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segunda-feira, 2 de abril de 2018

O Carrancho



Chamavam-lhe o Carrancho. Pronunciado à moda de Chaves ou das terras da queimada galega que expurga demónios e até anjos, se for caso disso. Era mau bicho. Um diabo, como o apelidava o povo e, como se sabe, a voz do povo é a voz de Deus. O coração, há muito escurecido pela ruindade, não via a luz nem dava o mais pequeno sinal de enternecimento, aquele ínfimo instante em que o ser é apanhado desprevenido e é surpreendido com um leve e sereno sorriso e a doçura no olhar. Assim acontece com a mãe que observa silenciosa e demoradamente o seu filho, derramando ternura que se evapora dos poros sem autorização e exalando um orgulho de progenitora feliz com a sua obra, graças a Deus. Mas não o Carrancho. O Carrancho não era Homem suficiente para comoções, para essas fraquezas do espírito. Filho das fragas, assemelhava-se a elas na dureza. O seu ar inóspito afastava a miudagem que já sabia que o Carrancho, o demo, não era de cortesias. Se o viam, afastavam-se para o deixarem passar, rezando secretamente, na expetativa de não serem percebidos, para não escutarem um seco, terrível e assustador: “não te atravesses no meu caminho ou terei que te atropelar!”
As crianças empalideciam como círios, encostavam-se à parede, caso existisse, numa amálgama quase impercetível e fechavam os olhos, por acreditar que assim o perigo desaparecia mais rapidamente. Sussurravam para si: maldito, maldito, maldito. Três vezes maldito e ouviam o galo cantar.
Ninguém vira ou ouvira falar de um ato de generosidade, de um afeto ou simplesmente de um gesto revelador de boa-educação do Carrancho. As histórias que povoavam a memória dos habitantes eram bem diferentes.
Lembravam, pungidos, envergonhados e com remorsos da cobardia extrema que os impediu de ajudar a Fátima, mulher do Carrancho. Talvez porque cresceram a ouvir “entre marido e mulher ninguém meta a colher” e acreditaram. Assim, as nódoas negras que eram só uma e lhe cobria o corpo e que ela mostrava entre gemidos e chorosos desabafos, denunciando o meliante, o seu homem, o único que conhecera e lhe invadira as entranhas, e que era esta ferocidade malévola e cruel que marcava, sem dó nem piedade, a mulher que tomou, mal saída ainda da infância, passavam incólumes por desconhecerem o conceito de crime público. Também os milheirais não o conheciam, quando abrigavam dos olhos curiosos das gentes os encontros furtivos, onde as mãos sôfregas de desejo invadiam o corpo alheio até se unirem em comunhão furiosa e desabrida, entre o Carrancho, então casado, e a moça paupérrima que acolhera para ajudar a sua família. E sempre os ajudava, a ele e à sua mulher, em tudo.
Quando a legítima partiu, que Deus a tenha em bom lugar, Carrancho não perdeu tempo: apoderou-se de tudo quanto Fátima tinha (e que era pouco) e dela também. Começou, a partir de então, o degredo da mulher.
- Ó Fátima, não vás já para casa que o Carrancho passou por cá e parecia que tinha o diabo no corpo, o raio do homem! – Avisava a Maria, por temer nova tareia em cima da que Fátima tinha levado na véspera.
E Fátima mostrava um esgar de dor, contorcendo-se, moída da pancadaria do dia anterior.
- Oh, valha-me Deus! Ainda ontem fiquei como vês, toda negra… será que esteve a beber outra vez, na Tasca da Fonte?! Quando bebe, ninguém tem mão nele! Tem mau vinho… e as lágrimas caíam-lhe já a conta-gotas pelo que havia ainda de vir.
Nessa noite, apesar de temer a fúria tardia e remoída do Carrancho, procurou abrigo na casa de Maria, por achar que o corpo não aguentaria nova carga. No dia seguinte, fosse como Deus quisesse…
Maria sabia que Fátima, no seu íntimo, achava que merecia o castigo por conta dos pecados da juventude.
- Estou a pagar pelo que fiz à Laurinda – dizia-lhe Fátima - lembrando-se das fortes e sucessivas investidas do Carrancho, às quais não soube, nem pôde resistir.
- Cala-te, mulher! A culpa é daquele demónio! Eras uma catraia. Tinhas treze anos, não passavas de uma criança. Olha, devias deixá-lo. Isso é que tu devias fazer!
- Isso não! Ele também foi meu amigo… se não fosse ele e a Laurinda, olha, tinha morrido à fome! Sabes bem como era a vida dos meus pais, com tanto filho para criar e a terra que não dava nada!...
