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sábado, 30 de abril de 2022

Crónica de Maus Costumes 276

 

Desarranjos

 Não sei se a crónica de hoje sairá com destreza argumentativa… O pensamento dispersa-se e perde-se; não se concentra e torna-se escorregadio…

Dizia-me uma colega que a idade a ensinou a não tecer juízos de valor sobre comportamentos alheios. Desculpa, cara colega, sei que provavelmente me irás ler e não referi que tudo me pode servir de mote e é passível de ser transformado em escrita. Tudo o que me rodeia pode ser matéria. Já avisei antes, mas não tinhas tido ainda o (des)gosto (deixo ao teu critério) de me conhecer... Fica o aviso…

Concordei em absoluto. Posso pensar que faria ou não de forma diferente, mas condenar ou sequer atrever-me a palpitar sobre a vida alheia, não! Na verdade, a vida dos outros não me interessa nada. Ao contrário do que supostamente dita o meu signo, não sou de coscuvilhices. Respeito profundamente a intimidade alheia e espero que os outros tenham o mesmo respeito para comigo. Simples assim. Também acho que foi Cronos quem me ensinou isso. Cada um é responsável pela sua vida e de a conduzir como bem a entende, salvaguardando-se o facto, obviamente, de não atuar com maldade nem de prejudicar alguém deliberadamente. Os juízos de valor fáceis e condenatórios são, muitas vezes, parcos em empatia e compreensão. Quem não calça o sapato alheio pode nunca compreender as razões do outro. Falo, obviamente, de comportamentos que não configuram crime, muitos deles até poderão ser explicáveis, mas não justificáveis. Falo das pequenas decisões e escolhas com que somos confrontados no dia a dia. Estamos sempre no limbo, na eminência da escolha e, apesar de ser um sinal de manifesta liberdade, é também, absolutamente, dolorosamente e infalivelmente angustiante. Sartre explica bem essa angústia. Como diria o meu amigo escritor, Luís Altério, ide ler… Ide… Quem tem de fazer escolhas é naturalmente suscetível à falha e quem tem a consciência da falha, das suas falhas e da sua escuridão, não se atreverá a atirar pedras alheias. Admito as minhas, com toda a minha franca e honesta humildade. É verdade que tento ser sempre melhor e sei que fico sempre aquém do desejável e, por vezes, quanto mais tento ser e crescer tanto mais erro, mesmo não o desejando. Perante esta consciência de que o caráter se constrói ao longo da vida e é feito de vários recomeços e correções não há como ter a arrogância de condenar seja quem for pelas pequenas coisas que dizem somente respeito à vida particular de alguém.

Ao pensar nestas questões, lembrei-me da história de um amigo que foi surpreendido pela têmpera primitiva e irracional transmontana em que os envolvidos na contenda, primeiro digladiam-se e esmurram-se, para mais tarde encostarem a barriga ao balcão e pagarem mutuamente uma cerveja, em sinal de paz e de respeito. Coisas inusitadas destas acontecem, mas chegar ao Reino Maravilhoso, sem preparação e assistir ao vivo e a cores a uma bravata, assusta qualquer um, mesmo que se trate de um cavalheiro. A fuga e a prevenção perante uma situação destas até poderão ser entendidas como uma cobardia pelos locais, que veem o mundo filtrado pelas suas lentes, sem compreenderem que pode e que há leituras e posições diferentes perante a vida. Algumas delas insanáveis e, a menos que sejam assuntos de valor quase absoluto, ninguém poderá presumir ser o dono da verdade. Algumas vezes, os nossos desejos colidem com os desejos alheios e só há uma via a seguir, a do respeito mútuo e da honorabilidade. Porém, nem sempre é possível, nem sempre é conseguido, porque a vida é feita de diversas tonalidades. Há muito mais para além do preto e do branco e quem souber pintar atreva-se a usar a cor.

 

Nina M.

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Preparação dominical

Pétala sob a chuva
Quente do chuveiro
Orvalho e nevoeiro
Corpo cândido que
Se dá à memória
E se enxuga na lentidão

Sobre a pele
Felpo seco e suave
O rosto
Os ombros
Os seios
E as pernas ...

