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domingo, 31 de maio de 2020

Maresia

Meu cheiro a maresia,
Embriagas os meus sentidos
São minhas veias as algas
Que me trazem a nostalgia
De um beijo de amor sentido
Com sabor a poesia
Se vem morrer na praia
Um abraço apertado desfeito
Quero-me envolta em cambraia
No meu sonho mais perfeito
O tecido são teus braços
Tão cheios de cansaços
Desmaiados na baía
Olho os teus olhos lassos
Em plena comunhão
Por mais que sintam fadiga
Não me largam a mão
Inerte na areia molhada
Banhada na solidão
Contigo a mim abraçada
Nesta nossa escuridão
Sinto tudo tão distante
Tudo alheio ao coração
Só a maresia me fica
A mitigar esta paixão






sábado, 30 de maio de 2020

Crónica de Maus Costumes 184


Lúcida loucura

                Julgam-me doida ou pelo menos que padeço de uma qualquer doença que me impele para a escrita. “Não sei como tem paciência para todas as semanas apresentar a crónica sem ter nada a ganhar!”  
Deve ser a mesma maluquice que me leva a correr dez quilómetros ou a ler os livros que posso e até gostaria que pudesse ser um vício mais compulsivo.
Os meus filhos já não estranham e até fazem questão de avisar a mãe, todos os sábados à noite, que ainda tem de escrever a crónica. Obviamente, não a leem. O interesse é outro: como é fim de semana e a mãe ainda trabalha, assim o entendem, podem esticar a corda um bocadinho e ficar em companhia das novas tecnologias, por mais que me esforce por convencê-los de que a companhia dos livros é superlativa… Mesmo o Rodrigo avisa assertivamente a irmã, como se percebesse muito da vida, do alto dos seus doze anos (quase treze): Se vais ser poetisa, ficas a saber que não ganhas dinheiro com isso, como quem lhe diz para se deixar de disparates e arranjar uma ocupação a sério. Nesse momento, entro na conversa e explico que as pessoas podem e, na minha opinião, devem ter diferentes ocupações, para além das suas profissões. É com o trabalho da mãe e do pai que se põe a comida na mesa, que se pagam as contas e que se garante a boa vida burguesa que têm. O estilo de vida que se tem e que se lhes proporciona é agradável, mas é necessário sustentá-lo, porém, o verdadeiro prazer, o peso e a leveza que se lhe adiciona, o sal e o açúcar da vida são, muitas vezes, talvez até maioritariamente, encontrados fora da profissão. Evidentemente, depois, questionam se a mãe não gosta do que faz. E respondo que sim. Gosto, mas não me é suficiente. Então, arregalam os olhos e lá dizem que já trabalho tanto, por que razão arranjo outras coisas que também me dão trabalho. Julgo que compreendem melhor a corrida e a leitura, apesar de tudo… Quando escreve, a mãe continua em frente ao ecrã. De seguida, surgem as perguntas difíceis:
-para que serve a poesia?
- Em última instância, para nada. Em primeira instância, para tudo… A poesia e a literatura em geral: curar almas, trazer beleza, descobrir sentidos, explicar o ser humano… Aquela que a mãe faz serve apenas para ela ser um bocadinho mais feliz. É uma urgência que se precisa de cumprir e um resguardo num mundo que é só da mãe e onde ela gosta de estar. Um mundo inteiro à sua disposição e de completa liberdade. Talvez a magia das palavras seja a liberdade que nos permite. Em nenhuma outra casa seremos tão livres ou teremos a oportunidade de construir mundos e realidades paralelas, de podermos ser outros, se o quisermos. Gosto desse sabor! Essa é a recompensa. Uma recompensa trabalhosa e que, por vezes, nos deixa exauridos e vazios, despojados de nós, mas sempre renovados.
“Nem só de pão vive o Homem” diz o evangelho, a lembrar a importância do imaterial. Obviamente, num contexto diferente, mas essa transcendência e espiritualidade advém da palavra, que seria posta num dos textos fundadores da humanidade e quando o Homem pisou pela primeira vez a lua, para além das famosas palavras de Neil Armstrong “um pequeno passo para o homem, um salto gigante para a humanidade”, também foi lida uma passagem do Evangelho de S. João, por Aldrin, um dos astronautas.
O facto é que a humanidade e a sua história são registadas e veiculadas pela palavra. A linguagem oral não foi suficiente e assim surgiu a escrita, uma das invenções mais importantes do ser humano, que haveria de perpetuar o seu percurso e a sua evolução pelos séculos vindouros. É pela palavra que se constrói o ser e o dinheiro não tem lugar nisso.
Nina M.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Insónia

