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sábado, 29 de outubro de 2022

Crónica de Maus Costumes 297

 “Saramago, Ainda e Sempre”

Constitui o subtítulo “Saramago, Ainda e Sempre” o mote da tertúlia a que acabo de assistir, no âmbito da comemoração do centenário de José Saramago     , iniciativa da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, por intermédio do pelouro da cultura, em parceria com a Biblioteca Municipal Professor Vieira Dinis.
Normalmente, eu venho agradada destas iniciativas culturais e hoje não foi exceção, ainda que parte do que ouvi sobre o autor e a sua obra não tenha constituído novidade para mim. Congratulo, porém, todas as iniciativas que possam tornar o Nobel próximo das pessoas, garantindo a perpetuação da sua obra e, por consequência, a sua própria imortalidade. O painel era constituído pela Dra. Manuela Bentes, responsável pela condução da conversa e os ilustres convidados, pelo Dr. José Carlos Vasconcelos, filho desta terra, o grande timoneiro do Jornal Artes, Letras e Ideias, conseguindo mantê-lo vivo já há quarenta e dois anos e também coordenador do Gabinete Editorial da “Visão e por um dos responsáveis pela Fundação Saramago, Dr. Sérgio Letria.
O meu agrado prende-se, sobretudo, com as experiências narradas pelos convidados que tiveram, ambos, o privilégio de privar com Saramago. José Carlos de Vasconcelos esteve presente em Estocolmo, para além de ter sido o primeiro jornalista a entrevistar Saramago para a televisão. O Sérgio Letria trabalha na Fundação desde a sua criação, em dois mil e sete, projeto do próprio Saramago. (Ainda venho meio abismada com a forte semelhança física entre ele e o Valter Hugo Mãe!).
O Homem por detrás do escritor, de aparência dura, firme e distante era também um homem de afetos. Testemunhos vários confirmaram já a generosidade de Saramago. A geração dos escritores contemporâneos, todos eles crescidos com Saramago, não tem pejo em referir essa generosidade do ilustre em relação aos iniciantes nas lides da escrita. Hoje, foi uma vez mais confirmada. Ficamos a saber que a Fundação é sustentada com os direitos de autor de Saramago e com as vendas de livros e outras atividades que organize. Mostra coerência e lisura por parte do escritor. Ouvir contar que quando saía um novo livro, Saramago insistia em premiar monetariamente os funcionários da editora, do seu próprio bolso, por meio dos direitos de autor é extraordinário ou que certa vez, no Brasil, o puseram apenas a ele num hotel de luxo e o resto da comitiva portuguesa noutro menos conceituado e ele decidiu acompanhá-los, trocando o luxo pelo respeito para com os outros, é de valor. Na verdade, gostei da confirmação de que nos pequenos gestos do quotidiano, o escritor mostrava a mesma militância cívica e o mesmo humanismo de que a sua obra é exemplo. Saramago mantinha a coerência. O brilhante e inusitado discurso que faz em Estocolmo, aproveitando a ocasião para lembrar os atropelos constantes aos Direitos do Homem, responsabilizando os grandes líderes e os cidadãos que os elegem foi de uma coragem e lucidez admiráveis. Fiquei feliz por ver confirmada a minha suspeição: não se pode acusar o Nobel de hipocrisia. Ainda que esta seja um mal necessário para as boas relações sociais, há níveis intoleráveis de hipocrisia e queira-se ou não, apesar de sermos capazes de distinguir o autor da obra, esta não deixa de sofrer, caso o seu autor se revele absolutamente dissimulado. O génio literário continua a ser uma figura controversa. Há quem não goste dele e é legítimo, poderemos, eventualmente, discordar da sua orientação política e da sua visão de mundo, mas não se vislumbra nele hipocrisia, o que o torna autêntico e confiável. Mesmo quando se refugiou em Lanzarote, após a censura vergonhosa do seu “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que o impediu de concorrer a um prémio europeu, não deixou de continuar a pagar os impostos no seu país, embora estivesse desiludido e zangado com as figuras proeminentes de então e, naturalmente, com razão.
As meias-palavras ditas por José Carlos de Vasconcelos a propósito do meio em que se movimentam os escritores, afirmando que era melhor não sabermos desse ambiente, revelam muito. Lembrei-me imediatamente da hipocrisia e da inveja que Miguel Torga não tolerava e que faziam com que ele permanecesse longe desse covil.
Gosto de descobrir que as pessoas por detrás dos escritores, apesar de não serem nem santas nem heróis, não maculam o respeito que lhes dedicamos e, principalmente, os valores que os vemos defender.
Saramago tinha, certamente, os seus defeitos e apesar de podermos discordar de algumas das suas ideias, os princípios de liberdade, de justiça, de paz, de combate à desigualdade social por ele preconizados continuam a ser não só válidos como absolutamente necessários para que a sociedade se humanize.
Ele era um militante cívico que sempre lutou através da palavra por um mundo mais justo e esse mérito, ninguém lhe pode retirar.
 