- Ó mulher, mas será que tu não percebes que ele te criou para o servires, que não foi um ato de generosidade desinteressada? A prova é que tinhas acabado de te tornar mulher, quando ele, enfim… sabes o que quero dizer… - insistiu Maria - que era a sua confidente de sempre.
- Seja como for, isso não. Quando um homem é bom como o teu, Maria, um só chega. Se é ruim, olha, chega e até sobra!
E a conversa encerrou por ali, num consenso tácito de que não havia nada a fazer, a não ser pedir melhores dias.
E os anos foram passando desta maneira, quase todos maus para Fátima, que só teve sossego quando o Carrancho começou a perder as forças e as injúrias doíam, então, apenas na alma, por serem verbais. Fátima, na abnegação de sempre, não lhe ligava e tratava dele como se tivesse sido o melhor marido do mundo. E isto, o povo não conseguia compreender. Aquele diacho merecia morrer sozinho. Não só pelo que fez a Fátima, mas a toda a gente. Até o pior demónio se deixa comover por alguém ou por algo, mas não o Carrancho. Dizia o povo que já cresceu enjeitado nas entranhas, o filho do demo!
E relembravam a história das crianças travessas que lhe tomaram as cerejeiras de assalto e que, não encontrando outro meio de as fazer descer, pegou na caçadeira e disparou, como se estivesse a enfrentar os piores bandidos, a quadrilha do naifas, que fazia belos estragos pelas redondezas e todos sabiam de quem se tratava, mas ninguém ousava apontar o mentor. A falácia quase lhe valeu uma tareia, salvou-o a sua imensa e certeira  cobardia.
Quando as crianças chegaram ao largo do povo, a arfar, mais vermelhas do que as cerejas com que regalaram o estômago e os sentidos, enquanto a sumarenta doçura se desfazia, gulosa, na boca e explicavam ainda a tremer que foram corridos a tiro pelo Carrancho, que ria como um trovão ao vê-los dispersarem aos gritos, em pânico, temendo pela vida, as gentes indignaram-se. Nem se lembravam já de corrigir a rapaziada, repreendendo-os pelo abuso de propriedade privada e a cobiça pelo alheio. De facto, as cerdeiras do Carrancho tentavam qualquer um, até eles, adultos, tinham vontade de se encarrapitar nos faustos galhos e saciar desabridamente a gula que a vista das cerejas gordas e muito vermelhas despertava. Todavia, desta vez, o Carrancho superara-se. Correr os miúdos a tiro? Podia ter acontecido uma desgraça! É verdade que a garotada não largava as cerejeiras, por perrice. Sabiam que o demónio nunca oferecia o abençoado fruto a ninguém, preferia vê-las a apodrecerem nos galhos ou os pássaros a debicarem-nas a oferecê-las, então, ano após ano, como uma tradição, os mais velhos passavam os ensinamentos aos mais novos e o assalto às cerdeiras repetia-se. Desta vez, o Carrancho excedera-se e havia alguém que não pretendia deixar passar em claro tamanho desmando.
O pai do Manel tinha chegado do trabalho e ao entrar em casa, sabendo do sucedido, nem teve tempo para consolar o estômago. Largou carreiro abaixo e só parou em frente à casa do malfeitor.
- Ó Carrancho, Carrancho! Vem cá abaixo que quero falar contigo ou só és homem para disparar contra ganapos traquinas? Podes descer que eu não estou armado, mas vou dar-te cabo do canastro. Os miúdos não se podem defender, mas todos têm pai, ouviste? Já ouviste dizer que homem de pistola e homem de pedra é um homem de merda? Pois é isso o que tu és. Cobardolas! Livra-te de fazer mal aos ganapos, estamos entendidos?
O Carrancho ouvira tudo, mas permaneceu em silêncio, esperando que a vizinhança pudesse pensar que não estava em casa, para a vergonha ser menor. Na verdade, o Carrancho não era corajoso, muito menos audaz. Exercia a sua autoridade e violência sobre os mais fracos: a mulher e a miudagem. Se, porém, alguém do seu tamanho lhe batesse o pé, não reagia ou fugia com o rabo entre as pernas como o rafeiro que reconhece a superioridade do dono. O Carrancho era medíocre e pusilânime e não reunia a simpatia de ninguém, despertava preferencialmente desprezo e asco. O Lanho estava de testemunha. O Carrancho era o responsável pelo seu epíteto e que ficou após a sacholada que lhe dera à traição e lhe causara um enorme golpe na cabeça, só porque o desgraçado tinha confundido a data em que lhe caberia, a ele, o uso da água do ribeiro para regar as batatas. Era mais uma tropelia do Carrancho. A aldeia virou-lhe as costas muito tempo. Ninguém lhe dirigiu  palavra durante dois anos! Onde já se viu? Quase matara o homem, porque se lhe meteu na cabeça que o Lanho foi regar no dia que lhe pertencia só para o arreliar! Era uma besta furiosa que ninguém conseguia aplacar, o Carrancho! Amigo das trevas, animal feroz, de coração fechado a tudo o que de positivo o quisesse bafejar!