O creme hidratante
Ritual vagaroso
Dominical
Quase sagrado
Põe o vestido vermelho
Agarra-te à vida







sábado, 23 de abril de 2022

Crónica de Maus Costumes 275

 Redes sociais : o espelho da desumanidade

                 Por estes dias, foi noticiada a destruição de um navio russo. A caixa de comentários da notícia era extensa e polarizada. Havia os que se regozijavam e os que condenavam o ato ou se preferirmos os pró-ucranianos e os pró-russos. O grave é não perceberem que a situação é dramática em demasia para ser levada com essa leviandade.

Eu deveria aprender a não abrir nem ler certos comentários, porque já sei que o meu sangue vai ferver e a indignação e a ira vai tomar conta de mim… Vá lá que resisto ao impropério e seguro o que me vai na alma, contando até dez e convencendo-me de que um estúpido com a mania de que está sempre certo será sempre um estúpido. Numa guerra, não há vencedores, apenas vencidos e vidas perdidas e as que se perdem são irreparáveis. Não entendo, portanto, quem se regozija com as mortes quer de um lado quer de outro. Esta semana, foi abatido um avião ucraniano e lá voltamos ao mesmo… “Emojis” de satisfação. Fazem da guerra um jogo de tabuleiro como se as pessoas fossem peças plásticas tombadas no chão… Não me regozijo com a morte dos soldados russos que aquando da tentativa de invasão a Kiev nem sabiam bem ao que iam… Miúdos inexperientes a quem contaram uma narrativa falsa, a quem não disseram exatamente do que se tratava. Uma “putinice” sem escrúpulos à boa maneira das estratégias soviéticas, em que os fins justificam os meios. Não me consigo rir com a morte extemporânea e desnecessária e sinto o mais profundo desprezo e vergonha alheia por quem o faz, independentemente do lado. Também não consigo compreender os que não condenam veementemente Putin, ao abrigo da argumentação idiota de considerar o Zelensky o responsável pela escalada da guerra, pelo facto de pedir armas para defender a autodeterminação do seu país, acusando-o de usar a própria população como escudo humano. Eu não sei que fontes de informação veem ou leem, mas só podem ser russas! Pior, convencem-se de que a comunicação social do ocidente é toda vendida e que fabricam notícias falsas para prejudicar a Rússia. A grande diferença é que é possível assistir a reportagens “in loco” do que acontece e mesmo que não o fosse, basta olhar para a devastação da Ucrânia, para o país destruído pelos mísseis do país vizinho. Pressuponho que, segundo esta gente, Zelensky deveria ter entregado o país às mãos dos russos, hipotecando a independência, para satisfazer a megalomania “putinesca”! Haja paciência, porque os meus olhos e os meus nervos estão demasiado sensíveis à parvoíce! Não me venham com as vontades dos separatistas, caso contrário, perguntarei por que razão Putin não permitiu a independência dos separatistas chechenos. Nem se aproximem tão pouco com a teoria absurda da desnazificação, quando é o Putin quem apoia candidatos de extrema-direita, pelo mundo fora, quando o movimento de extrema-direita na Ucrânia é pouco significativo. O que Putin não perdoa é o facto de a Ucrânia rejeitar a manápula da Rússia sobre si e escolher a sua liberdade, assumindo o desejo de seguir o caminho da democracia. Pétain capitulou para evitar a guerra e a França perdeu a sua honra e a sua dignidade. Uma pessoa ou um país sem dignidade declina a existência. De Gaulle percebeu-o e agiu. Zelensky sabe-o desde o início. O seu papel na defesa da Ucrânia tem sido extraordinário e o seu nome fica inscrito nas páginas da História. Facto incontornável que não o torna santo ou isento de falhas ou de críticas que lhe possam ser apontadas, porém, é o seu país o invadido e não o invasor. É o seu país o ofendido e que tem todo o direito de se defender. Zelensky tem, neste momento, toda a nação consigo e esta gente valente e exemplar diz ao mundo que dá a própria vida em prol da sua terra e da sua liberdade. Custa-me ainda mais compreender os que defendem tão calorosamente Putin, apesar das atrocidades que nos entram diariamente olhos dentro, o insano cobarde que se esconde atrás das armas nucleares e não tem pejo em ameaçar o mundo com elas.

Putin é um escroque, um ditador cruel que quer alcançar os seus objetivos sem olhar a meios e na base da ameaça. Ele conta com o bom senso dos ocidentais (tão criticados por muitos), que tentam evitar uma terceira guerra mundial. Só por isso o infeliz ainda canta de galo.

Eu lastimo a morte de ambos os lados, mas há a perda de uma vida que me soaria a vitória, a justiça e a paz.

