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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Aridez



Era seca. O seu ventre, terreno pedregoso, enxuto e murcho, não podia acolher vida. Passou pela experiência incipiente da maternidade, mas que terminou de modo cru e insuportavelmente rápido. Com as entranhas, secara-lhe também a alma, quando ouviu o diagnóstico perentório e infalível do médico: “a senhora não poderá mais gerar um filho e não há nada que se possa fazer”. As lágrimas, as últimas que vertera, foi quando lhe disseram que tinha perdido o embrião. Embrião! Nome estranho para se dar a uma vida! Filho, filho era a palavra. E não queria saber se a criatura ainda não tinha desenvolvido cérebro ou o que quer que fosse. Desde o dia em que soube da gravidez, sentiu-o como filho e imaginou-lhe o rosto. Era o filho que afagava, quando as mãos ternurentas esfregavam a barriga ainda invisível, num gesto espontâneo de amor. E diziam-lhe que tinha perdido o embrião… Essa perda trouxe uma maior, intensificada pela notícia de que nunca mais emprenharia, custou-lhe a sua própria essência, a sua alegria natural. Desde essa altura, fechou-se num isolamento surdo e num mutismo que lhe causavam náuseas. Perdeu-se de si e desprezou tudo o resto. Tinha-lhe sido imputado o pior castigo que se pode dar a uma mulher: um ventre seco. Nunca sentiria o milagre da vida dar-se dentro si. Tal era contranatura. Inaceitável. Diminuía a sua condição de mulher. Fazia com que não se sentisse inteira. Tornara-a frágil, imensamente débil, mas uma fraqueza que fazia tenção de não revelar e que queria esconder. Não deixava adivinhar o mais ínfimo indício que a pudesse expor. Sentia uma vergonha feroz e uma revolta abafada que a corroía e desgastava e matava lentamente. Tornou-se amarga, severa, frígida, de rosto sempre absurdamente crispado e austero. O olhar duro e penetrante amedrontava quem quer que fosse.
            Por ironia do destino, que gosta de manipular a vida como se de uma marioneta se tratasse e de impregná-la de cinismo, quis este que se tornasse parteira, como que a lembrar-lhe a maternidade alheia, que nunca poderia ser sua, e da qual nunca poderia fugir. Sentia, a cada novo grito que clamava por vida, uma chicotada que lhe dilacerava a carne. Obrigava-se a trazer ao mundo as vidas que nunca poderia parir. Era um processo doloroso. Sofria silenciosamente a sua dor inquietante e profunda, mas no fim do trabalho, a exaustão e desespero apoderavam-se de si e já em casa, só e invadida por uma angústia velha e gasta, chorava sem verter lágrimas, gritava desesperadamente como se o mundo ruísse ao seu redor. Acalmava-se ao fim de algumas horas, deixando-se cair numa letargia avassaladora e piedosa. Dobrada sobre si, pensava que se não podia carregar vida dentro de si, as suas mãos podiam, pelo menos, ajudar a pôr novos entes no mundo. Não suportava, porém, olhar essas indefesas criaturas que lhe lembravam a sua impotência e incapacidade. Assim, despachava-se o mais que podia, para entregar a cria à sua progenitora o mais rápido que conseguisse, como se estivesse a livrar-se de um estorvo ou de uma doença altamente contagiosa. Na realidade, a parteira fugia do amor e não sabia. E os seus dias eram um somatório de desilusões, frustrações e negrura. Todos lhe reconheciam profissionalismo e aptidões, mas ninguém lhe ignorava o desamor e a indiferença, de maneira que quando uma mãe chegava e sabia a sorte que lhe calhara, a parteira de serviço, se por um lado se tranquilizava por se ver em mãos experientes e sábias, por outro, repudiava a frieza e displicência que abalavam facilmente a inconstância hormonal de que se sentia prisioneira. Sabia que precisava do mesmo afeto com que todos os olhos curiosos olham um recém-nascido e que dali não viria nada. Já para não falar da ajuda essencial nos dois primeiros dias, sobretudo se a mãe é inexperiente e ignora os sinais de um neófito. Depois de depositar a criança no colo materno, a parteira fazia literalmente como Pilatos: lavava as mãos e não voltava a olhar a mesma cria duas vezes. Todos se interrogavam sobre os motivos de tão aberto desprendimento e camuflada repugnância que lhe liam facilmente no olhar e adivinhavam nos gestos apressados e ansiosos com que lidava com todos aqueles novos seres. Não fosse a experiência que se pressentia nas primeiras rugas de expressão, mas que não lhe retiravam nem a beleza nem a austeridade e pensar-se-ia que era uma novata nervosa e algo atabalhoada, sem maturidade suficiente para entender o caráter sublime e divino da maternidade. O Criador precisou do ventre acolhedor e terno da mãe para que o seu filho viesse contar a Boa Nova. É, portanto, no ventre materno que a semente divina se instala, se propaga e se faz verbo. É através da mãe que a presença divina se continua a fazer sentir na terra inóspita e cruel e o milagre se dá.
