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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Aniversário

Se o dia gélido de um nascimento
Se transforma em chama ardente
Brilho, luar de alma inquieta
Incendiária de uma existência discreta
Cumpriu a tarefa promissora
De vida autêntica e concreta
Muros altos que se erguem
E separam da ilusão
Esta vida definida
Vivida só em solidão
Existe o sonho e a vontade
De embalar a despedida
Em harmoniosa saudade
Do ser nascido ao contrário
Sobeja centelha clara e reluzente
É pura vida imanente
Em cada aniversário

domingo, 29 de dezembro de 2019

Quando o sol repousa e namora o mar

Quando o sol repousa e namora o mar
À hora das lassas vontades
Vejo o meu ser recuar
Procura no íntimo de si cruas verdades
Vê ao longe nas memórias
Breves traços do que já foi
Olha-se no agora do tempo
Inveja a incauta alegria de criança
Que volteia solta na areia e no mar
No tempo onde tudo ainda é esperança
Sonhos são castelos e estrelas-do-mar
Ouriços resguardados nas covas dos rochedos
E se o futuro não é o suave marulhar
Trazido pelas ondas espraiadas
Fixa bem fundo o fundo do meu olhar
E diz-me se não vês todo o futuro
Envolto nestas despidas palavras! 

sábado, 28 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 161


Falências

Deve haver verdadeiro motivo para que o verbo falir seja defetivo pessoal, isto é, não pode ser conjugado em todas as formas. Se disser: eu falo, imediatamente se associa ao ato de comunicar (falar) e não ao ato de falir. Talvez porque ninguém goste de assumir o insucesso e assim aquele que faliu é sempre um outro alguém que não eu. Eu não falo, no sentido de falir, mas posso ser insolvente.
Em falência ou em processo de insolvência estão as instituições públicas deste país. Tenho um familiar que sempre diz que um país que faz revolução sem sangue e o substitui pelos cravos não vai a lado nenhum… Sempre achei disparatado. Somos caso único, mas a ditadura foi derrotada sem guerra civil e derramamento de sangue. Deveria ser motivo de orgulho. Não deixa de ser curioso, estranho e até mesmo ridículo a forma como se conseguiu pôr cobro a um regime daquela forma. Uma pesquisa rápida pela Internet permitir-vos-á ler na íntegra uma entrevista feita a Salgueiro Maia, por Adelino Gomes. O amadorismo do processo, as três horas de viagem para fazer o trajeto entre Santarém e Lisboa (os tanques saíram às três da manhã de Santarém e entraram no Terreiro do Paço às seis), as viaturas velhas foram arranjadas pelo pessoal miliciano e havia o receio de que pudessem avariar. Felizmente, parece que só houve um furo, nada de especial e lá conseguiram fazer a viagem até Lisboa à velocidade estonteante de 60 km por hora! Certo é que o professor Marcelo Caetano rendeu-se quase prontamente, apesar de a PIDE ter ainda tentado dispersar a multidão que se aglomerava, percebendo o movimento de revolta, a tiro. Ainda morreram cinco pessoas e houve uma dezena de feridos. O golpe de estado mais pareceu uma passagem tranquila de testemunho. Tempos mais conturbados viriam depois, com o PREC e com novas tentativas para instaurar um regime também totalitário e pernicioso e que culminaria a 25 de novembro de 1975.
