Seguidores

domingo, 29 de janeiro de 2023

Crónica de Maus Costumes 310

Professores ainda... Aquela classe estranha

   Escrevo novamente em viagem, absorta do barulho, metida em mim.

O motivo é o mesmo. Tempo de contestação. Não me lembro de luta tão arrastada... O ministro João Costa permanece escudado na sua surdez e na sua teimosia, tal como o timoneiro do navio em vias de naufrágio, o seu homónimo.

  Procuro olhar para a situação com alguma distância, embora esteja envolvida até ao tutano. Corre-me nas veias a indignação e o ímpeto pelo abismo das lutas justas e imperiosas.

  Anos de silencioso marasmo e de apatia foram despertos por uma medida impopular no seio da classe, dada a descrença nos políticos e nas entidades com responsabilidade de gestão a nível local. É grave. Se nalguns países europeus, não se questiona que a colocação de professores seja feita ao nível autárquico e das escolas, aqui, neste jardim à beira-mar plantado, os professores não o desejam. É necessário compreender esta rejeição visceral e pensá-la. Seria a forma mais óbvia para evitar que os professores andassem sucessivamente com a casa às costas, mas eles não o desejam porque desconfiam do "modus operandi". Não é infundada esta rejeição, por força dos exemplos já vividos aquando da criação da Bolsa de Contratação de Escola (BCE), que deu origem a critérios de seleção pouco ortodoxos e, muitas vezes, feitos à medida de quem se pretendia que ocupasse o lugar. O receio que vinguem as influências e as amizades (postura enraizada na cultura portuguesa), a par da dificuldade em estabelecer critérios objetivos e imparciais de seleção fazem com que os professores não queiram a implementação de tal processo. Assim, escolhe-se a justiça cega, mas objetiva e o mal menor. Posso citar-me, a título de exemplo. Trabalho na mesma escola há oito anos. Gosto muito de lá estar, conheço o Projeto Educativo, contribuo para a sua consecução e integro equipas de trabalho que dinamizam a atividade pedagógica. Nem eu nem a escola perderíamos, se lá continuasse a lecionar  (pelo menos assim o penso e nunca a direção ou outras estruturas me fizeram sentir que não faço um trabalho válido) e, no entanto, apesar de ser Quadro de Zona Pedagógica, por concurso, estou sempre sujeita a sair, o que,  caso venha a acontecer, me entristece. Apesar disto, também eu prefiro o modelo cego. Pode não ser o ideal, mas desconheço outro melhor, que ofereça confiança. Depois, independentemente da filosofia da escola, a generalidade dos professores adaptam-se. Estamos mais do que habituados a essa flexibilidade. Esta situação, o Governo conseguiu compreender e recuou, porém, a insatisfação que grassa na classe, o cansaço que nos ataca e o ressentimento que vivia calado, que apenas era expresso em desabafos entre pares, rebentaram por atacado⁹ e a luta pela carreira alargou-se e, neste momento, não há dique capaz de a suster.

  A luta que dizia, inicialmente,  respeito às condições de carreira, pôs a nu tudo o que falha na escola, fundindo-se a luta de uma classe na luta por um desígnio nacional: a educação. 

  Em teoria e no papel, a escola pública portuguesa está entre o melhor que se faz na Europa. Isso mesmo confirma o Domingos Fernandes, presidente da Comissão Nacional da Educação (CNE).

Os problemas surgem quando saltamos para a prática e esbarramos com todos os constrangimentos que são sobejamente conhecidos. Os professores portugueses passam a sua vida profissional a fazerem omeletes sem ovos e cansaram-se. Revoltaram-se contra o parco salário, a impossibilidade de progredirem nas carreiras, a possibilidade de se reformarem com um rendimento miserável, apesar do investimento que fizeram na sua educação e na educação dos outros. Não é justo. Ainda menos quando, no mesmo país, há colegas de profissão que veem os seus direitos reconhecidos (e bem). Que regime democrático temos que usa de dois pesos e duas medidas para a mesma classe profissional?!

