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sábado, 30 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 252

 

Alienação parental

                Sei que uma das crónicas mais ternas que li de Lobo Antunes falava da sua relação difícil com o pai. Um pai austero, cirurgião, médico que sente nas suas mãos a vida e a morte dos seus pacientes. Um pai exigente e que queria um percurso de sucesso para os filhos, mas um pai de poucas falas, severo, a quem não era fácil agradar e homem de poucos mimos.

                Calhou a Lobo Antunes a rebeldia suficiente para irritar o pai e talvez se sentir pouco amado. Aliás, nas suas crónicas, os desabafos em relação à falta de carinho dos pais são vários. Valia-lhe os avós e umas tias que lhe ensinavam os mistérios dos afetos. Pressinto nessas crónicas uma necessidade urgente de ouvir o que nunca ouviu do seu progenitor. Ouvir-lhe dizer que sentia orgulho nele e no seu trajeto. Ouvi-lo dizer que mesmo não tendo sido um aluno brilhante de medicina, por só se interessar pela escrita, acabando por trocar a psiquiatria pela ofício de escritor, afinal não se tinha saído mal. Lobo Antunes até lhe adivinha a satisfação, mas nunca ouviu as palavras que o confirmassem. Ficamos com a sensação de que ainda hoje, já velho, continua a perseguir a aprovação e a admiração paternas. Um vazio que ficou por colmatar. Naquele tempo, na primeira metade do século XX, a vida era difícil. A preocupação com o sustento da casa, em tempo de miséria, não deixava espaço para ternuras e o relacionamento entre pais e filhos pautava-se por uma distância glacial, um relacionamento fundamentado mais na autoridade do que no amor. Os pais faziam-se respeitar e os filhos temiam os seus progenitores. Hoje, a proximidade é maior e ainda bem. O problema começa a ser o inverso: a existência de pais que confundem papéis, incapazes de fazer prevalecer a sua autoridade e de estabelecer limites comportamentais, gerando crianças e futuros adultos com pouca tolerância à frustração. Infelizmente, para conseguirmos viver, precisamos de saber lidar com os nossos fracassos e com as adversidades que a vida nos vai oferecendo ao longo do nosso percurso. Apesar disso, creio que vale mais pecar por excesso de amor do que por falta dele.

                A crueza parental (que existe) deixa cicatrizes profundas naqueles que a sofreram. Uma criança que cresce com a falta de amor e de carinho, com a falta de compreensão pelas suas feridas, torna-se, não raras vezes, um adulto inseguro, com baixa autoestima e com uma necessidade constante de se sentir amparado por alguém. Cairá facilmente nas mãos do que primeiramente lhe abrir os braços para depois o maltratar, repetindo-se o padrão. A pessoa vai assumindo uma culpa que não tem, sentindo-se um incapaz, mesmo que, na verdade, seja um vencedor, dadas as adversidades ultrapassadas. Conheço casos destes, de gente adulta que não se consegue valorizar, porque os seus progenitores nunca foram capazes de lhes demonstrar o afeto. Talvez gente sofrida também, cheia de dores próprias, incapaz de ver a dor dos filhos ou então, vendo-a, ignoraram-na. Ficam mágoas enormes por resolver e as crianças pequenas, agora adultas, à espera do reconhecimento do erro e do pedido de desculpa que tarda a chegar ou nunca vem. O afastamento será inevitável para que a paz não seja perturbada, mas o mal está feito e o coração de quem já foi pequeno foi demasiadas vezes amarrotado e enxovalhado, como trapo de chão.

Deveria ser proibido fazer estas maldades. Os filhos têm o direito de serem amados e os pais o dever de amar, independentemente das idiossincrasias dos filhos. Seria bom que todas as crianças crescessem sabendo que quando o pai ou a mãe se zanga é o comportamento errado que está em causa e não o amor que se tem pelo filho. Procuro sempre deixar isto claro aos meus dois. A mãe amá-los-á para sempre até ao infinito, apesar da asneira. O amor não está em causa, mas não pode tolerar esse comportamento.