Finalmente, abria-se caminho ao pluralismo partidário e à instauração da democracia. Os anos de ditadura salazarista, a miséria e o atraso em que se encontrava o país deveriam ser suficientes para colocar em alerta quem já cresceu em liberdade, assim que pressentisse quaisquer sinais, por ínfimos que sejam, de totalitarismo. Desta forma, entristeço de cada vez que sinto desvalorizada e desrespeitada a democracia. Sucessivos governos têm ferido de morte a democracia. Fizeram-no com a greve de enfermeiros, com a greve de professores (alterando nos primeiros dias de agosto a legislação que regula o funcionamento dos Conselhos de Turma para tornar legal o que sempre foi ilegal), com as sucessivas formas abusivas de pressão através do medo que plantam nas pessoas e com a pressão constante sobre a comunicação social (as recentes notícias sobre o atraso do programa Sexta às Nove, de Fátima Felgueiras e as suas declarações à Comissão Parlamentar, tornam-na visível). Vive-se, nas instituições deste país, o novo tempo do “quero, posso e mando”, num regime democrático e ninguém se incomoda com isso! De repente, quem se revolta contra os continuados abusos perpetrados sobre quem paga impostos desfasados por excesso do parco salário que recebe, é olhado de soslaio e entendido como o revolucionário sindicalista que nunca está satisfeito!
Irrita-me solenemente que volvidos 45 anos após a revolução, ainda haja um espírito servil e acabrunhado no povo português que o impede de lutar por aquilo que lhe pertence por direito! Não fosse a resiliência dos sindicatos e do povo e ainda estaríamos a trabalhar doze horas diárias, sem muitos dos direitos adquiridos! De cada vez que se permite que injustiças sejam cometidas, sem reclamar, por medo, estamos a compactuar com o estabelecimento de regras próprias de regimes totalitários. De cada vez que censuramos aqueles que lutam sabiamente pelos seus direitos, damos uma machadada na democracia. De cada vez que perdemos a noção da força que comporta uma classe e nos desunimos na luta, estamos a beneficiar os tiranos do regime. De cada vez que pensamos que não vale a pena lutar, porque quem nos governa faz o que quer, estamos a abrir-lhes portas para fazerem mesmo isso!
Não! Haja consciência e sentido de bem comum! Leia-se! Leia-se muito, porque a melhor forma de controlarem as massas é através da ignorância e da inconsciência! Perceba-se definitivamente que o verdadeiro poder está na rua e que devemos ser o regulador do bom funcionamento democrático e das suas instituições. Só o faremos se mostrarmos a indignação enquanto cidadãos, exigindo respeito pela nação e pelo povo que representam a quem nos governa! Digamos claramente não a todo e qualquer comportamento abusivo, que ponha em causa a noção de democracia! Quanto ao poder executivo do país, que o faça respeitando a História da bandeira que representa, lembrando-se só chegaram até ali, porque viveram em democracia. Quando perguntaram a Salgueiro Maia, após a revolução, “e agora?”, ele respondeu: “o povo tem de aprender a viver em liberdade e a saber que a dele termina quando começa a do outro”.
Parece-me que nem o povo nem quem nos governa nem quem exerce cargos de decisão neste país compreende o exato sentido dessas palavras.