Mas não era isso. Fugia da dor, receava que um dilúvio se soltasse abruptamente sem que houvesse dique capaz de o conter. Fugia de si, fugia da nova criança a quem tentava permanecer indiferente, em pânico pela possibilidade de ser tomada por um amor súbito e inquebrável. Não podia correr o risco de se ligar inexoravelmente a um ser que não lhe pertencia. A parteira, que com amor furtivo, trazia novos seres ao mundo, fugia do amor profundo e eterno que liga uma mãe a um filho!
Com gestos mecânicos, iguais aos de todos os dias, insuportavelmente repetidos e monótonos, dava o primeiro banho àquela criatura indefesa, longe da supervisão materna, para depois lhe garantir o sustento, tarefa que os seios maternos se recusavam cumprir, por vaidade, inaptidão e crueza de espírito. Chegada ao quarto, pronta para confiar o novo ser à progenitora, como sempre fazia, invadida pelo vazio que a queimava e consumia viva, olhou à sua volta. Não viu ninguém. Bateu à porta da casa de banho, mas não viu nem ouviu vivalma. Saiu com a criança no regaço, evitando olhar para ela uma segunda vez e, assim, acautelar-se para não se apaixonar à segunda vista. Foi procurar por alguém que lhe dissesse onde se encontrava a mãe do bebé.
Incrédula, ouviu a Benedita dizer que esse bebé iria ser dado para adoção e que já estavam a tratar do processo. A mãe já tinha recebido alta e não quis despedir-se de quem nunca tinha desejado, foram estas as palavras. Esperava, porém, que pudessem encontrar-lhe um lar onde fosse, se não amado, pelo menos sustentado.
O seu rosto transfigurou-se, a austeridade facial foi substituída por uma raiva imensa que lhe toldava o olhar e disse:
 - Acaso não sabe ela que o seu corpo pode acolher o sublime milagre da vida e que isso não é uma garantia vitalícia com a qual se nasce? Que há quem queira e não possa?!
- Então vamos esperar que esta criança seja acolhida por alguém assim, Dolores. Alguém que compreenda o milagre e não o possa celebrar no próprio corpo. Assim se faz uma criança feliz, porque o amor que vem do coração é tão bom quanto o que vem do ventre.
Benedita não dissimulava o espanto que a surpreendia com o mesmo vigor e improbabilidade de uma trovoada de verão. A Dolores era humana! Mostrava-se incomodada com este abandono, quando aparentemente lidava com os novos entes de forma tão desligada! Nunca ninguém pensou na Dolores assim, um ser capaz de mostrar emoção e sentimento! Viam apenas o autómato que cumpria rígida e profissionalmente o seu trabalho, sem se envolver, incapaz de um gesto de ternura.
Curiosamente, ninguém quis saber ou se mostrou intrigado com o nome da parteira. Parecia uma dupla ironia e a sua mãe, quando lhe perscrutou o rosto e alma, no momento em que nasceu, sentenciou: “Dolores será o seu nome, porque a sua vida não irá ser fácil, mas um dia a paz invadirá a sua alma. A felicidade é tão mais apreciada quanto dói para se conquistar.” O seu nome era, portanto, o resultado desta clarividência de sua mãe e de uma premonição demoníaca, mas eficaz: condensava em si a dor das que pariam e a sua própria dor por não poder gerar. Dores que fingia não ter, nome que lhe soava distante e procurava esquecer. Ninguém o adivinhou e, por isso, se surpreendiam.
