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sábado, 29 de maio de 2021

Crónica de Maus Costumes 234

 

O inesperado acontece

 

            Quem se lembra da publicidade: “E se de repente um desconhecido lhe oferecer flores, isso é impulse”? O “impulse” era um desodorizante ou algo similar. O trocadilho com o nome sugere o impulso que o odor do produto despertaria no homem mais próximo para oferecer flores à dama.

            Publicidade enganosa. Nem os conhecidos, quanto mais os que nos desconhecem! O mais próximo que já estive disso foi terem-me deixado, efetivamente, um ramo à porta de casa, mas seco e morto, em sinal de desprezo pela minha indiferença. Foi merecido e granjeou uma ponta de simpatia pela imaginação e pelo trabalho de o comprar e de o deixar secar para me ser ofertado. Arrancou-me uma boa gargalhada e, claro, o trabalho de o colocar no lixo. Também é o que dá não saberem que prefiro livros a flores, porém, ainda bem, caso contrário, ainda me deixavam à porta um dos escritos do Paulo Coelho ou coisa que o valha! Obviamente, tal acontecimento remonta à minha época insana de juventude. Coleciono alguns pequenos remorsos, mas também há homens que não facilitam… Faço o mea culpa por ter sido um bocadinho inconsequente e brincalhona, mas sob uma ténue nesga de possibilidade de ir tomar um café, foi um choque quando confirmei que disse que iria, mas que não tinha referido nem o mês nem o ano… Eu sei… Não me porto sempre bem. Hoje, mais madura, não faria tal… Um “não” seco chegaria. Eis o motivo do presente mais original que alguém já me ofertou.

            No entanto, deixa a pensar sobre a psicologia masculina e a manifesta incapacidade de alguns em lidarem com a rejeição, como se as mulheres, objeto do seu desejo, fossem obrigadas a ceder aos encantos dos conquistadores. Ora, nunca fui propriamente mulher para ser conquistada como troféu que se ergue alto, ganho em qualquer competição. Por outro lado, os machos com a mania de D. Juan de trazer por casa, nunca me seduziram, para além de me conseguirem irritar e dar vontade de os expor ao ridículo. A propensão masculina para a posse de forma animalesca é absurda. Já deveriam ter aprendido que a expressão “ a minha mulher” não significa que ela lhes pertença como qualquer outro bem. Na verdade, significa: a mulher que ainda desejo, com quem estabeleci um contrato e que se mantém válido, enquanto ambas as partes o desejarem. A mulher não é um bem material, sem vontade própria, que possa ser entendida como propriedade privada de alguém. É um ser dotado de livre arbítrio, de inteligência e de emoções, capaz de fazer as suas escolhas, em plena posse de suas capacidades, não alguém para subjugar ou agrilhoar. Valido o discurso para os homens, também. O verdadeiro companheiro caminha ao lado, não à frente nem atrás, satisfeito pelo encontro que a vida lhe proporcionou e orgulhoso do trajeto. Menos do que isto é nada. Poderá não ser mais, mas isto é o mínimo exigível num relacionamento que se quer saudável.

Gostaria que muitas mulheres tivessem esta consciência para não se deixarem subestimar nem desprezar. A humilhação do outro é a arma dos incapazes.

 

Nina M.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Confissão

 Porque sempre se falha sem querer 
Com os nossos humanos pés de barro
De coração limpo e a voz a doer
Se me olho, em contradições esbarro

Absolta da imperfeita perfeição
Como o poeta maior autoproclamo
Ser às vezes vil com o meu coração
Feri-lo seriamente e causar dano

Se pudesse rezar ao deus de amor
Interventivo e muito complacente
Pedia conserto pra minha dor

A magia para a vida presente
Implorava por asas de condor
Liberdade de abrigar outra gente.

domingo, 23 de maio de 2021

Poema

Quero o poema mais perfeito
Para alumiar esta tristeza que
Do mundo onde à noite me deito
Se o olho falha-me a beleza