Nina M.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Que será o tempo?

Que será o tempo?
O pulsar dos segundos mensurável
Sempre o que falta ao Homem apressado
Tivesse eu tempo...
Pudesse parar, congelar ou resgatar o tempo...
E posso porque o tempo significativo
É o que se inscreve na memória alojada na alma
Mesmo que seja um momento
Um pequeno instante ou aparente nada...
O tempo é um beijo apressado na sua ânsia de ser
ou o beijo que é e deseja demorar
A mão que não se quer largar e o abraço de dois
Olhares resgatados
Vivências perdidas
Conceito vazio se o encontro não se dá
E se te fazes presente, meu bem,
Contam todos os segundos também!
Emoções colecionadas
Por quem gosta de parir amor
Mas não há parto sem dor
E o tempo em que ocorre
É princípio, meio e fim.
É o mundo e o seu tempo em mim!

Crónica de Maus Costumes 160


                Ética, precisa-se!

A minha Matilde é um encanto. Ontem, aprendeu da pior forma o que é a desonestidade. Percebeu que não pode confiar em todas as pessoas, mesmo sendo crianças como ela. E o seu coraçãozinho puro, sensível e sem maldade entristeceu. Chorou dececionada e sem compreender o motivo que levam os outros a serem maus. Olhava-me chorosa em busca de uma explicação que eu não conseguia arranjar, a não ser a verdade crua de saber que há pessoas desonestas e que não se incomodam se prejudicarem terceiros com as suas ações.
Ao que parece, teria combinado com outra menina, através dos jogos online a troca de certos componentes. O irmão, mais velho e já com outra maturidade, bem tentou demovê-la, mas a Matilde, doce e ingénua menina, decidiu confiar, afinal, por que motivo não o faria? Se a outra criança prometeu, tal como ela, por que razão não cumpriria com a sua palavra?! A minha filha sentiu-se enganada, traída, sem nada poder fazer para remediar a situação.
Expliquei-lhe que deveria fazer trocas apenas com os seus amiguinhos conhecidos e falei-lhe das vantagens das relações interpessoais. Se acontecer um problema desse género, quando as pessoas estão frente a frente, a situação é facilmente resolvida. Quando se trata de redes e de realidade virtual, sem se saber quem está por detrás de uma tela, tudo se complica. O episódio infeliz traz, porém, a sua vantagem: a minha Tita, ontem, cresceu mais um palmo. Acabei por consolá-la, como sempre as mães conseguem fazer e dizer-lhe que apesar de tudo estava muito orgulhosa dela, que preferia que fosse ela a ser enganada do que a enganadora. Ela era quem tinha agido corretamente e com dignidade. A outra menina é que deveria estar a chorar por desconhecer o significado de ética.
A Matilde esbugalhou os olhos, já de si imensos, duplicando-lhes o tamanho. Não sabia o que era a ética. Expliquei-lhe que é uma qualidade imprescindível ao ser humano. Uns têm e outros não. É o ímpeto que nos leva a agir corretamente, mesmo se isso nos é desfavorável. É talvez das maiores qualidades que o ser humano pode ter e das mais difíceis, porque não se vende em supermercados nem é estática. A ética exige de nós uma construção permanente e não há ninguém que consiga ser absolutamente ético o tempo todo, pelo simples facto de sermos humanos.
- Se a menina tivesse isso não me teria enganado, mamã?!
- Não.
- Mas eu tive com ela e fiquei sem as minhas coisas!...
- É verdade. Nem sempre quem é honesto ou quem tem ética é respeitado, porém, há algo muito precioso que não perdeste: a tua dignidade e a consciência de teres agido corretamente. Vale mais do que tudo. O que perdeste conseguirás recuperar, já a ética da menina relativa àquele momento, fica perdida para sempre. Pode vir a reconquistá-la noutras ocasiões, oxalá venha a verificar-se, no entanto, desta vez, já a perdeu.
A ética é uma virtude que pode ser ensinada (segundo Aristóteles) e que exige responsabilidade e respeito pelo limite estabelecido pelo outro. Eu não devo ouvir música alto em lugares públicos, porque posso incomodar o outro. Assim, o comportamento ético é revelado tanto nos mais ínfimos gestos como nos mais grandiosos. Desviar dinheiro público é um comportamento deplorável e condenável, mas apropriar-se da fotocopiadora da empresa para fins pessoais também é. Qual a diferença entre ambos? Na sua génese, o comportamento é similar. A diferença está no valor do desvio. Desta forma, a ética não parece que possa ser relativizada ou avaliada em graus. Ou se tem ou não. O valor do produto adquirido pela falta de um comportamento ético é que poderá ser variável e tornar o comportamento mais ou menos gravoso. Assim como as circunstâncias que o proporcionaram podem servir ou não de explicação para a falha. No entanto, com ou sem atenuantes, o comportamento continuará antiético.
A Matilde aprendeu que nem sempre quem age bem é recompensado pela vida. Aprendeu também que, infelizmente, não pode confiar em toda a gente, porque, estranhamente, nem todos se pautam por uma conduta que consiste em não fazer o mal deliberado a outrem. A Matilde, ontem, chorou por se sentir injustiçada, vilipendiada nas suas boas intenções, mas é a mesma menina que uns minutos depois, quando a irritação passou, ao ouvir o vento sibilar lá fora e a chuva a bater nos vidros, me perguntava onde é que as pessoas que vivem na rua iam ficar, porque não deveriam ficar à chuva! É a mesma menina doce que passa pelas ruas da cidade e não fica indiferente aos pedintes e que me quer obrigar a dar uma moeda a todos os que encontramos. Lá lhe explico que não podemos dar a todos. Convenço-a a ficarmos por dois ou três e que os outros haverá alguém que também os irá ajudar. É a mesma a quem se alguém lhe der uma guloseima, pergunta de imediato: “E para o Rodrigo?” É a menina sempre disponível para ajudar quem precisa, sensível até ao tutano, perspicaz e que se entristece se vir alguém triste. É a menina persistente até ao limite, até me vencer pelo cansaço, por vezes! A menina que tem as suas manhas, que adora ver o seu trabalho reconhecido.
- Mamã, tive muito bom! Ficaste feliz?
- Fiquei, meu amor, mas fico mais feliz ainda por saber o coração enorme que albergas no peito! Por saber a tua candura, a tua sensibilidade, a tua generosidade a par da tua irrequietude e malandrice, porque tudo se quer na exata medida das coisas!