Pela primeira vez, em tantos anos de serviço, Dolores quebrou a regra, não porque o fizesse conscientemente e de forma refletida, mas porque quando percebeu já era tarde e os seus olhos encontraram-se com os do neófito, numa partilha abençoada. Sem querer, sua mão já segurava e afagava a mãozinha minúscula, tão sedenta de calor. Sorria-lhe abertamente com palavras de amor, com palavras de mãe.
Nessa noite, terminado o trabalho, o seu dia não lhe pareceu horrível como todos os outros. A sua memória era invadida pelo rosto pequenino e rechonchudo, ainda algo enrugado pela azáfama do parto, e do qual não mais se esqueceria. Nesse momento, Dolores soube. Ela seria a mãe e ele a cria que não podia parir, mas que podia, todavia, criar e amar. Sentia-o já como filho, porque seu coração já se apertava por se sentir fisicamente afastada. E decidiu não mais o deixar sem o calor da sua presença. Dava voltas na cama e não conseguia dormir. Sentia-se inquieta e perguntava-se como estaria o bebé. Sabia que as suas colegas eram cuidadosas e que não o deixariam negligenciado, mas sentia um arrepio só de pensar que pudesse sentir-se sozinho, abandonado, sem o calor constante da mãe. Essa ideia era-lhe insuportável. Decidiu, para tranquilizar o seu espírito, levantar-se e fazer uma relação do que precisaria de comprar para tomar conta do seu filho: biberões, fraldas, roupa, leite, enfim…tudo aquilo para o que uma mãe se prepara ao longo de longos nove meses. Quanto ao berço, veria com calma. Por enquanto, dormiria com ela, bem juntinhos, numa esperança secreta e algo estranha de o tentar sentir dentro de si própria. Afinal, os primeiros dias são ainda um prolongamento da vida intrauterina. Tê-lo assim tão próximo era o máximo que conseguia fazer e que mais se aproximava do que seria sentir um filho dentro de si. Ouvia habitualmente as mães falarem, com um sorriso largo, sincero, orgulhoso e com um brilho especial no olhar, dos pontapés das suas crias ou dos pezitos nas costelas que lhes retiravam o fôlego e as deixavam a arfar. Tudo com uma alegria incontida que tomava conta delas e contagiava quem as ouvisse. De repente, até a pirose ou os enjoos pareciam agradáveis. Quem lhe dera ter sentido tudo isso! Mas, o que não tem remédio, remediado está. Não o podia sentir verdadeiramente dentro de si, no entanto, podia-o sentir totalmente no coração. E assim era. A sua alma estava redonda, prateada e iluminada como uma linda lua cheia, cheia também desta nova companhia, cheia desta nova vida. Sabia que teria de ter muita paciência até o processo de adoção estar concluído, uma vez que este passa por várias etapas. Queria tratar o assunto de forma diferente. Sentia-se mãe deste bebé e era este que queria criar, não pretendia engrossar a lista dos adotantes que aguardam ansiosamente o telefonema dos serviços da Segurança Social para informar de que surgiu uma criança que se adapta ao perfil dos aspirantes a pais. Precisava urgentemente de encontrar a mãe biológica. Pretendia que ela lhe entregasse diretamente a criança e que tudo fosse legalmente registado, para poder agilizar a adoção, antes que a criança fosse entregue à Segurança Social. Tinha tirado o dia para tratar de tudo. Levantou as informações sobre a residência e contacto da mãe biológica no hospital e preparava-se para esse encontro. Pelo caminho, ia interiorizando a ideia de que não podia julgar o comportamento desta mãe, embora não o compreendesse, mesmo porque se a queria convencer a entregar-lhe o filho, não poderia mostrar-se hostil e teria de lhe explicar os motivos que a impeliam tão fortemente para esta adoção, para a vontade de assumir sozinha a enorme responsabilidade de criar, educar e formar um ser humano. Tarefa hercúlea, mas para a qual sabia estar preparada. Certamente, cometeria os seus erros, mas todas as mães cometem, sejam biológicas ou apenas de coração. Importante seria saber aceitar esses pequenos defeitos e seguir em frente, passando um testemunho de amor e de respeito pelo próximo, enfim, os valores que distinguem os homens de boa vontade. Essa seria a sua principal tarefa e preocupação: formar uma pessoa de caráter. Acreditava que só assim se pode encontrar o caminho para uma vida sadia e feliz. Não seria uma conversa fácil, mas também não pretendia desistir dos seus intentos e, como tal, enchia-se de uma coragem que não sabia possuir, do tipo que aparece nas progenitoras quando pressentem a cria em perigo e que permite que o instinto reaja mais rapidamente do que a razão. Falaria abertamente, pela primeira vez em tanto tempo, de coração aberto. Exporia a sua situação e aguardaria ansiosamente o julgamento final daquela mãe que recusava o filho.