Nina M.

sábado, 22 de outubro de 2022

Crónica de maus Costumes 296

  injustiça de Zeus

                Decidi, caro amigo, ex-colega, engenheiro de minas-escrevinhador-poeta-editor-estudante de matemática, seguir a tua sugestão… Eita homem dos sete ofícios, para usar uma expressão das bandas de onde te encontras, porque a transmontana seria menos escorreita!

            Para vos contextualizar, caros leitores e nem pensem que me fazem aderir à moda dos leitores e leitoras, mas isso seria assunto para outra crónica, dizia, portanto, que decidi aceitar o repto lançado pelo amigo Luís Altério ao ter comentado um dos seus fragmentos literários com que nos vai presenteando… Também já o aconselhei a deixar os fragmentos, que já são muitos e a atirar-se ao romance, mas não me ouviu ainda… Maravilhado com a Matemática, o Luís lá se atirou à empreitada de a estudar. Na conversa, dizia-me que escreveu o fragmento no meio do estudo e brinquei com a situação, afirmando que precisava da palavra para descansar da temível matemática! Lamentou a minha incapacidade de ver a beleza de uma equação. Admito que a não tenho. Sei de quem a possui, mas quanto a mim, resta-me consentir que ela possa existir, tal como existe na arte, seja na Literatura, seja na música, na pintura, na escultura, na representação, enfim, nas várias manifestações culturais da humanidade. Se a cultura trouxe algo de positivo foi a arte! A propósito disto, interrogava-me se a par desta maravilha que é a arte, trazida pela cultura, se paradoxalmente  não afasta o homem da sua natureza. As formas de vida do Homem hodierno são produtos culturais. A organização social e familiar tradicional do ocidente é diferente de outras e não significa que seja melhor ou pior, apenas diferente. Se as relações monogâmicas são a regra e considerado o correto pelos nossos padrões culturais (há quem ponha em causa), noutras culturas, o homem pode ter mais do que uma mulher, há uma poligamia que é aceite, mas apenas de uma das partes. A minha visão ocidental não me permite que esteja de acordo e não falo da poligamia, se for do interesse de todos, mas do facto de só uma das partes ter direito a ela. Mesmo que nos possa causar confusão, se os envolvidos se sentem felizes a viverem dessa forma, quem seremos nós para impormos o que quer que seja. Guna Yala, uma pequena comunidade indígena do Caribe, é um exemplo a ter em conta. Não se trata de um matriarcado, porquanto a mulher não é parlamentar ou cacique, mas é ela quem toma todas as decisões domésticas. Quando casa, o homem muda-se para a casa da noiva e é ela quem determina se o marido pode ou não dar alimentos à sua família de origem. O trabalho da mulher é valorizado e entendido como igual, sendo elas quem mais ganha, em parte pela prosperidade que o turismo lhes levou. Os gunas aceitam muito facilmente que os rapazes se sintam raparigas e queiram viver como tal, são os “omeggid”. As famílias aceitam-nos, acolhem-nos e ensinam-lhes as delicadas tarefas femininas, como bordar. Há mais transexuais masculinos do que femininos, mas em ambos os casos, a natureza de cada um é respeitada. As celebrações mais importantes nas ilhas Guna Yala são o nascimento de uma menina, a sua puberdade e o seu casamento. Toda a comunidade se reúne para beber chicha, uma cerveja local, para celebrar a juventude e a feminilidade. Já na tradição e cultura ocidentais, há uma construção do género binário, tendo em conta a biologia, mas que esquece o modo particular e pessoal de cada um estar e de se exprimir no mundo e que deveria ser acolhida, desde que em nada prejudique os outros. É o caso. A orientação sexual ou identidade de género em nada interfere com a liberdade do outro, mas a tradição ocidental tende a ostracizar, apesar dos enormes progressos que tem vindo a fazer nessa matéria. Significa que, neste caso, a tradição cultural padronizada é inibidora da natureza do ser humano. Daí a minha questão de me interrogar se a cultura, apesar de ser fundamental e edificante, imprescindível para o Homem, não é, em simultâneo, inibidora da natureza de cada um. Também pode ser que esteja completamente errada e que este pensamento seja uma ideia de caca, até porque limpava casas de banho, quando me surgiu…

