Era seca. O seu ventre, terreno
pedregoso, enxuto e murcho, não podia acolher vida. Passou pela experiência
incipiente da maternidade, mas que terminou de modo cru e insuportavelmente
rápido. Com as entranhas, secara-lhe também a alma, quando ouviu o diagnóstico
perentório e infalível do médico: “a senhora não poderá mais gerar um filho e
não há nada que se possa fazer”. As lágrimas, as últimas que vertera, foi
quando lhe disseram que tinha perdido o embrião. Embrião! Nome estranho para se
dar a uma vida! Filho, filho era a palavra. E não queria saber se a criatura
ainda não tinha desenvolvido cérebro ou o que quer que fosse. Desde o dia em
que soube da gravidez, sentiu-o como filho e imaginou-lhe o rosto. Era o filho
que afagava, quando as mãos ternurentas esfregavam a barriga ainda invisível,
num gesto espontâneo de amor. E diziam-lhe que tinha perdido o embrião… Essa
perda trouxe uma maior, intensificada pela notícia de que nunca mais
emprenharia, custou-lhe a sua própria essência, a sua alegria natural. Desde
essa altura, fechou-se num isolamento surdo e num mutismo que lhe causavam
náuseas. Perdeu-se de si e desprezou tudo o resto. Tinha-lhe sido imputado o
pior castigo que se pode dar a uma mulher: um ventre seco. Nunca sentiria o
milagre da vida dar-se dentro si. Tal era contranatura. Inaceitável. Diminuía a
sua condição de mulher. Fazia com que não se sentisse inteira. Tornara-a
frágil, imensamente débil, mas uma fraqueza que fazia tenção de não revelar e
que queria esconder. Não deixava adivinhar o mais ínfimo indício que a pudesse
expor. Sentia uma vergonha feroz e uma revolta abafada que a corroía e
desgastava e matava lentamente. Tornou-se amarga, severa, frígida, de rosto
sempre absurdamente crispado e austero. O olhar duro e penetrante amedrontava quem
quer que fosse.
Por
ironia do destino, que gosta de manipular a vida como se de uma marioneta se
tratasse e de impregná-la de cinismo, quis este que se tornasse parteira, como
que a lembrar-lhe a maternidade alheia, que nunca poderia ser sua, e da qual
nunca poderia fugir. Sentia, a cada novo grito que clamava por vida, uma
chicotada que lhe dilacerava a carne. Obrigava-se a trazer ao mundo as vidas
que nunca poderia parir. Era um processo doloroso. Sofria silenciosamente a sua
dor inquietante e profunda, mas no fim do trabalho, a exaustão e desespero
apoderavam-se de si e já em casa, só e invadida por uma angústia velha e gasta,
chorava sem verter lágrimas, gritava desesperadamente como se o mundo ruísse ao
seu redor. Acalmava-se ao fim de algumas horas, deixando-se cair numa letargia
avassaladora e piedosa. Dobrada sobre si, pensava que se não podia carregar
vida dentro de si, as suas mãos podiam, pelo menos, ajudar a pôr novos entes no
mundo. Não suportava, porém, olhar essas indefesas criaturas que lhe lembravam
a sua impotência e incapacidade. Assim, despachava-se o mais que podia, para
entregar a cria à sua progenitora o mais rápido que conseguisse, como se
estivesse a livrar-se de um estorvo ou de uma doença altamente contagiosa. Na
realidade, a parteira fugia do amor e não sabia. E os seus dias eram um
somatório de desilusões, frustrações e negrura. Todos lhe reconheciam
profissionalismo e aptidões, mas ninguém lhe ignorava o desamor e a
indiferença, de maneira que quando uma mãe chegava e sabia a sorte que lhe
calhara, a parteira de serviço, se por um lado se tranquilizava por se ver em
mãos experientes e sábias, por outro, repudiava a frieza e displicência que
abalavam facilmente a inconstância hormonal de que se sentia prisioneira. Sabia
que precisava do mesmo afeto com que todos os olhos curiosos olham um
recém-nascido e que dali não viria nada. Já para não falar da ajuda essencial
nos dois primeiros dias, sobretudo se a mãe é inexperiente e ignora os sinais
de um neófito. Depois de depositar a criança no colo materno, a parteira fazia
literalmente como Pilatos: lavava as mãos e não voltava a olhar a mesma cria
duas vezes. Todos se interrogavam sobre os motivos de tão aberto desprendimento
e camuflada repugnância que lhe liam facilmente no olhar e adivinhavam nos
gestos apressados e ansiosos com que lidava com todos aqueles novos seres. Não
fosse a experiência que se pressentia nas primeiras rugas de expressão, mas que
não lhe retiravam nem a beleza nem a austeridade e pensar-se-ia que era uma novata
nervosa e algo atabalhoada, sem maturidade suficiente para entender o caráter
sublime e divino da maternidade. O Criador precisou do ventre acolhedor e terno
da mãe para que o seu filho viesse contar a Boa Nova. É, portanto, no ventre
materno que a semente divina se instala, se propaga e se faz verbo. É através
da mãe que a presença divina se continua a fazer sentir na terra inóspita e
cruel e o milagre se dá.
