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quarta-feira, 29 de julho de 2020

Etéreo

Não é à substância que aspiro
Antes ao imaterial e eterno
Ao luar invisível dos espíritos
Aos rios que os percorrem
Inexoravelmente antes
Do desaguar
Compreender as marés
E os seus ventos
Todos os seus lamentos
Medos e Anseios
Semear a serenidade
Feliz e dela recolher os frutos
Despertar alegre para a vida
Sorrir a cada nova oportunidade
E guardá-la assim incompleta
Na sua concha pura 
Onde só eu a sei

sábado, 25 de julho de 2020

Crónica de Maus Costumes 192


Valter, as mulheres e o tempo

            Acabei de ler O Remorso de Baltazar Serapião, de Valter Hugo Mãe, vencedor do prémio literário José Saramago, em 2007, e por este prefaciado. Só esta última nota dispensaria qualquer recensão de minha parte.
            Saramago classificou-o de Tsunami pela intensidade e revolução que traz à escrita. Valter parece criar uma língua nova. Estilo de autor, reduzida ao essencial, numa linguagem crua com anástrofes e elipses desconcertantes e que desconcertam a sintaxe e é do que eu menos gosto. Compreendo os motivos, a necessidade de marca própria, o desejo de abrir um livro sem nome e de lhe reconhecermos o autor. Seremos capazes de o fazer com Valter como com Saramago como Camões e Pessoa e os seus heterónimos (os três mais conhecidos, porque eles são imensos). No entanto, por defeito meu, certamente, talvez devido ao meu ofício, não gosto assim tanto. Serei clássica, por isso, tenho o atrevimento de discordar do nosso Nobel e considerar que o que ele elencou como catadupa de sinalética distrativa, eu gosto das pintas nos is e dos travessões, das exclamações, das reticências e dos pontos de interrogação. Enfim, gosto dessa parafernália que constitui as boas regras da nossa ortografia. Se somos capazes de ler sem elas e apreender o sentido, saber quando se trata de uma interrogação ou de uma afirmação? Certamente que sim e sem dificuldade, mas eu gosto de namorar o Português escorreito que herdamos numa versão mais atualizada a abrir portas ao que haveria de vir do nosso Camões e que se instituiu de modernidade a partir dos séculos XVII e XVIII.
No entanto, Valter tem o dom de saber tocar temas fraturantes, criar-lhes um enredo e retratá-los com dureza. Há passagens dos seus livros que são socos no estômago e eu gosto dessa intensidade, dessa atrocidade temática que é afinal a nossa desumanização. Não esperem nem temas nem linguagem delicodoces. Os romances de Valter não são para os que gostam de leveza. O seu remorso deveria ser o de muitos homens. Retrata a violência doméstica e o papel subalterno da mulher ao longo da história da humanidade. A má-fé sartriana é revelada pela personagem ao convencer-se de que os golpes rudes eram justificados pelo dever do marido que precisa de garantir a educação da esposa. O autor expõe a tradição milenar, a visão da mulher como um ser inferior cuja voz só traz perigo e não deve ser ouvida. Uma espécie de Circe que envenena os homens e os desgraça e, como tal, devem ser por eles educadas, para que possam ser boas esposas, preferencialmente mudas, absurdamente obedientes, dependentes e ainda assim amar fervorosamente os maridos, enquanto se recatam de todos os olhares alheios para não atrair sobre si a cobiça de outros. O romance poderia retratar a idade média ou a atualidade, tanto faz. É intemporal. É um grito de revolta contra a instrumentalização da mulher, vista como mero recetáculo dos alívios masculinos, caracterizadas num paradoxo de criaturas divinas que vieram alegrar os homens e sem as quais estes não podem viver, havendo as que cumprem esse papel ao qual estariam destinadas e, portanto, são as “putas” (na linguagem crua de Valter) que se abrem a todos homens, por eles banidas, mas também por eles procuradas e as outras de serventia para casar, mas que ao fazê-lo assinam uma sentença de prisão perpétua, perante maridos desconfiados, ciumentos, violentos, mas que apregoam, cegos, um amor distópico aos quatros ventos.
E porque parece que muitos homens e também mulheres ainda precisam de alargar horizontes, seria bom que aprendessem o respeito pela mulher e que definitivamente se rendessem à inteligência (tantas vezes superior à de alguns), à beleza delas, mas também à ternura, porque independentemente dos laços instituídos, a mulher será vaso acolhedor de quem quiser, talvez de quem ela amar, talvez de quem o merecer e, por certo, de quem a souber amar. Fazer dela um objeto utilitário, no século XXI, é um ultraje e um atestado de idiotice. Como diria o meu amigo Altério: ide ler, ide…

Nina M.
             


