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sábado, 24 de setembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 292

 A insustentável tirania masculina

Deparei-me, hoje, com uma notícia de 16 de setembro, que dava a conhecer uma morte de uma jovem mulher, Mahsa Amini, de 22 anos, no Irão, pelo uso incorreto do véu islâmico (hijab). Fiquei em choque e revoltada. Nunca me são indiferentes estas cobardias inomináveis.

A jovem até usava o véu, mas imagine-se, de forma inapropriada, desrespeitando o código de vestuário da República do Irão. As iranianas são obrigadas a tapar o cabelo e o pescoço com o “hijab”, quando estão em público, e também não podem usar saias e calças justas ou roupa com cores vivas. A jovem foi detida, terá desmaiado, vítima de maus-tratos por parte das autoridades e acabou por falecer no hospital, depois de três dias em coma. Após o sucedido, tem havido várias manifestações, em vários pontos do país. Muitas mulheres não estão a usar os lenços em público. Queimam-nos enquanto gritam “morte ao ditador”, referindo-se ao líder daquele país. No entanto, nove mulheres já morreram durante os protestos, pela falta do “hijab” ou do seu uso inadequado. Naturalmente, as Nações Unidas já condenaram a violência perpetrada contra a jovem e contra os manifestantes, mas certamente, Ayatollah Ali Khamenei não se preocupa muito com a opinião da organização, que o seu país também integra, ou não fosse a hipocrisia uma estratégia política.

Aplaudo todas as iranianas que saíram à rua, numa demonstração clara de força, de revolta e de desejo de mudança. Grito daqui com todas elas “morte ao ditador!” E é um grito forte, violento e aparentemente condenável, por responder à violência com mais violência. No entanto, como lidar com esses tiranos assassinos que apenas visam manter a mulher subjugada, como ser inferior, sem direito à sua liberdade, logo, impedindo-a de SER?! Olho para o Irão e outros países semelhantes e dou comigo a pensar que aquelas mulheres só terão direito à sua autodeterminação, quando não houver mais homens naquele lugar ou quando eles forem tão poucos que sejam incapazes de as suster pela força. Para isso, só deixando de os parir! Se não fosse trágico, seria cómico. São as mulheres que dão a vida aos seus carrascos, àqueles que depois de crescerem se esquecem do ventre materno que os abrigou, reduzindo-as a parideiras domésticas, a um animal que se amestrou e se castiga quando não cumpre exemplarmente as regras instituídas. Por isso me revolvem as entranhas quando, nas redes sociais, numa tentativa de branqueamento do que já é demasiado sujo para poder ser lavado, surgem propagandas à indumentária do mundo árabe, comparando-a muitas vezes aos hábitos das religiosas ocidentais, questionando pela diferença. Pois bem, em primeiro lugar, se a religiosa estiver a usar inapropriadamente o seu hábito, não é morta por isso; em segundo, só faz votos quem quer, o que significa que o hábito é uma escolha e não uma imposição. Já o inverso não se pode dizer, ainda que não falte quem afirme que muitas árabes usam essa indumentária por vontade própria. Não! Foram instrumentalizadas e obrigadas, acabando por se interiorizar no seu espírito. A comprová-lo, surgem estes casos que evidenciam a coerção pela violência. Precisam que a mulher tema pela sua vida para que viva dominada, sem capacidade de revolta. Se assim não for, então que terminem com a obrigatoriedade do uso dessas indumentárias. Deixem as mulheres livres para vestirem o que quiserem, porque elas não são propriedade de ninguém. Neste ponto não concedo e é com tristeza e repugnância que assisto a que estas atrocidades sejam também permitidas em solo europeu, sob o escudo de uma tradição e cultura próprias. Não! E é preciso coragem para o defender. Não há tradição ou cultura que se possa aceitar quando ela implica a submissão e a perda da liberdade individual e do direito de escolha de outro ser humano. Não! Sob pena de cairmos num relativismo cultural sem retorno.

É tempo de o Ocidente defender sem concessões os seus valores democráticos. É necessário que a sua voz firme se faça ouvir na condenação destes assassinatos.

Às iranianas corajosas, capazes de enfrentarem o temor e de fazerem perigar a sua vida, em nome de um futuro livre de grilhões, desejo-lhes que vençam a luta. Admiro-as profundamente, porque a mudança só acontece pelo interior. Precisam que essa centelha interior não as deixe cair em desânimo. Aos homens que as apoiam, o meu reconhecimento e o pedido para que não as abandonem na luta. À comunidade internacional, quero lembrar que para haver tolerância é necessário fixar primeiro o intolerável, caso contrário, deixa de ser tolerância para passar a ser cumplicidade com o crime.