                Custa-me ver adultos sofrerem por mazelas antigas e também crianças maltratadas a quem os pais, zangados com a vida, responsabilizam pelas suas agruras. Como se eles tivessem pedido para vir ao mundo e fossem responsáveis pelos adultos. Não se diz a um filho que ele é um encargo, que se está farto de o aturar ou que não faz nada de jeito ou que é um inútil. São palavras que nunca serão esquecidas, nos mais frágeis, serão devastadoras. Muitos conseguem varrer a sujeira para debaixo do tapete, até ao dia em que este fica tão sujo que é necessário lavar.

O amor é bom de se dizer e de se sentir, por isso, quando antes de ir para a escola, a minha pequenina me larga um adoro-te e eu correspondo e o meu filho adolescente, já com a vergonha ao peito, mas deixa um até logo, mãe, no seu tom carinhoso, o meu dia foi ganho e penso que alguma coisa hei de estar a fazer bem…

 

Nina M. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Carta de amor

Talvez não saiba amar
à maneira do teu sonho
Talvez saiba fazer desesperar
Numa hora aflita em que me ponho

E saberia apesar de tanta dor
Amar por uma eternidade
Envolver-me no sonho indolor
Do amor sem tempo e sem idade

Mas rasga-se a carne 
E rompem-se os ossos
Sob uma angústia corrosiva

Ao ver o frio do mármore
Atravessar-me os olhos
Sentir a vida evasiva



sábado, 23 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 251

 Manifestantes de tasca e de sofá

                Faço a vontade ao meu amigo escritor, Luís Altério, que após ter lido o meu comentário à sua publicação, sugeriu que o transformasse numa crónica. Ora, na verdade, agradeço a sugestão, porque o tema até tem pernas para andar…

                O Luís manifestava a sua incredulidade perante o comportamento apático dos portugueses perante as subidas constantes dos combustíveis, que atingem valores incomportáveis e questionava se os portugueses seriam reivindicadores de sofá. O meu comentário confirmava-lhe isso mesmo. O português é, por natureza, manifestante de tasca ou de sofá. Ainda brinquei, dizendo que para haver manifestações sérias neste país seria preciso que acontecesse uma hecatombe ao clube de coração dele, o seu Benfica. Eu, por mim, prendia já o Vieira e arrolava o Rui Costa como testemunha e depois, quando os benfiquistas, muito indignados saltassem para a rua, os indispostos com os preços do gasóleo, pimba, infiltravam-se, erguiam uns cartazes e poderia ser que se conseguisse alguma visibilidade…

 Nem eu nem ele somos originais: Miguel Torga escreveu-o muito antes. O português, em conversa de café, estica o peito e era um havíamos de fazer isto e aquilo, mas quando surgem ações concretas, acobarda-se, geme desgraças e não mexe uma palha para lutar pelos seus direitos e pela sua dignidade. Encontra sempre razões válidas para não se incomodar e isto fere-me. Profundamente. As marcas quer do poder régio quer da ditadura fazem-se perenes. Habituamo-nos a obedecer mansamente, a amolecer como o esparguete em água que ferve e, sem força, facilmente abandonamos a nossas convicções e a luta. O que mais me aborrece é saber que os representantes escolhidos para nos governar sabem que é assim. Sabem de antemão que até os olhos podem arrancar… Poucos se incomodarão e esses poucos serão fáceis de silenciar.

                Ouço, atónita, nas notícias, o desconto anunciado, para supostamente auxiliar as famílias nessas despesas. Estas poderão recuperar até à quantia máxima de cinco euros por mês, no que se refere ao abastecimento de combustível, depois de fazerem umas quantas operações burocráticas ou não estivéssemos nós no país que adora papelinhos, sejam eles nos moldes tradicionais sejam eles de registo informático. Só a trabalheira que implica é um convite à desistência do reembolso. Eles sabem-no! Fico siderada e questiono se serei a única a considerar isto uma piada de muito mau gosto porque, como diria o humorista, “é gozar com quem trabalha”, e eu, que nem sou de asneiras, sai-me um chorrilho de impropérios dirigidos às boas intenções do senhor Costa e dos seus correligionários, sugerindo que guardem os cinco euros no orifício traseiro do seu organismo!