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Paris

Sonho Paris
Rendida aos seus encantos
Pequena Ínfima Curvada
Perante tanta História e tanto logro
Sumptuosidade excelsa de um olhar novo
Ao longo do Sena de mãos dadas
Não há o nosso reflexo nas águas pardas
Só a promessa de um Louvre e de um Orsay
Aguardam pacientes a nossa chegada
E a Gioconda do grande mestre italiano
Entende finalmente o seu sorriso
Posta há séculos à espera 
Vê os seus anseios acedidos
Corro desabrida a fazer esvoaçar as pombas
E Notre-Dame assim ferida ainda queimada
Mas Augusta e imponente 
Abençoa o olhar ardente
Que seria da bela cidade sem Montmartre?
Mesmo se refeita à medida do turista
Vielas estreitas, ruas sinuosas encaminham os transeuntes
E do alto da colina, em frente ao Sacré-Coeur
Toda a Paris se inclina ao gesto do nosso amor
Quimera tão bela brilhante das luzes noturnas
Dorme em nossos corpos embalada
Ao sabor da brisa que passa
Bateau mouche onde nos levas?
Enche-nos a vida de graça!


sábado, 18 de julho de 2020

Crónica de Maus Costumes 191


Antero de Quental: ideal, angústia e morte

Antero de Quental, o grande mentor da Questão Coimbrã, das Conferências do Casino, um dos representantes da geração de 70, foi um poeta dual: apolíneo e noturno, dominado ora por Eros ora por Thanatos, que tenta superar o drama íntimo da luta de sentimentos opostos, sempre em busca do Ideal, da Perfeição, da Beleza, da Consciência e da Liberdade.
Qual Sísifo, perante tarefa inalcançável, que ao longo da vida se mantém íntegro, mas que não escapa ao malogro, à agonia e à desilusão de um real que não se molda às suas vontades e que o atiram para um pessimismo abúlico que o fazem desejar a morte. Um Quixote que busca a felicidade através da transformação política, por crer no futuro, que introduz o socialismo de Proudhon no seu país, que tem a coragem de largar o berço burguês e partir para Paris, experimentando as agruras de um simples operário tipógrafo. Sincero, desejando consonância entre pensamento e ação, embrenha-se na luta política em prol da liberdade, da justiça e do bem, consagrando-se a causas coletivas. Voltado para uma filosofia moral e simples, posta ao serviço dos outros, sem impugnar a sua independência, faz da sua poesia uma arma, conferindo-lhe um papel social e filosófico, fazendo dela a voz da revolução (“Ergue-te, pois, soldado do Futuro,/E dos raios de luz do sonho puro,/Sonhador, faze espada de combate!”). A impossibilidade de transformar o ideal em realidade condu-lo a uma busca permanente e obsessiva que lhe traz uma profunda angústia e frustração. Antero é o idealista que procura o sistema político capaz de restituir a justiça e o bem aos cidadãos; o pensador  em busca da sua filosofia, o poeta em busca da poesia perfeita e o homem em busca da paz interior. De tudo se desiludiu (“Abrem-se as portas d'ouro com fragor.../ Mas dentro encontro só, cheio de dor, /Silêncio e escuridão - e nada mais!”) e o seu suicídio prematuro não lhe permitiu assistir ao reconhecimento da sua obra poética.
O poeta cindido, descontente do mundo, mostra ânsia de além e vê na morte a libertação, associando-a à luz e à ideia pura hegeliana (“ Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,/ Tropeço, em sombras, na matéria dura,/ E encontro a imperfeição de quanto existe. /Recebi o batismo dos poetas,/ E assentado entre as formas incompletas/ Para sempre fiquei pálido e triste.”), sendo evidente a oposição entre a tese (vida - incompletude – imperfeição –angústia) e a antítese ( morte – completude – perfeição – paz) . Na senda da tradição romântica, Antero associa a morte à liberdade, como facilmente se constata em Mors Liberatrix (“E, sendo a morte, sou a liberdade”). Através dela exprime a sua ânsia de imortalidade, a sua desesperação e o sentimento trágico da vida, tal como lia Unamuno na poesia anteriana. O que lhe interessava no poeta português era a demanda pela existência espiritual, pela pós-existência, angústia comum reveladora do conflito entre o pensamento e o sentimento, a razão e a fé, o não crer e o querer crer. A religiosidade de ambos deriva da fé perdida, sempre procurada, mas nunca encontrada (“Y lo que más le une a cada uno consigo mismo, lo que hace la unidad íntima de nuestra vida, son nuestras discórdias íntimas, las contradicciones interiores de nuestras discordias. Solo se pone uno en paz consigo mismo como Don Quijote, para morir”).
Assim, em Antero, a solução encontrada para a angústia provocada pela morte de Deus é a superação através do nirvana, reagindo ao vazio existencial, ao Não-Ser e à noite como opções positivas e libertadoras (“Só quem teme o Não-Ser é que se assusta / Com o teu vasto silêncio mortuário…”) e (“Dormirei no teu seio inalterável, / Na comunhão da paz universal, /Morte libertadora e inviolável”).
Antero parece encontrar na morte a síntese para as suas contradições e a evasão duradoura para combater o seu agonismo. O seu suicídio confirma a sinceridade da sua aspiração à liberdade. Apesar da descrença em Deus, o misticismo é evidente. O eterno deixou de ser o Deus bíblico para ser Ideia, Amor, Vontade… e a sua obra plena de símbolos religiosos.
Se com ela não alcançou o absoluto, a morte ter-lhe-á permitido, pelo menos, o descanso na mão direita de Deus.