            Caro Altério, como vês, são questões estapafúrdias ou filosóficas como esta, dependendo do ponto de vista de quem as vê, que me assaltam o espírito. Desconfio de que quem nasceu assim, não poderia ser coroado com inteligência matemática, da qual sou desprovida. Enfim, lá conseguia os mínimos, mas os números nunca me assaltaram o espírito! Porém, era capaz de sonhar diálogos em inglês, mesmo acordada, ou em francês… Raramente me lembro do que sonho, mas sei que neles falo melhor inglês do que acordada. A língua não se enrola, não me esqueço do vocabulário nem nada… O meu calcanhar de Aquiles é o latim, mas isso reconheço que no tempo em que tive de o estudar, as atrações eram muitas e eu não tinha tempo para tanto, porque, hoje, sei que iria gostar de o fazer. Talvez na reforma compre a gramática do excelso professor Frederico Lourenço e me dedique novamente, agora com mais seriedade do que só para fazer a cadeira, e o volte a aprender. Às vezes ainda suo frio, em sonhos, porque estou no exame e olho para aquilo e não sei nadinha! Que desespero, meu Deus! Aqui a menina nunca foi de ir para uma frequência a zero. Poderia e deveria ter sido mais aplicada, certo, mas sempre tive o meu brio e sempre fiz todas as cadeiras certinho! Uma jovem também precisa de vida social! O recolhimento trouxe-mo a maturidade…

            Portanto, chegada aqui, reafirmo o que já te havia dito, os meus professores de matemática (os desgraçados estão sempre na berlinda) não tiveram qualquer responsabilidade na minha falta de apetência para a disciplina e lembro-me perfeitamente de a minha ida para o décimo ano ter representado uma alegria tremenda, por não ter disciplinas de que não gostasse e nas quais fosse fraca. Ainda hoje me interesso e tenho gosto pela História, pela Filosofia, pela Psicologia, para além da minha área e das línguas, como te disse.

Enfim, cada um é para o que nasce! Dotes artísticos também não possuo e  posso lamentar-me, porque tenho duas mãos canhotas, fraca voz e desafinada e no desporto, sei caminhar e correr alguma coisinha, porque basta mexer os pés e aguentar…

 Já pensei pôr Zeus em tribunal, porque quem tanto fogo forja não se dignar a deixar cair distraidamente uma faísca sobre mim que me fizesse um pouco maior é de gerar indignação!

Por hoje é isto. Aí tens a tua “crónica à la Sónia” ou à la Nina M. como sugerido.


Nina M.