                Depois, aparece mais um iluminado a sugerir que a solução reside na escolha do veículo elétrico e que talvez o preço dos combustíveis deva ser alto para promover uma economia sustentável. Se conhecesse o país onde vive, saberia que uma família que aufira dois salários mínimos mensais não tem dinheiro para comprar carros elétricos, dado o seu preço exorbitante. Mesmo uma família de classe média tem de ponderar bem, porque o diferencial no preço dá para muito litro de combustível! Já agora, seria bom que as pessoas se informassem bem sobre as energias limpas. Só são limpas para os europeus burgueses, porque nos países de onde extraem os minérios raros para o fabrico das baterias, sobeja um rasto de destruição - seca, terra árida e infértil, mas é lá longe e o que os olhos não veem o coração não sente. Esquecem-se que no dia que o planeta explodir, não vai perguntar se o mal é oriundo da Ásia ou da Europa. É de todos.

                De modo que aceitar placidamente todas as tropelias e desgovernos parece ser o destino dos portugueses. Qual tragédia grega! Qual fatum! Encolhemos os ombros e consideramos que reclamar não adianta de nada, perante governantes surdos e insensíveis, que aprovam leis sem as discutir e negociar com quem quer que seja. Assim funciona o XXII Governo da República Portuguesa! Todos os setores que tenham de negociar com os representantes do povo sabem que não serão escutados nem haverá negociação. Pela primeira vez, a ANTRAM abandonou as negociações. Sentiram-se traídos. O Governo aprovou leis que não foram discutidas nas negociações. Os reivindicantes poderão nem ter razão relativamente ao teor (não pensei nem me informei o suficiente sobre o assunto), mas têm, com certeza, razão no que diz respeito à postura do Governo.  Fizeram o mesmo aos sindicatos de professores! Estiveram oito horas à espera sem serem ouvidos! É uma vergonha e uma desconsideração pelas associações representativas de trabalhadores. Uma pulhice travestida de comportamento ditatorial. Portanto, os representantes do povo, na verdade, desconhecem e não querem conhecer as reais dificuldades pelas quais o povo passa, porque uma boa parte dos políticos portugueses é oriunda de uma elite burguesa e abastada que desconhece as agruras da vida e para quem tudo foi sempre demasiado fácil. Não se exige que passem pelas mesmas necessidades, mas exige-se respeito, empatia e autenticidade na atuação!

                Ouvir gente que trabalha diariamente, às vezes mais do que o que lhes compete, e que mesmo assim não saem do limiar da pobreza, resignar-se, encolher os ombros, deixando escapar que “eles” são todos iguais e que não querem saber da política, deixa-me perplexa e irada. Ouvir de gente instruída a mesma ladainha ainda me faz pior! Se pudesse, obrigava-os a todos a ler atentamente o Germinal, de Zola. Lembro-me bem da pedrada no charco que a obra me causou, ainda gaiata, na casa dos vinte e poucos anitos… A coragem daqueles mineiros! A fome e a miséria trazida pela falta do trabalho, mas a dignidade e a luta que não podia ser abandonada! A luta dói. A greve dói. Nenhuma melhoria das condições de vida foi oferecida com gentileza. Enquanto o povo português não compreender isto, continuará complacente com os desmandos governativos, por mais torpes que eles sejam…

Desde que haja pão e circo, que é como quem diz bola à fartazana, a vida segue o seu curso como sempre foi: exploradores e explorados a coabitarem numa estranha paz social. Uns a acharem que as massas se dominam assim, pela força e pelo temor e os outros resignados, porque contra a força não há argumentos.

 

Nina M.

