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sábado, 28 de setembro de 2019

Centelha

Trago uma centelha abrigada
Reside no meu coração
Cintila assim quando quer
Não quando lhe dou a mão
Há momentos em que brilha tanto
Tudo em mim se faz luar
Outros faz-se pequenina
Como quem não se quer dar
Onde estás porque te escondes?
Pergunta o vento que passou
Num murmúrio ela responde
Se não vejo quem ma ofertou!
Sobra a angústia de existir
Que no peito se faz cara
Ocupa um imenso espaço
Quase torna a luz bem rara...
Mas tem vida a ténue chama
E alimento que lhe é dado
Cresce tanto e cintila
A iluminar quem por lá passa
É grito de pura alegria
Excede-se em sua graça!

Crónica de Maus Costumes 149


“Gretinices…”

            Já não me deveria surpreender com determinadas atuações de gente da política e, na verdade, não é surpresa, apenas constatação do óbvio e do que já há muito sei, mas que digiro com dificuldade e sempre me causa mal-estar e desejo extremo de me manter afastada desse tipo de meio. Faço-o, obviamente, mas já dizia Sophia, “vemos, ouvimos e lemos/Não podemos ignorar”…
            Ora esta semana o destilar de muito fel nas redes sociais (outro comportamento que me causa náuseas e uma certa angústia) foi endereçado a uma jovem de apenas dezasseis anos que por idiossincrasias do seu caráter obstinado decidiu lutar e endereçar todas as suas energias na difícil e tenebrosa missão de salvar o planeta e, para isso, tem forçosamente de conseguir despertar consciências amorfas, apáticas e adormecidas. Vi e li de tudo. Um texto onde se comparava a atitude felina e até de ódio de Greta à bonomia e simpatia de Malala! Uma cresceu sem que nada lhe faltasse, num sistema capitalista e explorador e mesmo assim é uma mal-agradecida que não sabe dar o devido valor ao que tem enquanto a segunda e, com toda a justiça, apenas uma vítima de uma sociedade fechada e medieval, onde se considera que às mulheres estão vedados uma série de direitos, incluindo o da educação. A jovem quase morreu, mas ei-la simpática, piedosa para com o inimigo e querendo mudar mentalidades com a sua perseverança e amor. Assim, Malala é o símbolo da tolerância e da esperança na humanidade, com a respetiva foto a condizer: expressão suave e olhar cândido. Já a outra é a arrogantezinha, a menina da mamã que não tem mais o que fazer e que está a ser manipulada por certos grupos de pressão ligados à indústria das energias renováveis. Aliás, foi um meio encontrado pelos pais para passarem a viver bem melhor e com mais mordomias capitalistas, porque a mãe já escreveu um livro que vendeu tremendamente. Segundo consta, o lucro das vendas nem seria para a família, mas para algumas instituições, mas isso também não interessa para nada, porque destruiria a imagem da petulante defensora do meio-ambiente. Ainda vi outra fotografia em que aparecia a Greta a tomar um belo pequeno-almoço europeu, confortavelmente sentada, enquanto viajava, produto do capitalismo e ao lado outra imagem em que uma série de jovens pobres, oriundos de regimes totalitários de esquerda esgravatam o lixo para encontrarem o que comer.
            Sendo que não sou nem de direita nem de esquerda, por já não saber o que isso significa na verdade, fico pasma com a mensagem que nem é subliminar! Em primeiro lugar, compara-se a Greta a Malala porquê? Acaso a menina só pode ter opinião se tiver sido uma desgraçada, abusada e espezinhada pela sociedade para se poder fazer ouvir? Quer dizer que não pode mostrar a sua frustração quando se apercebe de que os líderes mundiais se preocupam mais com o lucro do que com o estado de conservação da nossa casa e, portanto, deveria aparecer com ar tranquilo e não de cenho franzido e lábios crispados? E o que pensar da foto em que se opõe o fausto repasto à fome? Olha, Greta, toma lá o pequeno-almoço que o capitalismo te oferece e não sejas nem lamechas e muito menos inconveniente. Com a sorte que tiveste em nascer do lado certo do mundo, deverias era estar caladinha, porque perdeste toda a legitimidade para falar. Se te queres opor verdadeiramente vai fazer um estágio à Venezuela, primeiro! Falas de barriga cheia contra o sistema que te alimentou durante anos. Se estivesses na posição dos que catam o lixo não terias tanta força na língua!