 

 

 

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Santo sepulcro do amor

Diz que me sonhas
E nos contornos da tua
Imaginação
Vês a minha alma despida
Junto ao corpo
Que delineias com o olhar
E só por hipótese o tomas
Como teu
Habitáculo do teu próprio ser
Fiel depositário dos teus segredos
Templo sagrado de desejos
Santo sepulcro do amor

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

O Bosque Encantado das Quintãs.

 https://read.bookcreator.com/aRnPcQp8QAPzVtDACoqsiBr7rcF2/luwsRayLTSWSrwvXDKeZIg


Conheçam esta narrativa infantil, talvez capaz de contagiar crescidos!

sábado, 15 de outubro de 2022

Crónica de Maus Costumes 295

 

A imbecilidade do século

            Hoje, num documentário sobre a Ucrânia filmado em Odessa, dizia um dos homens que dava o seu testemunho que, depois do que os russos faziam ao seu povo, ele considerava-os inimigos.

O sujeito era bilingue. Falava russo e tinha familiares na Rússia. Afirmava que tinha ligado para os seus primos e tios a alertá-los de que se entrassem em solo ucraniano, não duvidaria um segundo e matá-los-ia para defender a Ucrânia, se fosse necessário. A mãe, que se encontrava noutra cidade, era russa. Mantinha o contacto com as irmãs, que lhe garantiam lamentar a situação, afirmando que a sua dor era também a dor delas. O homem colocou-a em segurança para poder combater tranquilamente.

Um escritor ucraniano bastante publicado e que se exprime em russo dedica-se ao que sabe fazer melhor: escrever. Tem como missão fazer chegar a informação das ações desenvolvidas pela Rússia no seu território. Todas as investidas do agressor aparecem subvertidas pela comunicação social russa. Segundo esta, transformada em aparelho da propaganda do Estado, os russos não atacam alvos civis. A mensagem de que a Rússia liberta os irmãos do nazismo é veiculada diariamente e quando o cidadão russo comum é questionado sobre a ofensiva, apoia convictamente, esclarecendo que esses ucranianos têm de ser eliminados. A jornalista questiona se teriam de os matar a todos, já que seria muita gente. Responde que não. Poderiam ser deportados e enviados para campos de trabalho, mas que naquele país, só deveriam poder ficar os “ucranianos normais”. Entendi que se referiria àqueles que aceitam a Rússia como país invasor e superior. Segundo o escritor, como para Putin a Rússia se estende até onde a língua russa é falada, não sobrará alternativa senão a de deixarem de se exprimir completamente em Russo, reforçando o que designa de identidade ucraniana. Sente-se-lhe o desencanto, tal como a muitos outros, pois sempre se considerou ucraniano, mas também russo. No entanto, após a ofensiva invasora de 24 de janeiro, essa ligação afetiva à pátria vizinha terminou. Não é o único. Ouvi uma criança de nove anos, que já tinha fugido do Donbass e que também era bilingue, mas que desde esse dia se recusa a pronunciar uma palavra em russo. São apenas dois testemunhos que refletem o sentimento de muitos outros, alguns deles, antigos admiradores da pátria vizinha, mas que agora se desiludem. Outro homem afirmava sentir orgulho de ter feito parte do exército russo em tempos, mas não agora, porque um país que se diz irmão não ataca a família numa luta fratricida.

As palavras de Putin, que marcam os seus discursos em que fala da união dos povos eslavos (Rússia, Bielorússia e Ucrânia), ainda que subliminarmente, denunciam o sonho imperialista e a vontade de anexar esses territórios, como já fez com a Crimeia. Os ucranianos, por sua vez, querem um percurso individual, a sua autodeterminação e a sua soberania. Querem aproximar-se dos europeus, reconhecem-se nos valores ocidentais, afastando-se da “terra mãe”. E isto Putin não lhes perdoa. Contudo, a Rússia vai ficando cada vez mais isolada e a guerra contra a Ucrânia será a destruição do País, tal como afirma um casal de jornalistas russos que viram o seu canal de televisão fechado e que para manterem a sua independência jornalística e a sua vida, tiveram de abandonar a capital e refugiar-se. Vivem num apartamento que pertencia aos avós de um deles, na Geórgia. De lá, denunciam os crimes de guerra perpetrados pelo exército russo e os desmandos do Putin, na esperança de que a sua voz se faça ouvir.