Durmo Sob o lençol 
Claro fino e transparente
Como um véu que oculta
A minha nudez evidente
Velas-me na tua insónia
Faminto de um afago meu
Guardião dos meus segredos
Olhas-me com olhos de céu
Evitas qualquer movimento
Para do sono não despertar
Anseias pelo momento
Em que me possas enlaçar
A tua presença quente
Onde me permito descansar
É certeza de dor ausente
Na certeza de te abraçar
Eis que o sono se evapora
E o anjo caído acordou
Ainda cedo pela aurora
No teu corpo acoplou
Vem o dia e a despedida
Do sonho feito realidade
Ilusão nunca esquecida
Vislumbre de felicidade

domingo, 24 de maio de 2020

Regresso

Volto aos teus braços
Feliz pelo regresso
Depois de vida em prosa
A ti o meu amor confesso
Poesia minha casa
Meu abrigo impoluto
Durmo sob a tua asa
Contigo é o meu olhar enxuto
Sorridente leio os teus versos
Poema de recordações feito
Acaricio cada sílaba
Num abraço bem perfeito
Numa intimidade pura
Beijo em ânsia a tua rima
Pode ser que seja loucura
Tal amor que me anima
Mas sem peso ou remissão
Nesta insensata lucidez
É teu o meu coração
Pleno na sua nudez


