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quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Doze passas

 Ano velho que acabas
Em pandemia e solidão
Não repitas a receita
Deixa respirar a emoção
A renovação de ano
Exige a presença da esperança
A cura da fome e da sede
O resguardo da criança

Ano velho que acabas
Em sinal de desgraça
Permite a paz e a justiça
Ao virar de cada esquina
Sem mentiras nem ódios
A fraternidade benigna
Afasta a usura rapace
Que a todos contamina

Ano velho que acabas
Sem lista de intenções
Porque sempre o Homem erra
Falha nas suas ações
Só lhe interessa o mercado
O poder e o dinheiro
Para alguns irem a Marte
E o pobre fique prisioneiro

Ano velho que acabas
E renasces sempre igual
Sempre com a mesma injustiça
Por todo o lado se vê o mal
Para quando  a eterna luz
Da evidência que a paz seria
Para quando o Amor
Adiado em cada dia?

Ano velho que acabas
E recomeças sempre igual
Deixa o sonho que matas
Deixa a esperança divinal







sábado, 18 de dezembro de 2021

Talvez amanhã

Talvez amanhã 
Quando vier a hora
Da despedida do mundo
Possa ceder ao cinismo
Dizer que a vida
É sopro com sabor a fel
E o homem lobo do homem
Faminto de sangue e de desgraça

Talvez amanhã
Quando vier a hora
De fechar os olhos
E do sono profundo
Me sobres na memória
As carícias e os beijos
De um tempo são
Num mundo cruel

Talvez amanhã 
Quando chegar o dia
Do juízo final
Em minha defesa
Diga que amei afinal
A vida e o homem
Num tempo insano
Num mundo doente

Talvez amanhã
Em legítima defesa
Sobeje apenas Amor

Crónica de Maus Costumes 259

 

O final de período e as  burocracias exigidas

         São vinte e uma e trinta da noite e, depois de uma tarde a tratar de papelada para as avaliações, a começar às quinze, com um intervalo de uma hora para lanche e  e outra para jantar, finalmente, dedico-me ao ritual de sábado à noite. Seria bom que tivesse ficado por aqui, mas não. Amanhã, espera-me a preparação efetiva da minha reunião de direção de turma. Por isso não é de estranhar que qualquer professor prefira não ter direções de turma, um papel de base da pirâmide, mas sem eles, os diretores de turma, as escolas não funcionariam. Tudo passa por eles, do menos importante ao mais importante. Tanto pode solucionar problemas, como agravá-los, dependendo da sua competência e da sua boa vontade.

            Com as relações interpessoais, isto é, a relação com os miúdos e os seus encarregados de educação, posso eu bem e não me custa fazê-lo, mas os papéis… Isso é penoso! Por mais que os verifique há de haver sempre uma distração, até porque se for preciso leio o que quero e o que pensei e não o que ficou escrito…

Em casa, dizem-me constantemente que, normalmente, eu sou distraída e que, às vezes, concentro-me. Por isso é muito fácil encontrarem o azeite no frigorífico, o tomate triturado no armário e o espremedor das laranjas, o pincel de silicone e outros utensílios onde não era suposto estarem, já depois de desesperar por não os encontrar… Tenho o meu momento de fingir indignação, porque isto… Uma pessoa tem de manter a sua dignidade, ora bolas, vejam lá, já não pode alguém distrair-se… Já nem me ligam… Abanam simplesmente a cabeça e sabem de imediato quem é o autor do engano… De modo que números, grelhas e quadrados são um horror para quem tem a cabeça tantas vezes ocupada com palavras, pensamentos e versos…

                Deixemos, porém, estes meus desvarios sossegados, porque não são eles o motivo da crónica. Refletia sobre a informação que tinha de verter para avaliar os alunos no início até meio da minha carreira (já lá vão vinte e três anos). Concluo que a única vantagem é o facto de fazermos as atas e as pautas em computador, porque aquilo, quando havia um engano, Deus me livre! Mais um lençol manual, porque não podia haver rasuras… Um trabalho de minúcia que me esgotava, porque não me podia enganar nem nos números nem nas cores das canetas (vermelho para as faltas injustificadas), tudo contado e registado à mão, em papelinhos! Eu trazia logo três lençóis, porque não sei se alguma vez consegui fazer alguma pauta imaculada à primeira! Irra! As atas eram outro tormento, mas aí, paciência, lá vinha “o digo” e siga a banda!… De facto, hoje, este trabalho está bastante facilitado, mas como sobra tempo, logo se inventaram outros… Para avaliar um aluno, hoje, preciso de preencher uma grelha com seis separadores distintos e alguns destes também se encontram subdivididos com diversos parâmetros. Antigamente, eu fazia três contas, olhava bem para o número que daí resultava, pensava no aluno e na sua prestação e comportamento em sala de aula, com a ajuda de alguns registos e voilà, eis a nota! Hoje, para chegar ao mesmo resultado, em rigor, preencho entre 18 a vinte células para atribuir uma classificação. Há, atualmente, uma necessidade de quantificar tudo com rigor, mesmo o que não é quantificável… O que deve distinguir a atribuição de um sessenta ou de um sessenta e cinco no empenho, por exemplo? Não me venham falar em registos quotidianos das vezes que um aluno interrompeu a aula, se virou para trás, perturbou o colega, etc., porque ou trabalho com os meninos seriamente ou passo a aula a registar essas informações, tal a regularidade com que elas se repetem, especialmente no básico… Sabemos se o aluno é perturbador ou não, mas delinear se é para trinta e cinco ou quarenta é… Como dizer isto?... Por conta da perceção… Eu gosto mais de números redondos, por exemplo… Como se quantificam e medem dados de alguma subjetividade? Subjetivamente, como é óbvio… Não valeria mais assumi-lo?! É como me pedissem para quantificar o amor que tenho pelos filhos e o colocasse numa grelha, de acordo com certas variáveis. Por isso era bem mais fácil quando um aluno apresentava uma média objetiva de quarenta e cinco e ao analisar subjetivamente o saber estar (fraco, insuficiente, suficiente, bom e muito bom) podíamos decidir se essa percentagem se transformava num nível três ou permanecia nível dois. Justo e mais honesto, na minha perspetiva. Esta burocracia aparvalhada consome a alma de quem tem de a pôr em prática… Sem falar das medidas para todos os meninos que ficam aquém dos resultados pretendidos… Só hoje, já foram vinte e três papéis… Digitais, mas papéis…  Avaliaria mal naquele tempo? Não cumpriria com o que faço agora? Não me parece. Fazia de igual forma, só não ficava registado em lado nenhum, porque o professor está na sala de aula para trabalhar e assumia-se que assim fosse. Não é um papel preenchido que comprova o que quer que seja.

Na verdade, o sucesso aumentou e o abandono escolar tornou-se diminuto, mas saberão mais e melhor os nossos alunos?! Francamente, não sei dizer… Não escrevem melhor hoje do que antes… A prova está no que lemos nas redes sociais. Das gerações mais novas às mais velhas, aquilo é o degredo! A diferença é que os mais velhos têm o quarto ano e os mais novos o décimo segundo. São mais oito anos de escolaridade para uma escrita semelhante e isto deveria fazer-nos pensar… Ou assumimos que mesmo a língua materna é para ser mais falada do que escrita e, então, aceitamos tranquilamente o definhar anunciado da língua escrita de Camões ou algo deve mudar substancialmente… Nem o acordo ortográfico com a supressão grosseira dos “c” e dos “p” nos poupa ao descalabro!

Este é o argumento que utilizo quando me dizem que os alunos escolhem as humanidades por ser mais fácil. Respondo que essa facilidade explica o facto de a população portuguesa escrever tão bem a sua língua e de a escola estar recheada de ótimos alunos a Português! Já agora, um banho de latim, para além da gramática, também não faria mal a ninguém para perceberem as facilidades…

 

Nina M.

sábado, 11 de dezembro de 2021

Crónica de Maus Costumes 258

 

O valor da amizade

                 Ser-me-á fácil escrever esta crónica. Nem todas são assim. Há textos que exigem mais pensamento. Esta sair-me-á toda do coração e será sentimento à flor da pele (deixem-me dizer que já me explicaram que os sentimentos e emoções não são irracionais e eu aprendi a lição). Talvez convenha também esclarecer a diferença entre emoção e sentimento. A primeira é uma reação a um estímulo ambiental e é de curta duração; já o sentimento é mais duradouro e pode ser desencadeado pela emoção.