Nina M.
          









domingo, 15 de dezembro de 2019

Saudade

A saudade quando vem
E é esta melancolia
Nada mais do que existe
Nada lhe vale e assiste
Sobra apenas a poesia
Não se sabe como surge
Nem o que a faz aparecer
Parece um ser autónomo
Que assim nos quer vir ver
E é tão boa companhia
Lembra-nos de conversas antigas
Êxtases e pequenos milagres
Coisas boas desta vida
Há quem não a queira sentir
Aninhada ao seu lado
Falta-lhes descobrir
o suave sabor da saudade
Mesmo que a não queira
Aloja-se em mim, não me larga
Trago-a sempre na algibeira
Garanto que não é grande carga
"Saudade é o amor que fica"
Ouvi certa vez dizer
Gostei tanto que assim fosse
Que nunca a quis perder
Saudade do que nos falha
Neste tempo que é finito
Será o amor roubado
No fundo da alma inscrito
Assim a guardo com cuidado
Ciente do seu valor
Pode causar desagrado
A mim, só me traz amor

sábado, 14 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 159


Inveja e felicidade

                Não tenho paciência nenhuma para tutoriais de youtube, por isso, espanto-me com o gosto da juventude pelos youtubers (filhos incluídos para mal dos meus pecados!) supostos “influencers” da parvalheira e da ignorância. A lei da proporcionalidade funciona bem para eles, porque quanto mais parvos mais seguidores! Há, no entanto, uma exceção: sou capaz de ouvir indefinidamente um pensador brasileiro, historiador de formação, mas um grande intelectual que já devorou muitos, todos os bons livros que cada ser humano deveria consumir e que eu não sei se terei tempo para o fazer. Invejo-o e admiro-o por isso. Sim. A inveja é uma coisa feia, o “pecado envergonhado”, como Karnal lhe chamou no seu programa “Café Filosófico”.
                Dizia, então, Leandro Karnal que poucos são os seres que reconhecem que são invejosos, mas que, na verdade, quase todos nós somos permeáveis a essa emoção. Devemos é estar disso cientes para que a emoção não se torne desregulada e perigosa. Explicava a diferença entre a cobiça e a inveja, na sua perspetiva. A primeira pode ser positiva. Pode significar desejo por alcançar o mesmo que o vizinho e trabalhar para o realizar. No entanto, a inveja é mais perniciosa. Por detrás da inveja estará a incapacidade de o ser humano se regozijar com a felicidade alheia, sobretudo se lhe forem próximos. A inveja é assim o reconhecimento do fracasso próprio por comparação com alguém. O olhar foca-se no outro e não em si mesmo. O outro é sempre o mais inteligente, o mais afortunado, o que possui o que não se tem e tanto se deseja, gerando ressentimento. Desta forma, muita gente se acha muito invejada, mas não se reconhece invejosa. Inveja vem do étimo latino “invidere”, que significa não ver. Ora o invejoso não se vê a si, permanece numa cegueira tola pelo foco que coloca no outro e que, geralmente, considera ser bafejado pela sorte e não um trabalhador esforçado.
“Sabe, Leandro, você hoje está bem. Tem muito sucesso, mas isso passa, viu?!” Ter-lhe-á dito uma amizade, certa vez. Claro azedume pela conquista do amigo! Ao que parece, segundo um estudo americano, a generalidade das pessoas prefere continuar a ganhar menos, desde que os outros ganhem menos do que elas a ver o seu salário aumentado, mas os outros a ganharem salário igual! Parvoíce humana!
