a chegar, mas veio!
            Hoje, as mulheres de quarenta e de cinquenta anos estão bem cuidadas. São belas e não se vê despontar qualquer pelo! Estranho, por isso, que a sociedade as considere acabadas. Lembro-me das palavras de um parvo jornalista francês que disse, a certa altura, que as mulheres de cinquenta anos não lhe interessavam. Desconfio bem que seria exatamente o oposto. Provavelmente, as mulheres de cinquenta anos, independentes, seguras, belas e exigentes é que não se interessariam por um suposto macho-alfa, que tem mais de parvo do que de macho. Poderá fazer boa figura ao pé de meninas de vinte, ainda tão ingénuas e sem saber nada da vida, quanto as ausências de marcas do tempo no seu corpo. Dá vontade de responder-lhe como certa altura respondi a alguém que criticava uma miúda mais fortezinha: “deves achar-te a última bolacha do pacote! Tu, bem mais redondo do que ela e atreves-te a emitir um juízo de valor pouco simpático sobre a sua silhueta!”
Na verdade, a generalidade dos homens não revela grandes problemas de autoestima. Não se incomodam com a barriguinha que omite os abdominais! Por que razão as mulheres se torturam constantemente com pequeninos pneus que não lhes retiram a feminilidade? Por que motivo algumas de entre nós julgam que a vida termina aos cinquenta, se essa poderá ser mesmo a nossa melhor fase? Há jovialidade suficiente, segurança, sabedoria e independência. Há consciência de si e do seu valor. Maturidade para saber fazer escolhas acertadas e não dar conversa a quem não o merece. Cada etapa da nossa vida é importante e o amadurecimento faz parte da vida. O que se perde em elasticidade e rigidez ganha-se em sabedoria e interesse. Não tenho qualquer dúvida de que gosto mais de mim agora do que aos vinte! Mais culta, mais interessante, em relação a mim mesma. Se começo a fazer comparações, de cada vez que ouço ou leio George Steiner, Leandro Karnal, Eduardo Lourenço, Pacheco Pereira, entre tantos outros, meu Deus, sinto-me muitíssimo pequenina e tão ignorante, com a humildade suficiente para reconhecer que nunca lhes chegarei aos pés… O sentimento feio da inveja surge nesses momentos. A única inveja que me reconheço é a do conhecimento e a da cultura. Nada mais. Ainda assim… Tão melhor do que aos vinte!
            Queria essencialmente fazer um apelo às mulheres maduras hodiernas: não se fechem para nada. Talvez o melhor da vida vos esteja reservado a partir deste momento. Continuem livres, belas e seguras de vós… A vida trará o resto. Só não vale ser cadáver enquanto por cá andarmos com saúde!

Nina M.


           



domingo, 2 de fevereiro de 2020

Urgência

Urge que a ti regresse
E me envolvas num abraço
Feita de palavras consolas
És esse meu amor lasso,
O único que possuo 
De verdadeiramente meu
Morrerá quando eu morrer
Dentro do ser que o deu...
Amor, minha poesia!...
Que em mim aconteceu
Traz o cheiro a maresia
Traz o belo azul do céu!
Serena a alma alvoroçada
Inquieta por tanto sentir
Afasta as lágrimas de sangue
Que comecem a cair
A angústia que me visita
Sempre que lhe parece bem
Sem origem sem motivo
Só porque todo o Homem tem
Acalma-se nos teus versos
Beijos que afagam a alma
Não me deixes, poesia,
És o meu amor eterno!
Tudo se perderá
Sem remorso ou remissão
Fica o ser sempre sozinho
Pequena luz na escuridão
Quem te tem a morar dentro
Com os olhos rasos de água
Saberá de sua sorte
És a companhia eterna
Mesmo na hora da morte!