Bem-haja, a vós, mulheres!

 

Nina M.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Desesperança

Nunca o mundo viveu sem horror

Sangue luta guerra e matança

Nunca houve jardim do Éden além

Promessa vã...

A mulher comeu a maçã

E juntamente Adão perdeu o paraíso

Filhos das trevas às trevas outros condenaram

Ambição humana desmesurada

Fome de poder 

Poço de imperfeição. Poço de podridão.

Perdoa-Te, Senhor, porque sabes o que fizeste

domingo, 18 de setembro de 2022

Temor

Teme o poeta o seu silêncio
Inquebrado
Ideias nebulosas
De traço impressionista  

Esquivas
Sombras
Caprichosas
Revolvem entranhas

Mas não cospem palavras
Nem brutas nem suaves
Trazem um silêncio branco
De mortalha

De uma morte esperada
Anunciada em dia de chuva
Ao longo da madrugada
Cala-se a denúncia e a indignação 

Morre a palavra
E morre o homem

sábado, 17 de setembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 291

 

Incongruências e utopias

                Surgiu-me e já não é a primeira vez, no mural da minha página de facebook ou meta (a mudança do nome não colou…) um vídeo de Eduardo Marinho, definido na wikipédia, que vale o que vale, como artista plástico, escritor, ativista social e filósofo brasileiro. Já o ouvi por uma ou duas ocasiões e, apesar de concordar com algumas das suas ideias não estou de acordo com outras.

O Eduardo granjeia simpatias alheias, porque é um homem de palavra fácil e de boa retórica, defensor dos mais desfavorecidos, mas pelo meio do seu discurso ágil e, nalgumas coisas, acertado, também é possível apanhar falhas na sua argumentação, no caso de se manter o espírito crítico. O Eduardo é oriundo de uma família brasileira de classe média que aos catorze anos foi trabalhar num banco, para se despedir aos quinze, depois passou pelo exército, acabando por sair por não se rever no papel das forças armadas. Cursou Direito, mas também desistiu, chegou a ser uma espécie de morador de rua e, pelo meio, é ainda pai de cinco filhos. Um percurso destes evidencia alguma inadaptação ao mundo que o circunda, o que não é assim tão raro, tendo as suas peculiares convicções.

Referia ele, a título de exemplo, que nunca teria empregada doméstica, porque seria uma espécie de traição aos seus princípios. Segundo a sua tese, os trabalhadores braçais menos qualificados são vítimas sociais, com quem o Estado deliberadamente falha, para continuar a ter quem execute as tarefas “menos nobres” a preços vergonhosos, explorando-os, fazendo-os acreditar que os estão a ajudar, porque lhes pagam um salário e assim asseguram-lhes a sobrevivência. Por isso, dizia ele, em consciência, não poderia ter mulher a dias. Se quer o chão limpo, tem de o limpar e se quer comer, tem de cozinhar ou então comprar qualquer coisa para comer na “lanchonete”. Foi precisamente esta última parte que me deixou pensativa. O Eduardo não teria empregada para não ser cúmplice de uma sociedade que explora e escraviza, mas se quiser comida e não lhe apetecer cozinhar, compra-a! Ora, Eduardo, a comida comprada também é feita com o trabalho remunerado de alguém e, muitas vezes, mal remunerado! É trabalho tão escravo quanto o da prestadora de serviços domésticos! Para ficar verdadeiramente tranquilo, o Eduardo tinha que plantar e colher os próprios alimentos, confecioná-los e, depois, sim, comê-los. Portanto, a solução que encontra para mitigar a consciência, na verdade, é falaciosa.

            Eu dou-lhe razão na questão da meritocracia subjacente nas suas palavras. Na maioria das vezes, é um engodo, porque as assimetrias sociais profundas impedem a sua implementação. Alguém que nasce no seio de uma família estruturada e com condições económicas favoráveis está em vantagem em relação àquele que pouco ou nada tem. O dever do Estado seria prover o país de condições para erradicação da pobreza, garantindo o acesso dos que nada têm aos direitos fundamentais, numa tentativa de equilibrar a balança e reduzir as desigualdades. Depreendo pelo seu discurso que a chave para a resolução dos problemas está no acesso à educação de qualidade e que não interessa aos poderosos. Estes querem a perpetuação da pobreza para terem serviçais a baixo custo. Ou seja, só vai para lavrador, pedreiro, mecânico, trolha ou eletricista aquele a quem não foram facultados todos os meios para poder estudar. Caso o tivessem feito, não se sujeitariam ao cumprimento de tais tarefas nada reconhecidas e mal pagas. Como solução, aponta uma espécie de rebelião e de greve ao trabalho, porque os ricos precisam mais dos trabalhadores do que o inverso, já que sem eles, as fábricas não funcionariam. Os ricos são ricos, porque exploram os pobres.