sábado, 23 de maio de 2020

Crónica de Maus Costumes 183


O ensino e os novos desafios

A escola está a passar por uma revolução e não falo da pandemia que trouxe a horrível novidade do Ensino à Distância. Evidentemente, foi a solução encontrada para minimizar os danos causados pelo problema, mas julgo que a maioria dos professores preferirá a sala de aula e a interação com os alunos. Se retirarmos o contacto direto no processo de ensino e aprendizagem, estamos a desumanizá-lo. Os jovens precisam de ser estimulados no que diz respeito ao relacionamento interpessoal, porque já usam os ecrãs como uma extensão de si mesmos, preferindo a segurança de um diálogo por detrás da tela ao risco de se verem olhos nos olhos com o interlocutor, reduzindo as oportunidades para criarem empatia pelo seu semelhante.
Há documentos orientadores de uma nova prática, em função do perfil que se pretende para o aluno do século XXI: a formação holística de um cidadão, que revela competências em determinadas áreas do saber, mas também competências sociais, emocionais, estéticas, comunicacionais, entre outras, indo ao encontro do que vulgarmente os Projetos Educativos das escolas apodam de formação integral do cidadão. Devo dizer que lido o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, é impossível não se concordar com o que o documento preconiza. A dificuldade reside na sua operacionalização, mas como sempre, as escolas vão avançando um pouco às escuras e experimentando novas formas de atuação e novas estratégias. Não é fácil, mas faz-se o caminho percorrendo-o. Obviamente, não se está livre de tropeços e enganos, mas servem as dificuldades para ensinarem as melhores opções. Os professores vão fazendo formações, que são orientações relativamente ao que se pretende, mas cabe à escola pensar e decidir a direção a trilhar para alcançar o objetivo estipulado.
Não se operacionaliza uma mudança dessas, que pretende colocar a tónica mais na aprendizagem do que no ensino, tornando o aluno mais autónomo, proativo e mais responsável, sem o envolvimento do corpo docente. Acontece que a mudança é necessária, mas para que ela seja possível, é imperioso haver uma sala de professores motivada em busca do mesmo objetivo. Neste momento, temos um corpo docente envelhecido e cansado em virtude dos constantes ataques à classe por parte de sucessivos governos, especialmente, desde o ano 2005. A campanha vergonhosa e que atentou contra a dignidade profissional dos professores deixou marcas. Atualmente, temos um corpo docente mais envelhecido e mais sobrecarregado. Temos governantes que maltratam constantemente a classe e, depois, esperam dela todos os sacrifícios e abnegações. Surpreendentemente, conseguem-no! Se por um lado é manifestação inequívoca do empenho e da dedicação destes profissionais, por outro lado, não deixa de ser estrategicamente errado. Quem nos governa sabe à partida, que mesmo ofendidos, os professores não se negam a cumprir o seu papel, deitando por terra qualquer força ou estratégia negocial.
A Flexibilidade Curricular está em marcha e as escolas mobilizam-se para responder ao desafio, no entanto, gostaria que o Ministério compreendesse que não pode apenas exigir, mas que tem o dever de fornecer as condições para que as instituições de ensino o possam fazer. Não é obrigando os docentes a uma prática de tarefas burocráticas desnecessárias, nem com a formação de turmas enormes ou o aumento das horas de trabalho, que se consegue a mudança. O professor não é um mero técnico, mas antes uma espécie de artista que precisa de se construir ao longo da vida. Para isso precisa de tempo! Falo de tempo para si e para o seu crescimento. Não pode ficar de tal modo assoberbado pelo trabalho que se esqueça de si. Não deveria ser possível um professor dizer que não lê, por exemplo, por falta de tempo! Eu trabalho com palavras e ideias. Devo lê-las e pensá-las o mais que puder, primeiro porque gosto e faz parte do meu equilíbrio e só poderei ser boa profissional se estiver equilibrada, depois, porque serei tão melhor professora quanto mais conhecimento e competências adquirir. Quem entrar numa sala de aula e se limitar a trabalhar tecnicamente o texto que os alunos devem estudar, cumpre cabalmente com a sua função, mas não com excelência! O extra reside na capacidade de estabelecer analogias e inferências, alargar leituras e citar outros contextos, exemplificando-os. Só o poderá fazer com o conhecimento que vai sendo construído ao longo dos anos com as leituras cruzadas que faz. O professor que deixa de se construir passa a ser um técnico, não um instigador de reflexões e da busca de sentidos. Também é este perfil que se pede aos professores, mas é necessário que se compreenda que não lhes podem cercear a liberdade criativa. Quanto menos tempo lhes é dado para investirem no seu desenvolvimento, menos capazes serão de responder adequadamente às novas exigências.

Nina M.
