            No último domingo, vivi emoções que permitiram o reavivar do sentimento de amizade. Encontrei pessoas que já não via há muitos anos, desde os tempos da universidade e, apesar de sempre me parecer que foi ontem, já lá vão 23 anos após a saída. O reencontro desabrochou a emoção da alegria, que permitiu a vivência da amizade. Senti-me como o gigante Pessoa, ou melhor, o seu Álvaro de Campos, e fui capaz de resgatar o passado e de trazê-lo na algibeira. Tal como ele, não o posso recuperar totalmente nem fundir-me nele, mas também não é esse o objetivo, porque tudo tem o seu tempo e a felicidade também tem o seu. Porém, ao evocar o passado, ocorre-me a pergunta do ortónimo: “E eu era feliz? Não sei:/Fui-o outrora agora”, com a diferença de saber que fui feliz outrora e agora, no preciso momento do reencontro, essa centelha brilhou. Julgo não me enganar se disser que a comoção varou-nos a todos. A alegria e o enternecimento genuínos por nos revermos foram notórios. E saímos, como todos afirmámos, de coração cheio e com vontade de prolongar e de repetir em tempo mais quente. As cinco horas souberam a pouco para curar a saudade.

Estes reencontros comportam riscos. Nenhum de nós é mais o mesmo. Todos crescemos, todos somos seres diferentes dos que se conheceram há mais de vinte anos e poderíamos pensar que afinal (e seria uma desilusão) já pouco tínhamos em comum. Se tal acontecesse, essa nova visão mancharia a memória… Não houve nada disso. Voltamos a ser o grupo que se reunia diária e invariavelmente no Café Universidade, no Metrópolis e na Ritmin. E foi tão especial rever-vos e sentir-vos intocados, apesar de tudo…

Encontrei a mesma tranquilidade no Armando, a mesma reserva (apesar de massacrado pela vida. Beijinho para ti); a mesma educação, o olhar malandro, mas terno do Zé; a alegria espontânea e marota do Banito; o sentido de humor oportuníssimo do Agostinho, que nos punha as entranhas a doer de tanto rir (creio, Tinoco, que deverias pensar em fazer “stand up comedy”. Tinhas futuro). Vê lá… Eu pagaria bilhete para te ir ouvir, depois de tantas borlas que já ofereceste! A simpatia e a alegria da doutora que adorava a praxe, mas que afinal não me praxou (as caloiras de Paços de Ferreira eram feitas de outra massa)! Agora, esquece, Isabel, perdeste a oportunidade. Se não foi então que me levaste para a prancha da Ritmin (Deus me livre! Morreria de vergonha!) também não será agora… Qualquer coisa, volto a engrampar alguém… Desculpa, Paulinha, foste um mero dano colateral… A Célia, a caloira tardia e simpática, mas que se adaptou rapidamente e que trabalhava no Até Tu e dava umas borlas à malta… A Isabel Soares, que não conheço tão bem, mas que se foi a eleita do coração do Tinoco, só pode ser boa rapariga… Faltaste tu, Bela, por impedimentos maiores, e foi uma pena, mas esperamos-te no próximo encontro.

Quero dizer-vos que sois as “minhas pessoas” da UTAD. Aquelas com quem partilhei anos de inocência, de ingenuidade e de felicidade, porque o meu olhar sobre o mundo ainda era límpido e não estava desesperançado da humanidade. Agradecer-vos o facto de sempre me ter sentido acarinhada por todos, por me ter sentido sempre protegida, enfim, por terdes sido a minha família na ausência dela. Era assim que vos via. Tinha a mania de colecionar tudo das pessoas de quem gostava e que cheguei a ter o meu quarto forrado a papéis com escritos vossos (na maioria parvos, diga-se) e que guardei por uma infinidade de tempo, até amarelecerem e não ter jeito nenhum guardá-los mais, porque se assemelhavam aos apontamentos envelhecidos, de Literários (aulas teóricas) da professora Laura Bolger (já nem me lembro se é assim que se escreve o apelido da senhora) e fazer um esforço descomunal para os pôr no lixo… Um grupo coeso e alegre, onde cabia a brincadeira, mas onde nunca coube a mesquinhez e, talvez por isso, continue a fazer todo o sentido falar de amizade, passados todos estes anos. Dizer-vos que muitas outras pessoas passaram por mim ao longo do meu trajeto, mas foram poucas as que se inscreveram com tamanha importância na minha memória e no meu coração e eu sei a razão: crescemos juntos uma data de anos, numa idade em que tudo ainda era possível, mas sobretudo, porque nunca nenhum de vós me feriu ou desiludiu.

O texto não é muito, mas é a melhor homenagem que vos consigo fazer, porque vos sou grata pelo tanto que me destes, porque me fizestes sentir sempre acarinhada. Escusado será dizer que é recíproco. Como diz a letra da música: “Para sempre no meu coração”.

 

Nina M.

Testamento


É para vós que escrevo, filhos,
Carne da minha carne
Sangue do meu sangue
Amor eterno além da morte
Além de qualquer existência
Único amor possível de sentido único,
Tomei a decisão de um dia ser cinza.
Não quero a podridão lassa e vagarosa do tempo
Não quero a sepultura desossada do meu corpo
Se é destruição, tornai-a rápida e indolor
Sem tetos sobre mim
Apenas o esparzir de cinzas como quem
Ingere ambrósia ao sol poente
Na magia de um dia feito
Não gosto de tetos baixos
Nem de espaços exíguos
Claustrofóbicos...
Espalhai-me sobre o mar calmo ou revoltado do entardecer
Sobre o verde de um qualquer bosque mágico
Criai a ilusão de que das cinzas surge a fénix
Devolvei-me à liberdade que a vida retira...
Liberto-vos da obrigação da visita tumular
Da colheita da rosa para pôr sobre o túmulo asfixiante e deprimente
Da pedra estanque e amorfa
Acabaria em tristeza e em nada
Seja eu espírito vivo em vós e por vós na palavra
Sem ritos ou mágoas ...
Apenas palavra sentida
Palavra rendida
Apagada na cinza do meu ser
Livre na vossa liberdade

sábado, 4 de dezembro de 2021

Crónica de Maus Costumes 257

 

Cinismo

Não sou cínica. Sei que não sou e jurei não me render ao cinismo e, no entanto, na sua versão camuflada, talvez ele aproveite qualquer brecha para se instalar no coração, por força da racionalidade que me assiste.

Não gosto do cinismo, porque ele corrói o ser humano, em última instância, pode torná-lo implacável e desesperançado e quem tem poesia a correr-lhe nas veias, sinónimo de beleza, ver-se tomado por ele, é perturbador. O cinismo é parente do pessimismo. Talvez seja o pessimismo levado ao extremo, por descrença no ser humano. Vês, Gabriela Torres, o motivo pelo qual a descrença no ser humano é pior do que um glúteo descaído? Contra a lei da gravidade que aflige as mulheres a partir de certa altura, não faltam sugestões de tratamentos. Em última instância, o silicone resolve (há quem diga que faz milagres em várias partes do corpo). Como nunca experimentei e sou demasiado forreta para torrar dinheiro em coisas dessas, não me resta outra solução além de me aceitar com o que a natureza me dotou e também com o que me deixou em falta e ver, sem grande remédio, a idade a atuar… Desde que os neurónios não fulminem… É tudo quanto desejo, porque no dia em que as sinapses deixarem de estabelecer as conexões devidas, morrerei, mesmo que esteja viva. Isso é mais preocupante do que os vários riscos na testa, os parênteses do sorriso e a flacidez da carne. Interrogo-me como será para quem vive muito obcecado com o envelhecimento, porque um dia, por mais invenções extraordinárias que surjam, a velhice também chegará e deve ser um sarilho pensar que todo o esforço para manter a juventude foi em vão e que já não há cirurgia plástica que resolva tamanho drapeado nas pernas, nas costas e nos braços. Isto se vivermos até lá, obviamente… De maneira que tento ocupar o tempo e a razão com a substância que me possa nutrir também na velhice. Apodreça o corpo, mas não apodreça a alma! O que acabei de escrever não é cinismo. Considero realismo, não vislumbro nem uma pontinha de pessimismo. Se o encontrarem, será caso para dizer que a culpa é do tempo. Faz coisas destas à juventude…