São guerras são violências 
Imperialismos ditatoriais
São líderes de incongruências 
Agem no mundo como chacais

Dói a alma e fraturam os ossos
Neste estalar lento e doloroso
Rasgam-se as carnes de filhos nossos
Por esse mundo desventuroso

Que vida ficará depois da morte
De seres que mal viram o sol
brilhar? Essa é a parca sorte
Dos que veem os seus no rol

Listas que engrossam com nomes
De anónimos que ninguém quer lembrar
São israelitas ou são palestinianos
São homens que perecem a lutar

Por uma política sem ideal
Por razões longínquas travadas
Sem saber que todo o homem é igual
Que as iras entre ambos são fabricadas

Ergo a voz em poesia
Em tempos de imperialismo
Combater com a luz da fantasia
Toda e qualquer forma de fascismo

Age, palavra, solta-te e voa!
Crava no peito como um punhal
Leva uma mensagem que seja boa
Cura o Homem do ódio brutal!



sábado, 22 de maio de 2021

Oscilo entre a calma e a euforia

 Oscilo entre a calma e a euforia
 De um mar ora doce ora irado

 Oscilo na vaga que temia
 Deste meu mar tão desejado

São pulsões e desejos de amor
A violência com que bate na areia

São beijos desmaiados, um fragor
Do abraço apertado da sereia

A espuma, a seiva da vida
Subitamente expelida em mim






Crónica de Maus Costumes 233

 

Para ti. O mimo que me pediste.

                A vida do ser humano não é linear nem pré-determinada. Está sujeita às circunstâncias, é certo, mas o caminho somos nós que o construímos à medida que avançamos e a isto chama-se livre arbítrio, a possibilidade da escolha, que tem tanto de bom quanto de terrível.

            Essa liberdade de poder escolher é um poder assombroso. Obviamente, essa liberdade é sempre condicionada às circunstâncias que se nos deparam, pelo que, muitas vezes, a escolha é coragem, dor, o mal menor e outras tantas vezes a leveza e o sorriso. Seja como for, a boa vida não exclui os sofrimentos nem as angústias, mas certamente incorpora a forma como lidamos com elas. Há uma máxima de que gosto: não sofrer por antecipação. A dor antecipada não acrescenta, não resolve a angústia e se o sofrimento se vier a justificar estamos a ser duplamente penalizados, se não for o caso, então, estivemos a sofrer à toa.

Para ti, só para ti, hoje, não sofras à toa, porque tudo vai correr bem. Prometo. Juro, como pediste. Como sei? Talvez tenha aprendido com a Blimunda a recolher vontades e a saber o que sei sem saber como, um legado muito antigo de caráter sibilino com que as mulheres foram dotadas, por culpa da Sibila de Cumas, a sábia. Todas nós sabemos muitas coisas antes de elas acontecerem, se as soubermos escutar. E eu escuto que vai correr bem. O percurso de quem já passou pela pior dor que consigo imaginar (e apenas imagino) e se mantém corajosamente no trajeto da vida, só pode correr bem. A vida é feita de derrotas (muitas) e que o digam os anti-heróis dos livros que leio e que literalmente amo e de parcas vitórias que servem apenas para nos amaciar o ego. Há até quem julgue que a vida é uma piada charmosa. Eu costumo dizer mais que a vida é cínica, porque quando parece maravilhosa, tira-nos o tapete e leva-nos ao chão. Porém, há uma pulsão chamada amor que nos agarra a ela e que faz com que seja a única opção possível, por mais duro que o trajeto seja. Às vezes, há desistências, pensarás. Certo. Há. Por vezes, não é mau desistir. Pode ser sinal de inteligência. Não se aplica aqui. Mesmo que o pior cenário se confirmasse. Bastaria um momento para respirar longamente, recuperar força e voltar ao ringue, porque a vida ainda mal começou!