Desta forma, os professores defendem, essencialmente, os seus direitos e não há que temer afirmá-lo, mas ao fazê-lo, defendem também a escola pública, porque o pior que lhe pode acontecer é ter gente a pensar que se ninguém lhes reconhece o mérito, então, deixa de haver razão para sacrificar tanto o seu tempo pessoal, para se meterem em projetos e atividades por mera carolice e por entenderem que os seus alunos o merecem, para continuar a colocar tantas vezes os seus meios à disposição da escola... A verdade é que muito do que se faz na escola é por boa vontade e sem esperar retorno. No dia em que as coisas deixarem de funcionar desta forma, o ensino público será cinzento e acabará por perecer. A luta dos professores não deverá ser inócua para a sociedade, porque sem eles, ela ficará votada à ignorância e à estagnação.

Chega! Sem medo da palavra e das venturices a ela associada. Chega de tanto desmerecimento! 

  Por estas razões, os docentes voltaram a Lisboa. Por isto e para beber um descafeinado servido em chávena de meia de leite, feito com pó solúvel à discrição, a pretexto de poder ir à casa de banho. Ficou cara a cevadinha, que em Lisboa não se brinca com os preços! Só mesmo para a carteira de professor!  

  Um bom domingo de repouso a todos os que se atreveram, mais uma vez, a invadir Lisboa.


Nina M.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Madrigal imposto

Não me chames de moça bonita
Diz-me antes, mulher linda.
Duas palavras sinónimas
Com diferença crucial
Uma trata apenas do corpo
A outra, corpo e alma, afinal!







sábado, 21 de janeiro de 2023

Crónica de Maus Costumes 309

 Greves e manifestações

            Esta semana, a luta dos professores prosseguiu entre greves distritais, greves ao primeiro tempo, plenários sindicais e reuniões entre as várias organizações sindicais e o Governo.

            A minha escola promoveu um plenário sindical para pessoal docente e não docente de todo o concelho de Lousada. A adesão foi forte e o evento teve cobertura mediática. Fui uma das entrevistadas, pelo que a primeira coisa que os meus filhos me disseram quando entrei em casa, foi: “ó mãe, tu apareceste na televisão!” Como se fosse um feito de outro mundo ou fosse revestido de uma importância extraordinária… Pensei com os meus botões que esta juventude vive para o mediatismo. Respondi: “A sério? Eu falei com uns jornalistas, efetivamente…”

O mais velho lá resmungou que na escola dele ninguém fazia nada… Até parece que os professores não querem defender os seus direitos. Eu bem sei o que ele queria, mas finjo acreditar no seu ativismo e espírito crítico e aproveito para dar uma aula de cidadania e do dever que cada um tem de mostrar a sua indignação, sempre de forma democrática e ordeira, de cada vez que se sente injustiçado. Foram estas as reações mais importantes do dia. Bem desejei que fossem outras, mas o senhor ministro não ajuda.

Creio que respondi por três vezes à mesma questão: se estava disposta a continuar a luta. Respondi afirmativamente, mas esclareci também que os professores querem ser parte da solução e não do problema. Para isso, é necessário que o senhor João Costa saia da surdez e da cegueira em que se enclausurou e passe a ouvir os professores. Porém, depois da reunião, percebeu-se por que razão não houve acordo. Efetivamente, o Ministério não ofereceu nada!