Dizia, então, que o cinismo começa com a descrença e é o que eu sou. Uma descrente na humanidade, porque só um ingénuo ou um idiota pode considerar a humanidade bela.  Escuso-me a dar exemplos. Desde sempre assistimos à maldade e à crueldade entre os semelhantes da nossa espécie, em nome do poder, do dinheiro e da paixão (não digo Amor, porque este tem de, forçosamente, excluir toda a maldade). E isto incomoda-me terrivelmente, incompreensivelmente. É doloroso constatar que o que me parece tremendamente evidente não o seja para todos e a clarividência faz-se disto: entre escolher o bem ou o mal do outro, devo optar pelo primeiro. Porém, a jornada coletiva observada é desoladora, quer nas relações mais próximas, quer nas relações globalizantes de que o mundo de hoje é feito. Perante a perda do olhar virginal perante o globo, a descrença instala-se. Esta instalou-se há muito, mas tento evitar o cinismo, ainda que a espaços ele me visite. Combato-o com a crença de que a humanidade está falida, mas de que ainda há exemplos de homens bons que, às vezes, mudam o curso da História. Ocorrem-me vários: desde logo Cristo (podemos questionar se fez ou não milagres ou se a sua fecundação foi divina, mas Zeus também se transmutou em chuva de ouro para amar Dánae, engravidando-a de Perseu, o valente que matou a Medusa… Tudo é possível), contudo, não podemos duvidar da sua nobreza de alma; este é o mais exemplar dos homens, todavia, há ainda Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Madre Teresa de Calcutá, Aristides de Sousa Mendes, Oskar Schindler… Todos com as suas pequenas misérias morais, no entanto, enormes! (Quase vencia a tentação de citar Pinto da Costa, mas afinal, não!) Estou só a brincar, obviamente… Mas se me perguntam: “Quem é verdadeiramente grande? É o primeiro nome que me ocorre, mas sei que não… É só o meu portismo a falar…

Certamente, outros mais anónimos terão escolhido dar o seu contributo à sociedade e são eles (podeis excluir o Pintinho e incluir uma lista de escritores que me consolam) que permitem ainda a centelha de esperança e trancam as portas ao capeta cínico e o expulsam. São eles que me fazem pensar que alguns homens, poucos, mas alguns, ainda valem a pena. Essa meia-dúzia justifica a humanidade inteira.

Nina M.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Amizade

 Não sei se sei poetar

Assim por entre lágrimas

Levada pela emoção

Levada pelos amigos

Levada pela mão


Não sei se sei poetar

ou fazer-vos o canto justo

Mas sei o quanto vos fizestes amar

Num tempo que ficou atrás

Tempo que corre injusto


Fotografias de um tempo nosso

De um tempo que já lá vai

Ao olhar-vos sei da amizade 

A que fica cá dentro e não sai

Seja qual for a idade


Eu, que aprendi com o tempo,

A nada deixar por dizer

Sabei que fostes irmãos

A quem não posso esquecer

Meus amigos anciãos...


Tenho tanto a agradecer!






terça-feira, 30 de novembro de 2021

Dúvida metafísica

Pergunto-me
Se sou o que precisas
(Diz a borboleta à flor)
Eu assim... Tão fugaz
Tão livre e tão solta
Que pousa ao de leve
Nesta vida tão breve...

Pergunto-me
Se sou o que precisas
(Responde a flor à borboleta)
Eu assim... Tão firme
Tão terrena e tão plantada
Nesta dor angustiada
No chão do amor...


sábado, 27 de novembro de 2021

Crónica de Maus Costumes 256

 

Leon Trotsky

            Acabou esta terça-feira a excelente série da RTP2, que me acompanhou ao longo de sete semanas e que retratou a vida do revolucionário judeu Liev Davidovich Bronstein, mais conhecido por Leon Trotsky, nome adotado do seu carcereiro.

            Como um bom livro, o final da série deixa um misto de satisfação e de lamento. O fim da série seria tão inevitável quanto o fim do homem, mas a excelente performance dos atores, a sua excelente caracterização e os diálogos improváveis e brilhantes fazem com que sinta pena pelo término. Espantou-me sobremaneira a semelhança física com os atores da vida real, conferindo verosimilhança à ficção.

            Conheci um Trotsky inteligentíssimo, manipulador, narcisista e absolutamente cruel e tirano. Um Lenine estratega, polido, igualmente inteligente, mas que cedeu à violência e a adotou em nome da vaidade, da vitória pessoal e de um partido. Um Estaline paciente, tirano, matreiro e assassino, capaz de aprender a crueldade e de a praticar avulso em nome do poder. Vi um politburo hipócrita, manipulador, apenas interessado no poder a qualquer preço e três homens capazes de se atraiçoarem mutuamente em nome da vaidade pessoal (todos sem exceção), do poder e, no caso de Trotsky, em nome do que ele consideraria um mundo ideal. Vi uns bastidores políticos sujos e sem moral, onde todos os meios usados são aceitáveis para se alcançar o que se pretende: a mentira, o domínio da imprensa e a imposição pelo terror. A crueldade absoluta e a indiferença pelo sangue dos compatriotas e dos próprios familiares, considerados meros danos colaterais em busca de um ideal maior. Porém, esse ideal revelou-se bem pequeno, porquanto impôs a violência inaceitável, a miséria e a fome em nome de uma igualdade que nunca existiu. Como dizia o professor universitário e filósofo, Illyin, a revolução bolchevique revelou-se a catástrofe mais terrível da história da Rússia, o colapso de todo o estado. E se o mundo anterior não era de todo perfeito, o novo mundo, criação trotskyana, impôs-se pelo medo e pelo terror, à custa de uma sangria desenfreada da população, votando o povo à miséria, onde sempre esteve mergulhado. Se o mundo velho não era perfeito, o novo mundo era bem pior e mais cruel. Como afirmava Gorki, o monstro estava criado e alimentava-se do sangue dos russos. A batalha estava ganha, mas a besta continuava a necessitar de sangue. São presos poetas, escritores e filósofos e, mais tarde deportados. Foi-lhes poupada a vida, apesar da revolução cortar muito facilmente gargantas. Senhores que dispunham da vida dos compatriotas como o jogador de xadrez dos seus peões. Sem clemência e sem humanidade, porque acreditava o mentor sanguinário da revolução, Leon Trotsky, que a nova ordem só poderia ser imposta pela força e que a grande vantagem em relação ao adversário seria a ausência completa de complacência e a crueldade total, de forma a subjugar toda a oposição, através do pânico. Estaline foi um bom aprendiz e continuou a obra de Leon, ainda que o mentor considerasse que ele era um monstro, porque não lhe interessava o ideal, mas apenas o seu poder, julgando-se diferente de Estaline. A verdade é que fosse em nome de um ideal ou de uma vaidade pessoal, o resultado foi semelhante: carnificina e miséria. O revoltado judeu, que queria transformar o mundo, conseguiu-o: mudou-o para pior. Quem com ferros mata com ferros morre. Depois da morte de Lenine (a quem puxou o tapete por diversas vezes), Leon Trotsky perde o apoio do politburo. São usados contra ele os seus métodos e, depois de uma campanha insidiosa e difamatória, hoje, vugo fake news, é julgado por traição à pátria e condenado ao exílio. Termina os seus dias no México, mas sabia que Estaline preparava o seu desaparecimento, como fez com tantos outros. É assassinado à picareta, em 1940, pelo espanhol Ramon Mercader, provavelmente contratado por Estaline. O espanhol nunca o confirmou, mas após cumprir a pena de 20 anos de prisão, foi recebido na Rússia com honras de estado.

            Revolveu-se o meu estômago várias vezes. Tremeram as entranhas perante a monstruosidade e a ideia de se querer uma nova ordem imposta pelo terror. Um novo mundo criado à medida de um lunático narcisista que se comportava como se fosse o deus Júpiter, senhor do destino dos seus súbditos. Se a História da Rússia, no tempo do czar é de pobreza, de injustiça e de desigualdade, a Rússia da revolução é um país chacinado, mortificado, miserável, absolutamente tirano e cruel. Não vi qualquer melhoria. Esta é a história da esquerda radical, do socialismo marxista, vulgo comunismo, que se queria impor ao mundo, quer este quisesse ou não esse ideal. Vende a ideia de que pretende a justiça e a igualdade e é gerador de morte, de tortura e de miséria.

Não reconhecer a génese destas ditaduras (algumas ainda vigoram como bem sabemos) é branquear a História e comprometer os regimes democráticos. São regimes tão perniciosos quanto os regimes fascistas de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar.