Ora, a mim soa-me a tese típica antiburguesa, mas na verdade, querer ser burguês, no sentido de querer ter uma vida confortável e com acesso a alguns prazeres, não tem mal nenhum! O problema está na pobreza e não na burguesia! O Eduardo deixou-me a pensar, porque considerando errado as profundas desigualdades sociais, não é acabando com estes serviços que se resolve o problema! Parece-me que, por um lado, atribui dignidade à pessoa conforme o nível académico que ela apresenta, por outro lado, parte do princípio que todos esses trabalhadores gostariam de estudar! Se tivessem tido essa real oportunidade, não andariam a varrer ruas ou a trabalhar em cafés ou na construção civil! Obviamente, as coisas não são tão lineares! Há pessoas a quem foi dada a oportunidade de estudar, apesar de um razoável ambiente socioeconómico e não quiseram, porque não gostavam. Nem toda a gente mostra interesse pelo trabalho intelectual e isto não as torna menos dignas do que os que estudaram. Há muitos, na verdade, que sem grande instrução, conseguem um nível de vida bastante acima da média e até melhor do que muitos instruídos. Ser empregada doméstica não desmerece ninguém. É um trabalho como qualquer outro. O que está errado é a falta de reconhecimento e os baixos salários destes trabalhadores. São a base da pirâmide e são importantíssimos! Neste ponto, sem concessões: devem ser condignamente pagos e reconhecidos. No entanto, não partilho da visão da proletarização de salários. Um trabalho qualificado tem de ser também justamente valorizado. Ser varredor de rua não é fácil, mas eu ou qualquer outra pessoa poderia fazê-lo, mas já não poderia ser médico ou engenheiro! Estes últimos investiram largo tempo na sua formação e os seus pais dispensaram avultadas somas para que eles se instruíssem, mesmo que tenham frequentado o ensino público! Se um médico ou engenheiro ganhassem o mesmo que o varredor, que razões teriam eles para se dedicarem tanto tempo ao estudo? O espírito de missão não aparece em muita gente! Em vez de estudarem em média dezassete ou dezoito anos, entrariam no mercado de trabalho mais cedo, auferindo o mesmo valor! Dentro de pouco tempo deixaria de haver médicos ou engenheiros!

            A dignidade do ser humano não lhe é atribuída pela profissão que exerce, mas pelo seu caráter. Todas as profissões são dignas e devem ser valorizadas e justamente recompensadas. Não temos de erradicar a burguesia; Temos de erradicar a pobreza! O Estado de um país deve esforçar-se por terminar com as assimetrias obscenas, proporcionar aos mais desfavorecidos todas as condições de acesso a uma boa educação e cuidados de saúde. Proporcionar a oportunidade de estudar, independentemente da condição social a quem o queira fazer e ajudar a que consigam alcançar os seus objetivos, reduzir a carga fiscal das empresas sobre os funcionários, fazendo com que esse dinheiro seja revertido em melhores salários para os trabalhadores, por exemplo. O caminho só pode ser o da economia saudável e justa, numa sociedade composta por elementos diferentes, que gostam de coisas diferentes, que têm direito à diferença e onde o facto de se escolher ser lavrador ou marceneiro não seja nem motivo de estigma social nem motivo de pobreza, nem o médico repudiado pelo bom salário que possa auferir. Uma sociedade, porém, onde todos compreendam que não se devem deixar explorar, mas também onde todos saibam que têm de contribuir para o seu bom funcionamento. Uma sociedade onde caibam os direitos, mas também os deveres de todos! Para evitar vergonhas humanas, compete ao Estado fazer o papel de regulador nas suas empresas. Não me incomoda que se pague um salário de cem mil euros a um gestor, se este o justificar, se fizer a empresa evoluir com lucros sustentados. Incomoda-me esse salário no erário público quando os restantes assalariados recebem pouco e a empresa dá prejuízo ao estado, ou seja, a todos nós!

            Conferir dignidade não é querer igualdade absoluta! Isso seria um desrespeito pelas escolhas e pela individualidade do cidadão! Reconhecimento, sim! Proletarização de salários, não! Infelizmente é ao que assisto neste país.

 

Nina M.

 

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Transição

 O outono adentra-se e 

Veste já as folhas de amarelos

Castanhos e vermelhos...

As cores outonais das árvores 

Antes de se porem a nu ante

O frio do inverno

Ainda ontem foi literalmente verão 

Hoje é outono e cinza 

A embaciar os vidros de melancolia

E o sol faz falta e deveria habitar em todos

Para que no outono e no inverno fosse verão 

E ninguém visse os ramos despidos dos outros 

Antes folhas flores e frutos sob o sol

E o céu perfeito de azul 


domingo, 11 de setembro de 2022

O Segredo

 


                                                           Nina M.

