Em conversa com
um colega que muito prezo e admiro, ele dizia-me que o cinismo é a doença do
mundo moderno. Suspeito que tenha razão. Num mundo doente, onde o sarcasmo e a
“banalização do mal” (expressão da filósofa Hannah Arendt) se instalou, é
preciso que encontremos algo que nos permita recuperar da descrença na
humanidade. Podem ser os ideais em que se acredita e que se opõem à malvadez do
mundo, pode ser a fé, a religião, a arte nas suas mais variadas manifestações:
música, literatura, pintura, escultura, cinema, etc. … Podem ser todos juntos
ou apenas um só, mas é certo que o Homem de bem precisa de algo que potencie a
sua crença no ser humano, de modo a não se deixar enredar pelo desencanto e
assim ceder ao cinismo e ao mal.
Se o ser humano negar a sua
necessidade de alcançar o sublime, a transcendência e o sagrado, então nega a
sua essência. Os caminhos podem ser variados, mas quando se encontra num texto
que se lê, numa música que se ouve ou num quadro que se observa um arrepio na
alma, uma contorção muscular, uma alegria serena e um sentir-se parte desse
texto, música ou pintura, numa dádiva e abandono total de si, o ser comum
transcende-se e toca o divino. O amor maternal ou paternal cumpre o mesmo
efeito. Trata-se de dádiva incondicional sem qualquer preocupação com
benefícios pessoais ou fins meramente egoístas. Que mãe não ficou já emocionada
ao olhar o filho, sentindo toda a plenitude de um amor que não se esgota e que
quanto mais dá de si, mais tem para oferecer?
Num documentário
interessantíssimo sobre o papel das religiões na vida do ser humano, feito por
Morgan Freeman, ele pôde testemunhar essa dádiva incomum do Homem a outros e a
sua sublimidade. Conversou com um adolescente destinado a ser um monge budista
e que todos os dias estudava e recitava as escrituras. Deveria saber de cor
quatrocentas páginas, para que, com sabedoria, possa, mais tarde, iluminar o
caminho dos outros. Fazia-o com afinco e determinação. Mostrava-se ciente da
sua missão e permanecia fiel ao que lhe era confiado. Conheceu um cristão que
esteve preso na Coreia do Norte durante dois anos, acusado de orar (o cristianismo
é proibido). Durante a tortura imputada e que consistia em ficar imóvel, de pé,
durante várias horas, sentiu a mão dormente, viu uns pontos amarelos, como pó
de ouro e ouviu uma voz que se apresentou como o Espírito Santo e que lhe disse
para nada temer, pois estaria com ele. Acabou por ser libertado dois anos mais
tarde e regressar à família. Falou com um muçulmano e vários outros crentes de
outras confissões. Todos tinham algo em comum: dispor a sua vida em prol dos
outros, pois eram os escolhidos de Deus. Nada os desvia do seu trajeto da
procura da bondade. Morgan terminava afirmando que a humanidade precisava de
homens assim, apontando como exemplo o próprio Cristo. O mundo precisa de guias
que iluminem com tenacidade, coragem e persistência o caminho dos que se
afastam do bem. São guias para o sagrado.
Sem a espiritualidade e o sublime
consubstanciado nas mais diferentes formas de arte, nos ideais, na fé e no
amor, o que nos distinguiria dos seres irracionais? O que nos impediria de nos
tornarmos cínicos e sádicos à força da descrença no semelhante?
A dimensão espiritual do ser
humano deve ser cultivada como meio de preservação da bondade, da sanidade e da
beleza do amor, como prevenção da autofagia a que nos submetemos se nos
deixarmos vencer pelo descrédito, pelo cinismo e pela mágoa.
A ironia reside no facto de a
própria instituição Igreja promover esse descrédito quando ela mesma se
manifesta o oposto do que apregoa, porque se educa mais através do gesto do que
da palavra. O segredo reside em saber separar o que não deve ser confundido. Na
realidade, nem sempre a fé e a religião andam de passo acertado com os seus
representantes, porque estes são simplesmente humanos e onde houver a mão do
homem haverá sempre o erro. Há péssimos exemplos que nos fazem questionar e
duvidar de tudo e de todos, mas há também uma mão cheia de bons exemplos que
tendemos a esquecer.
Haja a predisposição para a
exigência na nossa conduta individual a bem do coletivo, com a consciência de
que somos um ínfimo e irrelevante ponto na imensidão do universo.
Uma Santa Páscoa. Renasçamos
todos a cada dia com vontade de fazer diferente, de fazer melhor.
Nina M.
Sem comentários:
Enviar um comentário