Parece-me este (ainda que exagerado) o brilhante raciocínio dos que se lembraram de postar tal imagem e de a comentar! Só lamento que não se lembrem também que o mesmo capitalismo que nos alimenta (felizmente também nasci do lado certo do mundo!) quando feroz e selvagem deixa outros à míngua sem compadecimentos. Se num lado se passa fome, noutro deita-se comida fora! Só lamento que não vejam que se há grupos de pressão das renováveis a colarem-se à Greta, também haverá os do petróleo a não querem perder um monopólio e a defender que o buraco do ozono e as alterações climáticas são uma invenção!
            Caramba! Não haverá o bom senso de não achincalhar uma miúda que acreditará seriamente no ideal que defende? Será que aos dezasseis anos já tem a maturidade esperada para saber se está ou não a ser manipulada ou acreditará apenas nas boas intenções de quem a quer ajudar nos seus intentos? Como também já referi, estou-me nas tintas para o facto de haver ou não manipulação e se houver os grupos de pressão das renováveis, que seja pelo bem da casa comum! Tomara que os veículos elétricos com uma maior autonomia cheguem ao mercado em maior número e bem mais baratos! Havendo ou não manipulação, será que não se consegue despir a camisola da clubite partidária e ideológica (já sem qualquer ideologia no momento) e compreender que há de facto urgência em mudarmos determinados comportamentos? A indústria tem de ser menos poluente, mesmo que isso signifique menos lucro e todos nós devemos alterar uma série de hábitos e deixarmos de desperdiçar recursos?
            Estou francamente cansada de uma clivagem oca entre esquerdas e direitas que cheiram a bafio! Não. Não defendo regimes totalitários nem de esquerda nem de direita. Tanto abomino um Estaline ou Maduro quanto um Franco ou Salazar. São opressores e sanguinários. Interessar-me-ia bem mais que defendessem um partido HUMANISTA onde houvesse uma gestão eficaz de recursos, onde não houvesse excedente na Europa e fome na África, nalguns lugares da Ásia e também da América Central e do Sul! Gostaria de um partido humanista em que a implementação do preço justo fosse viável, onde a globalização dissesse não à exploração do trabalhador pelo patrão e pelo Estado, através de uma carga fiscal incomportável, a fazer lembrar o sistema feudal, apesar da democracia… Onde não houvesse corrupção que desgraça todas as nações, onde nem tudo fosse público, porque a iniciativa privada é essencial, mas onde houvesse séria regulamentação de mercado, onde a educação e saúde chegassem a todos com qualidade e essas sim, absolutamente públicas! Onde o poder judicial funcionasse de forma célere e isento, absolutamente distinto e longe do poder executivo! Onde apesar da preocupação em fazer crescer a economia também se preservasse o ambiente, onde todo o cidadão fosse efetivamente portador dos mesmos direitos e deveres! Onde tudo fosse pensado em prol do bem comum e não do bolso de meia dúzia!
            Em época de campanha, em vez de ver esquerdas, direitas e centros preocupados com algumas questões de fundo, vejo-os impressionados pelo ódio que destila o olhar de Greta e pela sua fausta refeição, enquanto é feita refém de comunistas só de nome (quais Robles europeus!) que querem enriquecer com as renováveis.
Enfim… “Gretinices”…