Mas não era isso.
Fugia da dor, receava que um dilúvio se soltasse abruptamente sem que houvesse
dique capaz de o conter. Fugia de si, fugia da nova criança a quem tentava
permanecer indiferente, em pânico pela possibilidade de ser tomada por um amor
súbito e inquebrável. Não podia correr o risco de se ligar inexoravelmente a um
ser que não lhe pertencia. A parteira, que com amor furtivo, trazia novos seres
ao mundo, fugia do amor profundo e eterno que liga uma mãe a um filho!
Com gestos mecânicos,
iguais aos de todos os dias, insuportavelmente repetidos e monótonos, dava o
primeiro banho àquela criatura indefesa, longe da supervisão materna, para
depois lhe garantir o sustento, tarefa que os seios maternos se recusavam
cumprir, por vaidade, inaptidão e crueza de espírito. Chegada ao quarto, pronta
para confiar o novo ser à progenitora, como sempre fazia, invadida pelo vazio
que a queimava e consumia viva, olhou à sua volta. Não viu ninguém. Bateu à
porta da casa de banho, mas não viu nem ouviu vivalma. Saiu com a criança no
regaço, evitando olhar para ela uma segunda vez e, assim, acautelar-se para não
se apaixonar à segunda vista. Foi procurar por alguém que lhe dissesse onde se
encontrava a mãe do bebé.
Incrédula, ouviu a
Benedita dizer que esse bebé iria ser dado para adoção e que já estavam a
tratar do processo. A mãe já tinha recebido alta e não quis despedir-se de quem
nunca tinha desejado, foram estas as palavras. Esperava, porém, que pudessem
encontrar-lhe um lar onde fosse, se não amado, pelo menos sustentado.
O seu rosto
transfigurou-se, a austeridade facial foi substituída por uma raiva imensa que
lhe toldava o olhar e disse:
- Acaso não sabe ela que o seu corpo pode
acolher o sublime milagre da vida e que isso não é uma garantia vitalícia com a
qual se nasce? Que há quem queira e não possa?!
- Então vamos esperar
que esta criança seja acolhida por alguém assim, Dolores. Alguém que compreenda
o milagre e não o possa celebrar no próprio corpo. Assim se faz uma criança
feliz, porque o amor que vem do coração é tão bom quanto o que vem do ventre.
Benedita não
dissimulava o espanto que a surpreendia com o mesmo vigor e improbabilidade de
uma trovoada de verão. A Dolores era humana! Mostrava-se incomodada com este
abandono, quando aparentemente lidava com os novos entes de forma tão
desligada! Nunca ninguém pensou na Dolores assim, um ser capaz de mostrar
emoção e sentimento! Viam apenas o autómato que cumpria rígida e
profissionalmente o seu trabalho, sem se envolver, incapaz de um gesto de
ternura.
Curiosamente, ninguém
quis saber ou se mostrou intrigado com o nome da parteira. Parecia uma dupla
ironia e a sua mãe, quando lhe perscrutou o rosto e alma, no momento em que
nasceu, sentenciou: “Dolores será o seu nome, porque a sua vida não irá ser
fácil, mas um dia a paz invadirá a sua alma. A felicidade é tão mais apreciada
quanto dói para se conquistar.” O seu nome era, portanto, o resultado desta
clarividência de sua mãe e de uma premonição demoníaca, mas eficaz: condensava
em si a dor das que pariam e a sua própria dor por não poder gerar. Dores que
fingia não ter, nome que lhe soava distante e procurava esquecer. Ninguém o
adivinhou e, por isso, se surpreendiam.