Pelo meio, uma Igreja Ortodoxa que funciona por quintais e onde cada um escolhe o patriarca que ouve. Como não há coincidências, o patriarca de Moscovo é um antigo agente KGB. Instiga ao ódio, afirmando que a Ucrânia se afasta dos verdadeiros valores, acusa-a de se querer ligar ao mundo ocidental, de pretender aderir à ideologia das amplas liberdades, da exploração e da decadência. Um discurso cheio de ranço e de falácias, legitimando as ações de Putin, como se de uma guerra entre o bem e o mal se tratasse. Também ele acredita e deseja a unificação territorial. O imperialismo do tempo do Czar nunca lhes saiu das veias.

Pelo meio, fica um país destruído, arrasado, que precisará de anos para se reerguer e que deverá enfrentar dificuldades económicas agrestes. Se a Ucrânia já era um país com uma economia débil, após esta insanidade, a recuperação adivinha-se difícil. Por seu turno, a Rússia sairá derrotada. O apoio massivo dos países europeus e dos Estados-Unidos da América à Ucrânia deixam-na praticamente só, como deve ser, com um exército e meios obsoletos. Houvesse maior discernimento e os russos já teriam compreendido que não há forma de sair disto com lisura. O mal já foi perpetrado, houvesse agora honradez para o reconhecer.

Anseio pela capitulação russa. Aguardo o suicídio da besta, se entretanto a conjuntura política e económica não fizer com que os seus atuais parceiros lhe puxem o tapete.

O futuro é uma incógnita. Depois da guerra, o restabelecimento da confiança entre a Rússia e os países europeus levará tempo e tudo dependerá do líder daquele país, que terá de ser outro. É minha convicção de que esta tomada de posição por parte da europa já deveria ter acontecido em 2014, após a anexação da Crimeia. Espero que a União Europeia compreenda que é preciso determinar linhas vermelhas e fixar o intolerável para que a tolerância e o respeito pelos outros seja possível. Já agora, valerá a pena acompanhar atentamente os movimentos fascistas na Europa. A situação italiana deve preocupar, assim como a Hungria. Urge que os políticos europeus saibam estimar e preservar a democracia, o que só é possível com boa governação em prol das populações. A corrupção e o capitalismo selvagem, onde não se vislumbra a honradez, mas a defesa de um feudo, são o passaporte para o populismo fascista que tanto custou a extirpar.

 

Nina M.

 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Hino da mulher madura

Que me importa
Se me falas da minha beleza
E do teu desejo
Se não me quiseres a alma?
Ou que me cantes madrigais
Onde se ouve a maciez
Da minha pele
E o meu cheiro bom?
Se te esqueces do meu espírito
Na verdade esqueces o meu ser
E todo ele importa...
É sol nascente que desponta
E lua cheia em noite escura...
Que me importa se amas
A pele, invólucro decadente,
Que um dia será flacidez,
Se não vires a beleza por detrás
Do brilho de um olhar,
Mesmo se os olhos
Estiverem cansados e baços
E esconderem as crateras da lua
E os dias sem sol?
Que me importa quem ame
Carne e esqueça o imaterial?
Que não estremeça ao ouvir um bom verso
Se a pele não se eriçar
com um sopro de magia,
Se não se comover à passagem da beleza
Que me importa a tua existência?



sábado, 8 de outubro de 2022

Crónica de Maus Costumes 294

 

O sentido para a existência

Venho de uma experiência imersiva de luz e de som. Fui aos Clérigos, à Igreja, entenda-se, não às Galerias, para assistir ao espetáculo “Spiritus”, que decorre desde abril e terminará a dezasseis de outubro.