Nina M.


domingo, 22 de setembro de 2019

Dizem

Dizem...
Morre aos poucos o amor
A cada palavra não dita
A cada gesto que se evita
A cada fuga que se impõe
Morre aos poucos o amor
Se não se vislumbra no olhar
A palavra por falar
O carinho pronto para se soltar
A dor que se quer afastar
E no silêncio discreto e verdadeiro
Na ausência de perturbação
Surge o amor por inteiro
Estende a sua mão.

sábado, 21 de setembro de 2019

Sob os pés, a cidade adormecida

Sob os pés, a cidade adormecida
Silêncio quase absoluto
Ao longe, latidos pungentes
Dormem os ciganos
Vagueia o ser
A luz pálida dos candeeiros
Ilumina os passos
Nada cerceia a liberdade de ser
Só. Como no nascimento e na morte
Extremos que se tocam na solidão
Espelhos de água imóvel
Marulhar suave e delicado
Eis que surge a alma alva e límpida
Na madrugada muda
Vê-se uma ou outra janela iluminada
Prenúncio da manhã que se avizinha
Trará consigo o enfermo ruído dos dias

Crónica de Maus Costumes 148


Crescimento e aceitação

                Não é a primeira vez que me perguntam se gostaria de voltar a ter vinte anos. Respondo de imediato que não. Sem titubear e sem hesitação. Normalmente acrescentam: “mesmo sabendo o que sabes hoje?” A resposta é a mesma e perentória: um rotundo não! De seguida, olham-me com alguma estranheza.
                A minha juventude foi vivida com intensidade, como a idade o exigia, num equilíbrio entre a responsabilidade e o divertimento. Olhando para trás, há coisas que poderia ter feito de outra maneira, mas que foram o que tiveram de ser. Há muita gente que me deixa saudade e que foram importantíssimas para mim e que me marcaram, assim como o meu percurso. Talvez algumas delas não saibam o quanto, no entanto, tudo isso faz parte de um passado único e irrepetível e que me pertence em exclusivo. De lá até hoje, até aos meus quarenta e quatro anos, idade que assumo sem pejo, há muito ser construído e refletido. Muitas dores, perdas, alegrias e sucessos… Escolhas difíceis e necessárias que foram feitas e um trajeto de crescimento e de exigência pessoal que não é feito só de facilidades. A descoberta de si é um processo longo e se nos exigimos um projeto de SER mais difícil se torna. Assim, regressar aos vinte seria um retrocesso penoso.
                A minha idade permite que esteja a borrifar-me para o acúmulo de gordurinhas, a maior flacidez da carne e as rugas que vão despontando, sinal claro de maturidade! Sou mulher, logo sou portadora de alguma vaidade… Não escondo que gosto de gostar da imagem que o espelho me devolve e que me preocupo com a minha saúde e bem-estar. Procuro sentir-me bem fisicamente, mas porque gosto que assim seja e não porque a sociedade o impõe.
                Em cada ruga haverá uma história que pode ser contada, batalhas ganhas e perdidas, um caminho individual, às vezes, doloroso e que fez de mim o que sou no momento com ainda tanto para ser! Nunca poderia regredir, porque não voltaria a ser “eu”. E o meu projeto de ser é baseado no que já fui, no que sou e no que quero construir! Seria, portanto, um ser distinto e desconhecido. Na verdade, há uma consciência tão profunda da fragilidade e um reconhecimento do fim inexorável que a todos nos espera que me traz uma leve melancolia para matizar a alegria com que muitos me caracterizam e reconhecem. Eu sei que sou finita. Sei que a morte vai chegar de uma maneira ou de outra e sei que tenho de viver a minha vida como ela é e não o que poderia ser se recuasse no tempo mais sabida. Ninguém quer saber da efemeridade nem se preocupa em alcançar o absoluto num tempo limitado aos vinte anos! E se houve os que o sabiam, alguns deles puseram fim à agonia por antecipação. Aos vinte, a poesia era ainda incipiente, não se tinha agarrado à pele!
                Por isso, não, obrigada. Fico mesmo assim, como sou, com a idade que me pertence e as suas marcas naturais e irreversíveis, ainda com imensa vontade de viver e de construir com o que a vida tiver para me ofertar. Consciente até ao tutano do seu cinismo e das suas perrices, mas com a determinação de quem não a quer largar tão cedo.
Talvez aos noventa me consiga sentar e olhar para uma vida cheia com desapego. Pensar que a partir dali, mais dia ou menos dia não fará a diferença e que quando a ceifeira me bater à porta a reclamar a entrada, eu não lha vou negar.
Então, quem sabe não nos sentamos ambas a rirmo-nos desbragadamente da idiotice de nos levarmos tão a sério para constatarmos que não temos importância nenhuma na engrenagem do universo e que a cada peça velha que deixa de funcionar surge uma nova para a substituir.
Nina M.