Pela primeira vez, em
tantos anos de serviço, Dolores quebrou a regra, não porque o fizesse
conscientemente e de forma refletida, mas porque quando percebeu já era tarde e
os seus olhos encontraram-se com os do neófito, numa partilha abençoada. Sem
querer, sua mão já segurava e afagava a mãozinha minúscula, tão sedenta de
calor. Sorria-lhe abertamente com palavras de amor, com palavras de mãe.
Nessa noite, terminado
o trabalho, o seu dia não lhe pareceu horrível como todos os outros. A sua
memória era invadida pelo rosto pequenino e rechonchudo, ainda algo enrugado
pela azáfama do parto, e do qual não mais se esqueceria. Nesse momento, Dolores
soube. Ela seria a mãe e ele a cria que não podia parir, mas que podia,
todavia, criar e amar. Sentia-o já como filho, porque seu coração já se
apertava por se sentir fisicamente afastada. E decidiu não mais o deixar sem o
calor da sua presença. Dava voltas na cama e não conseguia dormir. Sentia-se
inquieta e perguntava-se como estaria o bebé. Sabia que as suas colegas eram
cuidadosas e que não o deixariam negligenciado, mas sentia um arrepio só de
pensar que pudesse sentir-se sozinho, abandonado, sem o calor constante da mãe.
Essa ideia era-lhe insuportável. Decidiu, para tranquilizar o seu espírito,
levantar-se e fazer uma relação do que precisaria de comprar para tomar conta
do seu filho: biberões, fraldas, roupa, leite, enfim…tudo aquilo para o que uma
mãe se prepara ao longo de longos nove meses. Quanto ao berço, veria com calma.
Por enquanto, dormiria com ela, bem juntinhos, numa esperança secreta e algo
estranha de o tentar sentir dentro de si própria. Afinal, os primeiros dias são
ainda um prolongamento da vida intrauterina. Tê-lo
assim tão próximo era o máximo que conseguia fazer e que mais se aproximava do
que seria sentir um filho dentro de si.
Ouvia habitualmente as mães falarem, com um sorriso largo, sincero, orgulhoso e
com um brilho especial no olhar, dos pontapés das suas crias ou dos pezitos nas
costelas que lhes retiravam o fôlego e as deixavam a arfar. Tudo com uma
alegria incontida que tomava conta delas e contagiava quem as ouvisse. De
repente, até a pirose ou os enjoos pareciam agradáveis. Quem lhe dera ter
sentido tudo isso! Mas, o que não tem remédio, remediado está. Não o podia
sentir verdadeiramente dentro de si, no entanto, podia-o sentir totalmente no
coração. E assim era. A sua alma estava redonda, prateada e iluminada como uma
linda lua cheia, cheia também desta nova companhia, cheia desta nova vida.
Sabia que teria de ter muita paciência até o processo de adoção estar
concluído, uma vez que este passa por várias etapas. Queria tratar o assunto de
forma diferente. Sentia-se mãe deste bebé e era este que queria criar, não
pretendia engrossar a lista dos adotantes que aguardam ansiosamente o
telefonema dos serviços da Segurança Social para informar de que surgiu uma
criança que se adapta ao perfil dos aspirantes a pais. Precisava urgentemente
de encontrar a mãe biológica. Pretendia que ela lhe entregasse diretamente a
criança e que tudo fosse legalmente registado, para poder agilizar a adoção,
antes que a criança fosse entregue à Segurança Social. Tinha tirado o dia para
tratar de tudo. Levantou as informações sobre a residência e contacto da mãe
biológica no hospital e preparava-se para esse encontro. Pelo caminho, ia
interiorizando a ideia de que não podia julgar o comportamento desta mãe,
embora não o compreendesse, mesmo porque se a queria convencer a entregar-lhe o
filho, não poderia mostrar-se hostil e teria de lhe explicar os motivos que a
impeliam tão fortemente para esta adoção, para a vontade de assumir sozinha a
enorme responsabilidade de criar, educar e formar um ser humano. Tarefa
hercúlea, mas para a qual sabia estar preparada. Certamente, cometeria os seus
erros, mas todas as mães cometem, sejam biológicas ou apenas de coração.