Juntava-se uma multidão à sua volta. Sons indistintos. Uma cegueira forçada pelos olhos cerrados que não conseguia abrir. Porque lhos teriam fechado? Imóvel. Ainda que se esforçasse, o corpo não lhe obedecia. As pálpebras, portas de ferro sem comando, por mais que lhes gritasse para se abrirem, ignoravam o seu pedido. Tal como as pernas, as mãos… Questionava se não lhas teriam amputado. Não sentia nada. Nem dor! Quase lhe sentia a falta. Sabia existir pela dor incrustada no corpo. Obrigada a permanecer de pé, imóvel, estátua, sentindo cada vergastada a cada movimento involuntário que fizesse, até ser vencida pelo cansaço e, já no chão, por faltarem as forças, a mesma recusa do corpo à voz autoritária e sarcástica que a mandava erguer-se. As pernas que já não sabiam existir, acusavam-se sob a violência do pau que as fustigavam. Depois, vinha a ausência, a leveza da inconsciência até ao acordar dois dias após, noutra cela qualquer, enjoada, a tremer, com o estômago colado às costas. Novo esforço hercúleo para se soerguer perante os carrascos pedantes, insolentes, que sem escrutínio da parca inteligência com que haviam sido dotados, lhe gritavam novamente que se levantasse. Perscrutavam-na sadicamente. Tentavam violar-lhe a alma, o espaço de recolhimento da sua dignidade. Inspirava profundamente e, num reunir de forças, selava os lábios finos, magoados, num novo pacto de segredo e repetia, no silêncio de si, o alento passado de boca em boca, de prisioneira em prisioneira até que chegasse o dia de povoar a atmosfera: “coragem hoje, abraços amanhã; coragem hoje, abraços amanhã”.

Queriam quebrá-la pela dor, porque a sua dignidade era inviolável. Mesmo despida, perante os olhares grotescos, nas primeiras horas da detenção, suportou-os de rosto levantado, com um olhar glacial e digno. Deteve-se nos olhos de cada um, de mãos atrás das costas e peito puxado à frente, como quem não teme a desonra da nudez, mas antes a da alma. O corpo desnudo não tem do que se envergonhar, mesmo se o enxovalham e o envolvem na sua concupiscência, rodeando-o, soprando-lhe um hálito quente e pestilento, enquanto a protuberância máscula e inadvertida se torna óbvia. A ira cresce e acompanha a turgidez adivinhada e, como um espasmo vingativo do desejo que impuro se impõe, a mão desfere o primeiro golpe sobre o rosto. De seguida, o escarro. Desfaz-se o cabelo e solta-se a interjeição sem dono, espantada da agressão aflita.

- Sua puta! Sei o que merecias! Tu e todas as meretrizes que te acompanham… Tudo tem o seu tempo!

Apagou-se o fogo que o abrasava com o desferir do golpe e com uma ejaculação precoce.

Altiva, a conter severamente o lago que lhe inundava os olhos, endureceu o rosto e contraiu cada músculo. Não falaria. Não falaria. Não falaria, repetia para si. Para proteger-se contava com a sua lucidez e a sua inteligência. Não escaparia aos maus tratos. Sabia-o, mas não queria quebrar. Estava resoluta a não deixar que lhe roubassem a dignidade e a alma. Recitava silenciosamente: “Dentro da noite que me rodeia/ Negra como um poço profundo e escura/ Agradeço aos deuses – se algum acaso existe/ Pela minha alma inconquistável”. Tinha-o decorado propositadamente pela força que transmite, pelo título Invictus a lembrar-lhe as origens, pela salvação que a poesia é. Muitos anos mais tarde, a humanidade conheceria a força do poema pela boca de Nelson Mandela. Ela nunca o chegaria a saber…

Dizia-lhe o seu espírito que o único caminho face à opressão seria a luta pela liberdade. Só os anódinos poderiam resignar-se, poderiam abdicar de si em troca de uma falsa segurança. A esperança seria possível enquanto houvesse um homem revoltado. Escolheu conscientemente o seu lado: o da razão, o da liberdade e o da tolerância. Para vencer a crueldade, apenas a inteligência e o conhecimento profundo do que é um homem, a consciência de que não há felicidade na escravidão, na ausência do poder das grandes escolhas. Queria o direito à decisão e sonhava a liberdade.

- Abra! Abra, já! – Gritavam os carrascos da PIDE que lhe foram bater à porta naquela madrugada fria de dezembro.