Putin, que as forças do universo se congreguem e te dê Saturno quebranto. Talvez assim a paz fosse restabelecida.

 

Nina M.

 

 

terça-feira, 19 de abril de 2022

Lisboa revisitada

Rememoro agora
Imagens de então
A claridade nua
O espelho de água
Prateada ao Sol quente
A brasear a pele
Gaivotas ao poente

Perpassa Pessoa
Num bulício inquieto
Em busca constante
Da felicidade perdida
Com sabor a infância
Sobre a triste calçada
De que é feita a vida

Assoma Cesário
No lusco-fusco
Vulto num boqueirão
Quem visse a glória
E o épico Camões
Envolto em neblina
O D. Sebastião

Cidade ilusão
Memória de tantos
Morada de artistas
Cabem os poetas
Cabem os fadistas
Cabem os amantes
Num verso de Mourão

Ao virar do tempo
Luz e sedução
Fragmento de alma
Ser em combustão


sábado, 16 de abril de 2022

Crónica de Maus Costumes 274

 

Horrores e irritações

           Creio que o mundo está feito para que dele nos desiludamos, ou seja, para que percamos a ilusão, a fantasia que criamos de que ele é um bom lugar para se viver. Não falo da sua flora nem da sua fauna, enfim, das maravilhas da natureza que contrastam com a vilania do ser humano.

Concordo com Hobbes que afirma que “o homem é o lobo do homem, em guerra de todos contra todos” e, para sobreviver num mundo destes, mantendo a pureza possível, sem grande corrupção de alma, só se nos blindarmos e dele fugirmos. Ensina-me a idade que cada vez necessito menos de conhecer gente, que normalmente não me acrescenta, mas consegue desiludir-me. Sei, no entanto, que a responsabilidade é minha. A desilusão advém da expetativa criada. Quem não espera nada do outro, no sentido de não ter esperança, não saberá o sabor da desilusão. Apesar de todos os avisos de consciência, embora sabendo que o ser humano é um lobo esfaimado do sangue alheio e egoísta, continua a haver gente que me dá esperança, porém, alguns dissipam-na, sem retorno, de seguida, como que quebrando algo dentro de mim.

Estarreci ao ouvir o José Milhazes revelar uma conversa entre um soldado russo e a sua esposa, em que ela lhe dizia que o autorizava a violar mulheres ucranianas, mas que não lho contasse. Que pulhice tão avassaladora! Uma mulher a desejar tamanho mal perpetrado pelo próprio marido, sugerindo-lhe que fizesse essa monstruosidade a outra mulher do país opositor e invadido! A suspensão da humanidade, o parêntese que se coloca num ato criminoso num cenário de guerra é, em si mesmo, aviltante. Prova que o homem está pronto para se desumanizar. Uma vez mais a banalidade do mal. Não é um general, não é um soldado num clima de pressão e de cenário de morte que cede ao ódio e ao descontrolo. É a pessoa comum, vulgar, mulher, e quem sabe, mãe e boa cidadã que o propõe. O mal floresce no homem comum e gera violência. Viver um mundo assim desencanta e talvez seja esse o caminho, o do desencanto, que nos permite aceitar a nossa morte com a naturalidade da idade e a enfrentá-la corajosamente. Talvez com um esgar irónico de quem sabe não perder grande coisa… Fiquei enjoada, enojada, envergonhada por este ser feminino que incita à violência torpe e à submissão da mulher pela força, depois de tantos anos de luta pela emancipação feminina! Ser abjeto e horrível!

Fervem-me, invariavelmente, as entranhas quando confrontada com a maldade gratuita e a injustiça. Fervem-me igualmente as entranhas ao ver mulheres maltratadas, agredidas fisicamente e verbalmente por homenzinhos de palmo e meio, manipuladores de meia-tigela, que inferiorizam, ridicularizam, que incutem às suas mulheres a ideia de inferioridade, levando-as a recear a rejeição e uma possível solidão. Normalmente, são mulheres com baixa autoestima a quem criam a necessidade de lhes agradar e a quem fazem sentir-se culpadas pelo direito à sua liberdade e à sua soberania pessoal. O manipulador apenas atende aos seus interesses e desejos. Para evitar o conflito, a mulher cede aos seus pedidos contra o seu bem-estar interior. A necessidade de paz a qualquer preço deixa-a doente, pois não coloca limites nem declara a suas necessidades. É preciso saber dizer não e, sobretudo, não sentir receio de desiludir. Tantas vezes, estas mulheres são tão melhores e mais capazes do que eles e é precisamente isso que eles não lhes perdoam. Se estes homens são paridos e também educados por nós, mulheres, alguma responsabilidade deveremos ter. Há que criar gente autónoma, capaz de assumir a sua vida, de ser empático com o outro e de com ele colaborar ou ainda correremos o risco daquela mãe que vê o filho a desistir de ingressar em certo organismo, porque a formação era longe de casa e os papás tinham de ir visitar o menino às quartas, mas mesmo assim, não era suficiente, porque lhe faltava o copinho de leite morno que a mãe insistentemente levava à criatura, ao marmanjão de vinte anos, antes de ele se deitar! Já tenho pena da parceira que tiver de o aguentar, porque correrá o risco de estar mais para mãe do que para mulher…