Importante seria saber aceitar esses pequenos defeitos e seguir em frente,
passando um testemunho de amor e de respeito pelo próximo, enfim, os valores
que distinguem os homens de boa vontade. Essa seria a sua principal tarefa e
preocupação: formar uma pessoa de caráter. Acreditava que só assim se pode
encontrar o caminho para uma vida sadia e feliz. Não seria uma conversa fácil,
mas também não pretendia desistir dos seus intentos e, como tal, enchia-se de
uma coragem que não sabia possuir, do tipo que aparece nas progenitoras quando
pressentem a cria em perigo e que permite que o instinto reaja mais rapidamente
do que a razão. Falaria abertamente, pela primeira vez em tanto tempo, de
coração aberto. Exporia a sua situação e aguardaria ansiosamente o julgamento
final daquela mãe que recusava o filho.
Quando abriu a porta,
Rosário não omitiu o olhar de espanto:
- Enfermeira Dolores!
Passa-se alguma coisa?! É por causa da adoção? Já encontraram alguém que queira
o bebé?
- Sim, vim por causa
da adoção. Será que posso entrar um pouco para conversarmos?
- Faça favor – disse
Rosário - indicando o caminho de braço estendido. Pediu à enfermeira que se
sentasse e depois acrescentou:
- Enfermeira Dolores,
se veio até cá com o objetivo de me persuadir a desistir da adoção, pode
esquecer. Não tomei esta decisão facilmente. Refleti muito sobre o assunto.
Engravidei acidentalmente, por descuido, mas não quis impedir que a criança
nascesse, porém, não foi fruto de um relacionamento estável. Não me sinto com
coragem ou capacidade para tratar desse bebé sozinha. Espero que possa
encontrar uma família que trate bem dele e que o possa amar como filho.
- Não é isso Rosário,
ainda que deva admitir que não compreendo bem essa decisão, mas respeito, sem
julgar. Também acho preferível entregar a criança a alguém que a possa amar a
ficar com ela por obrigação maternal, mas não ser capaz de lhe dar o amor que
qualquer bebé merece. O que eu lhe quero dizer, Rosário, é que eu quero criar
esse bebé. Sou sozinha, mas sei que posso fazê-lo, sem deixar que nada lhe
falte, principalmente, afeto. Sempre quis ser mãe, mas sou estéril, seca como
uma terra árida que não acolhe a semente, nem frutifica. Esta é a minha única
oportunidade. Nunca quis aproximar-me demasiado das crianças que nasciam
comigo, por saber que não me pertenciam. Evitava-as. Com o seu filho foi
diferente, quando me disseram que o ia entregar para adoção, não fui capaz de
me separar. Senti-me a sua mãe, cá dentro, entende? Faço os possíveis por ser
eu a cuidar dele. Dou-lhe o biberão, banho, colo… converso com ele, como todas
as mães fazem…
Se chegar a dar
entrada na Segurança Social, posso não ser a escolhida. Provavelmente, preferem
uma família tradicional e não uma monoparental, no entanto, eu sei que posso
tratar muito bem desta criança. Juro-lhe pela minha própria vida. Se mo
entregasse diretamente… com a ajuda de um advogado, poderia passar-me uma
declaração onde manifeste a vontade de que a criança me seja confiada, por me
reconhecer idoneidade, capacidade económica e confiar no amor que revelo pelo
bebé.
Rosário olhava-a,
atónita. Não esperava uma revelação destas! Muito menos ver a enfermeira com
fama de insensível e de indiferente tão emocionada e empenhada em ser mãe.
Sentiu compaixão por esta mulher que desejava ardentemente ser mãe e que por
não poder, se sentia diminuída. Viu-se ligeiramente tomada pela culpa, que
repentinamente deixava de morrer solteira.
- Não sei o que lhe
diga, Dolores. Nunca me passou pela cabeça essa possibilidade! Tenho que pensar
um pouco sobre o que será melhor para o bebé…
- Rosário, escute:
Sabe como é importante para um bebé sentir o amor de uma mãe, desde que nasce.