Na Mão de Deus
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Antero de Quental, in "Sonetos"

Nina M.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Céu

Minha imensidão de azul
Abóbada celeste que desejo
Por ser azul tão sem nuvens
Olho-o e é a mim quem vejo
E toda nele me quero fundir
Nos braços desse céu ameno
Quero com paixão trazê-lo sereno
Deitar-me nesse espelho de luz refletida
Senti-la atravessar-me a pele
Dar de mim toda e sentir-me perdida
Percorrer os seus caminhos
E enfim... Encontrar-me nele

terça-feira, 14 de julho de 2020

Madalena Penitente de Ticiano

De olhos alagados e postos no alto
Procura o seu Senhor que afinal partiu
Imaterial e eterno a vencer a morte

Comovida trágica desvela
Dor e saudade de alvura cobertas
Com a sua nívea mão

A blusa alva fina e translúcida
Descobre-lhe o corpo
Insinua os túrgidos seios fartos

Numa tristeza promissora
De quem não abandona a natureza
De uma alma inocente e sedutora

Memento mori, Madalena Penitente,
O Livro Sagrado sobre a escura caveira
Sinal da humana e torpe finitude

Largado o vaso dos unguentos
Servirá de seu perfume de seu veneno
Absorvido por todos os seus poros

Não passa sem beber o cálice
A transbordar sensualidade
Expia os pecados e os seus medos

Bela amante do Cântico dos Cânticos






domingo, 12 de julho de 2020

Corgo

Longe do ruído e do mundo
Aves e correnteza
Pedaço de céu ornado de verde
Sinfonia de sons imaculados
Embalam os sentidos
Tudo me transporta a um mundo recôndito
Raro e quase só meu
Melros, pardais e lontras
Pedras polidas e gastas
Moldam-se e acolhem os corpos nus
Qual ventre materno da criação
Paraíso perdido para anjos caídos
Que na descida íngreme da vida
Se consolam nos silêncios guardados
Onde ouvem o palpitar do coração
Nesse instante de quase perfeição
Poder-se-ia deixar o rio levar a vida
E ser feliz