sábado, 16 de maio de 2020

Crónica de Maus Costumes 182


Cobaias e experimentalismos


Um destes dias, no fórum que a TSF costuma promover a propósito de temas da atualidade, onde os cidadãos portugueses têm a oportunidade de exprimirem as suas ideias e opiniões (a democracia é um sistema político formidável), ouvi alguém irritadíssimo com os professores, a propósito do regresso às escolas na próxima segunda-feira.
A sanha contra o professorado é antiga e ainda um destes dias alertei para o facto de a bonomia em relação à classe ser sol de pouca dura, como diz o aforismo. Pois bem, o ilustre cidadão clamava por uma decisão assertiva por parte dos professores: “Decidam-se – dizia ele – se de facto querem regressar à sala de aula ou se pretendem ficar já de férias.”
Acontece que me deslocava de carro e tive de sair no momento e, ainda bem que assim foi, pois evitei grande parte do agastamento. Ainda não consigo controlar completamente a minha ira, como gostaria de fazer, contra este tipo de maledicência ignorante e de enxovalho. Já deveria ter aprendido, pois os dichotes só nos atingem se o permitirmos. O raciocínio é lógico. Difícil é fazer o exercício da racionalização, trabalhar racionalmente as emoções que se apoderam do nosso íntimo e domesticá-las. Nunca é fácil, mas é possível. Vejamos: só teria motivos para me inquietar se lhe reconhecesse razão nas palavras, mas não. Nenhuma, logo, deveria ser-me indiferente. Queres regressar à sala de aula, Sónia Moreira? Sim, quero. Queres ficar já de férias? Não, apenas quando a elas tiver direito como qualquer profissional. Se assim é, a palavras loucas ouvidos moucos. Então, porque me irritam profundamente? Essencialmente, pela injustiça que não tolero.
Meu caro senhor, mesmo que os professores não regressassem à escola, não estariam de férias! Aliás, muitos de entre nós não regressarão, mas continuam a trabalhar. E trabalham muito! Todo o país percebeu que os professores continuam a lecionar a partir de casa. Porquê a pergunta insidiosa?! Porquê este desrespeito contínuo para com uma classe que protege os seus alunos mais do que algumas famílias? Os cidadãos não sabem ou sequer imaginam a frequência com isso acontece. Somos nós, professores, a linha da frente para esses miúdos. Somos nós que lhes lemos a preocupação, descobrimos problemas e tentamos resolver, ajudar, com apoio de outras entidades ou dentro da própria escola. Somos tantas vezes pais, mães, amigos, psicólogos e também professores desses meninos. Não sabe quem não quer ver, mas deixe que lhe esclareça a dúvida tão pertinente quanto maldosa que o preocupa. Os professores querem regressar, sim, mas em segurança (parece que se esquecem, mas muitos de nós também são pais) e mesmo que o regresso presencial não fosse uma realidade, as aulas continuariam a ser lecionadas. Se há aulas à distância que funcionam bem é com estes alunos desta faixa etária e que têm objetivos a curto prazo para cumprir: a entrada na universidade. Já agora, o cidadão que é tão sensível ao problema dos estudantes e que deseja, certamente, o bem deles, perguntar-lhe-ia, se pudesse, o seguinte: já imaginou o que acontece se um aluno de uma turma se vê infetado com o coronavírus? Já pensou que esse jovem corre o risco, juntamente com toda a turma, de nem sequer poder realizar o exame? Já pensou no absurdo da situação? Obrigar o aluno e professores a um regresso extemporâneo com vista à realização de um exame e ser essa mesma obrigatoriedade o impedimento da sua realização? Não lhe parece kafkiano? Ou vai dizer que não lhe tinha ocorrido tal? Naturalmente, só equaciona os mais diversos cenários quem conhece por dentro a realidade das coisas, portanto, nitidamente, não sabe do que fala. Todos nós preferíamos que nada disto tivesse acontecido. As escolas e os seus professores foram capazes de implementar o Ensino à Distância sem qualquer diretriz do Ministério. Quando essas chegaram, já os planos estavam em marcha! É com muito orgulho que os professores podem afirmar terem feito um enorme esforço, que representou muitos dias de 10 a 12 horas de trabalho, entre reuniões, preparação de atividades, preparação dos equipamentos (bens pessoais que os professores põem ao serviço dos seus alunos e da escola, como computadores, telemóvel e Internet, mas que nenhum outro funcionário põe ao serviço da sua empresa) com as aplicações necessárias, numa aprendizagem autodidata rápida, para responder com celeridade e qualidade ao novo desafio que se impunha. Não é o desejável, porque nada pode substituir a interação do professor com os seus alunos e a empatia criada, nada substitui o contacto direto. Nenhuma máquina pode substituir a pessoa, mas dadas as circunstâncias e apesar das dificuldades que as escolas tiveram que superar, encontrou-se a solução. Agora, que o mais complexo está conseguido e que a estrutura logística está funcional, o (des)governo insiste em aulas presenciais, apenas para conseguir uma amostra de um possível cenário epidemiológico em meio escolar! Para conseguir os seus intentos, apercebendo-se de que os pais ficam obviamente preocupados com os filhos, possibilitam a justificação de faltas, para se algo correr mal, poderem lavar as mãos. Apesar de faltar a liturgia de Domingo de Ramos, a lição está bem estudada! No entanto, alertam para o facto de as faltas poderem prejudicar os alunos! Haja paciência! Nenhum professor digno desse nome penalizaria um aluno por isso, porque sempre nos ensinaram que quando as causas são imputáveis ao aluno ou em caso de dúvida, seja ele sempre beneficiado! Como mãe, nestas circunstâncias não mandaria um filho para a escola, havendo a possibilidade de continuar a aprender a partir de casa, sem necessidade de correr riscos, e, principalmente, a um mês das aulas terminarem!
Quanto a mim, regressarei ao exercício das minhas funções, apreensiva com a situação, mas feliz, apesar de tudo. Regressarei com o profundo desejo de que nada  aconteça aos meus finalistas de 12º ano para conseguirem efetivamente realizar os exames de que necessitam e dar início a uma nova etapa, que será tão importante para as suas vidas.
Porém, lamento, porque realmente, como diria a famosa personagem do Herman José, o Diácono Remédios, não havia necessidade…