Não abriu. Por precaução, antes de se deitar, encostava o velho louceiro da avó à porta de entrada. Não tinha pressa de receber as visitas. Célere, agarrou nos papéis comprometedores e queimou-os. Obrigava-se a um ritual diário de juntar todos os documentos, de fazer pequenas trouxas a que pudesse facilmente atear fogo em caso de emergência. A porta cedeu ao pé de cabra e o louceiro aos ombros dos dois polícias. Permitiram que se vestisse e foi detida para interrogatório, depois de lhe virarem a casa do avesso. Vivia clandestinamente, num casebre arranjado, afastada da família que desconhecia a sua atividade. Não seriam aqueles os seus torturadores. Apenas lhes suportou os risinhos escarninhos e os comentários de quem, de repente, se sente insultado pelo feminino. Uma mulher deveria dar-se ao respeito e não se meter em coisas de política. Viver assim… Sozinha… Desconfiaram. Nas suas muitas detenções, costumavam, não raras vezes, apanhar também os seus companheiros, mas desta vez não havia registo de que outra vivalma ali tivesse guarida. Ainda assim, conforme era de usança, esperaram o amanhecer e como não viesse homem com o romper da aurora, agarraram bruscamente na fêmea, algemaram-na, mais por gozo do que por medo de uma possível fuga, e dirigiram-se ao Aljube. Durante o caminho, afavelmente lhe contavam as sortes de outras mulheres que também se julgavam valentes e juravam nada lhe acontecer caso ela colaborasse. Mais tarde, viria a saber da Olga, a camarada que lhes vomitara o seu nome. Nunca lhe ganhou rancor, porque as circunstâncias abriram-lhe o caminho largo da compreensão.

Os médicos cercavam-na. Monitorizavam-lhe o sono do qual parecia não despertar. Pensavam que talvez tivesse encontrado a ansiada liberdade…

Ela regressava ao primeiro interrogatório, aquele em que sobreviveu à exposição vexatória da sua nudez e à bofetada que a deixara surda. Apenas confirmou a sua identidade. Não a fizeram falar. Arrastaram-na para uma cela. Quando chamou o guarda para alívio do corpo, ordenaram que o fizesse ali mesmo e usasse os trapos que vestia caso quisesse limpar-se. Não se retirou de imediato, a impor a sua presença ao momento que exigia recolhimento. Perante o espanto da mulher, sabia que a crueldade era imaginativa, mas não lhe antecipara a dimensão, e a sua incredulidade, o carcereiro soltou uma gargalhada ríspida, seca como a pancada de um ferro. Ela esperou. Como se não fosse embora, escolheu o melhor canto, o que se lhe assemelhava mais protegido ao olhar indiscreto e pôs-se de cócoras. Então, o guarda retirou-se e na sua solidão escura, ela pôde chorar sem que ninguém visse. Compreendeu-lhes a sanha e o método. Recebeu o medo e enfrentou-o.

No segundo interrogatório, estendiam-lhe uma confissão. Não assinou. Veio a tortura da estátua e o desmaio. A dor insuportável, mas não falou. Os malvados não podiam deixar de lhe admirar a resistência. Escutavam-lhe os versos quase impercetíveis: “Dentro da noite que me rodeia/ Negra como um poço profundo e escura…” e consideravam-nos insultuosos. Não tinham à sua frente a mera companheira de um preso político, mas antes um guerreiro no feminino, que fazia o mesmo trabalho que um homem. Vivia na clandestinidade, era acusada de organizar reuniões, de distribuir panfletos, de desenvolver atividades criminosas à segurança do Estado. A coragem e a rebelião femininas eram insuportáveis num país cinzento, retrógrado e misógino. Redobrava-se o castigo para acompanhar a dupla desfaçatez da mulher. Olhavam-na e não viam fragilidade, mas uma ameaça latente que quer desempenhar o seu papel na sociedade. Esta ousadia não era perdoável.

Arrastavam-na novamente febril à cela fétida e dela se esqueciam por dias. Exaurida, não conseguia mover-se. Deitou-se no catre e dormiu. Acordou com umas batidas ritmadas na parede, entrecortadas por silêncios. Vindas ora da sua direita ora da sua esquerda. Era código morse que teria de desvendar com astúcia. Não estava só e isso dava-lhe alento. Aprendeu-o. Quem és? Falaste? Eram as perguntas habituais… Aprendeu que o silêncio era a única arma de arremesso contra os torturadores, mas que lhes custava a saúde física e mental. As investidas não paravam. Veio a tortura do sono e os famigerados curros de isolamento. Estoica e admiravelmente, ela não capitulava. No retângulo escuro e estreito, de gatas para encontrar a latrina, inventava versos, declamava os que a sua memória decorara e gritava-os para que os guardas soubessem que não a venciam.