A Helena Sacadura Cabral costuma dizer que a vida dela começou aos cinquenta. Até lá, foi uma excelente mãe. Cumpriu o seu papel de criar e de encaminhar os filhos. Depois, foi fazer o que verdadeiramente gostava, sem a preocupação de ter alguém a seu cargo. E eu gosto dessa ideia. Torna o envelhecimento quase desejável, na perspetiva de poder viver os melhores anos da  vida. Eu não os quererei desperdiçar. Tu também não. A sacana da vida pode ser bastarda, mas eu gosto dela. Vibra e borbulha dentro das veias. Exige que lhe preste atenção e que estejamos à altura do desafio. É forçoso que assim seja. Às vezes, o coração rasga-se e chora e parece desfalecer. Há momentos duros que quase nos impedem a respiração, mas numa nesga de alma, sem se saber bem como, a resiliência e a vontade de existir sobrepõem-se. A recusa do nada e do tempo sem fim. É uma luta inglória e, um dia, será mesmo perdida, mas não por enquanto. Demasiado cedo. Demasiada vida para se viver com o que ela trouxer. Disto não abdico. E antes dos noventa com saúde e destreza mental que ninguém me fale da ceifeira! E, como me dizem os meus filhos, “ talvez até já possa viver até aos 150, porque a ciência é espantosa”. Resta-me saber se é puro amor ou interesse no abrigo da asa. Para ti não será diferente.

Prometo.

 

Nina M.

 

 

 

 

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Soneto a Musa Antiga

Apenas quem desconhece Calíope
Ou quem nunca ouviu o seu filho Orfeu
Poderá duvidar do amor de Liríope
Que ao mundo o seu belo Narciso deu

És tu, poesia, bela Dulcineia
Donzela do romance de Quixote
O sangue que circula em tua veia
Não pode ao teu canto fazer boicote

É para ti este meu doce canto
De saudade, dor e melancolia
Não sei se as palavras te causam espanto

Sei que as dou ao vento em chama e harmonia
Ainda que lhes saiba o seu encanto
Namoro-as só em hora fugidia


sábado, 15 de maio de 2021

Crónica de Maus Costumes 232

Até sempre !

Até sempre, Maria João, é o que urge dizer. Mesmo que não te conheça, porque conhecer a artista não é de todo conhecer a pessoa, porque cada ser humano é um poço sem fundo e desconfio sempre do muito que se pode conhecer alguém, se duvidar até da possibilidade de nos conhecermos a nós mesmos… Nunca saberemos como reagiríamos perante certas circunstâncias. Podemos pressentir como seria, mas sempre sem certezas absolutas.

A única certeza é a de ter sido inesperadamente e demasiado cedo. Multiplicam-se as homenagens e palavras de dor, mas nada disso faz diferença para quem partiu. Talvez possa ser um lenitivo para os que deixas. Lamento a dor de todos, mas especialmente a dor dos filhos.

Sabes, João, não gosto da morte. E a tua foi um sobressalto. Podia ter sido a minha ou a de qualquer outro. Assim. Cirúrgica e sem aviso. Sabemos que ela faz parte da vida, no entanto, é algo que se quer longínqua. A tua foi tão perto! Lembra-me que poderia ter sido a minha! Encarar a morte é responsabilizar-nos pela vida, o que não é menos assustador. Alguém a definiu (a vida) como uma “charming joke”. Isto, nas melhores das hipóteses, porque a safada pode ser cínica mesmo. Eu não quero que a minha seja uma piada glamorosa nem cínica. Quero apenas que faça sentido e que não seja desperdício. Ninguém deveria morrer sem sentir que valeu a pena viver. Sabes, João, Torga disse, certa vez, que a vida é um absurdo delicioso e eu inclino-me a sentir como ele. A vida, com todos os seus problemas tem que valer a pena. Em cada verso que me ocorra, em cada abraço apertado que gosto de dar e de receber, em cada carinho, em cada gesto e em cada palavra amorosa que tenha e receba, cada olhar de regresso a casa, tem de fazer a diferença. Agarro-me a esta ideia com todas as minhas forças e esperanças e a minha alegria, que me faz querer viver até aos noventa, mesmo não sendo desavergonhadamente feliz todos os dias e todos os instantes… Já o fui, sabes, e lembro-me tão bem dessa sensação maravilhosa de uma inocência pueril despudoradamente feliz, de quem abarca o mundo sem nada querer! Mas se puder sê-lo aos bocadinhos aqui e além e reter em mim todos esses retalhos, sinto que serei mais rica. Não quero a sensação do vazio ou de um niilismo antecipado que rejeito, porque isso é já não viver de verdade. Nem o ventre sadio de uma mãe que acolheu vida e a gerou pode resignar-se, porque viu o milagre a acontecer dentro de si. Carne da minha carne, carne que se alimentou de mim e em mim se gerou. Amor eterno que não se larga. Nem que seja este o último argumento válido.