Ouçamos Aristóteles, já que é na temperança que reside a virtude e o bem e, sobretudo, fujamos de falsos profetas. Ninguém tem o direito de julgar saber o que cabe melhor a todos os outros e de querer moldar o mundo à nossa imagem, principalmente, se ela for desprezível. De boas intenções anda o inferno cheio.

 

Nina M.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Crónica de Maus Costumes 255

 

Absurdos...

Nada me parece tão absurdo quanto as cerimoniosas instruções fornecidas pelos assistentes de bordo. 

Penso sempre o mesmo, quando entro num avião. Não sinto medo de voar, mas há cada vez mais um ligeiro incómodo... Certo é que os funcionários, sempre atenciosos e simpáticos, desfazem-se em gestos a indicar as portas de emergência, duas à frente e duas atrás... Se houvesse problemas, no ar, elas não dariam jeito nenhum... É vê-los a apertar cintos e puxar das máscaras de oxigénio e a informar que em caso de despressurização, primeiro colocam os adultos as máscaras e só depois as crianças. Tem lógica, obviamente... Com as máscaras posso eu bem, mas quando chega o colete, não evito um sorriso sardónico e só me lembro da pergunta do Rodrigo, em certo voo:

-  ó mãe, então, não era melhor haver um paraquedas do que um colete? O colete só dá para o caso do avião cair no mar... Respondo-lhe que não se preocupe, que vai tudo correr bem. Ele olha-me sério.

-  E se não correr? - pergunta.

Não  minto e calmamente respondo que provavelmente  morreríamos todos, mas que não pense nisso...

E cismo que, de facto, todas aquelas instruções serviriam de pouco e que gosto da ideia do paraquedas, ainda que não soubesse utilizá-lo. Enfio os olhos e a mente no Saramago, que me desvenda segredos do Luís Vaz, o nosso Camões, e também eu o vejo a acrescentar a dedicatória aos Lusíadas, a escrever na sua casa de Lisboa, enquanto aguarda o reconhecimento e o beneplácito régio. Tudo política e equilíbrio de forças, como lhe explica Damião de Góis, para granjear a simpatia de el-rei e o assentimento da Inquisição. Um país que apodrece no desgoverno e que não reconhece a genialidade do poeta. O Saramago sentiria o mesmo, séculos mais tarde, e sem Inquisição. 

Serve a viagem a leitura e o conhecimento. Decorre tranquilamente, tal como é necessário. Volta-se à terra e de pés bem assentes no chão,  inicia-se a descoberta.


Nina M.

Às Parcas

 Saber que se amacia o fracasso
A ilusão desiludida fora de mão
Saber que o segredo é um só regaço
O regresso ao pulsar do coração

O caminho feito entre a circunstância
Entre a escolha mais cobarde e sadia
Não limpa essa pesada consciência
Nem o desejo pleno de alegria

É feita disto toda a vida humana
Em equilíbrio oscilante entre a barca
Se o mar se agita e se perde a cana

Espera-se o auxílio das Parcas
A sua vontade o destino engana
Guardiãs das nossas terrenas marcas






segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Onde está a vida está a morte

Onde está a vida está a morte
A par e passo de mãos dadas
Se viver requer a sorte
De ver a morte adiada

É destino derradeiro
Depois de cansada vida
De ver o fracasso inteiro
Da humanidade perdida

Como se sobrevive
Ao pesadelo real
Da crueldade que vive
No homem tão natural

Só o refúgio nos mundos
Privados do seu amor
Lavam a alma bem fundo
Dão a vida ao perdedor

E o bem que um beijo traz
É a vida que desponta
É morte deixada atrás
Na vida de faz de conta









sábado, 13 de novembro de 2021

Crónica de Maus Costumes 254

 

O marialva

Em jeito de brincadeira, por estes dias, usei o adjetivo marialva, bem português, aliás, com o sentido pejorativo que lhe é associado. Dito assim, é referente ao homem sedutor, aquele que gosta de namoriscar com mais do que uma mulher (não vou ser politicamente correta nem inclusiva. Essa novilíngua deixa-me louca!) O epíteto marialva refere-se ao homem (ser que exibe protuberância genital externa) que gosta de mulheres e que por ter um coração gigantesco, gosta de várias em simultâneo.

Ora, eis que me pus a cismar na palavra, que é usada em múltiplos contextos. Desde logo, Marialva é uma das aldeias históricas de Portugal, localizada, no concelho de Mêda. Foi habitada por romanos e árabes. Há quem diga que o seu nome remonta à época da Reconquista Cristã, em que Fernando Magno a toma aos Mouros e, em honra a Nossa senhora, (Maria Alba), batiza-a assim. Mais tarde, D. Afonso Henriques incentivará o seu repovoamento, concedendo-lhe Carta de Foral, D. Sancho I reabilita-lhe o castelo e D. Afonso II confirma-lhe o Foral. Ao longo dos séculos, do alto do seu castelo altaneiro, Marialva contempla os diversos tempos difíceis. Toma partido do Mestre de Avis, na crise de 1383-85, mas é na Guerra da Restauração, após a Batalha da Linha de Elvas, que o nome da povoação passa a ser carregado por D. António Luís de Meneses, conde de Cantanhede, agraciado mais tarde, como Marquês da Vila de Marialva, pelos préstimos nesta batalha. O Marquês tinha tido também participação ativa no movimento dos quarenta conjurados, que conduziria à Restauração da Independência Portuguesa. Mais tarde, venceria a Batalha de Montes Claros. Desta forma, o título passa a ser associado ao nobre cavaleiro, figura da mais ilustre nobreza portuguesa, com um papel decisivo na arte equestre, em Portugal, apelidada de arte de Marialva.

Hoje, no dicionário Priberam, encontramos a definição de marialva como: relativo às regras de cavalgar à gineta; feito segundo o modo de trajar do marquês de Marialva; Sedutor; conquistador de mulheres; aquele que, sendo de boa família, só convivia com fadistas e outra gente considerada desprezível.

            Não sei se os Marqueses de Marialva faziam jus à fama de sedutores, mas que deixaram o epíteto aos vindouros, isso é inegável. O que não falta por aí são marialvas de pé de chinelo, sem aristocracia nem ginete, mas que gostam de pendurar o cântaro em tudo quanto é galho a ver se alguém os recolhe. Não os censuro, se a dona do cântaro o decidir recolher é porque assim quis, mas talvez valesse a pena clarificar se o cântaro é apenas um empréstimo ou uma dádiva… Poupar-se-iam alguns desgostos e aborrecimentos. No mínimo, ó marialvas contemporâneos, se não sois absolutamente esclarecedores nas vossas reais intenções, sob pena do cântaro se partir, fazei uma coisa: antes de vos acomodardes em leito alheio, como viestes ao mundo, não vos esqueçais da meiazita… Um marialva de meia… Huuuumm… É algo que me custa a imaginar… Brancas e puxadas até ao meio da perna, conforme se veem nos jovens, muito menos!

Que os deuses poupem as mulheres sedentas de água dessa visão!

Nina M.

 

sábado, 6 de novembro de 2021

Crónica de Maus Costumes 253

 A perda da inocência

         Não sei se é possível a alguém fixar o momento concreto da perda da inocência. Não me refiro ao início da atividade sexual. O que não faltarão no mundo são jovens inocentes com vida sexual ativa.

Falo da queda do anjo, da perceção espantada e dolorosa de que afinal o mundo dói e que nós mesmos, enquanto realidade dele, somos sempre algures a mágoa e a lâmina. Falo das angústias menores que não retiram o sono a ninguém. As maiores, as que preocupam genuinamente são, não raras vezes, longínquas: a fome, a injustiça, a corrupção, a discriminação, as meninas mutiladas e de seios espalmados à força para não serem as culpadas de erguer a besta do homem que as tomam à força como objetos ou seres menores sem direito a decisão… Tudo isto acontece ainda no mundo evoluído do século XXI e parece não gerar espanto. Nem poderia, pois se a humanidade é um contínuo derramamento de sangue… As agruras do mundo e o seu pessimismo são-nos ensinados desde os cueiros…

                - Come, Sónia! Não vês tantos meninos em África a passarem tanta fome e tu nunca queres comer?!