Quero chegar ao máximo de pessoas que conseguir, jornalistas, inclusivamente, para lhes dizer claramente que o senhor ministro, de forma cínica e com uma retórica falaciosa, atribuiu ao seu discurso uma nova roupagem para oferecer o que já tínhamos! A novidade que nos apresenta não só não nos resolve qualquer problema, como ainda nos é prejudicial. Isto que fique bem claro para a opinião pública. Analisemos os presentes envenenados do Ministério: em primeiro lugar, os inúmeros lugares que promete aos contratados, é só para os que este ano letivo conseguiram um horário completo, o que representa, uma vez mais uma medida atabalhoada e capaz de gerar injustiças. Pode haver professores com mais tempo de serviço que tiveram o azar de este ano não terem conseguido um horário completo, pelo que não entram em quadro. Depois, essas vagas serão maioritariamente em Lisboa e no Algarve e os professores que para aí forem quase terão de pagar para trabalhar, porque o preço da habitação é um absurdo incomportável. Ninguém falou de um apoio pecuniário para quem estiver nessas condições… Quanto aos professores de Quadro de Zona Pedagógica (QZP), acontece que estes foram reduzidos, mas os professores são obrigados a concorrer a seis deles, o que, contas feitas, a área abrangida é similar à que temos de momento. Cada QZP dista entre extremidades cinquenta quilómetros, mas ninguém garante que se fique naquele que é do seu interesse, para além de ser obrigado a circular por mais de um agrupamento, em caso de ter horário incompleto. Agora, nem os professores de Quadro de Escola ou de Agrupamento (lugar a exterminar, para que o conceito de mobilidade seja pleno) podem sossegar, porque ter dez horas letivas ou menos, implica também lecionar noutra escola desse quadro, consoante a vontade e necessidade das escolas e dos senhores diretores… Portanto, nada melhorou. Para os que consideram que os professores que têm horário incompleto têm mesmo de acumular ou estariam a ganhar o mesmo trabalhando menos, lembro que há uma série de serviços úteis e necessários que esses professores podem fazer na sua escola, a começar pelas aulas de apoio e a terminar na coordenação de projetos, por exemplo. Os responsáveis sugerem isto, sem subsídio de gasóleo ou deslocação, como se os docentes fossem obrigados a ter veículo próprio ou a conduzir. Se estas intenções não forem travadas, aviso desde já que chamo um “uber”, para ser mais barato, e apresento a conta na secretaria. Veríamos se o Ministério sairia a ganhar, se todos o fizéssemos. O meu veículo não tem que ser posto à disposição da tutela. Quanto à recuperação de tempo de serviço, mesmo que de forma faseada, nem uma palavra! E as quotas, as percentagens faladas correspondem ao que já existia… Os outros problemas… Esses nem foram abordados: a falta de condições, a indisciplina, a burocracia, a avaliação dos docentes e diretores, a aniquilação de programas, entre outros… O senhor ministro teve o desplante de ir para uma reunião sindical e apresentar uma mão cheia de nada, como um jogador de póquer que faz bluff. Acontece que o discurso pode iludir a opinião pública, mas não os professores!

Deixo ainda algumas notas para os senhores comentadores que ou partilham do ideário do governo ou não fazem os trabalhos de casa… Nenhum professor ganha mais de dois mil euros. Nem mesmo o raro que está no décimo escalão! Esses dois mil e tal euros que se podem ver nos recibos de vencimentos são ilíquidos. Significa que quando se aplicam os impostos (e aplicam-se sem misericórdia nem fugas), na maioria dos casos ficam entre os mil e trezentos e os mil e quinhentos euros, dependendo do índice em que o professor se encontre. Há quem chegue aos mil e setecentos, porventura. Lembremos que estamos a falar de pessoas com cursos superiores, mão de obra qualificada, muitos deles com pós-graduações, mestrados e até doutoramentos. Aos que dizem que os professores não precisam de ganhar mais, mas antes que o Governo baixe impostos, respondo que os professores não andam a pedir aumento de salários, apenas que deixem progredir sem os tampões das quotas aqueles que passam por uma avaliação interna feita pelo seu coordenador e por um avaliador externo, seu par, mas vindo de outra escola e que assiste a quatro aulas e analisa toda a planificação e a competência pedagógica e científica do avaliado. Há professores que têm excelente, mas não podem progredir por falta de quota. A nota faz bem ao ego, mas não paga contas! É esta injustiça a que os professores estão sujeitos! Quanto ao argumento de que as quotas existem em todas as carreiras, digo o seguinte: todas as carreiras viram o seu tempo de serviço reposto, exceto os professores continentais, porque os dos Açores e da Madeira não sabem o que é este suplício e esta agrura (e bem); a carreira docente tem a sua especificidade e não pode ser comparável a nenhuma outra. Um médico chefe de serviço tem outras responsabilidades e funções e é remunerado por isso. Os professores fazem todos o mesmo, desde o contratado ao que tem mais tempo de serviço. Se, por norma, os mais velhos são Coordenadores de Departamento, quase todos os outros são diretores de turma (cargo muito trabalhoso e que a maioria não deseja). A benesse são as horas de redução (ou duas ou quatro, passadas na escola, a trabalhar para o cargo atribuído) e que, dependendo da altura, não chegam para o trabalho que se faz. A propósito de dislates que são proferidos e chego a pensar que por má-fé, um professor não ganha e nunca ganhou mais que um médico. Já agora, um médico colocado em Bragança, tem direito a subsídio devido à interioridade (e bem), um deputado em Lisboa e um magistrado têm direito a ajudas de custo, o professor formou-os a todos, mas é o parente pobre obrigado a ir, a pagar o seu alojamento, a sua deslocação, com menor salário e sem qualquer ajuda pecuniária! 