Responder à pergunta da filha de dez anos se pode acontecer comigo também e ver o rosto incrédulo de quem não supõe ainda a existência sem mãe é desolador. A única resposta viável é a verdadeira: pode. E explica-se o aneurisma, de forma simples e ouve-se como resposta: “Mas eu não quero que morras!”

Nem os teus, João, não queriam que tivesses morrido… Nem tu, João, os querias ter deixado…

Voltarás a ser pó de estrelas, fruto de explosão brilhante e luminosa, talvez energia que se renova. Certamente, não viveste em vão.

 

Nina M.

Se a tristeza de lonjura feita

Se a tristeza de lonjura feita
Surgir na ausência anunciada
Tal folha caiada que paira
E lentamente pousa no chão
É só a alma desmaiada
À espera da sua imensidão

Basta procurar os sinais:
O brilho belo de um luar
O céu feito de límpido azul
O verde da floresta a cantar
A força e o assombro do mar para
A dolorosa saudade mitigar

São as ondas o papel
E a espuma os seus versos
O desfazer da vaga sobre a areia
A orquestra magistral que ouço 
Tudo me conduz à minha concha
Minha alma, minha vida, minha poesia!









quinta-feira, 13 de maio de 2021

Dia outonal em primavera fria

Dia outonal em primavera fria
Traz a chuva miudinha e cinzenta 
A morrinha que não desiste e apoquenta

Da carne que se deslaça dos ossos
Nada sobra do humano sofrimento
Sepulcro das dores em crescimento 

Fim. Lê-se na linha contínua linear
Lápide de uma existência interrompida
Sem aviso. Sem preparo. Longe da despedida.

São os fados são os deuses 
Forças demoníacas ou celestes
Ceifam vidas. Carrascos agrestes.

Vida amada desditosa
Tão magoada e tão sofrida
Sabe de si a dor de ser vida perdida

Pudesse a morte amiga
Anunciar um regresso a casa
Ao pó de estrela em brasa

No lugar da morte, renascimento 
Natureza cíclica e renovada
Traga sopro de alma: vida amada. 









  







sábado, 8 de maio de 2021

Crónica de Maus Costumes 231

 

Um homem bom

                Terminei há relativamente pouco tempo a leitura da biografia de Rui Nabeiro, o célebre fundador da Delta, escrita pelo também alentejano José Luís Peixoto. Quem esperar uma biografia escrita num estilo mais tradicional, pode esquecer a ideia, porque não é isso que encontrará.

            Na verdade, Peixoto transforma o senhor comendador ou o senhor Rui, como é mais frequentemente tratado, numa personagem de romance que nos vai dando a conhecer, através de momentos retrospetivos e aleatórios, o seu trajeto. Quem lê fica com a sensação de que se trata de um romance de memória. O leitor é guiado pelas memórias do senhor Rui, que através do espaço interior da personagem, num longo monólogo, vai contando pedaços da sua vida. O José Luís Peixoto fez um bom trabalho, porque, efetivamente, aquilo que há a conhecer do senhor Rui ou pelo menos aquilo que o ancião não se importa que saibam não daria para encher, num discurso mais direto as muitas páginas do livro.