Quando abriu a porta, Rosário não omitiu o olhar de espanto:
- Enfermeira Dolores! Passa-se alguma coisa?! É por causa da adoção? Já encontraram alguém que queira o bebé?
- Sim, vim por causa da adoção. Será que posso entrar um pouco para conversarmos?
- Faça favor – disse Rosário - indicando o caminho de braço estendido. Pediu à enfermeira que se sentasse e depois acrescentou:
- Enfermeira Dolores, se veio até cá com o objetivo de me persuadir a desistir da adoção, pode esquecer. Não tomei esta decisão facilmente. Refleti muito sobre o assunto. Engravidei acidentalmente, por descuido, mas não quis impedir que a criança nascesse, porém, não foi fruto de um relacionamento estável. Não me sinto com coragem ou capacidade para tratar desse bebé sozinha. Espero que possa encontrar uma família que trate bem dele e que o possa amar como filho.
- Não é isso Rosário, ainda que deva admitir que não compreendo bem essa decisão, mas respeito, sem julgar. Também acho preferível entregar a criança a alguém que a possa amar a ficar com ela por obrigação maternal, mas não ser capaz de lhe dar o amor que qualquer bebé merece. O que eu lhe quero dizer, Rosário, é que eu quero criar esse bebé. Sou sozinha, mas sei que posso fazê-lo, sem deixar que nada lhe falte, principalmente, afeto. Sempre quis ser mãe, mas sou estéril, seca como uma terra árida que não acolhe a semente, nem frutifica. Esta é a minha única oportunidade. Nunca quis aproximar-me demasiado das crianças que nasciam comigo, por saber que não me pertenciam. Evitava-as. Com o seu filho foi diferente, quando me disseram que o ia entregar para adoção, não fui capaz de me separar. Senti-me a sua mãe, cá dentro, entende? Faço os possíveis por ser eu a cuidar dele. Dou-lhe o biberão, banho, colo… converso com ele, como todas as mães fazem…
Se chegar a dar entrada na Segurança Social, posso não ser a escolhida. Provavelmente, preferem uma família tradicional e não uma monoparental, no entanto, eu sei que posso tratar muito bem desta criança. Juro-lhe pela minha própria vida. Se mo entregasse diretamente… com a ajuda de um advogado, poderia passar-me uma declaração onde manifeste a vontade de que a criança me seja confiada, por me reconhecer idoneidade, capacidade económica e confiar no amor que revelo pelo bebé.
Rosário olhava-a, atónita. Não esperava uma revelação destas! Muito menos ver a enfermeira com fama de insensível e de indiferente tão emocionada e empenhada em ser mãe. Sentiu compaixão por esta mulher que desejava ardentemente ser mãe e que por não poder, se sentia diminuída. Viu-se ligeiramente tomada pela culpa, que repentinamente deixava de morrer solteira.
- Não sei o que lhe diga, Dolores. Nunca me passou pela cabeça essa possibilidade! Tenho que pensar um pouco sobre o que será melhor para o bebé…
- Rosário, escute: Sabe como é importante para um bebé sentir o amor de uma mãe, desde que nasce. Crianças com mães negligentes apresentam sinais de stress, irritabilidade, tornam-se inseguros e isso afetará a sua inteligência emocional futuramente, a sua capacidade de confiar nas pessoas, principalmente, nos adultos. Eu sou o rosto e o cheiro que o seu filho melhor identifica, neste momento. Quando chora e eu o aconchego no meu regaço, ao mesmo tempo que lhe falo, com carinho, ele acalma-se de imediato. Tem a mesma reação que qualquer filho biológico teria. Vai sonegar-lhe a minha presença também, Rosário? Não lhe negue uma mãe, pela segunda vez, por favor. Pense sobre o assunto e diga-me quando tomar uma decisão. Se possível, não demore muito.