 

sábado, 16 de outubro de 2021

Se um dia a tua alma

Se um dia a tua alma 

Se desviasse da minha

Lesta e sem olhar para trás

Levantar-se-ia um tornado

Em jeito de protesto

Sobejariam os destroços

O odor amargo da desilusão

Não seria mais, a alma, a mesma

A reaprender o caminho da solidão

Vencida!

Ela, que jurou não se render ao cinismo,

Recolheria apressadamente a mão

Tolher-se-ia o seu rosto de vergonha

Depois de aberta a porta à sua intimidade

E vê-la assim violada, esta alma,

Seria dor fragmentária da carne

O mais sério convite ao cinismo

O mais sério convite à rendição!


Crónica de Maus Costumes 250

 

Ideal, angústia e compromisso com a vida

Criar filhos não é fácil. Nunca terá sido e em cada época, há uma geração com as suas dores.

A infância da geração dos meus pais foi extremamente curta e a dureza da vida impunha a dureza dos afetos. Crianças tornadas adultas aos dez e onze anos, idade com a qual começavam a trabalhar. O sentido da vida era, talvez, o da sobrevivência e uma resignação calada e funda de um destino determinado à nascença. Reinava um espírito servil, capaz de irritar as entranhas do mais tranquilo. A lei do mais forte sobre o mais fraco, que ainda hoje vigora, porque na verdade, ao longo dos tempos, as revoluções levantadas sob a égide da justiça, não colmataram as injustiças reinantes e, como tal, os vícios perpetuam-se e as assimetrias também. Continuamos sob o lema: “Manda quem pode e obedece quem deve”.  Os que obedecem, se quisessem a sublevação, unidos, teriam muita força, porém, o problema maior está no que fazer em seguida, porque prova a História que encontrar líderes capazes e íntegros que se batam pelo bem-estar de uma nação inteira é quase missão impossível. Perdem-se, a maioria deles, nas malhas de um elitismo afastado da realidade que nunca pisaram. Questiono-me, por isso, se a humanização será um caminho possível, porque os homens fazem questão de chacinar o ideal e de não o deixar prosperar. Desconfio mesmo que as elites se aproveitam dele e o usam em vão para a sua autopromoção, numa sede insaciável de poder. Inebriados e febris, vivem uma vida faustosa, longe dos horrores do mundo. Qualquer homem tolera a miséria desde que ela esteja afastada dos seus olhos.

Estes pensamentos são verdadeiramente angustiantes porque, a serem verdadeiros, colocam-nos face a um absurdo inconciliável com os ideais democráticos. A ser assim, somos obrigados a render-nos ao servilismo e à resignação dos nossos antepassados, já que independentemente da nossa vontade, as elites sempre controlam as massas, normalmente pelo medo, e sempre as usarão em seu benefício, oprimindo os mais débeis para satisfação de uns quantos.

A felicidade está, dizem alguns, na capacidade de baixar expetativas e na capacidade de aceitação. O segredo será abraçar o estoicismo e deixar seguir o curso do mundo.

“ Segue o teu destino,/Rega as tuas plantas,/Ama as tuas rosas./ O resto é a sombra de árvores alheias./ A realidade/ Sempre é mais ou menos/ Do que nós queremos […]” – É o ensinamento douto do Ricardo Reis, heterónimo de Fernando Pessoa, instigando à indiferença e à ataraxia. O que não me diz respeito não me deverá incomodar, talvez porque também ele pressentisse a luta inglória e perdida. Não me deixa de causar bulício nas entranhas. O mesmo bulício que me causou ouvir uma psicóloga a aconselhar os professores, por altura da última grande greve, a darem a batalha como perdida. A aprenderem a aceitar tranquilamente a derrota para que a angústia não nos engolisse. Para que a dor não nos embrulhasse. Sei que as minhas entranhas abalaram. Senti-as tremer a formarem um nó. Eu sei. Viverei eternamente angustiada, mas não é o homem ser feito de angústia? Entre a angústia de uma aceitação injusta e uma angústia trazida pela perda do sonho que se almejou, talvez escolha a segunda.