Nina M.


sábado, 9 de maio de 2020

Crónica de Maus Costumes 181


Amor, filhos e o trabalho

-          Mamã, mãe ! (Os meus filhos já misturam as duas versões…)
-          Diz! (Sai-me com algum enfado, depois de já ter respondido a alguns trezentos chamamentos, enquanto trabalho…)
Continuo a trabalhar sem erguer os olhos do computador e ouço o Rodrigo, que de natureza mais reservada, é menos dado a manifestações de afeto. Aceita as minhas e às vezes encosta a sua cabeça ao meu braço, como o gato que se esfrega no dono, à espera do carinho.
                - Sabes? Eu amo-te muito e olha, quando fizeres anos, vou oferecer-te um livro, mas vou ser mesmo eu, com o meu dinheiro.
Normalmente, não permito que gastem o dinheiro todo que lhes oferecem pelas datas especiais. Às vezes, lá permito que comprem algo que lhes possa ser útil. Quero que percebam que se comprarem tudo quanto veem, não sobrará dinheiro para o que é verdadeiramente necessário. Não se deve gastar só porque se tem em inutilidades, mas em coisas das quais se precise verdadeiramente ou que contribuam para o nosso desenvolvimento.
                - Obrigada, filho. Também te amo muito. Mais do que possas sequer imaginar e acabaste de me dar um presente. Não precisas de me comprar um livro.
                - Pois… Às vezes não vale a pena… Tu lês depressa e passado pouco tempo já acabaste e depois… Olha, fica lido…
                - Sim… Porém, quando se gosta muito de um livro, ele fica sempre connosco, na nossa memória e pode ser relido as vezes que quisermos e sempre que olhar para ele lembrar-me-ei de ti…
                Deixei-me ficar a olhar para ele, embevecida e espantada do amor súbito tão espontaneamente manifestado e sem pruridos.
Os portugueses têm algumas comichões para dizerem o que sentem aos filhos. À medida que eles crescem, o amor não deixa de ser sentido, mas deixa de ser divulgado, como que envolvido por uma capa de pudor. Há um amor envergonhado que se sente e que se expressa nos comportamentos, mas que não é dito com a palavra. Tornamo-nos adultos de amor envergonhado. Se não formos nós, os progenitores, a afirmarmos sem hesitações o amor que lhes sentimos, quando crescerem, sentirão esse entrave. Procuro combater esse amor calado. Normalmente, o beijinho de boa-noite, é acompanhado da palavra amorosa. E sabe tão bem ouvir! E dizê-la também! O dia foi salvo naquele instante. Um dia de nervoso miudinho, fruto da chuva e do confinamento sem sol, que me enlouquece, fez sentido naqueles segundos. O meu filho mais difícil, menos expansivo, mas que me deixa orgulhosa também, salvou o dia. Deitei-me sorridente, a pensar que mal ele sabe que o amor da mãe não tem medida ou se tem será a sua existência, porque abdicaria dela todos os dias só para garantir que cresce bem e em equilíbrio.
Naturalmente, a irmã, mais pequenita, mais espevitada e mais desbragada, tratou de me fazer também a suas declarações amorosas, normalmente, mais abundantes e constantes.