Amo os meus filhos, como todas as mães, mas nesta casa, no final da refeição, levantam o seu prato e, preferencialmente, limpam-no antes de se colocar na máquina. Se querem comer ou beber antes de se deitarem, têm mãos para o fazer! Também limpam o pó ao quarto que lhes pertence. A mãezinha trata-lhes do almoço, do jantar e das roupas e já não é coisa pouca.

Homessa!

 

Nina M.

 

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Pensar

Pensa junto a mim
Pensa comigo

Em voz alta e em uníssono
A partilhar o essencial
A intimidade mais profunda
Um grito de liberdade
Assinalada num poema...

Vem pensar comigo
Tocar o impossível
Agarrar o inalcançável
Libertar o indizível
Num verso perfeito, imaculado

Vem, pensador, pensar comigo
As ânsias da vida antes da morte



sábado, 9 de abril de 2022

Crónica de Maus Costumes 273

  O Pacheco

           Não se trata do Pacheco do Eça, o político que não fazia nada, a quem nunca ninguém vira uma ação avisada, mas a quem todos gabavam a extrema inteligência, tal como a altura da sua testa fielmente afiançava.

            Trata-se de um Pacheco que, afinal, é Azevedo e ninguém sabe explicar porque o tratam por um nome que não é o seu. O senhor tem 88 anos e uma genica de sessenta. Ainda conduz o carro e o trator se for preciso e é ele quem trata da esposa, uns anos mais nova, mas de memória atrapalhada. O senhor Pacheco é a exuberância da aldeia quase abandonada, de uma aldeia votada ao esquecimento e onde as crianças escasseiam. A creche lá instalada veio trazer algum sopro de vida e as crianças das imediações contrastam com a população envelhecida, a maioria dos seus habitantes.

O Pacheco é uma espécie de guardião do tempo, sempre disposto a contrariá-lo. Num espaço onde o tempo parece levar o seu tempo, onde os ponteiros do relógio parecem mudar mais devagar, onde ainda é possível recuperar o ritmo da lentidão, onde nem o marulhar do Corgo chega ao cimo da aldeia, o Pacheco circula lesto, sempre na pressa dos seus afazeres, como se a vida lhe soubesse sempre a pouco, à espreita de um qualquer negócio. Negociante exímio, ele é capaz de falar sem erro dos negócios passados e do dinheiro que deu por determinado pedaço de terreno e por quanto o vendeu. Autodenomina-se, com uma pontinha de orgulho, de “o pobre” por saber que o não é. Soube ganhar dinheiro e foi capaz de formar dois filhos. Um é chefe da equipa de enfermagem no hospital e ligado à política local (bom homem. Não há quem o desdiga) e o outro, o mais novo, um dos mais conceituados ortodontistas da capital de distrito. De modo que não é de estranhar que os olhos azuis e luminosos do Pacheco (ainda conservam o brilho de quem gosta da vida) brilhem de orgulho ao sentir que fez tudo o que estava ao seu alcance pelos filhos. Justiça lhe seja feita. Homem de trabalho e que sempre pensou na família e nos filhos em particular. Os seus descendentes muito lhe devem e serão, certamente, reconhecidos, porque o pai nunca deixou de zelar por eles, mesmo quando já não havia necessidade. Sempre preocupado em proporcionar-lhes uma vida confortável, sente satisfação ao ver os seus descendentes a prosperar. Saberá, certamente, que também é o seu legado.

