Hoje, sem sentir o apelo por um tema em
especial, e andar às voltas com quase assuntos, mas todos eles tão descosidos
entre si que resultariam numa crónica desconjunta e sem nexo, fui surpreendida
por uma lembrança.
A memória tem esta particularidade, é capaz
de guardar retalhos de vida, pedaços rasgados de um tecido que se vai urdindo
ao longo do tempo e que, subitamente, sem nada que os desbloqueie, aparecem.
Dão o ar da sua graça, num discreto pas
de deux para voltarem a resguardar-se em qualquer recanto impercetível do
nosso subconsciente. Assim, lembrei-me de um diálogo a que assisti entre Valter
Hugo Mãe e uma senhora da plateia, aquando da apresentação do seu livro Desumanização. A grande força do romance
é a protagonista e também narradora, Halla, uma menina de 13 anos que perdeu a
sua irmã gémea e que, por isso, se reconhece como a “menos morta”. Halla
encaminha-nos pelos mistérios do grotesco e do sublime que constituem a
existência, falando-nos do que sobra na sua vida, depois da morte da sua irmã e
que também sente como a sua.
A senhora da plateia, que já tinha lido
o romance, questionava o autor sobre o teor do livro e da dificuldade que
sentiu ao lê-lo. Sem já me recordar exatamente como, a conversa incidiu no
papel da mulher e no facto de o autor afirmar que ela é melhor do que o homem.
“Não é nada”, respondia a senhora. “É”, retorquia o autor. “Não”, “É”, “Não”,
“É” e já não me lembro exatamente quem fechou a disputa. Soube depois que a
senhora tinha perdido um filho e após ter lido o livro, compreendi a angústia
da enlutada. A sua dificuldade em lê-lo. Soube, mais tarde, que apesar de mais
velha, ela era a Halla do auditório, também ela a “menos morta”, porque é
exatamente assim que uma mãe que perde um filho se sente, não me ocorre melhor
expressão para a definir.
Curiosamente, no romance, o grotesco
chega pela mão do feminino, principalmente pela mãe da protagonista que a culpa
pela morte da irmã, enquanto o sublime surge na voz do pai, que gosta de poemas,
de livros e de os contar à filha. Certo é que o masculino não tem a força
necessária para impedir a violência da sua mulher e Halla fica entregue à sua
própria vontade.
Mesmo no grotesco, a mulher consegue
suplantar o homem, ainda que tenha sido feita para o amor. Reminiscência de Eva
que enganou o Adão, mas ainda assim, só ela é capaz de albergar o novo ser em
si e ter a força de o parir e de o criar, gerando um laço que se quer
indissolúvel. Nem o divino escapou e foi no ventre materno do amor que o verbo
se fez carne. Gostaria de acreditar que o grotesco no feminino provavelmente
seja exceção e que talvez a mulher seja maioritariamente exemplo do sublime,
que gosta de exibir a cada novo filho que nasce.
Nina M.
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