Crianças com mães negligentes apresentam sinais de stress, irritabilidade, tornam-se inseguros e isso afetará a sua
inteligência emocional futuramente, a sua capacidade de confiar nas pessoas,
principalmente, nos adultos. Eu sou o rosto e o cheiro que o seu filho melhor
identifica, neste momento. Quando chora e eu o aconchego no meu regaço, ao
mesmo tempo que lhe falo, com carinho, ele acalma-se de imediato. Tem a mesma
reação que qualquer filho biológico teria. Vai sonegar-lhe a minha presença
também, Rosário? Não lhe negue uma mãe, pela segunda vez, por favor. Pense
sobre o assunto e diga-me quando tomar uma decisão. Se possível, não demore
muito.
Ia virar costas para
se ir embora, quando Rosário a impediu, segurando-lhe o braço.
- Espere Dolores, não
preciso de mais tempo. Vejo que gosta realmente do bebé e que ele ficará bem
consigo. Peço-lhe só que seja a mãe que eu não posso ser e que um dia lhe
explique que, por difícil que seja de compreender, eu entreguei-o também por
amor, para que pudesse ter o que eu nunca seria capaz de lhe proporcionar.
- Fique descansada.
Muito obrigada Rosário. Está a oferecer-me uma oportunidade única de ser feliz.
Garanto-lhe que o menino ficará bem, porque tem todo o meu amor. Será que
podemos resolver essa questão legal ainda hoje?
- Por mim, agora
mesmo. Confesso que me sinto mais tranquila, aliviada para ser mais exata, por
saber que a criança ficará consigo e que não corre o risco de andar de família
em família ou aguardar uma eternidade para que lhe seja encontrada uma.
A partir desse
instante, Dolores sentiu-se oficialmente mãe.
- Daniel será o seu
nome. Gosta? – Perguntou Dolores a Rosário enquanto saíam. É um nome de origem
hebraica e significa Deus é o meu Juiz.
São tidos como carismáticos, de opinião sólida, não se importando com o que os
outros dizem, mas antes fiéis aos seus princípios e valores. Parece-me bem e a
si?
- Gosto, mas a Dolores
é quem sabe. É a mãe, logo decide – respondeu-lhe Rosário.
- Sabe, gosto sempre
de saber a origem dos nomes. De alguma forma, dizem sempre algo sobre nós. No
meu caso, a minha mãe vaticinou-me à nascença. Não sei como, mas adivinhou-me a
vida e a minha infelicidade. Também me profetizou a paz de espírito, depois de
duras batalhas e dor. Daí o nome Dolores. Já a Rosário deve ter este nome,
porque a sua mãe seria devota da Nossa Senhora do Rosário, ou até terá nascido
a sete de outubro…
- Nasci mesmo, como
sabe?! - Admirou-se Rosário.
- É o dia de Nossa
Senhora do Rosário, a quem foi atribuída a responsabilidade pela vitória da
Batalha do Lepanto, na luta Santa contra os turcos otomanos, após ter sido
realizada uma procissão em sua honra, na Praça de S. Pedro, em Roma, a pedir a
intercessão divina. Ao que parece as preces foram ouvidas. Assim se foi divulgando
o culto Mariano.
- Olhe, não fazia
ideia…
Rosário entregou-lhe o
filho para adoção, tudo devidamente legalizado, pelo que o processo foi mais
célere. Daniel trouxe a luz a Dolores, que estranhamente começou a sorrir no
trabalho, tornou-se mais delicada e amorosa com as mães de estreia e com os
seus bebés. Perdera o medo de se afeiçoar demasiado, porque o seu coração
estava cheio de tudo e transbordava em abundância. Quem mais lucrava com esta
nova Dolores era Daniel, mimado e acarinhado com desvelo.
Os anos foram passando
e a paz de espírito abraçava Dolores, que ia envelhecendo devagarinho, quase
impercetivelmente, como a árvore mais antiga do jardim de quem ninguém se
lembra do dia em que foi plantada, sabe só que há muito tempo… Daniel tornava-se
um homem, com uma rapidez inesperada, que espantava a sua mãe Dolores e a
entristecia. Preferia-o sempre menino, debaixo da sua alçada e da sua proteção.
Custava-lhe admitir que não se cria um filho para si mesmo, mas para o mundo.