Os meus pequenos heróis que se mantêm em casa sem reclamações. Têm a sorte de haver uma rua quase só para eles, onde podem brincar ao sol e continuar a dar uso às bicicletas e trotinetas, no final das suas atividades escolares. O Eduardo Sá escreveu um artigo, lembrando as crianças que seguem as rotinas, dentro do possível, sem grandes reclamações e acatando o que lhes é dito, tendo também que se adaptarem a uma nova realidade. Sem qualquer sombra de dúvida e, mesmo tendo a mãe em teletrabalho, incapaz de lhes dar todo o apoio de que necessitam, porque à mesma hora se encontra a apoiar outros meninos, lá se vão fazendo gente, a ganharem cada vez mais a sua autonomia e a promoverem o seu crescimento. Nem tudo é perfeito e, às vezes, já aconteceu de ficarem umas tarefas por cumprir ora por esquecimento e falta de organização ora por falta de destreza com as tecnologias. Nessas alturas, surge sempre a professora zangada com a displicência. Depois de respirar fundo, lá vou acalmando, mais furiosa comigo do que com os filhos, porque têm de se orientar sozinhos e apoiarem um ao outro, nestes tempos estranhos, em que chegamos a estar três, em simultâneo, em aulas síncronas. Obrigada a reconhecer que se têm portado bem perante as exigências, lá vou alertando para o dever da responsabilidade. A mãe não consegue gerir sozinha as tarefas escolares deles, as suas e ainda a casa. Todos têm de ajudar. A eles compete-lhes saber o que devem fazer em cada dia, sem que seja necessária a minha vigilância, apesar de estar atenta.
Ser filho de professor é algo triste. Há uma exigência para com eles que os deve massacrar: o culto do brio, da responsabilidade e do saber estar, onde não queremos que falhem… Porém… São apenas crianças, com tanto direito a sê-lo como todos os outros.
Assim sendo, já tive que ouvir: “Ah! O teu aluno não fez o trabalho, porque não te zangas tanto com ele como comigo? Porque não o pões de castigo?”
Porque não é meu filho e não mora em minha casa e esse pormenor faz toda a diferença. Para além de que mães exigentes preparam os filhos para a vida. A mãe até pode ser rabugenta. São-no todas as boas mães.
Desde que vá ouvindo esses “sabes, mãe, amo-te muito!”, a consciência sossega e penso que alguma coisa devo estar a fazer bem.
Nina M.









Aos meus amores

Quando a vida me secar
Mesmo se for outono
E a chuva não cessar
A vós, amores de todo o tempo,
O meu ser irá visitar
A cada traço de um olhar meu
Estará espelhado o teu
E o meu sorriso franco
(Porque sempre hei de sorrir)
Lembrará dos vossos lábios
Inocente flor a abrir
As minhas veias enxutas e rígidas
Preenchidas de sangue e de versos
Contarão histórias antigas
Guardadas nas memórias amigas
Nos meus pensamentos submersos
Interrogareis o meu olhar distante
Já despojado de vontade talvez
Iluminado por um rasgo de luz sadio
Ao som de algum fado vadio
Percorro, então, com as minhas mãos
Os vossos traços que as lembranças me dão
Sem aparente lucidez
Mais tarde... Muito tarde sabereis
Do vosso amor em mim guardado
No sarcófago que por herança habito
Sempre sempre sacralizado
Até eu ser esta rigidez 
Sob a pedra de granito