Depois, o tempo, que é o melhor aliado da amnésia, fez o seu trabalho e o povo foi esquecendo aquela raiva surda que o fazia injuriar em surdina o Carrancho, de cada vez que se cruzavam. Não esqueciam o sucedido, mas o homem bom não consegue viver eternamente consumido pela raiva, de maneira que, lentamente, tal como o vinho fino apura pacientemente o seu sabor nos robustos toneis de carvalho, o tempo amacia e adoça o coração dos homens e a mágoa diminui. Até o Lanho lhe perdoou a vil ação e quando interrogado sobre o sucedido pela guarda, jurou não ter visto o agressor. Pensando bem, todos se interrogaram se essa generosíssima omissão tinha sido por verdadeiro perdão ou por amor a Fátima, que não suportaria ver o seu marido na cadeia. Era um traste, mas sempre era o seu marido. E o Lanho, esse, sempre lhe arrastara a asa. Oh! Se ela o quisesse, ainda hoje o Lanho seria seu servo.
Seria de esperar que no leito de morte, apercebendo-se de que a hora final estava a chegar, se arrependesse da vida desgraçada que infligiu a Fátima, mas não! O demónio era mais forte e dominava a sua alma. Mal falava e encontrava-se preso a uma cama, no entanto, ainda arranjava forças para maltratar verbalmente a mulher, a estocada final, já que agora não a podia atingir de outra maneira. Castigo ou não, a morte do Carrancho foi agonizante. Após vários meses de invalidez, na cama, o Carrancho apagou-se em sofrimento. Gritava, contorcia-se de dor e, de súbito, as mãos enrijecidas e gélidas apertavam os cobertores; os seus olhos esbugalhados davam mostras de terror, como quem vê o demo ou simplesmente porque também ele, por fim, percebeu os horrores que cometeu. Talvez se tenha arrependido, afinal, ou quem sabe fosse apenas a dor que o atormentava e que se tornava impossível de aguentar.
Agora, o Carrancho não assustava ninguém. Estava tão morto quanto o comum dos mortais. Dentro de um esquifo sóbrio, só e rígido dentro do templo sagrado, porém, o Carrancho não despertava a compaixão de ninguém. Só Fátima o velava, acompanhada da amiga de sempre, Maria. Cumpria com a formalidade de esposa, mas nem Fátima chorava a sua morte. Finalmente  sentia-se livre e o seu coração oprimia-se inadvertidamente, por lhe parecer inadequado. Respirava fundo, aliviada, apreciando demoradamente e relembrando a sensação de paz que há muito lhe tinha fugido e murmurava a Maria:
- Não aparece ninguém para velar o corpo…
- E estavas à espera de quê?! O homem era mais feroz do que os javalis a que dava caça por esses montes fora!
- Eu sei… e não condeno o povo, mas, no meu íntimo, esperava que aparecessem, por respeito, entendes, Maria?!
- Por hipocrisia, queres dizer. Paira sobre a morte o espectro do politicamente correto, da dissimulação de sentimentos que todos reconhecem e partilham, mas que ninguém ousa admitir. E então, começa o elogio fúnebre, muitas vezes, merecido e insuficiente, todavia, neste caso…
- Não digas mais. Sei-o bem. Olha, vou rezar-lhe um Pai Nosso pela sua alma, faz o mesmo, se puderes. – Retorquiu-lhe Fátima.
- Eu?! Rezo. Rezo, para que a justiça divina não lhe falhe, já que à terrena ele escapou sempre!
A notícia caiu na boca do povo sem grande espanto e sem nenhuma comoção. “Então, o diacho do Carrancho, lá se foi…” “E já vai tarde”, diziam alguns. “Já deve muitos anos à terra”, acrescentavam outros. E se alguém os chamava à razão, porque não se falava assim de um morto, por pior que ele fosse, alguém se lembrava de dizer que se fosse o coveiro, escavar-lhe-ia um buraco com o dobro da profundidade usual, para se certificar de que tamanha peçonha não voltava a incomodar mais ninguém. E lembravam mais uma vez de todas as maldades e violência que ele imputara a terceiros durante toda a vida. “Se a justiça divina realmente existir, o Carrancho irá pagar com juros de mora”, diziam. “Eu não vou lá rezar-lhe pela alma, só porque está morto”, acrescentava a Luzia. E não desarmava: “Olha agora… um homem não muda de caráter só porque morreu. O Carrancho era mau bicho, daqueles ruins mesmo, sem solução. Tinha um coração feio, negro como a noite, onde não penetrava um raio de luz, sequer. Aquele demónio desgraçou a vida de Fátima! Não é porque morreu que passou a ser um anjo! Àquele, nem a água benta lhe pega!”
