Esta crónica surge inspirada pelo
bodo aos pobres, tradição secular no nosso país, que se arrastou até aos
inícios do século XX e que ainda hoje subsiste numa nova roupagem. Ao que
parece, este gesto caritativo terá sido introduzido no nosso reino no século
XIII, pela mão da nossa rainha Santa Isabel, do milagre das rosas.
Todos lhe reconheciam a generosidade
que praticava às escondidas do seu marido, El-rei D. Dinis, mais amante dos
prazeres da vida do que dos pobres. Assim, enquanto el-rei se elevava no seu
tanger de trovador e nos deixava um legado literário, no que na lírica
trovadoresca diz respeito, a sua mulher distribuía dinheiro, alimentos, vestuário
e até palavras de consolo. Fosse na era moderna e seria capaz de destronar a
princesa Diana, a quem foi atribuído o cognome de “princesa do povo”.
Desta forma, a distribuição de
alimentos, dinheiro e roupa em dia de festa tornou-se prática comum, uma forma
de aqueles que mais tinham ostentarem a sua profunda benignidade e espalharem
amor ao próximo.
Consequentemente, o que terá
começado com uma vontade genuína, altruísta, desinteressada e oculta
transformou-se em feira das vaidades. Ironicamente, parece que até dava jeito
perpetuar a miséria para que pudesse haver pobres a quem deitar a mão e ungir o
peito de palmadinhas e orações bem-intencionadas. Assim se distingue a caridade
da caridadezinha e percebemos a riqueza da nossa língua, que através de um
sufixo é capaz de diminuir o brilho da palavra mais impoluta. A caridade é
elogiável, mas a caridadezinha é deplorável. Ser-se bonito é admirável, mas ser-se
bonitinho é apenas uma esmola para o ego. Ser engraçado é apreciável, mas ser engraçadinho
é uma tristeza e poderíamos continuar incessantemente, porque os exemplos
abundam.
A verdade é que para o miserável,
o resultado prático da caridade ou da caridadezinha com hora marcada era
exatamente o mesmo: em dia de festa, a saciedade do bandulho ficava assegurada
e, com um pouco de sorte, talvez tivesse direito a um casaco ou sapatos em bom
estado. Não é mau, ainda que as razões que a motivam possam não ser afinal tão
nobres, porém, caridade seria conseguir proporcionar as condições necessárias
para que os pobres ascendessem a uma dignidade a que todo o ser humano deveria
ter direito. Matar a fome ao pobre durante um dia, não lhe resolve os problemas
para o resto do ano, mas dar-lhe um trabalho justamente remunerado, que lhe
devolvesse a autoestima, talvez fizesse toda a diferença.
Triste é constatar que a
caridadezinha continua por aí à solta, em pleno século XXI. Sobreviveu à Monarquia,
foi resgatada na República, atravessou o Estado Novo e insiste em
acompanhar-nos no virar do século. É mais fácil fazer-se um donativo digno de
fazer arregalar os olhos ao maior desprendido uma vez no ano do que repartir
com os empregados uma parte dos lucros que eles ajudaram a gerar, por exemplo. Em
vez da referida recompensa, prefere-se premiar os funcionários com o bolo-rei já
acostumado ao Natal ou então, para quem é das mãos largas, um fausto cabaz de
meter inveja!
A tudo isto o pobre agradece,
desfazendo-se em humildes vénias, porque a ingratidão dos que nada têm é um
desaforo difícil de engolir.
Só ainda não decidi se o texto é
uma provocação ou uma provocaçãozinha! Decida o leitor ou o pobre como mais lhe
convier…
Nina M.
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