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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Crónica de Maus Costumes 75



Diz Almodóvar que a realidade supera sempre a ficção. Obviamente, pode-se questionar tal premissa. Ao vermos séries como “Shameless”, traduzida para português como “No Limite”, acredita-se que a ficção exagera no sarcasmo que imprime às situações retratadas. Damos connosco a pensar que a realidade do ecrã está sobremaneira exagerada, mesmo tratando-se da realidade norte-americana, e dormimos descansados sem pensar muito no assunto.
Quando a vida nos sacode com o seu cinismo, percebemos que Oscar Wilde tem razão quando afirma que “um cínico é aquele que sabe o preço de tudo, mas não conhece o valor de nada.” Não faltam cínicos nesta vida. A própria vida é muitas vezes cínica e também sarcástica. O sarcasmo é primo direito do cinismo, mas mais contundente. Não deixa de ser curioso como o termo cinismo evoluiu, adquirindo um sentido negativo. Originalmente, um cínico era aquele que seguia a corrente filosófica dos cínicos, criada por Antístenes, discípulo de Sócrates, e que consistia em viver na virtude, de acordo com a natureza. Mais tarde, Diógenes de Sinope levou o cinismo aos extremos e os cínicos passaram a viver na rua: comiam, andavam descalços e satisfaziam todas as suas necessidades fisiológicas, incluindo as sexuais, à vista de todos. Por isso eram muitas vezes comparados e apelidados de cães. Mostravam desprezo pelas convenções sociais e ostentavam falta de pudor. O cínico pretendia atingir a felicidade através da libertação da preocupação em relação à saúde, morte, etc. Assim, o cínico passou a significar todo aquele que é insensível ao sofrimento alheio. Fechado o parênteses, devo admitir que a vida se mostra amiúde indiferente ao sofrimento de muitos, sendo, portanto, cínica.
Quando um aluno nos confia que o pai morreu e percebe no nosso semblante um esgar, um arrepio de solidariedade e comiseração e se apressa a consolar-nos, garantindo que foi o melhor que podia ter acontecido à família, pois, desta forma, a violência terminava, não me ocorre outra palavra além de cinismo para qualificar a situação.
Estas coisas realmente acontecem. É o retrato do país real. Depois do diálogo improvável e sempre que o recordo, parece-me uma cena que poderia ter ocorrido num dos episódios de Shameless, em que o pai, um solteiro ébrio e drogado incorrigível, deixa os seus seis filhos entregues a eles próprios. Infelizmente não é ficção. No meio dos estilhaços, são sempre os mais frágeis que padecem. A estas vítimas, pouca gramática e literatura lhes consigo ensinar, porque não têm predisposição para ouvir nem para pôr em prática, mas como condená-los por isso, se o seu espírito é assaltado por preocupações maiores? Muitas vezes sentimos que falhamos a missão, já que o objetivo maior é ensinar, mas também é certo que a vida não é só feita de sabedoria. Talvez não lhes desperte o gosto pela aprendizagem, que é o que mais desejamos, porém, se conseguirmos ser vistos como exemplo, já é uma grande vitória. Se me confiam determinados desabafos, então, uma parte do trabalho foi conseguida, a gramática e o Camões pode ser que venham a seu tempo também...
Nina M.

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