            - Podes dar-lhes a minha comida, então. Eu não me importo. – respondia invariavelmente, muito séria, como se enviar um prato de batata cozida esmagada com ovo e peixe (que ainda hoje não aprecio e nem doente confeciono) fosse simples de enviar para os meninos esfomeados… Porém, talvez acreditasse que fosse mesmo possível fazê-lo. Enquanto não comia, a minha avó Matilde subornava-me com o copo de refresco de vinho (água pintalgada de vinho branco e açúcar) que só obtinha autorização para beber no fim de engolir a pasta amarelada disposta nos prato dos leõezinhos, aquele que levava água quente no depósito para evitar que a comida arrefecesse com a espera… E vejo-te, Glória, com esse mesmo prato na mão, na bouça em frente da minha casa, no penedo grande, junto à poça, onde sempre havia girinos, pacientemente, a dizer-me:

            - Anda, Sonita, abre lá a boca, mais uma colher…

E o mesmo argumento te saía, o dos meninos que querem e não têm comida… E eu abria lentamente (dentro de uma saia de peito, de bombazina azul marinho com dois patinhos brancos a segurar as alças…) devagar, como quem gosta de mastigar bem, mas afinal era só falta de apetite. Nunca sentia fome, na minha infância, e também não recordo o momento em que o prazer do alimento surgiu…

Certo é que a fome do mundo e as guerras nos são ensinadas cedo. Talvez, por isso, a sua existência não espante. Não. Queria lembrar o momento exato em que pela primeira vez nos quebram o coração, a nós, seres amados e protegidos pelos pais e pela família, que desconhecem a dor! Só assim perdemos o olhar virginal e vamos aprendendo a dor de viver. Não me lembro das maldadezitas de catraios. Julgo terem sido insignificantes, dado o apurado sentido de justiça que sempre tive. Nem lembro do momento exato em que a inocência se perdeu e alguns outros passaram a ser desilusão. Não que fossem eles os responsáveis, porque os iludidos somos sempre nós. Os outros não podem nem devem moldar-se às nossas necessidades. Devem ser quem são. É o que se lhes exige, portanto, o erro é nosso. Porém, é nessa dialética difícil com o outro que aprendemos a mágoa e o pessimismo. A alegria também, é certo. Talvez tenha sido um processo progressivo, misturado de saber empírico e do saber dos livros que narram outras vidas. Estes deixam tudo a nu: as pequenas misérias morais pessoais e também as grandes misérias do mundo. Queria lembrar e não sou capaz. Sei, porém, que aos vinte e cinco apanhei a síndrome de desencanto do meu aniversário, por culpa do Mário Sá-Carneiro e, por ironia, celebro-o por arrastamento do meu pequeno. É sempre dele, nunca meu. Especialmente, se a festividade é desfasada da verdadeira data de nascimento…

Tenho a mania de que até o meu nascimento só a mim diz respeito. Prefiro as saudações à distância, do que a exaltação próxima. Há um pudor inexplicável incomodativo, como se a idade já não o justificasse. Sei o momento deste desencanto, mas não sei precisar a da perda da inocência, mas sei que com ela, de algum modo, nasceu em mim a poesia.

 

Nina M.

 

 

 

sábado, 30 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 252

 

Alienação parental

                Sei que uma das crónicas mais ternas que li de Lobo Antunes falava da sua relação difícil com o pai. Um pai austero, cirurgião, médico que sente nas suas mãos a vida e a morte dos seus pacientes. Um pai exigente e que queria um percurso de sucesso para os filhos, mas um pai de poucas falas, severo, a quem não era fácil agradar e homem de poucos mimos.

                Calhou a Lobo Antunes a rebeldia suficiente para irritar o pai e talvez se sentir pouco amado. Aliás, nas suas crónicas, os desabafos em relação à falta de carinho dos pais são vários. Valia-lhe os avós e umas tias que lhe ensinavam os mistérios dos afetos. Pressinto nessas crónicas uma necessidade urgente de ouvir o que nunca ouviu do seu progenitor. Ouvir-lhe dizer que sentia orgulho nele e no seu trajeto. Ouvi-lo dizer que mesmo não tendo sido um aluno brilhante de medicina, por só se interessar pela escrita, acabando por trocar a psiquiatria pela ofício de escritor, afinal não se tinha saído mal. Lobo Antunes até lhe adivinha a satisfação, mas nunca ouviu as palavras que o confirmassem. Ficamos com a sensação de que ainda hoje, já velho, continua a perseguir a aprovação e a admiração paternas. Um vazio que ficou por colmatar. Naquele tempo, na primeira metade do século XX, a vida era difícil. A preocupação com o sustento da casa, em tempo de miséria, não deixava espaço para ternuras e o relacionamento entre pais e filhos pautava-se por uma distância glacial, um relacionamento fundamentado mais na autoridade do que no amor. Os pais faziam-se respeitar e os filhos temiam os seus progenitores. Hoje, a proximidade é maior e ainda bem. O problema começa a ser o inverso: a existência de pais que confundem papéis, incapazes de fazer prevalecer a sua autoridade e de estabelecer limites comportamentais, gerando crianças e futuros adultos com pouca tolerância à frustração. Infelizmente, para conseguirmos viver, precisamos de saber lidar com os nossos fracassos e com as adversidades que a vida nos vai oferecendo ao longo do nosso percurso. Apesar disso, creio que vale mais pecar por excesso de amor do que por falta dele.

                A crueza parental (que existe) deixa cicatrizes profundas naqueles que a sofreram. Uma criança que cresce com a falta de amor e de carinho, com a falta de compreensão pelas suas feridas, torna-se, não raras vezes, um adulto inseguro, com baixa autoestima e com uma necessidade constante de se sentir amparado por alguém. Cairá facilmente nas mãos do que primeiramente lhe abrir os braços para depois o maltratar, repetindo-se o padrão. A pessoa vai assumindo uma culpa que não tem, sentindo-se um incapaz, mesmo que, na verdade, seja um vencedor, dadas as adversidades ultrapassadas. Conheço casos destes, de gente adulta que não se consegue valorizar, porque os seus progenitores nunca foram capazes de lhes demonstrar o afeto. Talvez gente sofrida também, cheia de dores próprias, incapaz de ver a dor dos filhos ou então, vendo-a, ignoraram-na. Ficam mágoas enormes por resolver e as crianças pequenas, agora adultas, à espera do reconhecimento do erro e do pedido de desculpa que tarda a chegar ou nunca vem. O afastamento será inevitável para que a paz não seja perturbada, mas o mal está feito e o coração de quem já foi pequeno foi demasiadas vezes amarrotado e enxovalhado, como trapo de chão.

Deveria ser proibido fazer estas maldades. Os filhos têm o direito de serem amados e os pais o dever de amar, independentemente das idiossincrasias dos filhos. Seria bom que todas as crianças crescessem sabendo que quando o pai ou a mãe se zanga é o comportamento errado que está em causa e não o amor que se tem pelo filho. Procuro sempre deixar isto claro aos meus dois. A mãe amá-los-á para sempre até ao infinito, apesar da asneira. O amor não está em causa, mas não pode tolerar esse comportamento.

                Custa-me ver adultos sofrerem por mazelas antigas e também crianças maltratadas a quem os pais, zangados com a vida, responsabilizam pelas suas agruras. Como se eles tivessem pedido para vir ao mundo e fossem responsáveis pelos adultos. Não se diz a um filho que ele é um encargo, que se está farto de o aturar ou que não faz nada de jeito ou que é um inútil. São palavras que nunca serão esquecidas, nos mais frágeis, serão devastadoras. Muitos conseguem varrer a sujeira para debaixo do tapete, até ao dia em que este fica tão sujo que é necessário lavar.