Venho desapontada. Responsabilidade minha, que criei expetativa. A publicidade foi boa e falava-se de uma aliança entre arte multimédia e Fernando Pessoa, concretamente, o heterónimo Álvaro de Campos. Acontece que imaginei um espetáculo mais interativo com jogos de luz, de cor e de voz à mistura, que nos traria Pessoa. Dececionei-me. Houve luz e cor, mas pouco Pessoa. Um segmento a abrir, para nos dizer que “a melhor forma de viajar é sentir/sentir tudo de todas as maneiras/sentir excessivamente”… Poucos portugueses desconhecerão os versos (quero acreditar nisto) e um segmento para fechar o espetáculo e foi tudo quanto houve de Pessoa… Tive pena, porque não senti tudo de todas as maneiras, o que significa que aquilo que nos marca se incrusta na alma pela emoção sentida. Houve alguma beleza, admito, mas não capaz de me agarrar a alma.

E este facto leva-me à pergunta e constatações que me são feitas por pessoas que me são próximas relativamente ao facto de escrever e de continuar semanalmente com esta rubrica. “Não sei como tens pachorra”, dizem-me. Penso que estará relacionado com a explicação que ouvi de uma psiquiatra, nuns vídeos que vou assistindo, por ser curiosa. As ciências sociais, basicamente, a condição humana e tudo o que lhe diga respeito interessa-me. A Literatura explora, tenta compreender, analisa, ilustra e reflete sobre aspetos da condição humana. Por isso é perene e se perpetuará enquanto houver humanidade, porque as mesmas dúvidas com que o Homem se depara repetem-se em épocas diferentes. Ando a ler o Guerra e Paz (já estou no final do primeiro volume). Uma obra-prima do século XIX que reúne as grandes questões: o mistério da vida e da morte; a fé; a descoberta do sentido para a vida; o amor; a hipocrisia e a desigualdade social… Enfim, sempre questões às quais voltamos sem cessar e para as quais não há uma resposta exata ou que sirva a todos, por conseguinte, esta obra foi tão válida no seu tempo quanto é agora, porque permanece atual, pois trata da natureza do ser humano. Porém, dizia eu, que a Dra. Ana Beatriz Barbosa explicava que à medida que o Homem foi evoluindo, o seu cérebro aumentou. O homem ficou mais inteligente, no entanto, esse “upgrade” trouxe como consequência não saber que uso lhe dar, porque se antes, recuando aos primórdios, a única preocupação seria a sobrevivência, neste momento, isso não se coloca. Então, há uma falta de orientação cerebral. O órgão pensante precisa de descobrir o que lhe é vital ou, dito de outra forma, cada um de nós, aparentemente com a sobrevivência garantida, precisa de saber o que fazer com a sua existência e isso passa pela descoberta dos sentidos e do propósito. O sentido remete-nos para os nossos talentos e paixões e o propósito para a forma como os usamos e partilhamos com os outros. A ausência da descoberta de sentido será o “mal du siècle” e o que justificará muitos dos quadros depressivos. Ora que a minha escrita seja talento não estou certa, mas será paixão, certamente. De alguma forma, a escrita traz-me também um sentido à existência. Não o único, mas um sentido. Quanto ao propósito… Não sei propriamente que contributo ou utilidade terá… Vou partilhando convosco, na secreta esperança de não ser abusiva. Porém, o problema também seria de fácil resolução… Basta que não percais tempo com a leitura do que vos possa maçar.

Assim, hoje, aconselhava ao adolescente da casa tentar descobrir-se e descobrir o sentido da sua existência (tarefa demasiado árdua, para já, mas sobre a qual deve ir pensando) para não andar à deriva.

Infalivelmente, a ausência de sentido atira-nos ou para a indiferença dos dias ou para uma leveza alegre que tudo abarca, mas nada agarra, daquelas que não se inscreve na alma, tal como a experiência imersiva que vivi. O que não se funde escoa-se pelas frinchas do ser.

 

Nina M.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

Pecado divinal

Mordo o chocolate preto.

Com volúpia.

Fecho os olhos e

Deixo que os pedaços se derretam

Lentamente...

Se  fundam na minha boca...

E a impregnar de sabor,

A língua ergue-se. Descola

Os que se agarram ao palato

E as papilas gustativas,

Essas Salomés gulosas,

Deliciam-se no prazer prolongado.

Doce mas nem tanto.

Amargo quanto baste.