Essa ignorância, para além de atrevida é insidiosa, porque se já não há jovens que queiram abraçar a profissão, com esta desvalorização e falta de respeito, dentro de pouco tempo, não haverá professores devidamente qualificados e lançaremos mãos ao que houver disponível, depauperando a educação, o ensino público e hipotecando o futuro do país, já que o seu desenvolvimento depende da educação dos seus cidadãos.

Por fim, que fique esclarecido que esta cegueira em que o Governo se encontra não se deve à falta de dinheiro. Há muito que poderiam e deveriam ter resolvido este problema, porque quem desbarata milhões em negócios ruinosos e que lesam a economia do país, tem dinheiro para resolver o problema dos professores em particular e da função pública, em geral, que é pessimamente paga. Trata-se, portanto, de uma opção política que não deverá ser esquecida pelos professores. Uma palavra para os assistentes operacionais, que trabalham uma vida inteira a troco de um salário mínimo, quase sem progressões, independentemente da sua competência, igualmente sujeitos a quotas. Sem eles, também não há escola.

Maltratar os professores é maltratar o país. Só a gente sem visão estratégica e com falta de inteligência não o consegue compreender. Eis os motivos pelos quais os professores não se podem calar! Eis os motivos pelos quais a luta tem de continuar!

Os professores a lutar também estão a ensinar! Veja se aprende a lição, senhor ministro, ou teremos de repeti-la tantas vezes quantas as necessárias, diversificando as estratégias. Assim nos ensinou a pedagogia! Para alguma coisa há de ter servido…

 

Nina M.

 

 

 