O amor é bom de se dizer e de se sentir, por isso, quando antes de ir para a escola, a minha pequenina me larga um adoro-te e eu correspondo e o meu filho adolescente, já com a vergonha ao peito, mas deixa um até logo, mãe, no seu tom carinhoso, o meu dia foi ganho e penso que alguma coisa hei de estar a fazer bem…

 

Nina M. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Carta de amor

Talvez não saiba amar
à maneira do teu sonho
Talvez saiba fazer desesperar
Numa hora aflita em que me ponho

E saberia apesar de tanta dor
Amar por uma eternidade
Envolver-me no sonho indolor
Do amor sem tempo e sem idade

Mas rasga-se a carne 
E rompem-se os ossos
Sob uma angústia corrosiva

Ao ver o frio do mármore
Atravessar-me os olhos
Sentir a vida evasiva



sábado, 23 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 251

 Manifestantes de tasca e de sofá

                Faço a vontade ao meu amigo escritor, Luís Altério, que após ter lido o meu comentário à sua publicação, sugeriu que o transformasse numa crónica. Ora, na verdade, agradeço a sugestão, porque o tema até tem pernas para andar…

                O Luís manifestava a sua incredulidade perante o comportamento apático dos portugueses perante as subidas constantes dos combustíveis, que atingem valores incomportáveis e questionava se os portugueses seriam reivindicadores de sofá. O meu comentário confirmava-lhe isso mesmo. O português é, por natureza, manifestante de tasca ou de sofá. Ainda brinquei, dizendo que para haver manifestações sérias neste país seria preciso que acontecesse uma hecatombe ao clube de coração dele, o seu Benfica. Eu, por mim, prendia já o Vieira e arrolava o Rui Costa como testemunha e depois, quando os benfiquistas, muito indignados saltassem para a rua, os indispostos com os preços do gasóleo, pimba, infiltravam-se, erguiam uns cartazes e poderia ser que se conseguisse alguma visibilidade…

 Nem eu nem ele somos originais: Miguel Torga escreveu-o muito antes. O português, em conversa de café, estica o peito e era um havíamos de fazer isto e aquilo, mas quando surgem ações concretas, acobarda-se, geme desgraças e não mexe uma palha para lutar pelos seus direitos e pela sua dignidade. Encontra sempre razões válidas para não se incomodar e isto fere-me. Profundamente. As marcas quer do poder régio quer da ditadura fazem-se perenes. Habituamo-nos a obedecer mansamente, a amolecer como o esparguete em água que ferve e, sem força, facilmente abandonamos a nossas convicções e a luta. O que mais me aborrece é saber que os representantes escolhidos para nos governar sabem que é assim. Sabem de antemão que até os olhos podem arrancar… Poucos se incomodarão e esses poucos serão fáceis de silenciar.

                Ouço, atónita, nas notícias, o desconto anunciado, para supostamente auxiliar as famílias nessas despesas. Estas poderão recuperar até à quantia máxima de cinco euros por mês, no que se refere ao abastecimento de combustível, depois de fazerem umas quantas operações burocráticas ou não estivéssemos nós no país que adora papelinhos, sejam eles nos moldes tradicionais sejam eles de registo informático. Só a trabalheira que implica é um convite à desistência do reembolso. Eles sabem-no! Fico siderada e questiono se serei a única a considerar isto uma piada de muito mau gosto porque, como diria o humorista, “é gozar com quem trabalha”, e eu, que nem sou de asneiras, sai-me um chorrilho de impropérios dirigidos às boas intenções do senhor Costa e dos seus correligionários, sugerindo que guardem os cinco euros no orifício traseiro do seu organismo!

                Depois, aparece mais um iluminado a sugerir que a solução reside na escolha do veículo elétrico e que talvez o preço dos combustíveis deva ser alto para promover uma economia sustentável. Se conhecesse o país onde vive, saberia que uma família que aufira dois salários mínimos mensais não tem dinheiro para comprar carros elétricos, dado o seu preço exorbitante. Mesmo uma família de classe média tem de ponderar bem, porque o diferencial no preço dá para muito litro de combustível! Já agora, seria bom que as pessoas se informassem bem sobre as energias limpas. Só são limpas para os europeus burgueses, porque nos países de onde extraem os minérios raros para o fabrico das baterias, sobeja um rasto de destruição - seca, terra árida e infértil, mas é lá longe e o que os olhos não veem o coração não sente. Esquecem-se que no dia que o planeta explodir, não vai perguntar se o mal é oriundo da Ásia ou da Europa. É de todos.

                De modo que aceitar placidamente todas as tropelias e desgovernos parece ser o destino dos portugueses. Qual tragédia grega! Qual fatum! Encolhemos os ombros e consideramos que reclamar não adianta de nada, perante governantes surdos e insensíveis, que aprovam leis sem as discutir e negociar com quem quer que seja. Assim funciona o XXII Governo da República Portuguesa! Todos os setores que tenham de negociar com os representantes do povo sabem que não serão escutados nem haverá negociação. Pela primeira vez, a ANTRAM abandonou as negociações. Sentiram-se traídos. O Governo aprovou leis que não foram discutidas nas negociações. Os reivindicantes poderão nem ter razão relativamente ao teor (não pensei nem me informei o suficiente sobre o assunto), mas têm, com certeza, razão no que diz respeito à postura do Governo.  Fizeram o mesmo aos sindicatos de professores! Estiveram oito horas à espera sem serem ouvidos! É uma vergonha e uma desconsideração pelas associações representativas de trabalhadores. Uma pulhice travestida de comportamento ditatorial. Portanto, os representantes do povo, na verdade, desconhecem e não querem conhecer as reais dificuldades pelas quais o povo passa, porque uma boa parte dos políticos portugueses é oriunda de uma elite burguesa e abastada que desconhece as agruras da vida e para quem tudo foi sempre demasiado fácil. Não se exige que passem pelas mesmas necessidades, mas exige-se respeito, empatia e autenticidade na atuação!

                Ouvir gente que trabalha diariamente, às vezes mais do que o que lhes compete, e que mesmo assim não saem do limiar da pobreza, resignar-se, encolher os ombros, deixando escapar que “eles” são todos iguais e que não querem saber da política, deixa-me perplexa e irada. Ouvir de gente instruída a mesma ladainha ainda me faz pior! Se pudesse, obrigava-os a todos a ler atentamente o Germinal, de Zola. Lembro-me bem da pedrada no charco que a obra me causou, ainda gaiata, na casa dos vinte e poucos anitos… A coragem daqueles mineiros! A fome e a miséria trazida pela falta do trabalho, mas a dignidade e a luta que não podia ser abandonada! A luta dói. A greve dói. Nenhuma melhoria das condições de vida foi oferecida com gentileza. Enquanto o povo português não compreender isto, continuará complacente com os desmandos governativos, por mais torpes que eles sejam…

Desde que haja pão e circo, que é como quem diz bola à fartazana, a vida segue o seu curso como sempre foi: exploradores e explorados a coabitarem numa estranha paz social. Uns a acharem que as massas se dominam assim, pela força e pelo temor e os outros resignados, porque contra a força não há argumentos.

 

Nina M.

 

sábado, 16 de outubro de 2021

Se um dia a tua alma

Se um dia a tua alma 

Se desviasse da minha

Lesta e sem olhar para trás

Levantar-se-ia um tornado

Em jeito de protesto

Sobejariam os destroços

O odor amargo da desilusão

Não seria mais, a alma, a mesma

A reaprender o caminho da solidão

Vencida!

Ela, que jurou não se render ao cinismo,

Recolheria apressadamente a mão

Tolher-se-ia o seu rosto de vergonha

Depois de aberta a porta à sua intimidade

E vê-la assim violada, esta alma,

Seria dor fragmentária da carne

O mais sério convite ao cinismo

O mais sério convite à rendição!


Crónica de Maus Costumes 250

 

Ideal, angústia e compromisso com a vida

Criar filhos não é fácil. Nunca terá sido e em cada época, há uma geração com as suas dores.

A infância da geração dos meus pais foi extremamente curta e a dureza da vida impunha a dureza dos afetos. Crianças tornadas adultas aos dez e onze anos, idade com a qual começavam a trabalhar. O sentido da vida era, talvez, o da sobrevivência e uma resignação calada e funda de um destino determinado à nascença. Reinava um espírito servil, capaz de irritar as entranhas do mais tranquilo. A lei do mais forte sobre o mais fraco, que ainda hoje vigora, porque na verdade, ao longo dos tempos, as revoluções levantadas sob a égide da justiça, não colmataram as injustiças reinantes e, como tal, os vícios perpetuam-se e as assimetrias também. Continuamos sob o lema: “Manda quem pode e obedece quem deve”.  Os que obedecem, se quisessem a sublevação, unidos, teriam muita força, porém, o problema maior está no que fazer em seguida, porque prova a História que encontrar líderes capazes e íntegros que se batam pelo bem-estar de uma nação inteira é quase missão impossível. Perdem-se, a maioria deles, nas malhas de um elitismo afastado da realidade que nunca pisaram. Questiono-me, por isso, se a humanização será um caminho possível, porque os homens fazem questão de chacinar o ideal e de não o deixar prosperar. Desconfio mesmo que as elites se aproveitam dele e o usam em vão para a sua autopromoção, numa sede insaciável de poder. Inebriados e febris, vivem uma vida faustosa, longe dos horrores do mundo. Qualquer homem tolera a miséria desde que ela esteja afastada dos seus olhos.