            Destaca-se, no percurso do senhor Nabeiro, a infância sofrida na ditadura salazarista. Não muito diferente da que teve o meu pai, por exemplo. Tal como ele, também o meu pai começou por trabalhar aos dez anos, como carpinteiro, com o seu pai. Ele e os muitos irmãos. Eram onze irmãos vivos. Neste momento, restam o meu pai e mais quatro. Não convivi com todos de igual forma e três dos que mais me diziam já não estão cá. O meu pai contava-nos histórias mirabolantes das sua infância, com exageros pelo meio, mas que faziam o meu primo Paulo João (afilhado dos meus pais) rir-se até às lágrimas e  pedir: “Ó tio João, conte outra!” O meu tio Tónio (António, pois claro), sufocava de tanto rir e, nós também, obviamente. Conhecíamos as histórias de cor, mas invariavelmente, de quinze em quinze dias, depois do jantar, em casa do meu tio, em Ramalde, ouvíamos as histórias como se fosse a primeira vez e a veia artística do meu pai para as contar. Risada certa. Desde propor uma troca de meias com o avô por supostamente não gostar da cor e deixar-lhe na gaveta umas meias de senhora rotas. Durou pouco a esperteza, porque foi obrigado a devolvê-las. Ou a história do meu tio Manel que roubou uma melancia e escondeu-a para ninguém saber, mas comeu-a quente, o que lhe causou uma disenteria terrível, ou ainda o estratagema montado para poderem comer a galinha que cirandava pelo quintal e o meu pai decide dar-lhe uma fisgada para a matar, no entanto, a mãe viu-a a rodopiar e pensou que ela estava doente e, por isso, enterrou-a e não houve galinha para ninguém… Enfim, um tempo duro de fome e de miséria. A infância da minha mãe acabou por ser um pouco melhor, por ser a mais nova dos irmãos e, com a ajuda dos patrões para quem os meus avós trabalharam, da família Ferreira Gomes, primeiro em Penafiel e depois no Porto, lá conseguiu estudar e fazer o magistério primário. No entanto, quando tinha apenas onze anos, só via a mãe de três em três meses, por estar em Penafiel, em casa dos senhores e a minha avó ter regressado às suas origens, a Chã de Ferreira.

            Rui Nabeiro tem uma bela história vida. Com muito trabalho construiu o património imenso que hoje possui. Um empresário que fez da Delta o seu projeto de vida, a par da família que construiu com a sua Alice (a esposa). Destaca-se a sua generosidade e a sua perseverança. Meteu na cabeça que haveria de ser rico, mas queria ser um rico diferente. Um homem que nunca gostou de dizer não e que  ajudava a quem ele recorria, por gostar de ver as pessoas a sorrir. Privou com Mário Soares e outras figuras ilustres da política. Percebemos as dificuldades que o senhor Rui sentiu para estabelecer negócios em Timor e também em Angola, mas fica o retrato de um homem otimista, que contribuiu e contribui para o crescimento da terra que o viu nascer e que apresenta uma postura diferenciada no mundo dos negócios. Todos gostam de Rui Nabeiro. Fiquei com a sensação que metade de Campo Maior é habitada pelos seus inúmeros afilhados. Os seus funcionários têm seguro de saúde entre outras regalias e a Delta construiu um centro educativo (com apoio estatal) e que os filhos dos seus funcionários frequentam. Um homem que se diz socialista e democrata e que, de facto, o põe em prática. Quando as ações corroboram as palavras, a coerência é inabalável. Um verdadeiro exemplo de cidadania e de humanismo. Com noventa anos, continua a ir diariamente à Fábrica, a menina dos seus olhos, e a tomar decisões. Recusou ofertas escandalosas para comprar a Delta. Diz que nem ele sabia contar dinheiro com tantos zeros (e estava habituado a muitos), porque um sonho não tem preço.

