Diz Almodóvar que
a realidade supera sempre a ficção. Obviamente, pode-se questionar tal
premissa. Ao vermos séries como “Shameless”,
traduzida para português como “No Limite”,
acredita-se que a ficção exagera no sarcasmo que imprime às situações
retratadas. Damos connosco a pensar que a realidade do ecrã está sobremaneira
exagerada, mesmo tratando-se da realidade norte-americana, e dormimos
descansados sem pensar muito no assunto.
Quando a vida
nos sacode com o seu cinismo, percebemos que Oscar Wilde tem razão quando
afirma que “um cínico é aquele que sabe o preço de tudo, mas não conhece o
valor de nada.” Não faltam cínicos nesta vida. A própria vida é muitas vezes cínica
e também sarcástica. O sarcasmo é primo direito do cinismo, mas mais
contundente. Não deixa de ser curioso como o termo cinismo evoluiu, adquirindo
um sentido negativo. Originalmente, um cínico era aquele que seguia a corrente
filosófica dos cínicos, criada por Antístenes, discípulo de Sócrates, e que
consistia em viver na virtude, de acordo com a natureza. Mais tarde, Diógenes
de Sinope levou o cinismo aos extremos e os cínicos passaram a viver na rua:
comiam, andavam descalços e satisfaziam todas as suas necessidades
fisiológicas, incluindo as sexuais, à vista de todos. Por isso eram muitas
vezes comparados e apelidados de cães. Mostravam desprezo pelas convenções
sociais e ostentavam falta de pudor. O cínico pretendia atingir a felicidade
através da libertação da preocupação em relação à saúde, morte, etc. Assim, o
cínico passou a significar todo aquele que é insensível ao sofrimento alheio.
Fechado o parênteses, devo admitir que a vida se mostra amiúde indiferente ao
sofrimento de muitos, sendo, portanto, cínica.
Quando um aluno
nos confia que o pai morreu e percebe no nosso semblante um esgar, um arrepio
de solidariedade e comiseração e se apressa a consolar-nos, garantindo que foi
o melhor que podia ter acontecido à família, pois, desta forma, a violência
terminava, não me ocorre outra palavra além de cinismo para qualificar a
situação.
Estas coisas
realmente acontecem. É o retrato do país real. Depois do diálogo improvável e
sempre que o recordo, parece-me uma cena que poderia ter ocorrido num dos
episódios de Shameless, em que o pai,
um solteiro ébrio e drogado incorrigível, deixa os seus seis filhos entregues a
eles próprios. Infelizmente não é ficção. No meio dos estilhaços, são sempre os
mais frágeis que padecem. A estas vítimas, pouca gramática e literatura lhes
consigo ensinar, porque não têm predisposição para ouvir nem para pôr em
prática, mas como condená-los por isso, se o seu espírito é assaltado por
preocupações maiores? Muitas vezes sentimos que falhamos a missão, já que o
objetivo maior é ensinar, mas também é certo que a vida não é só feita de
sabedoria. Talvez não lhes desperte o gosto pela aprendizagem, que é o que mais
desejamos, porém, se conseguirmos ser vistos como exemplo, já é uma grande
vitória. Se me confiam determinados desabafos, então, uma parte do trabalho foi
conseguida, a gramática e o Camões pode ser que venham a seu tempo também...
Nina M.
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