A aceitação plácida das injustiças torna-nos cúmplices das atrocidades. A ironia é que independentemente da nossa vontade, de certa forma, todos nós contribuímos para elas. Essa consciência aterradora das coisas é implacável e ou a alma encontra refúgio e a sua transcendência ou o nosso olhar sobre o mundo desumaniza-se, degrada-se e torna-se vazio. Nada pior do que um olhar vazio, seco e morto. Receio-o, pois nesse dia estarei morta. De modo que a rejeição do estoicismo, em certas circunstâncias, possa representar a escolha pela vida, mesmo que esta nos traga muitos escolhos.

Em última análise, poder-se-á dizer que sentir angústia é sinal de que se está vivo. É sinal de lucidez. Trocá-la por um alheamento ou um torpor coletivo não confere sentido à existência, antes a apaga e a torna inútil. Talvez seja esse o projeto mais difícil de traçar e de alcançar: o de justificar diariamente a existência, saber que se persegue uma quimera exponencialmente maior, nem sempre de contornos definidos. Saber que nos perdemos demasiadas vezes pelo caminho e ter a hombridade de recomeçar. Construir-se e reconstruir-se à exaustão, as vezes necessárias, tantos quantos os dias da nossa vida. Nem o estoicismo cabe nesta medida justa nem o triunfo é garantido.

Alea jacta est.

 

Nina M.

 

 

sábado, 9 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 249 Ainda a escola…

                 Tenho visto, nas redes sociais, o desânimo e a desmotivação da classe docente. Não é para menos. A tutela não merece qualquer consideração da nossa parte e as pessoas que enviam às escolas, na figura de inspetores, certamente, às vezes, também não ajudam.

                Uma colega de profissão, relativamente conhecida, por colaborar com a revista Visão (desculpem a referência, que faço sem qualquer objetivo publicitário) e também por já ter obra publicada dava conta, no seu artigo, da sua experiência, por ter sido selecionada, ao que parece aleatoriamente, para uma conversa com as senhoras inspetoras, sobre avaliação, no intuito de saber como esse processo era aplicado na sua escola. Quiseram as senhoras compreender como a colega distinguia a avaliação formativa da avaliação sumativa, que retorno dava aos alunos, no sentido de os orientar nas suas aprendizagens, que processos de recolha de informação utilizava, se havia uniformização de critérios de avaliação entre os diferentes grupos disciplinares e se os instrumentos e se os métodos de avaliação usados são os mesmos, interrogando a colega, se não achava que os professores podiam melhorar as suas práticas pedagógicas. A professora foi respondendo a todas as questões, admitindo os aspetos que poderiam ser melhorados. Foi, depois, exortada a explicar a existência de classificações inferiores a dez nas pautas, tendo feito, supostamente, uma avaliação formativa correta. A colega tentou mostrar a dificuldade que os alunos revelam em reter a informação e deu um exemplo muito concreto da estratégia utilizada durante uma aula, pedagogicamente irrepreensível, para que os alunos soubessem apenas que Fernando Pessoa e o Modernismo surgem nos inícios do século XX. Para seu desespero, na aula seguinte, os seus alunos ter-lhe-ão respondido barbaridades. Perante este exemplo, solicitou a ajuda das senhoras inspetoras, que lhe ensinassem outra estratégia, já que lhe tinham sugerido que talvez não tivesse utilizado o método correto. Terá obtido uma resposta seca e sarcástica: “Não estamos aqui para ensinar”.

Ainda que isso seja verdade, também mereciam ouvir que se nada têm para ensinar, então, só  a tinham feito perder o seu precioso tempo, uma vez que é da discussão, entenda-se diálogo, que nasce a luz. Portanto, se a colega estava às escuras, às escuras continuou, senhoras inspetoras! Talvez fosse pedagogicamente aconselhável, usarem com os professores as mesmas estratégias que pretendem que eles implementem com os seus alunos. Se apontamos o erro, devemos corrigi-lo e apontar o caminho para que este deixe de errar. Se um aluno não melhora com um professor demasiado severo e pouco empático, os professores também não o conseguem fazer com uma tutela que se comporta de forma semelhante.