sábado, 1 de fevereiro de 2020

Crónica de Maus Costumes 166


À Sara…

                Hoje, não seria capaz de escrever sobre outro assunto e, no entanto, também não me apetece falar sobre o que falarei…
                Já publiquei alguns textos sobre a morte. É um tema tabu na sociedade ocidental, que valoriza cada vez mais a juventude e o bem-estar em detrimento da decrepitude que a velhice comporta. Todos gostam de parecer mais novos do que o que são, à exceção dos adolescentes que têm sempre pressa de chegar aos dezoito anos. Quanta ingenuidade! Não sabem ainda que num piscar de olhos se passam vinte anos e que quando derem por si são adultos cheios de responsabilidades… Assim, pintamos cabelos, temos cuidados estéticos e físicos na vã esperança de iludir a inexorável morte, sempre a sorrir ao virar da esquina.
 Porém, a verdade é que a morte é necessária para conferir sentido à vida. Se estivéssemos certos da juventude e da vida eterna, haveria sempre tempo e sempre desculpa para adiar o inadiável. Em vez de procurar o sentido da vida hoje, poder-se-ia fazê-lo amanhã ou depois. Afinal, haveria sempre tempo… A incapacidade de se prever a hora da despedida e a consciência de se ser finito faz com que apreciemos viver, com que atribuamos significados às vivências que nos são ofertadas.
A Sara, a jovem aluna de dezassete anos, não teve tempo para aprender isto, porque nessa idade, tal como deve ser, somos todos imortais. Só existe espaço para o projeto que queremos realizar. Ninguém pensa na sua interrupção precoce. E por mais voltas que dê não encontro qualquer sentido para uma ceifa tão prematura. Nem justiça. Como se roubou a possibilidade de a Sara descobrir o sentido da sua vida? Desconfio que ninguém o pode saber em tenra idade. Desconfio que muitos nem sequer pensam em tal tema! Quem está cheio de vida pensa pouco na morte. E Se a pensa, imagina-a ao longe, num tempo que nunca chegará. Pelo menos não antes das grandes realizações… Depois, tragédias destas abatem-se sobre a nossa humanidade e esbofeteiam-nos até nos acordar. Lembra-nos que o tempo, por vezes, é curto e torna-nos difícil encontrar um propósito, um sentido na missão de viver. Faz-nos levantar inúmeras questões e mesmo os mais crentes se interrogam sobre a necessidade de um Deus não interventivo. Se interviesse seria um justiceiro e não Deus, alegarão alguns. Outros julgarão que assim é um Deus indiferente, uma espécie de Deus menor, quase cínico, que se limita a observar a pequenez da condição humana. É difícil extrair qualquer sentido. É, todavia, possível aprender a lição de que o tempo para fazer o que se deseja é mesmo hoje e agora. Logicamente, sem entrar no relativismo ou na permissividade onde tudo é válido, mas é um convite sério ao “carpe diem” onde caibam todos os sonhos do mundo, porque sonhar é uma forma de viver. Gostaria que fosse possível aos familiares e amigos da Sara encontrarem um propósito na sua perda, mas não sei se é exequível fazê-lo sobre o terrível buraco que se abre no peito. Em muitos, o tempo cicatrizará a ferida. Apesar da marca, a reconstrução é viável e desejável. Em relação aos pais… Contrariando o meu otimismo habitual, adivinho-lhes a aprendizagem de ter de viver com a dor. Dia após dia. Não desaparecerá. Haverá dias em que será insuportável. Uma desumanidade ter que sobreviver à tragédia. Que possam encontrar o conforto possível em quem já passou e passa pelo mesmo. Que o foco seja os que restam e que não suprimem a ausência de quem partiu, mas que permitem continuar a construir sentidos… Que o silêncio precioso os cerque, porque quaisquer palavras serão vazias e inócuas. Que consigam superar a revolta e apaziguar a angústia que virá.
Chovia copiosamente, Sara. Eram lágrimas inconsoláveis caídas do céu. O pranto pela tua vida incompleta que se perdeu. Onde quer que estejas, sob a nova forma que terás adquirido (deixa-nos acreditar nisso) que estejas bem e que consigas apaziguar os corações que mais sofrem com a tua ausência.
Descansa em paz.

Nina M.