sábado, 11 de julho de 2020

Crónica de Maus Costumes 190


O Reino Maravilhoso

                Estava previsto outro assunto, porém são estes imprevistos e inspirações momentâneas de que é feita a vida e que a tornam mais saborosa e convidativa.
            Em relação ao exame de Português, já muito rio de tinta se gastou, já tudo ou quase tudo foi dito. Pelo que li, o de Filosofia, disciplina que acarinho, também seguiu a mesma linha. Faltou-me verificar o de História. Resumindo: prevalência da técnica e do imediatismo sobre a análise, a reflexão e a escrita (entenda-se produção de pensamento próprio). Escrever bem é sinónimo de pensar bem, arte em desuso, menosprezada pela atualidade da velocidade galopante, sem compadecimento pelo tempo e pela reflexão.
Hoje, talvez pelo mergulho em águas frescas o suficiente, mas não gélidas, em terras transmontanas que sempre me apaixonam, egoisticamente esqueci as questões laborais e os assuntos que deveriam ser de vital importância para o futuro de Portugal, já que falamos da formação de cidadãos. Porém, o reino maravilhoso do meu amado Torga, que trazia no sangue a mesma dureza das fragas que o pariram, não permitiu. Entranhou-se-me o odor das pálidas rosas amarelas, já bem abertas e da ramada dos quivis, a verdura das frescas serras de Camões e no fundo do vale, qual segredo por revelar: o rio! O Corgo que sinto como o rio da minha aldeia e que não é o rio da minha aldeia, mas poderia ser. Corgo significa precisamente pequena linha de água que serpenteia por entre montes e serras. O meu primeiro contacto com o rio deu-se quando era jovem universitária. Tinha o privilégio de adormecer com o seu marulhar (quase enlouqueci na primeira semana), longe de imaginar que a sua corrente se haveria de inscrever na minha memória. Há certos detalhes que valorizamos apenas mais tarde… Hoje, gostaria bem de ter uma cabana, como sugeriu o meu amigo Altério, juntinho do rio, para lhe ouvir os segredos que me quisesse contar. Foram variadas vezes que lhe senti o paladar urbano no grupo de amigos, durante o mês de junho, o mês das frequências. Um rio citadino e ajardinado, mais largo, palco de diversão de amigos. Hoje, o Corgo, para mim, é linha mais estreita e inexplorada, desconhecido de muitos e um segredo por desvendar. Da aldeia pacata, sob o calor abrasador de julho, é impossível adivinhá-lo. Como as melhores vitórias são as que custam sangue, suor e lágrimas, também a pérola que engradece a serra se esconde nos seus vales. Exige resiliência aos que querem alcançá-la. Trilhos por carreiros íngremes, os mesmos que foram pisados por Camilo Castelo Branco, nos tempos da sua feliz juventude, longe das gargalhadas da criançada de tempos idos, no calor do verão… Hoje, o Corgo quase semiesquecido, quase triste e só, permite um silêncio revelador entrecortado pelo claro riso alegre das águas e o trautear melódico dos pássaros. Com sorte, a visita cortês de uma lontra e as fragas escorregadias e lodosas pela falta de uso. Quem cá vive desconhece a grandeza do pequeno curso de água. Habituados desde sempre à sua existência e sabendo da sua fidelidade (por lá permanecerá, longínquo e de difícil acesso) já pouco o visitam. Apesar de não ser transmontana, o facto de ter passado os melhores anos da juventude em terras torguianas, traz o aprisionamento da alma e a saudade incrustada que, de vez em quando, os poros exalam. Tal como Torga se sentia rejuvenescido a cada vinda ao seu reino e a cada batida de monte que a caça lhe proporcionava, também eu me reencontro e equilibro a cada visita ao Corgo. Hoje, com direito a mergulho nas águas frescas e a descanso no lajedo aquecido pelo sol. Assim, se escusa a toalha e se sente o corpo estendido ao sol, deitado na dura realidade e então, nesse preciso momento, há um bocadinho de eternidade que se resgata e se traz no bolso. Mesmo se depois o cenário idílico é fustigado pela chuva de verão, fruto de uma intensa trovoada. Mistério do reino de além Marão, que amanhã acordará com sol, espantado com a zanga das nuvens que se fizeram ouvir com estrondo!
Nina M.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Memória poética