Não pude deixar de sorrir ao ler o testemunho da colega, porque, na verdade, o que a inspeção pretendia saber era se o projeto MAIA (Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica) estava a ser implementado e como estava a ser executado. Queria garantias de que havia a consciência de que tinha de haver momentos de avaliação formativa e sumativa e que esses devem ser perfeitamente distinguidos; pretendiam confirmar se era dado “feedback” aos alunos e como o faziam; que documentos de apoio e processos de recolha utilizavam. Queriam que a colega compreendesse (e a colega compreendeu) que é possível melhorar as práticas pedagógicas e as escolas adotarem uma política avaliativa interdisciplinar. E a colega fazia precisamente essa reflexão. Urge alterar comportamentos padronizados.

                As mudanças são difíceis, mas por vezes, necessárias. Todos nós resistimos à mudança, porém, devemos ter a abertura para ouvir, ler e refletir sobre o que pode ser pertinente. O Ministério da Educação aborrece-me muitas vezes e não é pessoa de bem. Não esqueço o comportamento deplorável e intimidatório da tutela na última grande greve dos professores nem o comportamento cobarde de sindicatos e de colegas também… No entanto, no que diz respeito ao PASEO (perfil do aluno à saída do ensino obrigatório), ninguém em sã consciência poderá dizer que o que lá está não é desejável. É, pois! Desejável, pertinente e necessário! A crítica que pode ser apontada é a de que o documento apresenta pensamento e teoria, mas não esclarece de que forma as escolas o devem colocar em prática. Foi para isso que serviram as formações no âmbito do projeto MAIA. Quem as fez sabe que tiveram de pensar numa política de avaliação comum para a escola, transversal aos grupos disciplinares, que assegurasse os princípios veiculados no PASEO e no Decreto-lei 55, de 2018. Não foi fácil. Significou construir de raiz, pensar num projeto que fosse viável aplicar na sua escola e fazê-lo com seriedade. E nesta questão, a tutela tem razão. Os professores podem melhorar a sua prática no que à avaliação diz respeito. Faz todo o sentido que os alunos conheçam com exatidão os critérios pelos quais vão ser avaliados. Saber meramente as percentagens não chega! Os alunos precisam de compreender e de conhecer os perfis de desempenho para melhorarem as suas aprendizagens. Para isso servem as rubricas, que devem ser criadas, explicadas e fornecidas aos alunos; também têm direito ao “feedback” e o professor o dever de o dar, sempre que for pertinente. O professor deve também refletir sobre a sua prática, no sentido de a aperfeiçoar. Por fim, os processos de recolha devem ser variados o domínio da oralidade deve ser valorizado, no sentido de promovermos uma avaliação holística do discente. Já agora, não se faz avaliação sumativa, sem antes termos feito avaliação formativa. Não vejo qualquer disparate nisto, mas antes um trabalho consciente e bem feito! Talvez a maioria de nós já apresentasse algumas destas práticas. Neste momento, fazemo-lo com outra consciência e não de forma meramente intuitiva. Para os críticos que talvez até se lhe oponham sem compreenderem bem os seus princípios, convém esclarecer que o Projeto em nada põe em causa a preparação para os exames. Bem aplicado, será desenvolvido o espírito crítico e reflexivo, serão trabalhadas várias competências, enquanto aprendem os conteúdos necessários.

                Resta-me só deixar um aviso à tutela: por mais que os professores se esforcem e implementem estas mudanças efetivas e há escolas a fazê-lo, não há projeto que salve alunos que decidiram que não querem aprender nem trabalhar com afinco, porque se este modelo for implementado com seriedade, o discente tem de trabalhar mais.

A partir deste momento, em que se cumpre com o que é exigido, pois acompanha-se o doente durante o processo, diagnostica-se as suas dificuldades, aconselha-se e prescreve-se a medicação e se o paciente, no exercício da sua liberdade, decide não seguir os conselhos e até ordens médicas e, por esse motivo, falecer, não pode ser imputada qualquer responsabilidade ao médico.