Um pequeno travo só 

A quebrar a monotonia do açúcar 

Dark chocolat, 70% cacau diz o rótulo,

Deveria antes anunciar:

Cuidado! 70% de pecado divinal! 

sábado, 1 de outubro de 2022

Crónica de Maus Costumes 293

 Má análise e desonestidade intelectual

            Há comportamentos que me aborrecem por serem falaciosos e não abonarem, por isso mesmo, a favor de quem os pratica e porque quem os difunde tem um objetivo definido e considera o público-alvo manipulável, para ser simpática.

            Por estes dias, faleceu uma colega de cinquenta anos (aproveito para dirigir os meus sentidos pêsames aos familiares), doente oncológica já há cerca de uma dezena de anos e que no presente ano letivo, com a mudança das regras de colocação por mobilidade por doença, teria ficado longe de casa. Sabemos que os cinquenta quilómetros em linha reta estabelecidos para colocação são uma idiotice e só quem não conhece a realidade escolar e geográfica do país ou então quem age por má-fé poderia descortinar uma solução deste género. Na análise que faço, o intuito do Ministério da Educação, ao contrário do que muitos professores pensam, não foi uma caça às supostas baixas fraudulentas que muitos alegam existir. Para combater verdadeiramente esse crime, o Ministério teria e deveria começar por investigar a veracidade do atestado e a idoneidade de quem o passou e, depois de aferida a responsabilidade, penalizar o docente desonesto, se for esse o caso. O único objetivo do senhor ministro foi colocar o maior número possível de professores nas escolas, para que o presente ano letivo arrancasse com normalidade e, desta forma, não haver grande reclamação por parte dos pais. A falta de professores é um problema sério que os futuros Governos terão para resolver a curto prazo e o senhor ministro tentou uma solução rápida para o problema. No entanto, as decisões tomadas nesse sentido não têm sido as mais avisadas nem resolverão a situação a longo prazo. É apenas um placebo. Assim, as várias medidas têm constituído constantes atropelos ao bom senso e, como medidas avulsas que são, têm prejudicado outros que pertencem à mesma classe profissional. O facto de permitirem a renovação de horários incompletos a professores colocados a partir de certa data, mas não o permitirem a outros que ficaram colocados mais cedo, é disso exemplo… A situação da mobilidade por doença é escandalosa, uma vez que há casos de doença grave que não foram devidamente analisados nem acautelados, no cumprimento zeloso, mas estúpido, da reta dos cinquenta quilómetros. Deixo claro que em termos de justiça nos concursos, considero que a atuação governativa tem sido vergonhosa.

            A colega que faleceu foi uma vítima dessa cegueira. Ao que parece, tinha reclamado, mas ainda não tinha obtido qualquer resposta. Foi, portanto, uma das injustiçadas, porque quem padece de doença oncológica e se encontra a fazer tratamentos deveria estar a trabalhar na sua área de residência. Se uma doente oncológica não reúne requisitos para isso, nenhum outro reunirá. Uma análise séria é reconhecer este facto. Neste sentido, a colega, sim, foi vítima de uma lei absurda, que corta eito fora o direito da colocação na Mobilidade por Doença sem olhar às circunstâncias nem à natureza justa das coisas. Outra coisa diferente é responsabilizar diretamente o ministro pela morte da senhora. Ora isto é de uma irracionalidade tremenda e talvez de uma má-fé inadmissível. Não tenho qualquer admiração especial pelo senhor João Costa, mas não lhe posso atribuir, em consciência, a culpa pela morte da colega. Infelizmente, o falecimento terá acontecido devido à doença e não à sua colocação! Provavelmente, a situação teria o mesmo desfecho se ela estivesse colocada perto de casa. Foi uma colocação injusta? Terá sido, obviamente, mas atribuir a responsabilidade da sua morte ao ministro, parece-me má-fé e estupidez.