Em busca da memória poética
Das coisas e das palavras
Perfeitamente arrumadas
Nos seus lugares precisos
Intactos sem pó nem sujidade
Redescubro refaço pedaços 
Enxugo a alma por vezes esfregão
Outras sol poente de verão
E na memória poética de olfatos
De sabores e de suspiros
Aperfeiçoo na viagem os sentidos
Deambulo perdida no tempo
Presente passado futuro
Entrelaçados sem rumo certo
Vislumbro o divino transcendente
Circunstância de alma peregrina
Que caminha ao longo do deserto
Que erra a cada virar de esquina


sábado, 4 de julho de 2020

Crónica de Maus Costumes 189


Os Enganos de João Miguel Tavares

             Durante esta semana, uma rede social entrou em ebulição devido ao artigo de opinião de João Miguel Tavares. Muitos terão lido, não gostaram e mostraram a insatisfação, nalguns casos de forma incorreta, o que me deixa triste. Somos uma classe de educadores e devemos primar pelo exemplo e, por mais que o nervoso miudinho ou ira se faça sentir, temos obrigação de manter a compostura e educação. Ao não fazê-lo, damos razão a certas vozes que mais nada pretendem do que enxovalhar a classe. Lembro ainda que o artigo a que me refiro é de opinião e num país democrático todos têm direito a ela. Como dizia Humberto Eco, as redes sociais deram voz a quem não mereceria ser ouvido, mas é o preço a pagar pela liberdade e que seja bem-vindo!
                Deixar claro que até nem antipatizo com o João Miguel, apesar de muitas vezes divergir das suas opiniões. Efeito do Governo Sombra talvez. No entanto, João Miguel Tavares, deixe que quem conhece um pouco melhor a escola por dentro o possa fazer refletir sobre algumas questões…
            No seu artigo, começa por questionar a decisão do Governo em protelar a reabertura plena (assim o entendi) das escolas a 18 de maio, tendo impedido, por exemplo, a sua filha de frequentar a escola para aprender, mas agora poder frequentar o estabelecimento de ensino, no que diz respeito à componente de apoio à família, uma vez que a criança sentiu falta da socialização. Não me custa compreender que a menina tenha sofrido com a ausência e até considero bom sinal. Significa que a aluna está integrada, gosta dos amiguinhos e, certamente, sente-se apoiada e segura na sua escola. Parece-me que o estabelecimento público está a cumprir bem o seu papel. Depois, como compreenderá, essa foi uma decisão política em conjunto com as autoridades da saúde, não passou nem pela escola nem pelos seus professores, já que estes regressaram às escolas, nessa data, para lecionar os 11º e 12º anos, nas disciplinas de exame. Confesso que contestei a medida com receio que pudesse perigar a realização dos exames e penalizar os miúdos cuja média para entrada nas universidades deles depende. Por outro lado, estes eram os alunos que mais facilmente se adaptaram ao Ensino à Distância (E@D) e com quem as atividades correram melhor. Quem luta para entrar na universidade, sabe que tem de trabalhar. Julgo que o Governo terá optado por esta solução em prol de um desconfinamento mais lento, com menos alunos nas escolas e com cautela, porque a escola envolve uma série de questões que ultrapassam as salas de aula: gestão de espaços, transportes públicos, cantina, bar, etc… Poderá dizer-me que é questionável, como é óbvio. Foi essencialmente uma decisão política, que seria sempre criticável, independentemente dos anos abrangidos. Na minha perspetiva, houve alguma cautela e ainda bem, por exemplo, a escola pública que a minha filha frequenta acabou de ser encerrada por motivos de novo surto da covid-19. Ela não voltou à escola nem voltará antes de setembro.
            Relativamente ao E@D, o João M. Tavares afirma que o acompanhamento dado pelas escolas privadas aos seus alunos foi melhor do que o das escolas públicas. Do que eu tenho conhecimento, nas escolas privadas todas as aulas eram síncronas e na pública, segundo orientações ministeriais, cada disciplina não deveria ultrapassar o terço da carga horária semanal da disciplina em questão. Como vê, não foram decisões dos professores, mas ordens superiores, que quando chegam, são para se cumprir. Porém, como mãe e como professora, deixe que lhe diga que ainda bem que o Ministério teve esse bom senso! Bato-me constantemente e condiciono os meus filhos, principalmente em