Esta independência de Daniel, que se começava a impor, angustiava-a. Daniel
aprendeu cedo a ler sua mãe. Pressentia-lhe a preocupação e dizia-lhe com
palavras ternas o amor que por ela tinha e a sua imensa gratidão, por o ter
escolhido para filho. Dolores ouvia embevecida o seu menino, mas desconfiada de
que havia algo mais que Daniel ainda não dissera, por medo de a ferir. Dolores
nunca lhe omitiu a sua história e a sua origem. Cumpriu o que prometera a
Rosário e disse-lhe que a sua mãe, apesar de o ter entregado a ela, sua mãe de
coração, também o fez por amor, por considerar que estaria a proporcionar-lhe o
que não se sentia em condições de lhe poder oferecer. Daniel, aparentemente,
não se mostrou demasiado incomodado, mas sentiu a rejeição profundamente. Quis
saber apenas o nome da sua incubadora, como lhe chamou, e declarou: “Bem, não
vou querer saber de quem não quis saber de mim.” E assim foi, durante muito
tempo, mas ultimamente, Dolores sentia-o muito calado. Tinha ar de quem
carregava um fardo muito pesado, no entanto, o coração de uma mãe não se engana
e viria em socorro do filho. Certo dia, Daniel arrastava-se vagarosamente,
completamente absorto nos seus pensamentos, ausente da trivial realidade, o que
lhe custou um tropeção nas caixas com velharias que a mãe tinha separado, foi
surpreendido por Dolores, que tinha saído mais cedo do trabalho.
- Daniel?! Estás bem,
filho? Magoaste-te? – Inquiriu ela.
- Não foi nada… ia
caindo por causa desta caixa, mas fiquei incólume…
- Olha filho, então
chega aqui que eu preciso de conversar um bocadinho contigo.
Daniel juntou-se à
mãe, na sala, deitando-se sobre o sofá, com ar extenuado. Parecia um obreiro
que terminou a jorna e que precisava irremediavelmente de recuperar forças para
o dia seguinte, que se adivinhava idêntico, dificílimo, insuportável…
- Daniel – começou
Dolores – vejo que tens andado muito preocupado, calado, distraído, sempre
pensativo, com ar tão grave … queres falar-me sobre algum assunto em
particular?
- Ó mãe, não sei por
onde começar… não quero magoar-te, tenho medo de que leves a mal e …
Dolores não o deixou
continuar e, pegando-lhe na mão, assegurou-lhe que tal não aconteceria e que
até sabia qual o assunto que o atormentava.
- Queres conhecer a
tua mãe biológica, certo, filho? A curiosidade e vontade de saber das tuas
origens e raízes exigem-te que o faças, ainda que isso te contrarie de certa
forma. Não conseguiste perdoar-lhe, porque consideras que todas as mães
deveriam querer os seus filhos para os amar e ver crescer… mas deves fazer um
esforço por compreender e não julgar. Se para isso tiveres que falar com a
Rosário, iremos procurá-la.
- É isso. Obrigada por
não ficares ressentida e me compreenderes tão generosamente. Há uma urgência em
mim que me impele a saber de onde venho, as minhas origens.
Dolores serenou
Daniel. Nunca lhe tinha contado, mas não tinha perdido o paradeiro de Rosário,
porque sabia que um dia a biologia iria sobrepor-se e que o seu filho quereria
algumas respostas que não eram da sua competência. Rosário tinha-se
comprometido com Dolores, muitos anos antes, aquando da adoção de Daniel, a ter
uma conversa com o filho de ambas, se eventualmente, algum dia, ele mostrasse
essa necessidade. Pois bem, tinha chegado a hora. Não iria ser fácil para
nenhum deles, no entanto, era imprescindível à paz de espírito de Daniel. Sabia
que o amor do filho por ela não estava em causa, mas esse facto não impedia que
o seu coração se sentisse pequenino, ínfimo e muito apertado.
No dia seguinte, de
manhã, Dolores contactou Rosário. Contou-lhe da ansiedade, da inquietação que
abalava Daniel e da necessidade premente de o tranquilizar. Rosário suspirou,
pressentindo a dificuldade da tarefa, porém, não recuou na promessa que havia
feito anos atrás e combinaram o encontro para esse final de tarde.
Nesse dia, quando
Daniel chegou a casa, Rosário já o esperava. Dolores fez as apresentações e
deixou-os a sós, para conversarem mais à-vontade. Rosário abriu as
hostilidades, explicando que foi persuadida a ter conversa por Dolores, que
estava preocupadíssima com ele e que ela estava disponível para quaisquer
esclarecimentos.
