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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Crónica de Maus Costumes 64



Confesso-me saudosista e, como tal, absolutamente lusitana. A saudade, palavra que não é traduzível noutras línguas, apenas a ideia que encerra em si, por aproximação, é um traço indelével da personalidade portuguesa e que nos diferencia substancialmente dos outros povos europeus.
Este sentimento tão português, associado ao gosto pela boa e farta mesa, pelo futebol e pelo fado, acrescentando a simpatia e generosidade constitui, em traços genéricos, a caracterização do povo português. Se quisermos adicionar alguns defeitos, juntemos uma pitada de inveja, o ser obrigado a viver constantemente em crise económica, a corrupção e o tráfico de influências dos poderosos. Misture-se tudo muito bem, dê-se algum tempo de maturação e daí resultará a verdadeira alma lusa.
A saudade é uma das características na qual me revejo muito. É uma pieguice, eu sei, mas não consigo evitá-lo. Sinto amiúde uma saudade infinita de algumas almas boas que fui colecionando ao longo do tempo e com quem, por força da vida, deixei de me cruzar… Sinto saudade de cheiros e lugares e até, pontualmente, de mim mesma, ao dobrar uma esquina inesperada…
Viajo imensamente no tempo (a minha imaginação sempre foi pródiga) e revisito lugares, pessoas e situações. Por vezes, com o rigor que a memória me permite, recrio o que já vivi e, às vezes, invento de outra maneira, da forma como deveria ter sido, mas não foi ou como não foi, porque não deveria ter sido, mas eu insisto no erro. Porquanto na minha imaginação mando eu, sigo por aí adentro, pouco me importando com convenções que as meninas bonitas sempre devem seguir e, se me apetecer mandar alguém à bardamerda (como diria a minha avó) ou aplicar-lhe um beijo repenicado cheio de tudo, faço-o sem reserva nem pudor. Normalmente, no quotidiano, sou mais educada, pelo que estas viagens interiores são um excelente recurso para expiar culpas, remorsos ou libertar tensões, sem freio nem reservas.
Assim, nesses lugares recônditos, encostadinhos ao coração ou ao cérebro (cada um escolha o que mais lhe aprouver), não deixo que fique nada por dizer ou por fazer e gozo profundamente, inexplicavelmente e incontrolavelmente de uma liberdade selvagem, louca e feliz. Aquela liberdade da qual não podemos usar e abusar nas nossas vidas pelas consequências que nos traria e também porque a nossa liberdade termina, quando interfere com a do outro. Sabem como é?! Libertinagem, talvez, que só obedece ao nosso umbigo e aos nossos caprichos, mesmo assim, sem um pingo de escrúpulos nem de pruridos éticos. Sabe tão bem uma canalhice esporádica e catártica aqui ou acolá, mesmo que imaginária!
Deambulo entre pensamentos e memórias que me assaltam e aos quais dou continuidade, pergaminhos que me conduzem a uma realidade paralela e imaginária, mas que vive dentro de mim e me pertence. É como se escrevesse incessantemente e fosse uma das personagens que observo e acompanho do exterior. Uma espécie de alter-ego mais inconsequente, desprendido e desavergonhado. Um brincar constante a uma outra forma de vida parecida com a que tenho, com algumas pinceladas que lhe dão outra cor, forma e conteúdo.
Invariavelmente, o mote dado para a abstração parte de fragmentos vividos, uns já recessos, outros recentes e frescos, ou então são comportamentos observados, provavelmente alguns já adulterados por um novo olhar, mas que se embutiram em mim, de tanto me acariciarem e namorarem a alma e de me quebrarem toda a resistência. De maneira que os silêncios onde encontro as recordações são, para mim, imprescindíveis. Constituem o oxigénio que filtro para me livrar das impurezas e extasio nas divagações revisitadas, realmente vividas ou manipuladas.
Uma saudade quente e consoladora, muito quietinha, enrosca-se em mim e aguarda tranquilamente até que eu seja capaz de a enxotar.
Nina M






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