 Pensando sobre as reflexões do Karnal, tendo a concordar com ele, embora prefira ser menos cínica. Ele quase não acredita que haja seres límpidos o suficiente para não se deixarem arrastar pela lama dessa emoção. Já eu acredito que ainda há seres suficientemente inteligentes para compreenderem o perigo e a torpeza da inveja e tentarem contrariá-la. Por isso, Leandro, há em mim um misto de pequena inveja e de admiração pelo teu saber, pela tua brilhante capacidade de comunicação, mas não há qualquer desejo para que fracasses, bem pelo contrário! Sei bem que há o atlântico de permeio, logo a condição proximidade para que a inveja floresça não existe, mas ainda assim, gosto de sentir a inteligência vibrante neste planeta! Não será inveja, antes cobiça, talvez dissesses. Talvez seja, porque fico feliz por haver gente que me deixe feliz quando os ouço. Se o Homem se deixa encarniçar por estes sentimentos como poderá ser feliz? Centremo-nos no que verdadeiramente importa. Combatamos todos os cinismos, cobiças e invejas. Não sejamos cegos e tenhamos a capacidade de nos olharmos e procurarmos fazer o melhor de nós, sem comparações.
Talvez possa deixar como solução a fórmula de Edgar Morin: “Para mim o problema da felicidade é subordinado àquilo que chamo de  ‘o problema da poesia da vida’. Ou seja, a vida, a meu ver, é polarizada entre a prosa – as coisas que fazermos por obrigação e não nos interessam para sobreviver - E  a poesia – o que nos faz florescer, o que nos faz amar, comunicar. E é isso que é importante.  Então, eu digo que o verdadeiro problema  não é a felicidade. Porque a felicidade é algo que depende de uma multiplicidade de condições e eu diria mesmo o que causa a felicidade é frágil, porque, por exemplo, no amor de uma pessoa, se essa pessoa morre ou vai embora, cai-se da felicidade à infelicidade.
[…] Em outras palavras, não se pode sonhar com uma felicidade contínua para a humanidade. É impossível porque a felicidade, repito, depende de uma soma de condições. Então, pelo outro lado, o que se pode dizer, pode-se tentar favorecer tudo o que permita a cada um viver poeticamente sua vida e, se você vive poeticamente você encontra momentos de felicidade, momentos de êxtase, momentos de alegria e, na minha opinião, é isso”.
É isso sim, porque tudo o que vale a pena é poesia e do que ela se faz. O sabor dos dias que não se perdem no vazio e na ausência de sentido, nem que seja por um breve momento.

Nina M.

               





quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Cai sobre a noite a melancolia

Cai sobre a noite a melancolia
Repousa serenamente no seu colo
Saudade feita poesia
Frágil e belo reflete o cristal
Memórias felizes em agonia
Angústia triste e letal
Teima em abalar o triste dia
Comporta a grande dor do mundo
Esfumou-se a euforia
Se eu pudesse sepultá-la
Num vazio magistral
No templo do esquecimento remoto
Talvez a nostalgia tivesse fim
Se para ela houvesse
Mágico veneno à alegria devoto
Bebê-lo-ia de um trago áspero e seco
Mataria os lugares de meu luto
Sem saber se me absolvo ou se peco
Em ânsia de sublimação pura
Rasgue-se ao meio esta amargura
Sedimento de alma extenuada
Vazia de tudo e cheia de nada

domingo, 8 de dezembro de 2019

Dánae

No silêncio de mim
Ouço o eco da tua voz
Sempre cristalina e límpida
Serena, segura e triste
De que longe vem?
Procuro-te no fundo da alma,
Dánae, bela desejada!
Que clausura te impuseram?
Que grades de mim te separam?
Louco! De meu desejo te afasta!
Descerei sobre ti
Chuva de ouro divina
Qual Espírito Santo!
Queima este desejo incandescente
Ardem-me as têmporas
Trémulas as mãos
Pousarei sobre ti
Em pó fecundo e invisível
Tu, ó sagrado templo virginal
Onde germinará fruto,
Doce e inocente pecado
Roubado em ardiloso delito
Das águas ressurgirás,
Protegida de Poseidon,
Terás a tua liberdade
Condensada num só grito!