Estes pensamentos são verdadeiramente angustiantes porque, a serem verdadeiros, colocam-nos face a um absurdo inconciliável com os ideais democráticos. A ser assim, somos obrigados a render-nos ao servilismo e à resignação dos nossos antepassados, já que independentemente da nossa vontade, as elites sempre controlam as massas, normalmente pelo medo, e sempre as usarão em seu benefício, oprimindo os mais débeis para satisfação de uns quantos.

A felicidade está, dizem alguns, na capacidade de baixar expetativas e na capacidade de aceitação. O segredo será abraçar o estoicismo e deixar seguir o curso do mundo.

“ Segue o teu destino,/Rega as tuas plantas,/Ama as tuas rosas./ O resto é a sombra de árvores alheias./ A realidade/ Sempre é mais ou menos/ Do que nós queremos […]” – É o ensinamento douto do Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa, instigando à indiferença e à ataraxia. O que não me diz respeito não me deverá incomodar, talvez porque também ele pressentisse a luta inglória e perdida. Não me deixa de causar bulício nas entranhas. O mesmo bulício que me causou ouvir uma psicóloga a aconselhar os professores, por altura da última grande greve, a darem a batalha como perdida. A aprenderem a aceitar tranquilamente a derrota para que a angústia não nos engolisse. Para que a dor não nos embrulhasse. Sei que as minhas entranhas abalaram. Senti-as tremer a formarem um nó. Eu sei. Viverei eternamente angustiada, mas não é o homem ser feito de angústia? Entre a angústia de uma aceitação injusta e uma angústia trazida pela perda do sonho que se almejou, talvez escolha a segunda.

A aceitação plácida das injustiças torna-nos cúmplices das atrocidades. A ironia é que independentemente da nossa vontade, de certa forma, todos nós contribuímos para elas. Essa consciência aterradora das coisas é implacável e ou a alma encontra refúgio e a sua transcendência ou o nosso olhar sobre o mundo desumaniza-se, degrada-se e torna-se vazio. Nada pior do que um olhar vazio, seco e morto. Receio-o, pois nesse dia estarei morta. De modo que a rejeição do estoicismo, em certas circunstâncias, possa representar a escolha pela vida, mesmo que esta nos traga muitos escolhos.

Em última análise, poder-se-á dizer que sentir angústia é sinal de que se está vivo. É sinal de lucidez. Trocá-la por um alheamento ou um torpor coletivo não confere sentido à existência, antes a apaga e a torna inútil. Talvez seja esse o projeto mais difícil de traçar e de alcançar: o de justificar diariamente a existência, saber que se persegue uma quimera exponencialmente maior, nem sempre de contornos definidos. Saber que nos perdemos demasiadas vezes pelo caminho e ter a hombridade de recomeçar. Construir-se e reconstruir-se à exaustão, as vezes necessárias, tantos quantos os dias da nossa vida. Nem o estoicismo cabe nesta medida justa nem o triunfo é garantido.

Alea jacta est.

 

Nina M.

 

 

sábado, 9 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 249 Ainda a escola…

                 Tenho visto, nas redes sociais, o desânimo e a desmotivação da classe docente. Não é para menos. A tutela não merece qualquer consideração da nossa parte e as pessoas que enviam às escolas, na figura de inspetores, certamente, às vezes, também não ajudam.

                Uma colega de profissão, relativamente conhecida, por colaborar com a revista Visão (desculpem a referência, que faço sem qualquer objetivo publicitário) e também por já ter obra publicada dava conta, no seu artigo, da sua experiência, por ter sido selecionada, ao que parece aleatoriamente, para uma conversa com as senhoras inspetoras, sobre avaliação, no intuito de saber como esse processo era aplicado na sua escola. Quiseram as senhoras compreender como a colega distinguia a avaliação formativa da avaliação sumativa, que retorno dava aos alunos, no sentido de os orientar nas suas aprendizagens, que processos de recolha de informação utilizava, se havia uniformização de critérios de avaliação entre os diferentes grupos disciplinares e se os instrumentos e se os métodos de avaliação usados são os mesmos, interrogando a colega, se não achava que os professores podiam melhorar as suas práticas pedagógicas. A professora foi respondendo a todas as questões, admitindo os aspetos que poderiam ser melhorados. Foi, depois, exortada a explicar a existência de classificações inferiores a dez nas pautas, tendo feito, supostamente, uma avaliação formativa correta. A colega tentou mostrar a dificuldade que os alunos revelam em reter a informação e deu um exemplo muito concreto da estratégia utilizada durante uma aula, pedagogicamente irrepreensível, para que os alunos soubessem apenas que Fernando Pessoa e o Modernismo surgem nos inícios do século XX. Para seu desespero, na aula seguinte, os seus alunos ter-lhe-ão respondido barbaridades. Perante este exemplo, solicitou a ajuda das senhoras inspetoras, que lhe ensinassem outra estratégia, já que lhe tinham sugerido que talvez não tivesse utilizado o método correto. Terá obtido uma resposta seca e sarcástica: “Não estamos aqui para ensinar”.

Ainda que isso seja verdade, também mereciam ouvir que se nada têm para ensinar, então, só  a tinham feito perder o seu precioso tempo, uma vez que é da discussão, entenda-se diálogo, que nasce a luz. Portanto, se a colega estava às escuras, às escuras continuou, senhoras inspetoras! Talvez fosse pedagogicamente aconselhável, usarem com os professores as mesmas estratégias que pretendem que eles implementem com os seus alunos. Se apontamos o erro, devemos corrigi-lo e apontar o caminho para que este deixe de errar. Se um aluno não melhora com um professor demasiado severo e pouco empático, os professores também não o conseguem fazer com uma tutela que se comporta de forma semelhante.

Não pude deixar de sorrir ao ler o testemunho da colega, porque, na verdade, o que a inspeção pretendia saber era se o projeto MAIA (Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica) estava a ser implementado e como estava a ser executado. Queria garantias de que havia a consciência de que tinha de haver momentos de avaliação formativa e sumativa e que esses devem ser perfeitamente distinguidos; pretendiam confirmar se era dado “feedback” aos alunos e como o faziam; que documentos de apoio e processos de recolha utilizavam. Queriam que a colega compreendesse (e a colega compreendeu) que é possível melhorar as práticas pedagógicas e as escolas adotarem uma política avaliativa interdisciplinar. E a colega fazia precisamente essa reflexão. Urge alterar comportamentos padronizados.

                As mudanças são difíceis, mas por vezes, necessárias. Todos nós resistimos à mudança, porém, devemos ter a abertura para ouvir, ler e refletir sobre o que pode ser pertinente. O Ministério da Educação aborrece-me muitas vezes e não é pessoa de bem. Não esqueço o comportamento deplorável e intimidatório da tutela na última grande greve dos professores nem o comportamento cobarde de sindicatos e de colegas também… No entanto, no que diz respeito ao PASEO (perfil do aluno à saída do ensino obrigatório), ninguém em sã consciência poderá dizer que o que lá está não é desejável. É, pois! Desejável, pertinente e necessário! A crítica que pode ser apontada é a de que o documento apresenta pensamento e teoria, mas não esclarece de que forma as escolas o devem colocar em prática. Foi para isso que serviram as formações no âmbito do projeto MAIA. Quem as fez sabe que tiveram de pensar numa política de avaliação comum para a escola, transversal aos grupos disciplinares, que assegurasse os princípios veiculados no PASEO e no Decreto-lei 55, de 2018. Não foi fácil. Significou construir de raiz, pensar num projeto que fosse viável aplicar na sua escola e fazê-lo com seriedade. E nesta questão, a tutela tem razão. Os professores podem melhorar a sua prática no que à avaliação diz respeito. Faz todo o sentido que os alunos conheçam com exatidão os critérios pelos quais vão ser avaliados. Saber meramente as percentagens não chega! Os alunos precisam de compreender e de conhecer os perfis de desempenho para melhorarem as suas aprendizagens. Para isso servem as rubricas, que devem ser criadas, explicadas e fornecidas aos alunos; também têm direito ao “feedback” e o professor o dever de o dar, sempre que for pertinente. O professor deve também refletir sobre a sua prática, no sentido de a aperfeiçoar. Por fim, os processos de recolha devem ser variados o domínio da oralidade deve ser valorizado, no sentido de promovermos uma avaliação holística do discente. Já agora, não se faz avaliação sumativa, sem antes termos feito avaliação formativa. Não vejo qualquer disparate nisto, mas antes um trabalho consciente e bem feito! Talvez a maioria de nós já apresentasse algumas destas práticas. Neste momento, fazemo-lo com outra consciência e não de forma meramente intuitiva. Para os críticos que talvez até se lhe oponham sem compreenderem bem os seus princípios, convém esclarecer que o Projeto em nada põe em causa a preparação para os exames. Bem aplicado, será desenvolvido o espírito crítico e reflexivo, serão trabalhadas várias competências, enquanto aprendem os conteúdos necessários.