Ia virar costas para se ir embora, quando Rosário a impediu, segurando-lhe o braço.
- Espere Dolores, não preciso de mais tempo. Vejo que gosta realmente do bebé e que ele ficará bem consigo. Peço-lhe só que seja a mãe que eu não posso ser e que um dia lhe explique que, por difícil que seja de compreender, eu entreguei-o também por amor, para que pudesse ter o que eu nunca seria capaz de lhe proporcionar.
- Fique descansada. Muito obrigada Rosário. Está a oferecer-me uma oportunidade única de ser feliz. Garanto-lhe que o menino ficará bem, porque tem todo o meu amor. Será que podemos resolver essa questão legal ainda hoje?
- Por mim, agora mesmo. Confesso que me sinto mais tranquila, aliviada para ser mais exata, por saber que a criança ficará consigo e que não corre o risco de andar de família em família ou aguardar uma eternidade para que lhe seja encontrada uma.
A partir desse instante, Dolores sentiu-se oficialmente mãe.
- Daniel será o seu nome. Gosta? – Perguntou Dolores a Rosário enquanto saíam. É um nome de origem hebraica e significa Deus é o meu Juiz. São tidos como carismáticos, de opinião sólida, não se importando com o que os outros dizem, mas antes fiéis aos seus princípios e valores. Parece-me bem e a si?
- Gosto, mas a Dolores é quem sabe. É a mãe, logo decide – respondeu-lhe Rosário.
- Sabe, gosto sempre de saber a origem dos nomes. De alguma forma, dizem sempre algo sobre nós. No meu caso, a minha mãe vaticinou-me à nascença. Não sei como, mas adivinhou-me a vida e a minha infelicidade. Também me profetizou a paz de espírito, depois de duras batalhas e dor. Daí o nome Dolores. Já a Rosário deve ter este nome, porque a sua mãe seria devota da Nossa Senhora do Rosário, ou até terá nascido a sete de outubro…
- Nasci mesmo, como sabe?! - Admirou-se Rosário.
- É o dia de Nossa Senhora do Rosário, a quem foi atribuída a responsabilidade pela vitória da Batalha do Lepanto, na luta Santa contra os turcos otomanos, após ter sido realizada uma procissão em sua honra, na Praça de S. Pedro, em Roma, a pedir a intercessão divina. Ao que parece as preces foram ouvidas. Assim se foi divulgando o culto Mariano.
- Olhe, não fazia ideia…
Rosário entregou-lhe o filho para adoção, tudo devidamente legalizado, pelo que o processo foi mais célere. Daniel trouxe a luz a Dolores, que estranhamente começou a sorrir no trabalho, tornou-se mais delicada e amorosa com as mães de estreia e com os seus bebés. Perdera o medo de se afeiçoar demasiado, porque o seu coração estava cheio de tudo e transbordava em abundância. Quem mais lucrava com esta nova Dolores era Daniel, mimado e acarinhado com desvelo.