            O senhor Rui fica muito bem na fotografia, desconhecemos-lhe defeitos e a história do contrabando, que era muito comum na raia durante o salazarismo e no qual participou, fica por contar…

            Fica a admiração profunda pelo senhor Nabeiro, mas em simultâneo a certeza de que pouco foi desvendado. Ninguém vive noventa anos sem mácula. O senhor Rui há de ter as suas e não mancharia nada a excecionalidade do seu bom coração e do seu caráter. Fica-nos a sensação ou de estarmos na presença de um santo ou na de um ser humano pouco credível dada a sua excecionalidade. Ninguém tem apenas virtudes, mas são estas apenas que nos são narradas. A publicação mediática do livro foi uma bela homenagem, no dia em que festejou os seus noventa anos, mas não ficamos a conhecer verdadeiramente o protagonista. Trata-se de uma constatação e não propriamente uma crítica. Compreendo perfeitamente os seus motivos.

Pelas mesmas razões, quanto a biografias, eu sou mais como Pessoa, até o 13 de junho de nascimento lhe copio, e a data da minha morte ditará Deus (nunca antes dos noventa e com saúde, caso contrário terá de me ouvir). Entre ambas todos os dias me pertencem. Biografia feita.

 

Nina M.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

A Saramago e Pilar

O amor desagua onde nasce

No mesmo peito que o germina

Vejo o meu em tua face

Retorna sempre à alma digna


Se antes de ser já o era

Abre-se súbito em linda flor

Ao romper a primavera

Dá-se o encontro. É amor.


Haja o sol, haja a lua

Outros olhos de luar

Dádiva serena e pura

O amor que se quer dar


Se bem se repara nele

Regressa aonde nasceu

À alma de quem o sabe: aquele 

Que  nunca o perdeu


O amor desagua onde nasce

Em Blimunda e Baltasar

Era já sem ser sabido

 De Saramago e de Pilar













domingo, 2 de maio de 2021

Mãe

 Mãe!

Criatura divina
O colo de Deus

Amparo, ternura
Amor que se adivinha

Num olhar doce e suave
É a vida que sustinha

No seu ventre sagrado


sábado, 1 de maio de 2021

Crónica de Maus Costumes 230

 

Memorial de Saramago

 “Olharem-se era a casa de ambos”. Uma das belas frases que se pode ler no Memorial do Convento, de Saramago, em relação ao par romântico Baltasar Sete-sóis e Blimunda Sete-luas (assim batizada sem cerimónia, apenas por alcunha do padre Bartolomeu de Gusmão, o deus criador da passarola).

A publicação do livro data de 1982. Um período literário áureo de Saramago. Veja-se: 1980 – Levantado do Chão; 1982 – Memorial do Convento; 1984 – O Ano da Morte de Ricardo Reis; 1986 – Jangada de Pedra; 1991 – O Evangelho Segundo Jesus Cristo; 1995 – Ensaio sobre a Cegueira… Não continuo, porque a produção literária de Saramago é qualitativa e quantitativamente significativa! A sua genialidade emociona-me.