Daniel foi direto e
rude, limitando-se a perguntar:
- Quais as razões que a levaram a
abandonar-me?
Rosário explicou-lhe
que ele era fruto de um relacionamento esporádico e que ela não se sentiu capaz
de o criar sozinha.
- E os meus avós sabem
de mim? – Interrogou Daniel.
- Não. - Respondeu
ela. - Como não quis criar-te, achei bem não criar laços com os avós, que nunca
aceitariam a minha decisão.
- E não se importou
com o que eu viria a sentir! Eu tenho o pleno direito de conhecer a minha
família biológica, nunca pensou nisso?
_ Sim, pensei. Não me
orgulho de não ter tido a coragem, força e perseverança suficientes para te
criar, Daniel, mas não posso voltar atrás. Acho mesmo que tomei a melhor opção
e estou de consciência tranquila. Não poderias ter melhor mãe, do que a que
tens.
- Sei-o. Além do amor
que sinto, dedico-lhe uma profunda gratidão. No entanto, a Rosário não tinha o
direito de ocultar a minha existência, de me negar aos meus avós, nem de
sonegar-me o direito de os conhecer. Algo que poderei concretizar, se me
apetecer, sem que possa impedir-me. Pelo que sei ainda estão vivos.
Daniel arremessou
aquelas palavras como quem atira pedras, na esperança de ferir e preocupar
seriamente Rosário, dando conta de uma ira contida, pronta a explodir.
- Tens razão. Não
poderei impedir-te, mas peço-te que penses nas consequências que uma notícia
dessas pode causar aos teus avós. Lembra-te de que já são idosos.
- Não tem o direito de
pedir-me nada! Francamente, Rosário, eu vou conhecer os meus avós. Só ainda não
sei se lhes revelarei a minha verdadeira identidade. Hoje, só confirmei o que a
minha alma já sabia: a Rosário é uma mera incubadora, a quem devo a vida e
agradeço-lhe por isso, mas o amor incondicional, conheci com a minha verdadeira
mãe, a Dolores.
Rosário tinha-se
preparado para ouvir palavras duras, mas a expressão crispada e enraivecida de
Daniel, o ódio que lhe pressentia no olhar, surpreendeu-a. Estava nitidamente
abalada. Daniel, de punhos cerrados, hirto, estático e com azedume, pediu-lhe
que se retirasse.
Antes de sair, Rosário estagnou. De costas,
por não conseguir enfrentar novamente o duro e impiedoso olhar, apenas disse:
- Espero que um dia me
possas perdoar.
- Não conte com isso –
respondeu prontamente Daniel. – Uma mãe que rejeita o filho não merece ser
agraciada com essa condição que simboliza tudo: amor, educação, compaixão…
mãe…uma palavra tão pequenina, mas tão plena, tão perfeita, tão cheia de vida!
Essa é a minha mãe de coração, como sempre me segredou. E sempre me fez sentir
especial, o escolhido, o eleito. O que a biologia recusou, o coração acolheu.
Rosário saiu sem
conseguir evitar a emoção. As lágrimas inundavam-lhe a face como um rio que sai
do leito, por excesso de chuva. Foi no meio dessa tempestade que Rosário se
despediu, com a certeza dolorosa e inabalável de que seria a única conversa que
teria com o seu filho.
Dolores tinha ouvido
tudo e o seu coração encontrava-se num sereno sobressalto. Sabia que Rosário
não lhe roubaria o seu menino e a sua alma apaziguou-se, mas afligia-se por
Daniel. A sua dor era também a sua. Queria arrancar-lhe com violência essa dor,
transferi-la para si, mas não podia. Daniel teria que trilhar o seu próprio
caminho, fazer as suas escolhas sozinho, enfrentar as adversidades com espírito
de sacrifício e de conquista. Essa era a sua vida e só podia vivê-la uma vez.
Podia apenas carregá-lo ao colo nos momentos de maior desânimo e apoiá-lo nas
decisões que tomasse. Talvez fosse esse o sentido da vida: a exigência pela
autossuperação, uma busca incessante por uma ideia de felicidade, que está
sempre a um passo de se alcançar. Tinha apenas uma certeza: o seu amor eterno,
uma maternidade abençoada e consagrada no coração de ambos. Enquanto houvesse
vida, Daniel teria sempre a sua mãe de coração!
Nina M.
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