                Resta-me só deixar um aviso à tutela: por mais que os professores se esforcem e implementem estas mudanças efetivas e há escolas a fazê-lo, não há projeto que salve alunos que decidiram que não querem aprender nem trabalhar com afinco, porque se este modelo for implementado com seriedade, o discente tem de trabalhar mais.

A partir deste momento, em que se cumpre com o que é exigido, pois acompanha-se o doente durante o processo, diagnostica-se as suas dificuldades, aconselha-se e prescreve-se a medicação e se o paciente, no exercício da sua liberdade, decide não seguir os conselhos e até ordens médicas e, por esse motivo, falecer, não pode ser imputada qualquer responsabilidade ao médico.

É que há doentes muito teimosos e desinteressados pela sua saúde! Conviria que a tutela não se esquecesse disso e pensasse também num projeto MAECAEE (monitorização e avaliação do empenho e comportamento dos alunos e encarregados de educação).

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Demora

Sentes, talvez, a vida em suspenso

À espera... Em espera...

De quem sempre se atrasa 

Ou demora para chegar

Porventura, nem vem...

Mas não esperas uns minutos

O tempo de espera da reflexão

Desnuda e virtuosa

A que num raio de luz

Surpreende com clarividência

E por hipótese, apenas...

Não será espera 

A espera de quem se tem...


sábado, 2 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 248

 

 A salgalhada do Dec-lei nº 54/2018, de 6 de julho

                Tentarei dar voz à angústia de uma colega, que sei ser partilhada, por já o ter sentido na pele. Dizia que ninguém abordava o tema, que não se falava sobre o assunto e que era necessário que o fizéssemos.

                Dava conta do seu sofrimento por ter de acompanhar um menino NSE, antes NEE (para os mais distraídos, já não temos alunos NEE, mas antes com necessidades de saúde especiais) com uma problemática para a qual não se sentia com competência para lidar. Eu e todos os meus colegas que já tiveram de fazer o mesmo compreendemos perfeitamente o desespero e a impotência.

                Ao longo da minha carreira, que conta já mais de vinte anos, já tive meninos com atrasos cognitivos ligeiros (o problema mais comum e talvez o menos difícil de lidar) e severos, de difícil gestão… Cegos, surdos, alunos com trissomia 21, com espectro de autismo, com esclerose múltipla e sei lá o que mais. Não tenho qualquer formação em Educação Especial e, perdoem-me a franqueza, não quero ter. Já foi uma via para efetivação célere de professores e nunca o quis fazer. Estive exatamente vinte anos a contrato, mas nem essa situação precária me motivou a tirar tal especialização. Não quero ser mal interpretada e quem me conhece sabe que nessas circunstâncias, quando tenho esses alunos especiais, faço o que melhor posso e sei fazer, dentro do que a minha sensibilidade (porque sei que a tenho) me aconselha. No entanto, por que razão se há de colocar professores sem formação na área a lidar com estes meninos, que necessitam e merecem os profissionais mais qualificados? Por razões meramente economicistas, obviamente. A já conhecida mania da tutela de querer fazer omeletes sem ovos e mais com menos!

Já lecionei uma disciplina intitulada Atividades para a Vida Diária. Cheguei a sair da escola com os meninos, a levá-los à mercearia mais próxima e pô-los a fazer compras, pagamentos e receber trocos. Evidentemente, as compras pagava-as eu e lá ficava com os produtos; levava-os à cantina para dobrarem guardanapos e prepararem os talheres para as refeições, fazia bolos e lanches e passeios pelas imediações da escola, brincava com jogos que desenvolvessem o raciocínio, insistia semana após semana na escrita do nome, fazia jogos no computador e ensinava a enviar e-mails. Dois deles não conseguiam aprender, enfim… Semana após semana a inventar o que fazer, a repetir tarefas, enfim, a tentar fazer bem… sabem uma coisa?! Detestava! Gostava das crianças, que sei que se afeiçoaram a mim. Era carinhosa e dava-lhes todo o mimo e atenção, mas detestava ter estas funções!

                Eu gosto de ensinar. Particularmente, Literatura. É com alunos do secundário que me sinto mais feliz e realizada, porque é nessa faixa etária em que se começa a falar de Literatura com outra propriedade, que é o prazer que a escola ainda me reserva… Perdoem-me, mas não fui preparada para acompanhar meninos com patologias significativas, apesar da minha boa vontade, quando tenho de o fazer! E, muito sinceramente, não deveria ter de o fazer! Nem eu nem qualquer outro colega sem formação. Do meu plano curricular, nunca constou qualquer cadeira que me tivesse preparado para tal! As minhas meninas surdas não tinham intérprete na sala de aula! Só tinha de lecionar Gil Vicente e Camões! Porventura, seria eu obrigada a saber Língua Gestual Portuguesa?! A sensação de impotência é terrível, porque tinha a plena consciência de que a aula não lhes chegava, apesar de estarem, obviamente, na carteira da frente e de, supostamente, serem capazes de ler os lábios… Também não era o colega de Educação Especial que lhes ia explicar “Os Lusíadas”, se não era professor de Português, nem tinha competência para o fazer!

Façamos uma reflexão séria, porque isto é brincar com os pais e com as próprias crianças. É fingir uma inclusão que nada tem de inclusiva. É um brincar ao faz de conta que me transtorna e me indigna! Há muito que estes pais deveriam mobilizar-se para exigirem profissionais habilitados e todos os meios para que as escolas possam trabalhar adequadamente com os seus filhos! A tutela não pode querer uma escola inclusiva, mas que o é só para inglês ver. Atenção! As escolas fazem o que têm ao seu alcance para suprir essas lacunas e necessidades, mas talvez, numa ação concertada, estivesse na altura de fazer certas exigências, juntamente com os pais e também nós, professores, como por exemplo, a colocação do número necessário de docentes com habilitação para lidar com estas problemáticas e que possam orientar, implementar e lecionar os discentes que apresentam um Programa Educativo Individual e/ou um Plano Individual de Transição.

Dizer no Artigo 3º que são princípios orientadores da educação inclusiva:

a) Educabilidade universal, a assunção de que todas as crianças e alunos têm capacidade de aprendizagem e de desenvolvimento educativo;

b) Equidade, a garantia de que todas as crianças e alunos têm acesso aos apoios necessários de modo a concretizar o seu potencial de aprendizagem e desenvolvimento;

c) Inclusão, o direito de todas as crianças e alunos ao acesso e participação, de modo pleno e efetivo, aos mesmos contextos educativos;

d) Personalização, o planeamento educativo centrado no aluno, de modo que as medidas sejam decididas casuisticamente de acordo com as suas necessidades, potencialidades, interesses e preferências, através de uma abordagem multinível; []

Para no Artigo 10º, no ponto 7, dizer-se que “as medidas adicionais são operacionalizadas com os recursos materiais e humanos disponíveis na escola, privilegiando-se o contexto de sala de aula”, não é mais do que atirar toda a responsabilidade para as escolas, sem lhes atribuírem os meios necessários, sugerindo a implementação de sinergias com as autarquias e outras entidades, no sentido de proporcionar a educação inclusiva, prevista e regulamentada no Decreto-lei nº54/2018, de 6 de julho. Se isto não se tratar de retórica falaciosa, peço a um colega de Filosofia (e conheço alguns) que me corrija o erro, porque tenho humildade suficiente para poder aprender!

A ti, Isabel, que sugeriste a escrita do texto, ainda que a minha voz não chegue longe e, portanto, seja absolutamente inócua, espero ter conseguido reproduzir as tuas preocupações, que são também as minhas e as de muitos.

Estas crianças merecem respeito! Já agora, os professores que tentam fazer o seu melhor, também!

 

Nina M.