Crónica de Maus Costumes 308

 Indignação e democracia

        Mostrar a Indignação é um direito democrático. Só em democracia se pode mostrá-lo. Esta, em regimes totalitários, é oprimida e abafada.
           Os professores, hoje, encheram o Terreiro do Paço para mostrarem a sua indignação contra os ataques sucessivos à escola pública, aos alunos e aos seus direitos.
         Os professores, ao mostrarem a sua insatisfação e a sua indignação, exercem um direito e dão um exemplo de  cidadania. Assim, se não pretendemos perder a liberdade de nos expressarmos quando a injustiça nos bate à porta, é preciso cuidar da democracia. Este sistema político tem defeitos, não é perfeito, mas ainda assim não conheço outro melhor. De modo que não posso olhar sem espírito crítico para as manifestações de desagrado que ultrapassam os limites do razoável. Os últimos acontecimentos no Brasil, à semelhança do sucedido no Capitólio, tornam evidente a diferença entre mostrar a indignação e a insatisfação de forma democrática e a arruaça, libertinagem e destruição de património. Sucede que sou apologista da rua para mostrar descontentamento, desde que feito com ordem e respeito pelos direitos dos outros. A democracia só pode funcionar plenamente desta forma, de modo que de cada vez que alguém passa linhas vermelhas, deve refletir sobre esse comportamento e a forma como este pode fazer perigar um regime democrático. É desse caos e dessa desordem que os populismos se aproveitam para promover a necessidade de um regime opressor que garante segurança. Neste contexto, é preciso cuidado com os discursos  polarizadores da sociedade e que extremam posições. Exemplo concreto: é legítimo, dentro do direito democrático, manifestar o desagrado; não será legítimo nem sensato afirmar que se vive em ditadura. Não passa de uma hipérbole incendiária. A prova cabal de que não se vive em ditadura é a possibilidade que as  pessoas têm de se manifestar. Essa verborreia não  passa de uma técnica discursiva usada por quem quer mover massas,  mas que deve ser questionada e  repensada. É esse tipo de discurso insano e persistente que fez com que os brasileiros desrespeitassem a democracia para supostamente defenderem essa mesma democracia. Por isso, quando pessoas com responsabilidade política afirmam que "é necessário um parênteses na democracia" ou que "esta democracia é uma vergonha" entendam que estão a colocar em causa a sua existência. Não é a democracia que é vergonhosa, mas o comportamento de certos elementos com responsabilidade política e ou social que é desrespeitador do país e dos seus cidadãos, mas entendamos que só temos conhecimento disso, porque vivemos em democracia. É por ela existir que sabemos dos múltiplos escândalos que têm afetado este (des)governo.
       Assim, cuidem os deputados e os membros do Governo da nossa casa democrática, sem demagogias nem extremismos, usados apenas para arregimentação de massas, com lisura e com responsabilidade.
       Lembremo-nos nós, cidadãos, que também temos uma responsabilidade individual e o dever de defender a democracia, regime conquistado, mas que não é, de todo, um dado adquirido, mas antes um bem imperfeito que importa preservar e aperfeiçoar. Para isso,  devemos ser esclarecidos e informados, saber ler os microdiscursos e vigiar-nos, porque mesmo o mais cuidadoso pode incorrer neste pecadilho.
       Hoje, os professores deram um enorme exemplo de como exercer o direito à indignação. Povoaram a capital com palavras de ordem e de luta, de forma ordeira e cívica. Mostraram aos cidadãos como se faz, pelo enorme exemplo. Espero que após esta movimentação o Governo queira efetivamente dialogar, encontrar soluções com os professores para a escola pública. Se é certo que não há escola sem alunos, não é menos verdadeiro afirmar que ela também não existe sem professores. Ninguém exige nada que não lhe pertença: reconhecimento do tempo efetivamente trabalhado, ausência de  quotas e de uma avaliação injusta, porque admite a excelência, mas castiga-a ao travar a progressão na carreira e os concursos com o critério único de nota de licenciatura ou mestrado e o tempo de serviço.
       Um agradecimento a todos os colegas que invadiram Lisboa, um agradecimento especial aos colegas da minha escola, onde ainda é possível ser feliz, também por causa deles, à direção, nossos superiores hierárquicos, mas também amigos. Grata pela solidariedade. Fizeram do trajeto longo um convívio sadio e animado. Obrigada defenderem a educação e dela fazerem bandeira.
Democracia sempre e sem parênteses!

Nina M.







 

 

 

 

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Paradoxo


Há mimos opressores 

Em carícias ternas

Beijos violadores

À solta pelas tabernas


Custam uma alma

O diabo os forjou

Naquela tarde calma

Em que nela se fixou


São ternuras exigentes

Falsas dádivas altruístas 

Escondem seres carentes

Receosos dos artistas 


Dos que escalam montanhas

E com as mãos tocam o céu

Seres de enormes façanhas 

Ciosos do dom que é seu


O bem da liberdade

Vivida plena no interior 

Apesar da tempestade

Sempre surge em bela flor


O destino é florir

Viver naturalmente

Não se pode oprimir

Quem vive livremente

 















sábado, 7 de janeiro de 2023

Crónica de Maus Costumes 307

 Crónica Literária

Terminei, há sensivelmente uma semana o Guerra e Paz, de Tolstói. Uma empreitada que me acompanhou ao longo de cerca de três meses. Um romance histórico e filosófico de mais de 1300 páginas, em que descreve as guerras promovidas por Napoleão Bonaparte contra as principais monarquias europeias, entre 1805 e 1820. Um monumento da literatura universal!

