A salgalhada do Dec-lei nº 54/2018, de 6 de julho
Tentarei dar voz
à angústia de uma colega, que sei ser partilhada, por já o ter sentido na pele.
Dizia que ninguém abordava o tema, que não se falava sobre o assunto e que era
necessário que o fizéssemos.
Dava conta do seu
sofrimento por ter de acompanhar um menino NSE, antes NEE (para os mais
distraídos, já não temos alunos NEE, mas antes com necessidades de saúde
especiais) com uma problemática para a qual não se sentia com competência para
lidar. Eu e todos os meus colegas que já tiveram de fazer o mesmo compreendemos
perfeitamente o desespero e a impotência.
Ao longo da minha
carreira, que conta já mais de vinte anos, já tive meninos com atrasos
cognitivos ligeiros (o problema mais comum e talvez o menos difícil de lidar) e
severos, de difícil gestão… Cegos, surdos, alunos com trissomia 21, com
espectro de autismo, com esclerose múltipla e sei lá o que mais. Não tenho
qualquer formação em Educação Especial e, perdoem-me a franqueza, não quero
ter. Já foi uma via para efetivação célere de professores e nunca o quis fazer.
Estive exatamente vinte anos a contrato, mas nem essa situação precária me
motivou a tirar tal especialização. Não quero ser mal interpretada e quem me
conhece sabe que nessas circunstâncias, quando tenho esses alunos especiais,
faço o que melhor posso e sei fazer, dentro do que a minha sensibilidade
(porque sei que a tenho) me aconselha. No entanto, por que razão se há de
colocar professores sem formação na área a lidar com estes meninos, que
necessitam e merecem os profissionais mais qualificados? Por razões meramente
economicistas, obviamente. A já conhecida mania da tutela de querer fazer omeletes
sem ovos e mais com menos!
Já lecionei uma disciplina intitulada Atividades
para a Vida Diária. Cheguei a sair da escola com os meninos, a levá-los à
mercearia mais próxima e pô-los a fazer compras, pagamentos e receber trocos.
Evidentemente, as compras pagava-as eu e lá ficava com os produtos; levava-os à
cantina para dobrarem guardanapos e prepararem os talheres para as refeições,
fazia bolos e lanches e passeios pelas imediações da escola, brincava com jogos
que desenvolvessem o raciocínio, insistia semana após semana na escrita do
nome, fazia jogos no computador e ensinava a enviar e-mails. Dois deles não
conseguiam aprender, enfim… Semana após semana a inventar o que fazer, a
repetir tarefas, enfim, a tentar fazer bem… sabem uma coisa?! Detestava!
Gostava das crianças, que sei que se afeiçoaram a mim. Era carinhosa e
dava-lhes todo o mimo e atenção, mas detestava ter estas funções!
Eu gosto de
ensinar. Particularmente, Literatura. É com alunos do secundário que me sinto
mais feliz e realizada, porque é nessa faixa etária em que se começa a falar de
Literatura com outra propriedade, que é o prazer que a escola ainda me reserva…
Perdoem-me, mas não fui preparada para acompanhar meninos com patologias
significativas, apesar da minha boa vontade, quando tenho de o fazer! E, muito
sinceramente, não deveria ter de o fazer! Nem eu nem qualquer outro colega sem
formação. Do meu plano curricular, nunca constou qualquer cadeira que me
tivesse preparado para tal! As minhas meninas surdas não tinham intérprete na
sala de aula! Só tinha de lecionar Gil Vicente e Camões! Porventura, seria eu
obrigada a saber Língua Gestual Portuguesa?! A sensação de impotência é
terrível, porque tinha a plena consciência de que a aula não lhes chegava, apesar
de estarem, obviamente, na carteira da frente e de, supostamente, serem capazes
de ler os lábios… Também não era o colega de Educação Especial que lhes ia
explicar “Os Lusíadas”, se não era professor de Português, nem tinha competência
para o fazer!
Façamos uma reflexão séria, porque isto é brincar com os pais e com as
próprias crianças. É fingir uma inclusão que nada tem de inclusiva. É um
brincar ao faz de conta que me transtorna e me indigna! Há muito que estes pais
deveriam mobilizar-se para exigirem profissionais habilitados e todos os meios
para que as escolas possam trabalhar adequadamente com os seus filhos! A tutela
não pode querer uma escola inclusiva, mas que o é só para inglês ver. Atenção!
As escolas fazem o que têm ao seu alcance para suprir essas lacunas e
necessidades, mas talvez, numa ação concertada, estivesse na altura de fazer
certas exigências, juntamente com os pais e também nós, professores, como por
exemplo, a colocação do número necessário de docentes com habilitação para
lidar com estas problemáticas e que possam orientar, implementar e lecionar os discentes
que apresentam um Programa Educativo Individual e/ou um Plano Individual de Transição.
Dizer no Artigo 3º que são princípios orientadores da educação
inclusiva:
a) Educabilidade universal, a assunção de que todas as crianças e
alunos têm capacidade de aprendizagem e de desenvolvimento educativo;
b) Equidade, a garantia de que todas as crianças e alunos têm acesso
aos apoios necessários de modo a concretizar o seu potencial de aprendizagem e
desenvolvimento;
c) Inclusão, o direito de todas as crianças e alunos ao acesso e
participação, de modo pleno e efetivo, aos mesmos contextos educativos;
d) Personalização, o planeamento educativo centrado no aluno, de modo
que as medidas sejam decididas casuisticamente de acordo com as suas
necessidades, potencialidades, interesses e preferências, através de uma
abordagem multinível; […]
Para
no Artigo 10º, no ponto 7, dizer-se que “as medidas adicionais são operacionalizadas com os recursos
materiais e humanos disponíveis na escola, privilegiando-se o contexto de sala
de aula”, não é mais do que atirar toda a responsabilidade para as escolas, sem
lhes atribuírem os meios necessários, sugerindo a implementação de sinergias
com as autarquias e outras entidades, no sentido de proporcionar a educação
inclusiva, prevista e regulamentada no Decreto-lei nº54/2018, de 6 de julho. Se
isto não se tratar de retórica falaciosa, peço a um colega de Filosofia (e
conheço alguns) que me corrija o erro, porque tenho humildade suficiente para
poder aprender!
A ti, Isabel, que sugeriste a escrita do texto,
ainda que a minha voz não chegue longe e, portanto, seja absolutamente inócua,
espero ter conseguido reproduzir as tuas preocupações, que são também as minhas
e as de muitos.
Estas crianças merecem respeito! Já agora, os professores
que tentam fazer o seu melhor, também!
Nina M.