O Pacheco faz falta à aldeia e ela morreria um pouco mais sem ele. Estabelece a ligação ao mundo, por conta dos negócios e traz as novidades aos habitantes. Se há dito tido como verdadeiro é que o Pacheco sabe sempre de tudo. Distinguiu-se, de certa forma, do resto dos moradores pela postura que teve perante a vida, o que lhe terá granjeado admirações e também algumas invejazitas.

Eu simpatizo com o senhor que sempre me recebeu bem e com certo espanto. Sinto que, de alguma forma, pousa o seu olhar sobre mim com benevolência e acolhimento. Certa manhã de corrida, ainda de rosto mal acordado e de cabelo apanhado, de figura ainda pouco arranjada, sob os primeiros e jovens raios de sol, ele não se conteve e lá deixou escapar o elogio espontâneo, ao fim de muitos anos:

- A tua mulher é mesmo bonita! Vá, botai lá, então - terá acrescentado. De tão inusitado, teremos sorrido todos.

Cisma em tratar-me por madame, num misto de brincadeira e de solenidade e, da última vez, terá ficado um pouco atrapalhado, porque à minha entrada no café, ao lamentar-se de que a madame só estava a cumprimentar certas pessoas e aos pobres (ele mesmo) nem boa-tarde dizia (não tinha ainda tido tempo), eu pedi licença a quem falava e fui cumprimentar o senhor. Pareceu-me que não estava à espera que o fizesse, mas dei-lhe os dois beijos da praxe e também à sua esposa. Nesse pequeno instante, terá ficado o senhor Pacheco um pouco atordoado com a naturalidade do gesto, mas ficou satisfeito por se saber incluído. Lá passou o seu domingo à conversa. Já não deve ter as vacas, caso contrário andaria atrás da bicharada e viu-se obrigado a deixar parte do muito que ainda fazia, dada a situação da esposa, mas é bonito ver o cuidado com que a trata e a tem ao seu lado, agora que ela não pode.

Certo é que o senhor Cândido (esse é o seu primeiro nome) traz tempero à lassidão dominical da aldeia transmontana. A sua alegria e a sua energia povoam o ambiente. Nunca o vi zangado nem sisudo. Eu observo-o, sorridente, e cuido que ele é o mais jovem de todos.

 Nina M.

 

 

 

Silêncios

Gosto do silêncio matinal
E do que se prolonga dia fora
Entrecortado pelos pássaros
A anunciar a aurora

Não me constrange ou inquieta
Gosto do seu conforto
Do som dos meus silêncios
No fundo do meu ser absorto

Nem sempre há o que dizer
Momentos de pleno respirar
De uma alma abrupta e faminta
Que em si se quer resguardar

Procuro os meus silêncios
As minhas ausências paradas
O meu olhar perdido
Longínquo ao fim da estrada

A pairar sobre o mundo
Sobre a sua brutalidade
Desejar em silêncio profundo
O retorno da humanidade

Um longo suspiro...
Tudo quanto me sai
Em silêncio me lembrei
De tudo o que na alma vai




terça-feira, 5 de abril de 2022

Gosto de olhar o olhar

Gosto de olhar o olhar
Antever-lhe o sorriso
E nele mergulhar

Ver além da cor
Dos raios e da córnea
Adivinhar o Amor

No brilho que brota
Sentir o ardor
No corpo a derrota

A rendição benigna
Suave e inteira
De uma alma digna

Livre e verdadeira

sábado, 2 de abril de 2022

Crónica de Maus Costumes 272

 

Feminilidades

                A mulher é um ser extraordinário e só ela poderia albergar o verbo que se fez carne. A grande maioria vem com a capacidade e a vontade de albergar novos seres dentro de si, que expelem no momento certo, não sem dor nem sacrifício.

            É, assim, ao sexo fraco que cabe a função de gestante e de parideira, olhada como missão menor pelas sociedades patriarcais. Irrito-me com comportamentos retrógrados, infundados e reveladores de inseguranças masculinas que temem a força e a determinação femininas.