Ler o Guerra e Paz é, em simultâneo, maravilhoso e aterrador! O espanto advém da força narrativa, das reflexões filosóficas sobre as causas e as consequências dos conflitos, sobre o sentido da vida e a sua procura, sobre a preocupação em criar uma sociedade mais justa e mais fraterna; o terror, do facto de que, depois do Guerra e Paz, não haverá muito mais que se possa escrever. Digo muito mais porque há um Dostoiévsky, que explora as personalidades desviantes, detentoras de uma atração fatal pelo abismo. Ninguém o faz melhor do que ele.

Neste grandioso romance, o escritor traça um retrato realista da Rússia, onde a aristocracia hipócrita contrasta com a miséria dos soldados e servos. Estes são meras peças de um tabuleiro de xadrez, de que se dispõe e organiza para se alcançar uma vitória que satisfaz mais o orgulho e a vaidade dos que mandam e esperam promoções vãs do que a responsabilidade pelo zelo das vidas que se tem nas mãos. Enquanto os soldados se galvanizam e dão a vida pelo que consideram justo, em defesa da pátria-mãe e do profundamente amado imperador Alexandre, os estrategas generais ficam confortavelmente instalados, em casas que ocupam, continuando a frequentar os serões e os bailes, afastados do terreno porque, obviamente, o general deve ser protegido para que a guerra não se perca. Kutuzov é o eleito, não por vontade genuína de Alexandre, mas porque tinha mostrado competência. O mal-amado que soube ter a paciência de ver Napoleão retirar com o seu exército esfomeado e em frangalhos.  Quando todos consideravam oportuno atacar os franceses, ele interrogava-se sobre o motivo de causar mais mortes a ambas as partes, se bastava fazer sentir aos franceses que eram perseguidos, com a devida distância, para que estes acelerassem a fuga. Kutuzov não era compreendido, porque impunha a si mesmo o dever de pensar sobre a moralidade de uma guerra.

A aristocracia fútil, hipócrita e falida organiza faustos serões, onde se falava francês, o que constitui uma denúncia da perda dos valores russos, mesmo em tempo de guerra, havendo os que se endividavam para manter as aparências e um nível de vida a que se tinham habituado, mas já não podiam suportar. Assim viveu o conde Rostov. Destacam-se André Bolkonski e Pierre Bezukhov a quem a futilidade e a hipocrisia desconcertam e aborrecem. Personagens de uma densidade psicológica avassaladora, através das quais tólstoi expõe angústias e inquietações. A questão do sentido da vida e do significado da morte; a discordância em relação à pena de morte evidenciada no horror de Pierre quando observa a angústia dos soldados franceses quando eram obrigados a executar os prisioneiros de guerra russos.

As personagens femininas desfiam pelos salões: das mais frívolas cortesãs, às mais piedosas ou simplesmente às senhoras que conheciam bem o seu papel e dominavam a arte de entreter os convidados na mais perfeita harmonia. O destaque vai para a princesa Maria, mulher piíssima e de pensamento puro, de fé inabalável e também para a estouvada, alegre e inconsequente Natacha, que sofrerá uma revolução de alma, transformando-se numa esposa e mãe amorosa e devota à família.

Há ainda uma preocupação com os dados históricos. Tolstói leu quer documentos russos quer de outros países da Europa sobre as campanhas de Napoleão, numa tentativa de demonstrar os erros dos dados históricos, apresentando a sua versão, tão plausível e credível quanto outras. Assim, a parte final do romance é um ensaio que se dedica a debater o significado da História enquanto disciplina e como esta influencia a nossa interpretação da jornada do Homem.

Como nem as melhores obras estão imunes à deturpação, também Guerra e Paz foi usado como propaganda por Estaline, durante a segunda guerra Mundial, promovendo a defesa patriótica da terra-mãe.

Ler Guerra e Paz é compreender melhor o espírito russo, é saber que os ucranianos terão aprendido com Kutuzov que os maiores aliados para vencer uma guerra são o tempo e a paciência. Tal como os franceses, também os russos já tiveram de retirar em debandada um exército esfrangalhado e esfomeado e tal como Napoleão sabia da capacidade de resistência dos russos, também Putin a reconhece nos ucranianos.

 Tempo e paciência, dizia Kutuzov, aguardemos…

 

Nina M.