Pilar del Río descobriu primeiro o escritor e, depois, o homem, em 1986. Comprou casualmente o Memorial do Convento e regressou à livraria para comprar toda a restante obra traduzida. Rendeu-se ao Ano da Morte de Ricardo Reis, veio a Lisboa para fazer o trajeto do Hotel Bragança ao Cemitério dos Prazeres (Feliz ironia! Não sentirei prazer algum por habitar em tal sítio!) onde estava o nosso Pessoa, no romance de Saramago, e quis conhecer o autor que tão profundamente a impressionara. Assim começaria uma bela história de amor entre um homem substancialmente mais velho e uma ainda jovem mulher (ele tinha 63 e ela 36). Trocam correspondência, depois, Saramago visitou-a em Espanha. Ficaram juntos e em 1988 casavam. Pilar deixou o seu trabalho e o seu país para acompanhá-lo, tornando-se sua tradutora, anos mais tarde. Ao que parece, Saramago sentiu a terra tremer quando se deu o encontro, tal como descreveu em Jangada de Pedra. Pilar saiu com a certeza de que qualquer coisa aconteceria. Aconteceu o amor. Só não sabiam ambos que Saramago já o tinha adivinhado na escrita do Memorial, no plano da história de Baltasar e de Blimunda. A mesma letra inicial do nome deixa adivinhar ao leitor a identificação e a complementaridade rara de ambos. Confirmam-no os apelidos sete-sóis e sete-luas, respetivamente. O dia e a noite, em sinal de renovação, a perfeição e a totalidade traduzida no número sete. Curiosamente, Baltasar não tem a mão esquerda, perdida na guerra. Usa um gancho em seu lugar e, a certa altura, o narrador mordaz, com a sua fina ironia, mostra a falta que a mão lhe faz. A ele e aos homens, já que uma lava a outra e as duas a cara. Só Deus não precisa da mão esquerda, numa clara alusão à falta de informação bíblica sobre a mão esquerda de Deus. Pelos vistos só teria a direita, a única referenciada e ao lado da qual se sentam os eleitos. Assim se explica o estigma que afetou os canhotos, olhados com desconfiança, e dos que ousam prevaricar as leis divinas. Eu sou canhestra. O meu filho também. Aceito o lado esquerdo da mão de Deus (se não for maneta) e deixo a direita para repouso do coração do nosso Antero. Porém, a falha da mão era compensada com a presença de Blimunda, a mulher que via o interior e as vontades alheias se estivesse em jejum e que jurara nunca olhar Baltasar por dentro. Colheria a sua vontade, antes da sua morte no Auto de Fé. Assim terminava o encontro de ambos. Tal como começara, num Auto de Fé.

A relação amorosa entre Blimunda e Baltasar, nada convencional à época, pois não eram casados, opõe-se às convenções sociais e religiosas. Blimunda não quis casar e vivia livremente o amor, mas de forma verdadeira e cúmplice, por oposição aos casamentos de conveniência, mas sem amor. Pilar e Saramago desafiaram as convenções sociais no que à idade diz respeito, mas também em relação à identidade de cada um. Hoje, Pilar recusa ser a viúva de… tal como recusara antes ser a mulher de… Pilar é Pilar. Uma jornalista que perdeu o amor da sua vida e que diz que Saramago foi uma maldição, por não conseguir gostar de mais ninguém depois dele. Vive de e para a memória… De Saramago, obviamente, patente na fundação que dirige. Haja coragem, porque viver com essa consciência e com essa fatalidade é peso certo. Já ele, o génio, dizia de sua Pilar:

“Ela nasceu em 1950 e eu em 1922. Tenho uma sensação esquisita quando penso que houve um tempo em que eu já estava aqui e ela não. É estranho para mim entender que foi preciso passar 28 anos desde o meu nascimento para que chegasse a pessoa que seria imprescindível em minha vida... Quando a conheci, eu tinha 63 anos, era um homem já velho. Ela tinha 36 anos. Os amigos diziam-me: “Isso é uma loucura, um disparate! Com essa diferença de idade.” E eu sabia, mas não me incomodava. Agora não posso conceber nada se Pilar não existisse. Quando ela não está, a casa se apaga. E quando volta, se reativa”.

Tal como a lareira que Blimunda e Baltasar ateiam, que ilumina, aquece e sacraliza o espaço onde o “casamento” acontece sem testemunhas. Ler Blimunda e Baltasar é ler Pilar e Saramago. É saber que o mistério acontece e que a permanência deixa de ser escolha e passa a necessidade. É olhar e sentir a casa de ambos.

 

Nina M.