            Na cultura ocidental, há já muito ficou para trás a ideia de que a mulher se deveria cumprir no lar e na criação dos filhos. Aquelas que o decidem fazer, estão no seu pleno direito, desde que se sintam realizadas e que essa seja a sua escolha, mas querer impingir esse modo de vida a quem não o deseja seria inaceitável. Hoje, felizmente, há já respeito e maior cooperação e equilíbrio na distribuição das tarefas domésticas. Os homens começaram a compreender a injustiça que as primeiras mulheres trabalhadoras tiveram de suportar. Na ânsia de emancipação, essas primeiras guerreiras tiveram que se bater para conseguirem a independência financeira em relação aos seus pais ou aos seus cônjuges e ganharam inúmeras horas de trabalho, pois para além da profissão, ainda cumpriam com as tarefas domésticas, que se entendia ser trabalho de mulheres. As mudanças foram lentas e as mulheres da minha geração, apesar da maior abertura com que foram criadas, ainda estiveram sujeitas a uma cultura demasiado patriarcal, principalmente, nos meios rurais. A minha tia dizia sempre que o mundo era dos homens, mas para ela a mulher exemplar era a que o acompanhava e o auxiliava nas conquistas, partilhando os seus desejos, enquanto dirigia tudo na casa, com os seus oito tentáculos e onde tudo funcionava a tempo e a horas. Por muito apreço e admiração que sempre tive por ela, neste ponto em particular, não podia estar de acordo. O desejo de companheirismo e de parceria é compreensível, mas a anulação de si para que o outro brilhe, não é admissível nem desejável. E faltava muito equilíbrio…

            Essa geração de mulheres, onde a minha mãe se inclui, era a que se levantava cedíssimo, mesmo de inverno e, antes de ir para o ofício, deixava uma bacia de roupa lavada à mão, no tanque, e estendida no arame. Foram as que criaram os filhos com as fraldas de pano que tinham de ser lavadas em água bem quente, com sabão-rosa, e postas a corar para que o branco permanecesse imaculado, apesar das urinas e dos dejetos mal cheirosos. Não me lembro de as ver descansar, entre o fogão, a roupa, o ferro, o arrumar da cozinha… Dia após dia… Depois, o mundo era dos homens! Não. O mundo nunca foi deles, porque elas contribuíram bem mais, apesar de sempre ficarem na sombra e encararem essas tarefas como parte da sua natureza.

Ouvia, em criança, as histórias contadas pelos homens, a do passeio que foram dar ao Porto para mostrar a ponte D. Luís à Eva, uma camponesa com muitos filhos, que nunca a tinha visto e que levou o farnel, numa ceira, à cabeça. Enquanto ela transportava de costas muito direitas, habituada à carga e ao jugo, tão forte quanto a junta de bois que lhe carregava as espigas do milho, o marido, o Claudino e os que o acompanhavam, seguiam à frente, como chefes de família, libertos de pesos desnecessários e prontos a satisfazer-se com as iguarias pela Eva preparadas. Como se fosse tudo muito natural. Lembro-me de ouvir estas conversas de adultos e de eles rirem à gargalhada com o medo dela, que soltava impropérios por temer pela vida, ao atravessar a ponte, enquanto os seus olhos alcançavam as funduras do Douro, que serpenteava pelo meio do casario e implorava pelo regresso e pelos seus bois que não tornaria a ver… A Eva, certamente, mulher bem terrena não saberia que o voo e as alturas causam vertigens.

Eu, criança, ouvia atentamente. Sempre houve coisas que me captavam total atenção e outras que juraria nunca me terem sido ditas… Sempre gostei de histórias e elas sempre se resguardaram na minha memória… Lembro-me de pensar que não queria ser uma Eva. Eles a rirem-se do medo dela e eu só a imaginá-la vermelha e grotesca do esforço despendido, a arfar e o suor a escorrer-lhe por baixo da rodilha que amparava a ceira. A Eva… redonda como um tonel, de pernas másculas, dois pilares, de tronco varonil e de avental à cinta, sempre nos trabalhos árduos do campo, na criação dos filhos e dos afazeres da casa…

A minha infância está povoada de mulheres assim, de uma valentia admirável e, no entanto, submissas e devotas aos seus maridos, provedoras do seu bem-estar… E lá as ouvia desabafar que se soubessem, não teriam casado (exceto a minha tia, que perdeu o marido cedo e lhe sentia a falta. Nunca a ouvi lamentar-se do seu. Só da sua ausência).

 Qual Inês Pereira que procura a emancipação e encontra a prisão! Pudera… Por mais amigos que os maridos fossem, a verdade é que o trabalho as sobrecarregava e atendiam as solicitações do esposo e da pequenada (que naquele tempo recebia a atenção só depois do patriarca) e não sobrava tempo para si mesma. Anulada à não existência. Um sopro que servia todos e se extinguia.

Um infortúnio! E sei que jurava baixinho nunca ser uma Eva e que talvez um marido não fosse lá coisa que prestasse para muito…

 

Nina M.