sábado, 7 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 158


Deambulações


                Hoje, ao pôr o filho mais velho a estudar (o eterno castigo!), vejo-o empolgado com assuntos que se relacionem com o Universo e os seus planetas. Interrogada sobre a constituição da atmosfera de Vénus, lá respondi que não fazia a mínima ideia, porque era um assunto que não me interessava muito.
                - O quê? Não gostas desta matéria? Perguntou sinceramente espantado. Tive vontade de lhe responder que essa matéria desperta tanto a minha curiosidade quanto as rochas que ele tem de estudar em Ciências, mas não julguei aconselhável, apesar de verdadeiro, por dever do exemplo.
- De que gostas, então? Quis saber.
- Literatura, poesia, Filosofia, História, Psicologia, Mitologia… Tudo o que está relacionado com o Homem. Respondi.
- E não queres saber do Universo?
- Se eu fosse capaz de saber o Homem, já seria muito feliz. Sentenciei.
Não percebeu exatamente o que quis dizer e também não lho expliquei. Seja como for, hoje teve a perceção de que afinal a mãe também é ignorante e não se incomoda com as distâncias e períodos de órbitas dos planetas. Os adultos, afinal, também não se interessam por tudo e desconhecem factos que eles são obrigados a estudar. Que injustiça! Bem, fiquei a saber que Vénus tem movimento inverso ao dos ponteiros do relógio, o que não acontece com os outros planetas, muito provavelmente devido a uma colisão.
- Então, não sabias?
- Não. Isso, não, mas sou bem capaz de te explicar quem era Vénus (para os romanos) Afrodite (para os gregos) e a paixão que revelava pelo nosso povo luso devido à coragem, ousadia e também pela língua que “com pouca corrupção/julga que é latina”.
- Ó mãe, e por que motivo gostas tanto de histórias?
- Boa pergunta.
Talvez cada narrativa contenha uma busca de sentido, das mais diversas formas. Vê-lo nas personagens que me parecem de carne e osso cria-me a ilusão de aprender alguma coisa sobre o Homem. Talvez porque goste de viver em dimensões paralelas onde ficciono e dialogo com esses amigos que vou fazendo e me alargam horizontes. Talvez porque a nossa própria vida seja uma narrativa que nos vamos contando e também aos outros. Uma narrativa que se constrói ao longo dos tempos, cheia de oscilações já conhecidas dos nossos avoengos. Talvez porque a humanidade se alicerce nos mitos antigos que são explicação para algumas das nossas questões. Património fundador da humanidade que o preserva ao longo dos tempos e o perpassa pela arte. Talvez para compreender que, em última análise, são os deuses os responsáveis pela forma como a mulher ainda hoje é entendida: a sedutora perigosa, responsável pelos males do mundo. Ah! Triste e vilã Pandora que seduziste Epimeteu e que com a tua curiosidade condenaste a humanidade a padecer de todos os males! Sobejou a esperança. Depois, veio Eva, a mãe, cuja curiosidade contamina Adão e desafiam as leis divinas. Trouxe o pecado (símbolo dos males) à humanidade. No entanto, é no ventre terreno da mulher onde o Verbo se faz Homem, com uma diferença, porém. A eleita é mulher sem mácula! Maria devolve a dignidade e a candura à mulher, no entanto, torna-a assexuada. A mulher vê-se mutilada na sua liberdade e a sua concetualização varia entre dois polos: a sua divinização e a sua diabolização.
- Sabes, filho, não é o Universo nem as suas rotações que me permitem pensar nestes assuntos.
- E para que serve pensar nessas coisas?
- Na verdade, talvez para nada, mas elas surgem-me sem que as chame e aninham-se em mim. Obrigam-me a tratá-las com carinho e eu gosto.
- És um bocadinho estranha.
- Eu sei. Já me afeiçoei à peculiaridade.