sábado, 14 de setembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 147


As surpresas da vida

Esta semana fui caracterizada com alguma frequência com dois adjetivos: louca e corajosa. Refletindo serenamente nenhum dos dois se adequa.
O motivo reside no facto de termos decidido acolher uma jovem estudante italiana. Seremos os seus tutores ou pais adotivos durante este ano letivo. Exige responsabilidade, como é óbvio, e talvez por isso a loucura e a coragem sejam as duas palavras que ocorreram prontamente a quem o soube. Nunca neguei a minha boa dose de loucura! Coragem… Só às vezes… Porém, não se trata nem de uma coisa nem de outra. A AFS (associação que promove a interculturalidade entre os jovens) trata do essencial. Tudo é feito com organização e zelo. Na verdade, a decisão não requer, por isso, grande coragem. Exige, no entanto, outro pressuposto: vontade de acolher, de ser afetuoso e de amar. A partir do momento que a decisão foi tomada, restou-nos tratar de tudo para que a nossa nova menina se sinta em casa. Ainda não a conhecemos, mas acontecerá muito em breve e estamos todos ansiosos. A alegria dos meus filhos, que querem ter uma mana adotiva durante um ano e que será, com toda a certeza, para uma vida, mesmo que a distância física se imponha, é genuína e comovente.
Há afeto de sobra em minha casa e orgulho-me disso. Aos meus filhos não lhes chegam os primos nem amigos, gostam de ter sempre a casa cheia e quando lhes foi colocada a possibilidade de acolherem uma jovem durante um ano, rejubilaram de felicidade, com manifestações inequívocas de satisfação. Vivemos o estado dos que sabem que vão ser pais. Ainda não conhecem a criança, mas já a acolheram com todo o amor. Depois, o afeto gera afeto e quanto mais se repassa mais ele cresce e se torna numa fonte inesgotável. Gosto genuinamente de acolher e acredito que a felicidade de dar é maior do que a de receber. É uma oportunidade de promover o intercâmbio cultural aos meus pequenos. Aprenderão a respeitar, a conviver e a valorizar as diversidades culturais, a querer bem a quem é diferente, a receber influências de uma cultura e de uma língua que admiro e estimo, sem saírem de casa. Parece-me, portanto, que teremos muito a ganhar e bem pouco com que nos preocuparmos. Será uma experiência única e enriquecedora para todos. Saber fazer das diferenças laços é essencial. Será um ano diferente, com quebra de rotinas e adaptação a uma nova realidade. No final, farei o balanço que será muito positivo para ambas as partes, com toda a certeza.
O amor que vem do coração é tão bom quanto o que vem do ventre.
Benvenuta, Gaia!

Nina M.




Torre de Marfim

À janela da sua torre de marfim
De pedra polida e de textura macia e suave
Pálida, fria na sua cor de creme
Despe a menina a alma incauta de seus receios...
No alto, inacessível às fraquezas mundanas
Brilham-lhe os olhos com o perigo dos sonhos
Chora pelo fragor longínquo das ondas 
Do alto da mansa masmorra avista o mar
Largo e infinito como o tempo...
Olha a argêntea  gaivota a voar
Até a perder de vista no firmamento
Um navio que as amarras vai soltar
Leva-lhe o sonho do momento
As alegrias que além-mar vai encontrar...
Trará a maré os despojos do que restou
E o vento em surdina soprará a canção
Que diz que o malfadado mundo
Não se compadece do coração
Pálida, serena e muda
Assiste à transfiguração
Resigna-se à sua sorte, enfim...
A menina da torre de marfim

sábado, 7 de setembro de 2019

É para vós, ó deuses, este meu canto!

É para vós, ó deuses, este meu canto!
Donos do amor sublime e imortal
Mesmo invadido pelo desencanto
Afasta a alma de todo o mal
Trouxe-mo  a vida
Ou vós, ó deuses, na vossa infinita ironia...
Deleitais-vos no Olimpo
Ao ver o humano perder-se na cobardia
Castigo máximo pelo atrevimento supremo
De desejar o que é do alto
Aquele que é absolutamente terreno!
Sugerem-no amiúde e em hora tardia
Fora do tempo e das suas convenções
Ainda assim preenche a vida com harmonia
Alimento da alma com as suas aspirações
E vós, deuses, no regozijo da tirania
Haveis de perder a vossa altivez
Sabereis que alguns espécimes da raça humana
Se igualam na alma a quem os fez!
Ao barro dão vida e ao sopro que os inspirou
Desafiam as leis do tempo
Impostas por quem os criou
E nessa dimensão nova
Ausente de passado, de presente e de futuro
Vive o amor que se renova
Apesar do vosso esconjuro!

