Xenofobia e desumanização
Parece que
Portugal vai receber duzentas jovens afegãs, jogadoras de futebol, atividade
que lhes é vedada no seu país pelo regime talibã. Soube da notícia, que não
agrada a muitos, pelas redes sociais.
Às vezes,
questiono-me se as pessoas abrem as notícias para efetivamente ler ou se sabem
mesmo ler, dada a quantidade de disparates que debitam. Se fossem comentários
parvos, mas inócuos, não me irritariam, mas a substância, o veneno e o ódio
destilado são uma realidade de difícil acomodação. Surgiram de imediato teorias
da conspiração. Como se duzentas raparigas, que fogem da violência, da
perseguição, da discriminação e da subjugação que lhes são impostas no seu
país, fossem meios a utilizar num plano diabólico de tomada da Europa,
estratégia levada a cabo pelos terroristas sanguinários. Depois, chegam os argumentos
dos apoios e da falta de dinheiro, dos portugueses que passam muitas
dificuldades e dos quais ninguém quer saber. Condescendo relativamente neste
ponto. Há muito português a precisar de ajuda que não tem, mas os que falam desses
também os instrumentalizam e só se lembram de que eles existem nestes momentos.
São pedra de arremesso embrulhada num argumento frágil, mas ainda não vi
ninguém a mobilizar-se contra a miséria.
Assim, as miúdas
ou são vistas como alguém que vem viver com o apoio do Estado português,
entenda-se viver às expensas do contribuinte, ou como alguém que tem uma
cultura muito diferente e, como tal, não se vai adaptar ou ainda, na pior das
hipóteses, como peões de uma estratégia talibã para domínio da Europa. São
apenas refugiadas que tentam preservar as suas vidas! Talvez seja conveniente
explicar que o nosso país receberá uma certa quantia por este acolhimento, mas
mesmo que assim não fosse, resta-me perguntar sobre o tipo de humanidade que
queremos. Não será um princípio ético ou moral evidente auxiliar quem precisa?
No meu entendimento, temos todos o dever de cooperar e de acolher o outro,
sabendo respeitar as suas diferenças. Foi precisamente esta capacidade de
cooperação em sociedade que permitiu que a espécie humana se protegesse, se
desenvolvesse e se multiplicasse. Vivemos tempos estranhos. Uma era de
individualismo exacerbado, em que o ego
se sobrepõe ao coletivo e que faz com que se entenda a vida própria como mais
importante do que a do outro.
Um egoísta manifesta amor exclusivo por si, mas o ser constrói-se com
o outro, numa dialética de reconhecimento do seu igual, onde a cooperação, o
respeito e a aceitação são a chave para a sobrevivência e bem-estar de ambos.
Ao separarmos o “nós” do “outro”, ao vê-lo como alguém díspar, justificando-o
com as divergências culturais, estamos a desmerecê-lo, a não o reconhecer como
nosso igual, abrindo portas à desumanização. A História mostra que para pessoas
absolutamente vulgares cometerem grandes atrocidades, basta convencê-las do
demérito do outro, instigando o medo e o ódio àquele a quem não se reconhece
como nosso semelhante, considerando-o alguém inferior a quem se pode retirar a
sua dignidade, desumanizando-os, remetendo-os à categoria de animais que
podemos subjugar. John Steinbeck relata-o cruamente no seu “Vinhas da Ira”.
Após a publicação do romance que colocou a América a ler, deixando a nu as
atrocidades de um capitalismo selvagem que sobrevive pela disseminação do ódio
do norte-americano em relação ao seu compatriota, teve de se proteger com medo
das possíveis retaliações. Acreditava que apenas a sua fama de escritor o
salvara de um assassinato. Os californianos não suportavam os “okies”, oriundos
do mesmo país, seus compatriotas, porque eram diferentes de si. Pobres, carregavam
a miséria e a fome no olhar. Gente vilipendiada na sua terra de origem e também
no oásis prometido e a ira que se forma num estômago consolado com pêssegos
quentes impulsiona a ação com a esperança na mudança. Não os reconheciam como
iguais e a partir desse pressuposto todas as atrocidades eram permitidas.
Paradoxalmente,
aquele que maltrata o outro, desumaniza-se em primeira instância a si mesmo. Ao
roubar pela violência a dignidade alheia, está a perder a sua própria
dignidade. Quando o coração do Homem deixar de sofrer pela miséria do outro,
deixar de o reconhecer como seu igual, perdeu o estatuto de ser humano.
Obviamente, quem
chega tem o dever de respeitar a lei de quem acolhe, sem perder a sua
identidade, porque em democracia há tolerância e respeito pela liberdade
individual, desde que esta não faça perigar um coletivo.
Sejam muito bem-vindas,
meninas! Oxalá aqui possam reunir condições para continuarem a fazer o que gostam
e lutarem pela vossa liberdade e pela liberdade das vossas conterrâneas. A vossa
voz tem de se fazer ouvir e a vossa luta deve ser a luta de todos, mas em primeiro
lugar, tem de ser a luta de todo o povo afegão. Haja coragem!
Nina M.