É que há doentes muito teimosos e desinteressados pela sua saúde! Conviria que a tutela não se esquecesse disso e pensasse também num projeto MAECAEE (monitorização e avaliação do empenho e comportamento dos alunos e encarregados de educação).

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Demora

Sentes, talvez, a vida em suspenso

À espera... Em espera...

De quem sempre se atrasa 

Ou demora para chegar

Porventura, nem vem...

Mas não esperas uns minutos

O tempo de espera da reflexão

Desnuda e virtuosa

A que num raio de luz

Surpreende com clarividência

E por hipótese, apenas...

Não será espera 

A espera de quem se tem...


sábado, 2 de outubro de 2021

Crónica de Maus Costumes 248

 

 A salgalhada do Dec-lei nº 54/2018, de 6 de julho

                Tentarei dar voz à angústia de uma colega, que sei ser partilhada, por já o ter sentido na pele. Dizia que ninguém abordava o tema, que não se falava sobre o assunto e que era necessário que o fizéssemos.

                Dava conta do seu sofrimento por ter de acompanhar um menino NSE, antes NEE (para os mais distraídos, já não temos alunos NEE, mas antes com necessidades de saúde especiais) com uma problemática para a qual não se sentia com competência para lidar. Eu e todos os meus colegas que já tiveram de fazer o mesmo compreendemos perfeitamente o desespero e a impotência.

                Ao longo da minha carreira, que conta já mais de vinte anos, já tive meninos com atrasos cognitivos ligeiros (o problema mais comum e talvez o menos difícil de lidar) e severos, de difícil gestão… Cegos, surdos, alunos com trissomia 21, com espectro de autismo, com esclerose múltipla e sei lá o que mais. Não tenho qualquer formação em Educação Especial e, perdoem-me a franqueza, não quero ter. Já foi uma via para efetivação célere de professores e nunca o quis fazer. Estive exatamente vinte anos a contrato, mas nem essa situação precária me motivou a tirar tal especialização. Não quero ser mal interpretada e quem me conhece sabe que nessas circunstâncias, quando tenho esses alunos especiais, faço o que melhor posso e sei fazer, dentro do que a minha sensibilidade (porque sei que a tenho) me aconselha. No entanto, por que razão se há de colocar professores sem formação na área a lidar com estes meninos, que necessitam e merecem os profissionais mais qualificados? Por razões meramente economicistas, obviamente. A já conhecida mania da tutela de querer fazer omeletes sem ovos e mais com menos!

Já lecionei uma disciplina intitulada Atividades para a Vida Diária. Cheguei a sair da escola com os meninos, a levá-los à mercearia mais próxima e pô-los a fazer compras, pagamentos e receber trocos. Evidentemente, as compras pagava-as eu e lá ficava com os produtos; levava-os à cantina para dobrarem guardanapos e prepararem os talheres para as refeições, fazia bolos e lanches e passeios pelas imediações da escola, brincava com jogos que desenvolvessem o raciocínio, insistia semana após semana na escrita do nome, fazia jogos no computador e ensinava a enviar e-mails. Dois deles não conseguiam aprender, enfim… Semana após semana a inventar o que fazer, a repetir tarefas, enfim, a tentar fazer bem… sabem uma coisa?! Detestava! Gostava das crianças, que sei que se afeiçoaram a mim. Era carinhosa e dava-lhes todo o mimo e atenção, mas detestava ter estas funções!