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Aqueles que não calam

Aqueles que não calam
Por dizer não à podridão
São as paredes caiadas
Dos versos de Sophia
Os que não sepultam a revolta
E desafiam
Abrem ingenuamente
O peito às sucessivas cobardias
Homens permanecem de pé
Intacta a dignidade
Mordiscada a alma 
E revolto o ser 
Contorcem-se as entranhas
Saberá o mundo
De que túmulos de vergonhosos silêncios
São feitos a hipocrisia?
Terra raivosa de nojo
As raízes profundas 
Alimentam-se de ética
A sua seiva
Esperança da humanidade
Podre infecunda
Estéril nauseabunda
Urge um novo amanhã
O hoje já é morto
Cai a noite e nada seduz
É chegada a hora
De ver renascer o Homem
Iluminado pela luz
De cada nova aurora 


sábado, 2 de maio de 2020

Crónica de Maus Costumes 180


Gente feliz com lágrimas (João de Melo)


            Há títulos felizes e este que evoca o romance de João de Melo (que por acaso ainda não li, mas lá chegarei, até porque ele existe na minha estante) é com certeza um deles. Detesto ter de fazê-los e hoje acordei com ele a bailar-me o espírito. Há gente assim, feliz, mas estranha também e que acorda com títulos de romances e versos e pensamentos emaranhados. Deu-se o caso de hoje acordar com isto e não terá sido à toa. Ora cá está ele a ser-me útil, devidamente referenciado, como deve ser e com os créditos a seu dono.
            Antes de passarmos ao assunto da crónica, deixar uma palavra de apreço e de agradecimento a todas as mães (apenas àquelas que são dignas de usar o título) e, em particular à minha, que tem uma qualidade única: ser a melhor mãe do mundo! Pensarão o mesmo da vossa e, portanto, não valerá a pena travarmo-nos de razões sobre o assunto. Também já há uma crónica dedicada às mães e não será desejável voltar aos mesmos temas sob pena de repetir-me. Começa a ser difícil não o fazer, porque esta brincadeira já vai longa…
            Hoje, pretendo narrar uma estória que comprova a dificuldade que o ser humano ainda sente para fazer prevalecer os seus direitos, bem como a tirania e tiques de autoritarismo que ainda persistem dentro de determinados organismos e de certas instituições públicas, apesar da revolução de abril e da democracia instituída. Sou absolutamente sensível e sinto-me profundamente ofendida na minha dignidade de cidadã e no meu sentido de justiça quando os pressinto. Se sinto injustiça, tremem-me as entranhas e todo o meu ser vibra de revolta (assim me senti na última grande greve dos professores).
Há um grupo de vinte e dois agentes da Unidade Especial da Polícia que sofreram um processo disciplinar por se terem negado a cumprir ordens superiores. Dito assim, parece haver motivo para punição, mas compreendamos os seus contornos. A indisciplina prendeu-se com a recusa de entrar no recinto de jogo para o qual estariam destacados. Pois bem, nos estatutos que regulamentam o Corpo de Intervenção (CI), uma das valências da UEP (Unidade especial de Polícia), está determinado que esta força seja o último patamar de intervenção, após verificar-se que todos os outros mecanismos não conseguiram repor a ordem pública. Ora, num jogo de futebol amigável e particular, sem a presença de um número de adeptos que justificasse tais medidas, como comprova o facto de não ter havido qualquer incidente e onde o policiamento existente era suficiente, qual o motivo para fazerem entrar no recinto uma força que deve ser de retaguarda? A revolta dos agentes prende-se com o facto de estas situações se verificarem repetidamente ao longo dos anos. Para o poderem fazer, os homens perdiam sucessivamente a suas folgas, que supostamente seriam repostas, mas como o serviço a cumprir é sempre mais do que as folgas, as horas em excesso entravam no banco de horas e assim