É para ti que colho a flor da liberdade/Da laranjeira plantada no meu jardim… E a mesma poesia que a salvara haveria de a condenar…

Dias mais tarde, saberia da sua transferência para Caxias e da prisão de Alfredo Laranjeira. Não capitulara, mas entregara-o num verso, por incúria. O remorso trouxe-lhe a febre e a inconsciência.

- Não falaste – diziam-lhe – suportaste todas as dores. Somos testemunhas, mas as lágrimas escorriam-lhe e a vitória tinha sabor a derrota. Perdoou Olga, com a consciência de que o único que pode julgar o que capitulou é aquele que foi torturado sem falar.

Não chegou a Caxias. Os médicos vigiam-lhe a vida. Ela sente-se no segredo. Assim eram designados os curros. Nunca ouvirá Mandela declamar o seu poema.

Nina M. 

 

 

sábado, 10 de setembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 290

 Valter e a infância

            Eu gosto muito de Valter Hugo Mãe. Já gostava antes de ter sabido que partilhámos os mesmos cheiros, as mesmas ruas, o mesmo espaço e tempo. Talvez nos tenhamos cruzado sem que o soubéssemos. O Valter viveu em Paços até aos dez anos de idade. Ele é da idade do meu irmão mais velho, o que significa que coincidiram no quinto ano, pois era a única “escola preparatória” do conselho, como então se designava. Eu sou quatro anos mais nova, mas invariavelmente, aos domingos, o meu pai deixava o carro estacionado na rua, muitas vezes, mesmo em frente da casa onde ele morava.

            Curiosamente, foi através do seu livro “Contra mim”, a sua autobiografia dos tempos infantis, que saciei a minha curiosidade relativa à casa onde o Valter morava. O casarão pertencia a uma velhinha conhecida por Dona Alicinha Baptista. Era uma casa grande, pintada de um rosa velho forte. Ela morava no andar debaixo e o Valter e a sua família no piso de cima. Era rodeada por um muro imenso (ou pelo menos parecia-me imenso, na altura) que impedia a visão para dentro. Além desta barreira física, havia a barreira natural das árvores, havia japoneiras, também elas cor-de-rosa e, por entre a verdura frondosa e fresca, espreitava a habitação. Sempre me despertou curiosidade, porque aquele jardim verde, fresco, de onde os pássaros chilreavam, mas em simultâneo algo escuro, carregava uma espécie de melancolia que transtornava a alma da minha criança. Lembro-me de, sempre que ali passava, me questionar sobre como seria aquele espaço, mas a minha curiosidade nunca foi saciada. Nunca vi ninguém sair ou entrar de lá e mais misteriosa e incrível me parecia a casa! Quando o Valter lança o seu livro, desvendou-se o mistério, porque ele descreve a habitação e o espaço que a rodeia, o jardim grande onde enterrava as bolachas que a senhoria lhe dava, quando ia a sua casa pagar-lhe a renda, a mando dos pais. Ele ficava um pouco assustado, porque a sala da senhora poderia servir de igreja, dada a quantidade de santos que por ali habitavam. Entretanto, após a saída do escritor e a morte da velhinha, a bela casa foi vendida e deu lugar a um prédio alto, moderno, com inúmeras habitações e uma praça de condomínio, mas perdeu-se a casa cor-de-rosa, que me levava a imaginar mil aventuras que poderiam acontecer naquele jardim belo, mas algo sorumbático, apesar do canto das aves. Se fosse hoje, aquela casa, com aquele espaço, em pleno centro da cidade, quanto não valeria! E como continuaria a ser belo aquele jardim… O Valter lastima a sua ausência, tal como a ausência dos peixinhos vermelhos no lago do jardim, em frente à igreja matriz. Dizia ele que tinha ido ver a ponte, que hoje é parolinha, mas que faz parte das suas memórias. Não acho a ponte parola e até gosto bem dela, porque depois do café, ao domingo, subir ao jardim e ir ver os peixinhos que vinham comer as migalhas que a criançada lhes dava, era obrigatório. Por isso, concordo com o

Valter. Senhor vereador, é preciso pôr peixinhos vermelhos no lago!