Os anos foram passando e a paz de espírito abraçava Dolores, que ia envelhecendo devagarinho, quase impercetivelmente, como a árvore mais antiga do jardim de quem ninguém se lembra do dia em que foi plantada, sabe só que há muito tempo… Daniel tornava-se um homem, com uma rapidez inesperada, que espantava a sua mãe Dolores e a entristecia. Preferia-o sempre menino, debaixo da sua alçada e da sua proteção. Custava-lhe admitir que não se cria um filho para si mesmo, mas para o mundo. Esta independência de Daniel, que se começava a impor, angustiava-a. Daniel aprendeu cedo a ler sua mãe. Pressentia-lhe a preocupação e dizia-lhe com palavras ternas o amor que por ela tinha e a sua imensa gratidão, por o ter escolhido para filho. Dolores ouvia embevecida o seu menino, mas desconfiada de que havia algo mais que Daniel ainda não dissera, por medo de a ferir. Dolores nunca lhe omitiu a sua história e a sua origem. Cumpriu o que prometera a Rosário e disse-lhe que a sua mãe, apesar de o ter entregado a ela, sua mãe de coração, também o fez por amor, por considerar que estaria a proporcionar-lhe o que não se sentia em condições de lhe poder oferecer. Daniel, aparentemente, não se mostrou demasiado incomodado, mas sentiu a rejeição profundamente. Quis saber apenas o nome da sua incubadora, como lhe chamou, e declarou: “Bem, não vou querer saber de quem não quis saber de mim.” E assim foi, durante muito tempo, mas ultimamente, Dolores sentia-o muito calado. Tinha ar de quem carregava um fardo muito pesado, no entanto, o coração de uma mãe não se engana e viria em socorro do filho. Certo dia, Daniel arrastava-se vagarosamente, completamente absorto nos seus pensamentos, ausente da trivial realidade, o que lhe custou um tropeção nas caixas com velharias que a mãe tinha separado, foi surpreendido por Dolores, que tinha saído mais cedo do trabalho.
- Daniel?! Estás bem, filho? Magoaste-te? – Inquiriu ela.
- Não foi nada… ia caindo por causa desta caixa, mas fiquei incólume…
- Olha filho, então chega aqui que eu preciso de conversar um bocadinho contigo.
Daniel juntou-se à mãe, na sala, deitando-se sobre o sofá, com ar extenuado. Parecia um obreiro que terminou a jorna e que precisava irremediavelmente de recuperar forças para o dia seguinte, que se adivinhava idêntico, dificílimo, insuportável…
- Daniel – começou Dolores – vejo que tens andado muito preocupado, calado, distraído, sempre pensativo, com ar tão grave … queres falar-me sobre algum assunto em particular?
- Ó mãe, não sei por onde começar… não quero magoar-te, tenho medo de que leves a mal e …
Dolores não o deixou continuar e, pegando-lhe na mão, assegurou-lhe que tal não aconteceria e que até sabia qual o assunto que o atormentava.
- Queres conhecer a tua mãe biológica, certo, filho? A curiosidade e vontade de saber das tuas origens e raízes exigem-te que o faças, ainda que isso te contrarie de certa forma. Não conseguiste perdoar-lhe, porque consideras que todas as mães deveriam querer os seus filhos para os amar e ver crescer… mas deves fazer um esforço por compreender e não julgar. Se para isso tiveres que falar com a Rosário, iremos procurá-la.
- É isso. Obrigada por não ficares ressentida e me compreenderes tão generosamente. Há uma urgência em mim que me impele a saber de onde venho, as minhas origens.
Dolores serenou Daniel. Nunca lhe tinha contado, mas não tinha perdido o paradeiro de Rosário, porque sabia que um dia a biologia iria sobrepor-se e que o seu filho quereria algumas respostas que não eram da sua competência. Rosário tinha-se comprometido com Dolores, muitos anos antes, aquando da adoção de Daniel, a ter uma conversa com o filho de ambas, se eventualmente, algum dia, ele mostrasse essa necessidade. Pois bem, tinha chegado a hora. Não iria ser fácil para nenhum deles, no entanto, era imprescindível à paz de espírito de Daniel. Sabia que o amor do filho por ela não estava em causa, mas esse facto não impedia que o seu coração se sentisse pequenino, ínfimo e muito apertado.
No dia seguinte, de manhã, Dolores contactou Rosário. Contou-lhe da ansiedade, da inquietação que abalava Daniel e da necessidade premente de o tranquilizar. Rosário suspirou, pressentindo a dificuldade da tarefa, porém, não recuou na promessa que havia feito anos atrás e combinaram o encontro para esse final de tarde.
Nesse dia, quando Daniel chegou a casa, Rosário já o esperava. Dolores fez as apresentações e deixou-os a sós, para conversarem mais à-vontade. Rosário abriu as hostilidades, explicando que foi persuadida a ter conversa por Dolores, que estava preocupadíssima com ele e que ela estava disponível para quaisquer esclarecimentos.