                Eu gosto de ensinar. Particularmente, Literatura. É com alunos do secundário que me sinto mais feliz e realizada, porque é nessa faixa etária em que se começa a falar de Literatura com outra propriedade, que é o prazer que a escola ainda me reserva… Perdoem-me, mas não fui preparada para acompanhar meninos com patologias significativas, apesar da minha boa vontade, quando tenho de o fazer! E, muito sinceramente, não deveria ter de o fazer! Nem eu nem qualquer outro colega sem formação. Do meu plano curricular, nunca constou qualquer cadeira que me tivesse preparado para tal! As minhas meninas surdas não tinham intérprete na sala de aula! Só tinha de lecionar Gil Vicente e Camões! Porventura, seria eu obrigada a saber Língua Gestual Portuguesa?! A sensação de impotência é terrível, porque tinha a plena consciência de que a aula não lhes chegava, apesar de estarem, obviamente, na carteira da frente e de, supostamente, serem capazes de ler os lábios… Também não era o colega de Educação Especial que lhes ia explicar “Os Lusíadas”, se não era professor de Português, nem tinha competência para o fazer!

Façamos uma reflexão séria, porque isto é brincar com os pais e com as próprias crianças. É fingir uma inclusão que nada tem de inclusiva. É um brincar ao faz de conta que me transtorna e me indigna! Há muito que estes pais deveriam mobilizar-se para exigirem profissionais habilitados e todos os meios para que as escolas possam trabalhar adequadamente com os seus filhos! A tutela não pode querer uma escola inclusiva, mas que o é só para inglês ver. Atenção! As escolas fazem o que têm ao seu alcance para suprir essas lacunas e necessidades, mas talvez, numa ação concertada, estivesse na altura de fazer certas exigências, juntamente com os pais e também nós, professores, como por exemplo, a colocação do número necessário de docentes com habilitação para lidar com estas problemáticas e que possam orientar, implementar e lecionar os discentes que apresentam um Programa Educativo Individual e/ou um Plano Individual de Transição.

Dizer no Artigo 3º que são princípios orientadores da educação inclusiva:

a) Educabilidade universal, a assunção de que todas as crianças e alunos têm capacidade de aprendizagem e de desenvolvimento educativo;

b) Equidade, a garantia de que todas as crianças e alunos têm acesso aos apoios necessários de modo a concretizar o seu potencial de aprendizagem e desenvolvimento;

c) Inclusão, o direito de todas as crianças e alunos ao acesso e participação, de modo pleno e efetivo, aos mesmos contextos educativos;

d) Personalização, o planeamento educativo centrado no aluno, de modo que as medidas sejam decididas casuisticamente de acordo com as suas necessidades, potencialidades, interesses e preferências, através de uma abordagem multinível; []

Para no Artigo 10º, no ponto 7, dizer-se que “as medidas adicionais são operacionalizadas com os recursos materiais e humanos disponíveis na escola, privilegiando-se o contexto de sala de aula”, não é mais do que atirar toda a responsabilidade para as escolas, sem lhes atribuírem os meios necessários, sugerindo a implementação de sinergias com as autarquias e outras entidades, no sentido de proporcionar a educação inclusiva, prevista e regulamentada no Decreto-lei nº54/2018, de 6 de julho. Se isto não se tratar de retórica falaciosa, peço a um colega de Filosofia (e conheço alguns) que me corrija o erro, porque tenho humildade suficiente para poder aprender!

A ti, Isabel, que sugeriste a escrita do texto, ainda que a minha voz não chegue longe e, portanto, seja absolutamente inócua, espero ter conseguido reproduzir as tuas preocupações, que são também as minhas e as de muitos.

Estas crianças merecem respeito! Já agora, os professores que tentam fazer o seu melhor, também!

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Desgosto

 Matei-te dentro de mim

Como a mulher má da infância 

Fazia aos gatos ainda cegos e feios

Amarrados num saco e atirados ao poço 

Poupados à dor da vida, a dor maior


Morreste-me, desgosto, devagar

Em asfixia lenta

Com mãos invisíveis a apertarem-me a garganta

Até não sentir a carne nem as vértebras 

Até não sentir nada 

Só o cinismo sobejava


A cada silêncio ou ausência de palavra

Era a minha voz que se afastava

Longínqua e nada nela perdurou

E no desgosto enraizado

A dor se calcinou 


Não se lhe permite o corpo, o pranto

Nem pungentes gemidos

Uma alma que já  morreu outrora

Fica cega, muda e doente dos ouvidos