Eu, o Valter e muitos outros pacenses temos memórias semelhantes da terra, que na altura era uma pequeníssima vila, a trinta quilómetros do Porto, mas ainda assim, demasiado distante, naquele tempo, onde só se ia ao Porto por motivo de força maior, principalmente, os que não tinham carro próprio. Transporte público não havia e ainda hoje não existe. Se Paços, hoje, está perto de tudo, porque quase todos possuem veículo próprio, há quarenta anos estava longe de tudo, estávamos condenados a que o mundo chegasse até nós pela televisão. Houve quem discordasse, mas essa é também a minha perceção, ainda que mais tarde fôssemos, a cada quinze dias ao Porto, a casa do meu tio, a Ramalde. Interrogo-me por que razão os adultos não nos levavam a Serralves, por exemplo, ali tão perto… Lá íamos passear até ao Inatel, a pé, se o tempo o permitisse, e regressávamos a casa do meu tio, para ouvir os gritos do senhor Diamantino, que morava no segundo esquerdo, em caso de derrota do Benfica. Uma vez, com a frustração, atirou com a televisão abaixo da janela! Antes isso do que bater na mulher! E quando uma vez fomos, na passagem de ano, para a ponte móvel, isso é que foi uma alegria e um espanto! Ver a ponte partir-se ao meio! Por isso, Valter, sim, éramos uns pasmados e quiséramos nós ser capazes de preservar o espanto da inocência pelas coisas simples!

A sala encheu-se para ouvir o Valter. O espaço escolhido era bonito e digno, mas muito pequeno. Normalmente, este tipo de atividades não convence muita gente, mas o pacense emprestado tinha a casa cheia e ficou gente de pé. Eu fiquei felicíssima com a sua vinda, não tanto pelo facto de o autor ter vivido cá e haver memórias semelhantes, o que lhe confere maior simpatia por parte dos habitantes (alguns ainda são seus amigos), mas também porque ele conserva a simplicidade e a humildade dos que foram tocados pelo pasmo, conseguindo criar uma ligação emocional com a plateia. Quem lê Valter, adivinha-lhe a sensibilidade e o humanismo. A sua obra é atravessada pela angústia do amor, tratado nas mais variadas vertentes: o amor romântico heterossexual, homossexual, o amor maternal e paternal, o amor filial, fraternal e o amor e respeito pelo outro, tão necessário na nossa sociedade. O Valter põe a nu a fragilidade do Homem sedento de amor, mas que simultaneamente, não sabe como lidar com ele. Baltasar espanca violentamente a mulher, Ermesinda, não por falta de amor, mas por obsessão e ciúme doentio e talvez porque seguisse o exemplo paterno. A mãe de Halla maltratava-a como se ela tivesse culpa de não ter morrido juntamente com a irmã. Como se a sua existência fosse uma afronta à gémea morta, de quem todos gostavam. Vemos esta criança ligar-se a Einar, um homem feito, uma relação de pedofilia, na verdade, mas o único que a sabe amar… Há o homem que procura desesperadamente um filho que nunca teve, uma mãe que queria ser capaz de desprezar o filho homossexual, mas não deixa de sentir amor e não o consegue matar, como lhe sugeriram as vizinhas, um pai consciente, autónomo e capaz, enviado para um asilo, após a morte da esposa… 

As suas narrativas são socos que nos são atirados e que aparamos como podemos. Têm a capacidade de nos retirar do nosso conforto, de nos fazer pensar na maldade e na bondade humana e na busca pelo amor, que é, segundo o próprio autor, tal como me confirmou na questão que lhe coloquei, uma busca pelo sentido, que não existe fora dele. Uma tentativa de humanização num mundo desumanizado. Valter é, por isso, um escritor engajado com o seu tempo que procura espicaçar consciências. Pertence à estirpe dos maiores e assim será recordado um dia mais tarde. Sobre isso, não me restam dúvidas. Quiseram os deuses que tivesse vivido uma fase importantíssima da sua vida em Paços de Ferreira e é desta terra, como o próprio afirma, a partir do jardim, em frente à igreja, que traça todas as distâncias para outros destinos!

Bem-haja, Valter! Volte sempre.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Humano

 Quem me pudera ver neste mundo desorientado

Senão eu, com estes meus olhos?

 Ver sem ser de olhar distraído ou embriagado

 Olhar seco, rude, num desconforto inconfesso

A apontar as arestas mesmo a contragosto

Da felicidade

Olhar de ver. De quem sabe que quem vê repara

Na miséria humana de imperfeição divina

Sem divindade. 

Só os deuses podem ostentar a crueldade!

(Praticam-na ufanos do seu poder)

Sobre os pobres mortais terrenos

Pedaços de carne perecível e gasta

Que lhes copiaram os defeitos!

Imbecis ingénuos!

Os vícios, mesmo os  amaldiçoados,

São perdoáveis aos deuses 

E à sua vaidade

Não aos homens. Não à sua fragilidade.


domingo, 4 de setembro de 2022

Procura

Quem somos?