Daniel foi direto e rude, limitando-se a perguntar:
 - Quais as razões que a levaram a abandonar-me?
Rosário explicou-lhe que ele era fruto de um relacionamento esporádico e que ela não se sentiu capaz de o criar sozinha.
- E os meus avós sabem de mim? – Interrogou Daniel.
- Não. - Respondeu ela. - Como não quis criar-te, achei bem não criar laços com os avós, que nunca aceitariam a minha decisão.
- E não se importou com o que eu viria a sentir! Eu tenho o pleno direito de conhecer a minha família biológica, nunca pensou nisso?
_ Sim, pensei. Não me orgulho de não ter tido a coragem, força e perseverança suficientes para te criar, Daniel, mas não posso voltar atrás. Acho mesmo que tomei a melhor opção e estou de consciência tranquila. Não poderias ter melhor mãe, do que a que tens.
- Sei-o. Além do amor que sinto, dedico-lhe uma profunda gratidão. No entanto, a Rosário não tinha o direito de ocultar a minha existência, de me negar aos meus avós, nem de sonegar-me o direito de os conhecer. Algo que poderei concretizar, se me apetecer, sem que possa impedir-me. Pelo que sei ainda estão vivos.
Daniel arremessou aquelas palavras como quem atira pedras, na esperança de ferir e preocupar seriamente Rosário, dando conta de uma ira contida, pronta a explodir.
- Tens razão. Não poderei impedir-te, mas peço-te que penses nas consequências que uma notícia dessas pode causar aos teus avós. Lembra-te de que já são idosos.
- Não tem o direito de pedir-me nada! Francamente, Rosário, eu vou conhecer os meus avós. Só ainda não sei se lhes revelarei a minha verdadeira identidade. Hoje, só confirmei o que a minha alma já sabia: a Rosário é uma mera incubadora, a quem devo a vida e agradeço-lhe por isso, mas o amor incondicional, conheci com a minha verdadeira mãe, a Dolores. 
Rosário tinha-se preparado para ouvir palavras duras, mas a expressão crispada e enraivecida de Daniel, o ódio que lhe pressentia no olhar, surpreendeu-a. Estava nitidamente abalada. Daniel, de punhos cerrados, hirto, estático e com azedume, pediu-lhe que se retirasse.
 Antes de sair, Rosário estagnou. De costas, por não conseguir enfrentar novamente o duro e impiedoso olhar, apenas disse:
- Espero que um dia me possas perdoar.
- Não conte com isso – respondeu prontamente Daniel. – Uma mãe que rejeita o filho não merece ser agraciada com essa condição que simboliza tudo: amor, educação, compaixão… mãe…uma palavra tão pequenina, mas tão plena, tão perfeita, tão cheia de vida! Essa é a minha mãe de coração, como sempre me segredou. E sempre me fez sentir especial, o escolhido, o eleito. O que a biologia recusou, o coração acolheu.
Rosário saiu sem conseguir evitar a emoção. As lágrimas inundavam-lhe a face como um rio que sai do leito, por excesso de chuva. Foi no meio dessa tempestade que Rosário se despediu, com a certeza dolorosa e inabalável de que seria a única conversa que teria com o seu filho.
Dolores tinha ouvido tudo e o seu coração encontrava-se num sereno sobressalto. Sabia que Rosário não lhe roubaria o seu menino e a sua alma apaziguou-se, mas afligia-se por Daniel. A sua dor era também a sua. Queria arrancar-lhe com violência essa dor, transferi-la para si, mas não podia. Daniel teria que trilhar o seu próprio caminho, fazer as suas escolhas sozinho, enfrentar as adversidades com espírito de sacrifício e de conquista. Essa era a sua vida e só podia vivê-la uma vez. Podia apenas carregá-lo ao colo nos momentos de maior desânimo e apoiá-lo nas decisões que tomasse. Talvez fosse esse o sentido da vida: a exigência pela autossuperação, uma busca incessante por uma ideia de felicidade, que está sempre a um passo de se alcançar. Tinha apenas uma certeza: o seu amor eterno, uma maternidade abençoada e consagrada no coração de ambos. Enquanto houvesse vida, Daniel teria sempre a sua mãe de coração!
Nina M.






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