permaneciam. Por outro lado, estavam a ser usados serviços públicos num evento particular. Todos os agentes presentes no interior do estádio, estariam a ser pagos pelo serviço de gratificado (horas extraordinárias) pela entidade que promoveu o evento. No entanto, o Corpo de Intervenção, estivessem os homens de folga ou não, se chamados, eram obrigados a ir para o serviço, sem haver lugar a pagamento dos referidos gratificados por, à data, não terem direito a ele. Sucede que ao cabo de anos, homens feitos, quarentões e cinquentões, não estão para lidar com o absurdo e a tirania sem reclamar. Antes de chegarem a este ponto, as reivindicações foram muitas, mas bateram em ouvidos surdos. Acresce ainda que apesar de se terem recusado a entrar, por não haver qualquer situação de desordem pública dentro do estádio e tendo-se regido por aquilo que o próprio estatuto prevê, permaneceram junto do recinto desportivo, caso fosse necessária a sua intervenção, o que não veio a verificar-se. Ou seja, não entraram, por não haver claramente nada que justificasse a sua entrada, mas permaneceram em prontidão.
Perante a rebeldia, foram abertos os referidos processos disciplinares, analisados e discutidos dentro da própria instituição. Cada um deles foi condenado a uma pena suspensa de cinco meses! Significa cinco meses sem salário, porque disseram não a uma ordem sem fundamento, na defesa e cumprimento do estatuto que os regulamenta! Evidentemente, a procissão ainda vai no adro e o processo seguirá para o MAI (Ministério de Administração Interna), de quem se espera maior siso!
Curiosamente, depois do sucedido, de cada vez que esta força é convocada para prestamento desse serviço, em dias de folga, já há lugar a pagamento. Não posso deixar de me interrogar sobre isto: se as entidades privadas são obrigadas a pagarem o policiamento que solicitam e se naquela altura os agentes do CI não auferiam qualquer gratificação, o que se passaria?! Estaria o serviço público a ser mobilizado para prestar favores a entidades particulares? Se sim, trata-se de um claro abuso. Se, eventualmente, as entidades particulares pagavam o serviço solicitado, resta saber o que era feito ao dinheiro, já que não era para pagar horas extraordinárias aos agentes!
No entanto, quem analisou o processo deve ter considerado estas dúvidas questões menores, pois o grave problema foi a desobediência, mais do que justificada pelos próprios estatutos!
Terão estes superiores a noção de que há famílias a dependerem exclusivamente do salário destes agentes? De que há compromissos e filhos? De que comprometem o equilíbrio de muitas vidas por se sentirem desautorizados, feridos no orgulho e, coitadinhos de suas excelências, quais meninos birrentos e tiranos, fruto da sua criação, não suportam ouvir um não, mesmo quando é justificado? Homens que já deram mais de vinte anos à instituição, sempre com condutas exemplares. Não será, no mínimo, aconselhável um exame de consciência? São punidos pelo orgulho ferido de quem não sabe o que é a rua! Haja decência e honradez! As instituições públicas deveriam ser as primeiras a zelar por esses princípios e são as primeiras a claudicar.
A todos os outros colegas de ofício, ocorre-me dizer-lhes que respeitem o lema que trazem nos fatos que envergam, que manifestem a indignação perante o sucedido, na defesa dos colegas. Contra a tirania, apenas a força de uma multidão que não desmobiliza. Hoje, por eles; amanhã, por vós!
 A todos os envolvidos no processo, sintam-se orgulhosos. Não se sintam envergonhados pela desobediência em prol do que é justo e honrado. Têm a convicção de terem a razão do vosso lado. Haja luta até ao final! As árvores morrem de pé, só a fruta podre cai ao chão. Gente feliz, às vezes, também chora.
Nina M.