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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Crónica de Maus Costumes 76





Em conversa com um colega que muito prezo e admiro, ele dizia-me que o cinismo é a doença do mundo moderno. Suspeito que tenha razão. Num mundo doente, onde o sarcasmo e a “banalização do mal” (expressão da filósofa Hannah Arendt) se instalou, é preciso que encontremos algo que nos permita recuperar da descrença na humanidade. Podem ser os ideais em que se acredita e que se opõem à malvadez do mundo, pode ser a fé, a religião, a arte nas suas mais variadas manifestações: música, literatura, pintura, escultura, cinema, etc. … Podem ser todos juntos ou apenas um só, mas é certo que o Homem de bem precisa de algo que potencie a sua crença no ser humano, de modo a não se deixar enredar pelo desencanto e assim ceder ao cinismo e ao mal.
Se o ser humano negar a sua necessidade de alcançar o sublime, a transcendência e o sagrado, então nega a sua essência. Os caminhos podem ser variados, mas quando se encontra num texto que se lê, numa música que se ouve ou num quadro que se observa um arrepio na alma, uma contorção muscular, uma alegria serena e um sentir-se parte desse texto, música ou pintura, numa dádiva e abandono total de si, o ser comum transcende-se e toca o divino. O amor maternal ou paternal cumpre o mesmo efeito. Trata-se de dádiva incondicional sem qualquer preocupação com benefícios pessoais ou fins meramente egoístas. Que mãe não ficou já emocionada ao olhar o filho, sentindo toda a plenitude de um amor que não se esgota e que quanto mais dá de si, mais tem para oferecer?
Num documentário interessantíssimo sobre o papel das religiões na vida do ser humano, feito por Morgan Freeman, ele pôde testemunhar essa dádiva incomum do Homem a outros e a sua sublimidade. Conversou com um adolescente destinado a ser um monge budista e que todos os dias estudava e recitava as escrituras. Deveria saber de cor quatrocentas páginas, para que, com sabedoria, possa, mais tarde, iluminar o caminho dos outros. Fazia-o com afinco e determinação. Mostrava-se ciente da sua missão e permanecia fiel ao que lhe era confiado. Conheceu um cristão que esteve preso na Coreia do Norte durante dois anos, acusado de orar (o cristianismo é proibido). Durante a tortura imputada e que consistia em ficar imóvel, de pé, durante várias horas, sentiu a mão dormente, viu uns pontos amarelos, como pó de ouro e ouviu uma voz que se apresentou como o Espírito Santo e que lhe disse para nada temer, pois estaria com ele. Acabou por ser libertado dois anos mais tarde e regressar à família. Falou com um muçulmano e vários outros crentes de outras confissões. Todos tinham algo em comum: dispor a sua vida em prol dos outros, pois eram os escolhidos de Deus. Nada os desvia do seu trajeto da procura da bondade. Morgan terminava afirmando que a humanidade precisava de homens assim, apontando como exemplo o próprio Cristo. O mundo precisa de guias que iluminem com tenacidade, coragem e persistência o caminho dos que se afastam do bem. São guias para o sagrado.
Sem a espiritualidade e o sublime consubstanciado nas mais diferentes formas de arte, nos ideais, na fé e no amor, o que nos distinguiria dos seres irracionais? O que nos impediria de nos tornarmos cínicos e sádicos à força da descrença no semelhante?
A dimensão espiritual do ser humano deve ser cultivada como meio de preservação da bondade, da sanidade e da beleza do amor, como prevenção da autofagia a que nos submetemos se nos deixarmos vencer pelo descrédito, pelo cinismo e pela mágoa.
A ironia reside no facto de a própria instituição Igreja promover esse descrédito quando ela mesma se manifesta o oposto do que apregoa, porque se educa mais através do gesto do que da palavra. O segredo reside em saber separar o que não deve ser confundido. Na realidade, nem sempre a fé e a religião andam de passo acertado com os seus representantes, porque estes são simplesmente humanos e onde houver a mão do homem haverá sempre o erro. Há péssimos exemplos que nos fazem questionar e duvidar de tudo e de todos, mas há também uma mão cheia de bons exemplos que tendemos a esquecer.
Haja a predisposição para a exigência na nossa conduta individual a bem do coletivo, com a consciência de que somos um ínfimo e irrelevante ponto na imensidão do universo.
Uma Santa Páscoa. Renasçamos todos a cada dia com vontade de fazer diferente, de fazer melhor.
Nina M.




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