            Acho que faz todo o sentido a união de classe em prol do que é justo e correto, mas não se pode exigir justiça e verdade do Ministério, para depois usar das mesmas armas políticas. Não pode valer tudo nem de um lado nem do outro. Somos professores e temos o dever do exemplo ético. Estes exageros e jogos políticos sujos enojam-me. E se não gosto deles vindos do Ministério, também não os aprovo quando são oriundos de um sindicato e de uma classe. Não é desta forma maliciosa que se defende os interesses da classe, mas antes com factos, rigor, verdade e honradez. Não sejamos iguais aos que constantemente nos aviltam.

            Tem surgido também recentemente forte indignação por parte de muitos pais, que consideram as férias de verão demasiado longas, comparando com o que se passa noutros países. Algumas notícias são absolutamente falaciosas e, quando surgem, não são inocentes. Há uns tempos, a douta (ironia minha, obviamente) Maria de Lurdes Rodrigues escreveu um artigo de opinião também nesse sentido. Não sei se me faço entender, mas julgo estar orquestrada a campanha para o calendário escolar ser alterado. Normalmente, a desonestidade intelectual procede desta forma, vai incendiando a opinião pública para depois pôr em marcha os seus objetivos, sem oposição de maior e com aplausos de muitos e sem discutir essas mudanças com quem está no terreno. É preciso explicar a quem tem os neurónios funcionais, porque outros há que será pura perda de tempo, que existem razões para que as coisas sejam assim. Vejamos, antes de qualquer outra coisa, Portugal é dos países europeus em que os alunos têm mais dias de aulas e maior carga letiva, como qualquer pesquisa rápida na Internet comprovará; depois, as férias estão mais concentradas no verão devido ao clima, o que significa que nos países europeus mais a Norte, têm menos semanas de férias no verão, mas têm mais pausas letivas ao longo do ano, por exemplo, param já em outubro uma semana, depois em dezembro, duas. Têm férias de neve, também duas semanas; três dias no Carnaval e também quinze dias pela Páscoa. Significa que o tempo de férias todo contabilizado é semelhante ao nosso. Lamentam-se os pais que o calendário não se ajusta às suas necessidades por não terem onde deixarem os filhos, questiono, então, como fariam nas interrupções ao longo do ano… São mais curtas, mas o problema continuaria a existir. Depois, não levam em conta toda a preparação do ano letivo seguinte que é necessário fazer após o término das aulas, nem a existência de exames e da respetiva correção, nem o facto de as crianças, com o surgimento do calor não estarem tão disponíveis para a aprendizagem. Vivemos numa época em que os pais querem que a escola seja lugar de depósito dos filhos, mas se as pausas existem é porque as crianças, em primeira instância, necessitam delas e descansar não significa continuar na escola! Esse problema organizacional da sociedade não compete às escolas resolver, mas sim ao Estado e tanto o deveriam resolver de junho a meados de setembro quanto nas várias interrupções que existem ou que venham a existir. Em países mais quentes e com praia faz mais sentido haver mais férias de verão do que de inverno ou querem ir todos esquiar para a Serra da Estrela? Não somos propriamente um país de neve! Felizmente, digo eu, que a dispenso bem e que detesto o frio!

            Saibamos analisar as questões com lisura, baseando-nos nos factos, sem os distorcer numa retórica embrulhada de sofista, apenas porque nos dá mais jeito que seja assim. Nem a colega faleceu por motivo da colocação nem os professores portugueses trabalham menos do que os outros, como sub-repticiamente se pretende sugerir.

            Haja decoro!

 Nina M.

 

 

 

 

Desfolhagem

Breves
Leves
Suaves
Ondeiam nos beirais
As rosas da aurora
À espera dos sinais
Abrem-se à aragem
Ao orvalho que as lava
Mas a noite sempre vem
Quem as guarda da  friagem?

E depois da paixão

E depois da paixão
A lassidão num abraço
Fadigas apaziguadas
No morno da tua boca
O ventre no teu ventre
As pernas entrelaçadas
A mão em repouso sobre o seio
São cansaços
Amor que se quer
Em regaços nus
E ao olhar o outro
O seu reflexo
Desejo saciado
Desejo morto
Que renasce na incandescência
Do momento
No repouso do silêncio