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segunda-feira, 2 de abril de 2018

Crónica de Maus Costumes 66



Hoje, sem sentir o apelo por um tema em especial, e andar às voltas com quase assuntos, mas todos eles tão descosidos entre si que resultariam numa crónica desconjunta e sem nexo, fui surpreendida por uma lembrança.
A memória tem esta particularidade, é capaz de guardar retalhos de vida, pedaços rasgados de um tecido que se vai urdindo ao longo do tempo e que, subitamente, sem nada que os desbloqueie, aparecem. Dão o ar da sua graça, num discreto pas de deux para voltarem a resguardar-se em qualquer recanto impercetível do nosso subconsciente. Assim, lembrei-me de um diálogo a que assisti entre Valter Hugo Mãe e uma senhora da plateia, aquando da apresentação do seu livro Desumanização. A grande força do romance é a protagonista e também narradora, Halla, uma menina de 13 anos que perdeu a sua irmã gémea e que, por isso, se reconhece como a “menos morta”. Halla encaminha-nos pelos mistérios do grotesco e do sublime que constituem a existência, falando-nos do que sobra na sua vida, depois da morte da sua irmã e que também sente como a sua.
A senhora da plateia, que já tinha lido o romance, questionava o autor sobre o teor do livro e da dificuldade que sentiu ao lê-lo. Sem já me recordar exatamente como, a conversa incidiu no papel da mulher e no facto de o autor afirmar que ela é melhor do que o homem. “Não é nada”, respondia a senhora. “É”, retorquia o autor. “Não”, “É”, “Não”, “É” e já não me lembro exatamente quem fechou a disputa. Soube depois que a senhora tinha perdido um filho e após ter lido o livro, compreendi a angústia da enlutada. A sua dificuldade em lê-lo. Soube, mais tarde, que apesar de mais velha, ela era a Halla do auditório, também ela a “menos morta”, porque é exatamente assim que uma mãe que perde um filho se sente, não me ocorre melhor expressão para a definir.
Curiosamente, no romance, o grotesco chega pela mão do feminino, principalmente pela mãe da protagonista que a culpa pela morte da irmã, enquanto o sublime surge na voz do pai, que gosta de poemas, de livros e de os contar à filha. Certo é que o masculino não tem a força necessária para impedir a violência da sua mulher e Halla fica entregue à sua própria vontade.
Mesmo no grotesco, a mulher consegue suplantar o homem, ainda que tenha sido feita para o amor. Reminiscência de Eva que enganou o Adão, mas ainda assim, só ela é capaz de albergar o novo ser em si e ter a força de o parir e de o criar, gerando um laço que se quer indissolúvel. Nem o divino escapou e foi no ventre materno do amor que o verbo se fez carne. Gostaria de acreditar que o grotesco no feminino provavelmente seja exceção e que talvez a mulher seja maioritariamente exemplo do sublime, que gosta de exibir a cada novo filho que nasce.
Nina M.


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