Nina M.  











domingo, 1 de dezembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 157


Sono Matinal

                Gosto de ler um pouco de tudo, pelo que o tempo que vou perdendo nas redes sociais serve para ler algumas das coisas interessantes que por lá se vão partilhando. Aí está uma benesse desse meio de comunicação. Não aparecem apenas supostos “influencers” meio parvos e sem nada de útil para dizer, mas também gente de bom gosto, que aprecia boas leituras.
Assim me deparei com uma entrevista a uma poetisa que dizia que o mundo se dividia em dois géneros de pessoas: as que preferem Paris e as que preferem Londres. Fiquei a pensar que talvez preferisse Paris, mas pensei para mim que a divisão em dois grupos é feita com base noutros critérios: as pessoas que acordam muito bem-dispostas pela manhã, a cantar, se for o caso e as outras! Aquelas que põem o despertador cinco ou dez minutos mais cedo, mas invariavelmente o corpo se recusa a levantar de supetão e os dez minutos transformam-se, sem se saber muito bem como, em vinte. Depois, é a azáfama habitual, sem a qual uma manhã não seria manhã. Preferivelmente, em silêncio absoluto até se tomar o abatanado obrigatório para começar a acordar. Há gente assim… Esticam a noite mais do que o que devem e as manhãs, até determinada altura são terrivelmente sofredoras. Pertenço a este grupo e gosto pouco que me louvem as vantagens de acordar cedo. Deveria ser proibido ter que começar a trabalhar antes das nove e meia. Não mudaria muito, porque o impacto de acordar ninguém consegue minimizar. Não que não queira despertar pela manhã! Pretendo continuar a fazê-lo durante muito tempo! Gostaria era de o fazer com calma e mais tarde. De modo que sou acusada de alguma agressividade matinal, principalmente, antes do café!
Perdoem-me as pessoas que pertencem à outra fação, mas são verdadeiramente irritantes! Ouvir canto matinal ou verborreia desenfreada em volume proibitivo para aquela hora da manhã é tortura!
A higiene pessoal deve ser efetuada em absoluto silêncio e sem ter que se pensar nas tarefas imediatas, quando o cérebro ainda está a acordar. Depois, o café, se for tomado na solidão silenciosa tem um gostinho especial. Depois deste, aos poucos, a vontade de agir e a energia vão aumentando gradualmente e logo que se chega ao local de trabalho, começa-se a  estar preparado para o dia, mas sem abusos! O silêncio recolhido continua a ser bem-vindo! Um simples bom-dia educado chega.
Normalmente, a caminho do trabalho, no carro, ouço a rádio e não posso deixar de ficar espantada com a energia dos locutores e as suas gargalhadas matinais. Depois, penso: Estes já acordaram às seis da manhã, os níveis de energia já estão regulados! Haja coragem!
Assim, logo pela manhã, quem convive comigo sabe que não é hora de muitas perguntas nem de observações, porque pode ter a maior razão e a maior delicadeza do mundo, mas eu não serei propriamente simpática. Digamos que um mau feitio, que se desvanece depois de efetivamente acordar, toma conta de mim e atira umas respostas secas e ásperas. Quem convive comigo não liga, até porque sabe que o tempo de me interpelar não é esse. Sabe que a noite passou demasiado rápido sem respeitar o meu biorritmo. Por isso, se me perguntam: Já acordaste a criançada? A que horas? Obterão como resposta um “Sei lá! À hora que o relógio marcava e que não vi!”
Na infância, nada me irritava mais do que quando o meu pai, para nos acordar, se punha a cantar desenfreadamente, como se não houvesse amanhã! Que nervos! Que vontade de fechar a porta do quarto, de virar para o lado e continuar como se nada tivesse ouvido!
Não se trata de uma apologia à má-disposição matinal, apenas uma sugestão de regulação de comportamentos excessivos! Grata.