Crónica de Maus Costumes 146


A Cigarra e a formiga

Hoje, enquanto corria (a corrida é sempre um bom momento de reflexão, quando o faço só), lembrei-me da fábula de La Fontaine (também poderia ser de Esopo), que nos foi contada a todos na nossa infância: A Cigarra e a formiga. Será desnecessário resumir o seu conteúdo, pois todos se lembrarão.
As fábulas encerram uma moralidade, um juízo ético, sobre determinados comportamentos ou ações. Assim, com esta, aprendemos a valorizar o trabalho, a saber que sem ele não existe autossustento e que é necessário laborar para acautelar o futuro. Pretende-se ensinar aos mais pequenos que a vida não pode ser apenas diversão ou como diria a minha avó “quem com meninas da vida (expressão eufemística por não gostar do jargão) joga o vinte, fica pobre, miserável e pedinte. Quem é de Português, pode apreciar a tripla adjetivação, com gradação crescente que o aforismo contém, com o objetivo de salientar que uma vida devassa e apenas de prazeres, conduz o ser humano ao infortúnio. Logicamente, na época, em que a fábula terá sido criada, não havia ainda consciência social, a providência do Estado nem a noção de Estado como o conjunto de cidadãos que nele habitam e muito menos a perspetiva de democraticamente se pagar pela paz social. Para isso foi criado, muitos séculos depois, o RSI, protegendo-se, nalguns casos, as incautas cigarras, que nada fazem, às vezes, por manifesta impossibilidade e o auxílio é um dever moral, mas outras vezes por falta de vontade de trabalhar, que é difícil e ocupa muito tempo, não deixando espaço para o prazer. Desta forma, não há rebelião e os cidadãos convivem na harmonia e na concórdia.
Logicamente, a valorização do trabalho e do cidadão útil à sociedade a que pertence, que contribui para o seu desenvolvimento através da sua labuta é válido. Como educadora, também reitero a mensagem e reafirmo a sua importância, porém, com uma pequena ressalva interpretativa, que o Miguel Torga soube tão bem imortalizar num dos seus poemas. A Cigarra da fábula passou o verão a cantar e, por imprudência, não amealhou a comida para o inverno, morrendo depois à fome.
De certa forma, a Cigarra cantora é uma artista. Representa todos os que fazem da arte a sua vida e aí reside o erro da fábula. Não considerar a arte um trabalho por parecer mais uma diversão, no entanto, criar implica trabalho. O cantor, o escultor, o escritor, o poeta, o ator, entre muitos outros, presenteiam-nos com a sua arte, que é o seu trabalho. A ideia de que o artista morrerá à fome é, portanto, antiga e a responsabilidade é dos seus pares humanos, que não lhe reconhecem a devida importância. Se o trabalho (entendido na sua aceção mais vulgar) é fundamental, a arte não o é menos. Esta é pensamento, trabalho intelectual produzido e que nos retira do marasmo e alivia as agruras da vida, embelezando-a. O pensamento e a manifestação artística são o que verdadeiramente nos distinguem dos seres irracionais. É também através da arte que sabemos o que é a beleza saída das mãos do Homem. Quem se dedica a embelezar os meus dias, a torná-los mais leves e um pouco mais fáceis, merece toda a minha admiração e estima. O ser humano não seria o mesmo sem o benefício da literatura que nos recentra, comove ou revolta, da pintura que extasia ou da escultura que envolve, da música que transcende e do cinema que emociona… Sem arte, logo sem os artistas, seríamos seres brutos, incapazes de discernir o belo que brota da ideia e da ação humana. Desta forma, a manifestação artística é prazenteira, mas não aliena, pelo contrário, traz o ser para dentro de si, obriga-o a refletir, a compreender o que sente e quem é, a descobrir e a construir a sua identidade. Na verdade, poucos trabalhos terão esta importância!
A Cigarra, penalizada pela sua arte e incompreendida, foi castigada, no entanto, durante o verão, alguém se deixou embalar pelo seu canto! Não terá sido à toa que Torga compara os famigerados poetas ao inseto!
Eu, que me deleito com algumas realizações humanas, agradeço a todas as cigarras deste mundo, “também bebo em vossa honra o doce vinho”, pois tornam-me a vida mais agradável e menos pesada.

Nina M.

Aos Poetas

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insetos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.

E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.

Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.

Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

Miguel Torga, in 'Odes'



terça-feira, 3 de setembro de 2019

Não suportaria sangue nas mãos

Não suportaria sangue nas mãos
Ou o crime hediondo da orfandade
O peso extenuante de um ser 
Colhido antes do fim do tempo
Na valsa das dores de uma vida
Terei as mãos limpas
E uma alma asséptica
Trilharei o caminho sinuoso
Mas erguer-me-ei no topo da montanha
Lá do alto, tudo é longínquo e grandioso
Olharei e seguirei atenta no meu espanto
Sementes de paz e de amor
No percurso que também soube a dor
Avistarei terra fértil e fecundada
Cuidado extremo do arado do lavrador
Chegada ao fim da jornada
Os olhos fecharão na alvorada
Poderão dormir serenamente
Ao olhar a vida e vê-la resgatada

A minha casa

A minha casa é alva
Feita de graça, ideal e poesia
Quando sob os estilhaços estremece
Ou então perde a harmonia
Continua clara, luminosa e inteira!
Sedutoramente bela!
Sob o seu telhado
Percorro o chão
Afago os muros altos
As minhas veias...
As minhas veias são os sulcos do cimento
Guardiãs de vontades e de ensejos
Se retorno à minha casa...
Sacio a alma enlutada
Sereno os nervos agastados
No meio dos despojos
Onde nada existe
E me sei abandonada de mim
O amor de minha casa sobeja
E à inquietude põe-lhe um fim