Substância etérea 

Em movimento

Evolução constante

Em guerra com as circunstâncias 

Contradições de ser em construção 

Amontoado de Átomos 

Pó de estrelas

O mesmo rio sempre diferente

Tudo ou nada?



sábado, 3 de setembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 289

 La rentrée

            Setembro. Tempo de regresso ao trabalho e, como o prometido é devido, à habitual rubrica.

            Começo por desejar um bom ano letivo a toda a comunidade educativa. Professor que é professor funciona por ano letivo e não civil. Para nós, o ano começa agora e não em janeiro! Começa mal, como já vem sendo apanágio desde alguns anos a esta parte! Ora as colocações se atrasam (voltou a acontecer para os contratados, que se veem com a casa às costas de um dia para o outro, sem saber o que fazer à vida… Muitos têm filhos pequenos e uma família para gerir e a falta de respeito para com eles é atroz! Sei do que falo, porque passei o mesmo durante vinte anos!) ora o ano letivo abre sem professores suficientes para suprir as necessidades das escolas ora há problemas com os concursos… Este ano, a cereja no topo do bolo e que foi sendo preparada ao longo de agosto, é a abertura da profissão docente a qualquer pessoa que tenha uma vaga noção sobre certa matéria. Voltamos aos anos oitenta, assistimos a um retrocesso civilizacional, comprometemos a aprendizagem de qualidade a que os cidadãos têm direito, para além de ser uma afronta a todos os professores. Ao tomar esta opção, o Governo mostra que apenas pretende resolver rapidamente o problema da falta de professores, sem atender à qualidade, pelo que se deduz que a educação é um problema menor para o país. Ninguém morre por falta de educação, mas pode-se morrer por falta de médicos e adivinhe-se lá, não há bons médicos sem bons professores! Depois, parte-se do princípio absurdo que basta o conhecimento sobre certas matérias para se ser professor. Significa que afinal as Ciências da Educação não servem para nada e que as cadeiras pedagógicas a que fomos submetidos na faculdade também não! Seria bom que todos compreendessem que o facto de alguém saber resolver uns exercícios de matemática, saber falar, ler e escrever em inglês, português ou outra língua, não habilita ninguém para a docência. Há uns anos queriam submeter os professores contratados, depois de terem passado pela universidade e pelo estágio pedagógico, a uma prova que comprovasse o seu conhecimento. Significa que havia uma desconfiança mesquinha relativamente às Instituições que preparam os alunos e que os deixariam sair sem as competências necessárias! Com a atualização dos cursos, no pós-bolonha, para se lecionar passou a ser necessário o mestrado em ensino, pelo facto de a licenciatura ter passado para três anos em vez dos cinco habituais, mas agora, como a carência de professores em certas zonas do país é muita, vale tudo!

            Os pais têm um papel importante e não vejo movimentação por parte da CONFAP, por exemplo! Será que compreendem que estas medidas comprometem a qualidade do ensino?!

            Quanto ao senhor João Costa, o verdadeiro ministro desde sempre, porque era o secretário no tempo do senhor Tiago Brandão e era ele quem já pensava e pensa a política educativa, com esta medida, envergonha os seus pares. Não se esqueça o senhor ministro de que é professor! De linguística! Acha verdadeiramente possível que alguém, ainda que fale e escreva corretamente Português, faça aprender a gramática da língua com competência? Faça analisar e faça saber explicar as obras de leitura obrigatória? Não brinquemos com coisas demasiado sérias, senhor ministro! O seu magistério ficará manchado pelo retrocesso civilizacional a que submete a educação deste país.

            Já o tinha adivinhado e já tinha escrito que seria esta a solução encontrada pelos futuros governos do país para resolver a falta de professores e como gostaria de me ter enganado! Como teria ficado feliz! Sinal de que ainda haveria uma réstia de esperança…

            Para resolver o problema da falta de professores, principalmente em Lisboa e Algarve, o que deveria ser feito era um apoio pecuniário para alojamento. Um professor contratado, mesmo com horário completo, não ganha para se manter nesses locais, principalmente, se tiver já família formada. Criem-se residências para professores, por exemplo; valorize-se a profissão através de uma real progressão na carreira, através do reconhecimento social do papel do professor e de salários condignos! Este seria o caminho para atrair jovens para o ensino, garantindo-lhes formação de qualidade e de exigência! Siga-se também o exemplo da Finlândia, no que diz respeito ao tratamento da sua classe docente e não apenas nos seus modelos educativos! O ensino é tão bom e tão confiável, tal como os seus profissionais, que não há colégios privados! Não há essa necessidade.

Haja essa coragem, senhor ministro!

Haja a coragem de levantarmos a voz contra este atentado, caros colegas! Haja nojo moral e sentido de honra e de decência!

 

Nina M.