Só não sabiam dizer quando começou toda a maldade. Talvez tivesse nascido com ele, o que era difícil de aceitar, uma vez que os seus pais eram boa gente! Mas o filho, ah o Carrancho… desde pequeno que se mostrava estranho. Divertia-se a torturar a bicharada com requintes de crueldade. Gostava de cortar o rabo às sardaniscas e se alguma gata ou cadela vadia tinha por perto uma ninhada, a aldeia encomendava logo o serviço sujo ao rapaz que o cumpria num piscar de olhos, sem um esgar de repulsa nem um olhar de compaixão. A outra garotada chorava desbragadamente, porque lhes queriam afogar as novas crias na nora, como meio de controlar a natalidade dos animais sem dono que rondavam o lixo que encontravam, à espera que uma alma mais caridosa mostrasse alguma generosidade e lhes arranjasse uma buchinha. O Carrancho não se incomodava nada e se um rafeirito desses lhe aparecesse à frente, logo o pontapeava. Às vezes, ainda lhe diziam: “Por acaso o bicho fez-te algum mal? Deixa-o estar.” Contrariado, afastava-se a resmungar. “Carai lá pró catrino do raparigo!”- Diziam os habitantes. “Só está bem a fazer das suas! Um dia destes ainda vai ser mordido por algum, para ver se aprende!”
Mas o Carrancho não aprendeu. Apenas aprimorou a técnica de maltratar. Primeiro os animais, depois os seus semelhantes, mas sempre vítimas mais frágeis. Nunca ninguém conseguiu perceber tal comportamento. Uns aventavam que era uma espécie de complexo de inferioridade que tentava combater. Jamais fora capaz de usar de assertividade com o seu pai ou professor primário. E talvez, por isso, ostentasse a sua afirmação deste modo vil.
O professor primário era um homem duro e exigente e se a rapaziada não se portasse condignamente, a palmatória trabalhava com gosto. O mestre não poupava ninguém. E quando tocava em sorte a um dos miúdos ouvi-la cantar nas mãos, aguentava como podia, cerrava os dentes e fechava os olhos, para que as lágrimas não se soltassem inadvertidamente. Desta forma se mostrava a bravura e se voltava ao lugar com a mão a arder, mas com o brio intacto. Se a sorte calhasse ao Carrancho, já todos sabiam que em vez das quatros reguadas, seria a meia dúzia, porque à primeira agressão, já o Carrancho gritava como um desalmado, o que irritava ainda mais o mestre Agostinho, que lhe arreava mais duas, com vontade de o desancar.
Há quem diga que o Mestre teve a sua parte de culpa na formação retorcida do Carrancho. Uma projeção da violência gratuita de que também ele era vítima. Já outros não concordavam, pois também eles tinham apanhado e eram homens sãos. Seja como for, o Carrancho cresceu assim, frio, cruel, cobarde e só. E assim seria levado a sete palmos debaixo da terra: frio e só. Fátima teve de pedir à agência funerária que se encarregasse de transportar o morto da igreja até ao cemitério, por falta de familiares que o fizessem e Fátima não reunia condições físicas. Não apareceu ninguém para ver enterrar o Carrancho.
Não há funerais ricos, mas este era pobre de mais. Acompanhou-o Fátima, a abnegada, e Maria, por amizade a esta. Depois das exéquias e de um sussurrado “descansa em paz”, atirado por Fátima, antes da última pazada de terra, a aldeia respirou um novo ar e Fátima de alívio. Uma serenidade baixou sobre o maio florido e as crianças, encarrapitadas nas cerdeiras do Carrancho, brincavam numa algaraviada própria da tenra idade e, de repente, parecia que as cerejas tinham perdido um pouco do seu sabor.
Ao largo, no povo, soou um grito doloroso, seguido de um choro que irrompe das entranhas, a clamar por vida. O filho do Claudino nascera. E assim seguia o seu rumo, a existência da pacata aldeia, sem que o homem nada pudesse contra a vida ou a morte.

Nina M.





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