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sábado, 21 de abril de 2018

Crónica de Maus Costumes 79

Crónica de Maus Costumes 79

        
Esta crónica surge inspirada pelo bodo aos pobres, tradição secular no nosso país, que se arrastou até aos inícios do século XX e que ainda hoje subsiste numa nova roupagem. Ao que parece, este gesto caritativo terá sido introduzido no nosso reino no século XIII, pela mão da nossa rainha Santa Isabel, do milagre das rosas.

Todos lhe reconheciam a generosidade que praticava às escondidas do seu marido, El-rei D. Dinis, mais amante dos prazeres da vida do que dos pobres. Assim, enquanto el-rei se elevava no seu tanger de trovador e nos deixava um legado literário, no que na lírica trovadoresca diz respeito, a sua mulher distribuía dinheiro, alimentos, vestuário e até palavras de consolo. Fosse na era moderna e seria capaz de destronar a princesa Diana, a quem foi atribuído o cognome de “princesa do povo”.

Desta forma, a distribuição de alimentos, dinheiro e roupa em dia de festa tornou-se prática comum, uma forma de aqueles que mais tinham ostentarem a sua profunda benignidade e espalharem amor ao próximo.

Consequentemente, o que terá começado com uma vontade genuína, altruísta, desinteressada e oculta transformou-se em feira das vaidades. Ironicamente, parece que até dava jeito perpetuar a miséria para que pudesse haver pobres a quem deitar a mão e ungir o peito de palmadinhas e orações bem-intencionadas. Assim se distingue a caridade da caridadezinha e percebemos a riqueza da nossa língua, que através de um sufixo é capaz de diminuir o brilho da palavra mais impoluta. A caridade é elogiável, mas a caridadezinha é deplorável. Ser-se bonito é admirável, mas ser-se bonitinho é apenas uma esmola para o ego. Ser engraçado é apreciável, mas ser engraçadinho é uma tristeza e poderíamos continuar incessantemente, porque os exemplos abundam.

A verdade é que para o miserável, o resultado prático da caridade ou da caridadezinha com hora marcada era exatamente o mesmo: em dia de festa, a saciedade do bandulho ficava assegurada e, com um pouco de sorte, talvez tivesse direito a um casaco ou sapatos em bom estado. Não é mau, ainda que as razões que a motivam possam não ser afinal tão nobres, porém, caridade seria conseguir proporcionar as condições necessárias para que os pobres ascendessem a uma dignidade a que todo o ser humano deveria ter direito. Matar a fome ao pobre durante um dia, não lhe resolve os problemas para o resto do ano, mas dar-lhe um trabalho justamente remunerado, que lhe devolvesse a autoestima, talvez fizesse toda a diferença.

Triste é constatar que a caridadezinha continua por aí à solta, em pleno século XXI. Sobreviveu à Monarquia, foi resgatada na República, atravessou o Estado Novo e insiste em acompanhar-nos no virar do século. É mais fácil fazer-se um donativo digno de fazer arregalar os olhos ao maior desprendido uma vez no ano do que repartir com os empregados uma parte dos lucros que eles ajudaram a gerar, por exemplo. Em vez da referida recompensa, prefere-se premiar os funcionários com o bolo-rei já acostumado ao Natal ou então, para quem é das mãos largas, um fausto cabaz de meter inveja!

A tudo isto o pobre agradece, desfazendo-se em humildes vénias, porque a ingratidão dos que nada têm é um desaforo difícil de engolir.

Só ainda não decidi se o texto é uma provocação ou uma provocaçãozinha! Decida o leitor ou o pobre como mais lhe convier…


Nina M.






























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