horário escolar, no uso dos ecrãs e do mundo digital e, agora, a própria escola, iria exigir que eles passassem dias inteiros sentados em frente de um computador para terem todas as aulas em formato síncrono?! Bem chegou eu ter de o fazer, com as múltiplas turmas que tinha a meu cargo e com todos os outros procedimentos a que um professor está obrigado! É esse “bom funcionamento” a que o João Miguel se está a referir! Felizmente, os meus tinham rua onde podiam vir apanhar ar, os dois irmãos e os primos vizinhos, andar de bicicleta ou de skate ou conversar! As grandes vantagens da província! Não o poderiam fazer estando um dia inteiro em frente de um ecrã! Resultado: os meus filhos foram absolutamente felizes e não sentiram saudades da escola. Acrescento ainda que os primeiros dias, de verdadeira loucura, porque tinha que estar em aula síncrona e orientar em simultâneo os meus filhos, revelaram-se positivos: foram obrigados a desenvolver a autonomia, porque a mãe não podia estar sempre a auxiliar. Aprenderam a organizar-se sem eu ter que relembrar vinte vezes a mesma coisa e sobretudo o mais velho, na altura com doze anos, aprendeu a fazer algo muito importante: estudo autónomo, a que se recusava constantemente, porque a muleta da mãe era confortável. Cresceram e tornaram-se mais responsáveis. Obviamente, sob o olhar minimamente atento dos progenitores. Para além deste fator, conte também com a diferença do ambiente familiar e das condições da maioria dos meninos que frequenta o privado em relação à escola pública que é de todos e para todos, sem exclusão. Consegue imaginar o esforço que foi para as escolas em colaboração com as autarquias para não haver alunos sem meios de acesso às plataformas digitais?! Não foi o Governo. Foram as escolas e as suas autarquias. Quando as instruções sobre o que fazer chegaram às escolas, já havia levantamento feito das necessidades e já se tinham gizado estratégias! Julga que as escolas privadas têm estes problemas?
            Apraz-me, porém, pressentir que o João Miguel quer uma escola pública de qualidade, pois tem lá os filhos, assim como eu, que também lá tenho os meus e também lá sou professora. Como tal, devo alertar que sem ovos não se fazem omeletas! O desinvestimento na escola pública tem sido vergonhoso desde uns anos a esta parte, mas tudo se continua a exigir a quem apesar de todas as circunstâncias nunca vira a cara à luta!
O João Miguel fala da “perda de um sentido de dever cívico por parte de muitos professores, após décadas de frustração e de confronto com sucessivos governos”. Deixe que lhe diga que essas palavras são profundamente injustas para uma classe que mostrou ao país saber responder prontamente. Não se engane. Mais do que os professores, foram os alunos que evidenciaram mais dificuldade de adaptação às plataformas digitais. Eles, sim, revelam grande iliteracia digital, uma vez que sabem tudo sobre jogos, mas depois, pede-se um trabalho e nem formatado aparece! Em quinze dias, os professores estavam a usar as plataformas e antes disso, contactaram os alunos por Messenger, whatsapp, e-mail, recorreram a todos os meios que tinham ao seu dispor, pagos pelo seu bolso, para não deixarem os alunos abandonados à sua sorte! Fecharam os olhos à sua privacidade e forneceram o contacto pessoal a todos os seus alunos! Talvez o João Miguel não saiba, mas isso pode trazer-nos dissabores! Que fique bem claro: Não tínhamos que o fazer, mas fizemo-lo a bem dos nossos alunos. Já agora, digo-lhe mais, é precisamente pelo facto de o Ministério saber do nosso cumprimento no que ao dever cívico diz respeito, que tem brincado à fartazana com esta classe! O Governo mereceria outra atuação… Os nossos alunos, nunca!
Se a classe docente está envelhecida, de quem é a responsabilidade?! Se descobrir uma fórmula que trave o envelhecimento dos professores, eu ficaria encantada! Sim. Há professores que pertencem a grupos de risco e certamente não irão colocar-se em perigo! Era o que mais haveria de faltar! Damos mais do que este país merece em prol dos alunos, mas pedir-nos a vida também já é exagero! E não se preocupe com a questão das baixas, pois há quem de facto delas necessite e não as tenha! Mesmo. Pode acreditar nisto. Por outro lado, talvez seja uma oportunidade para professores mais jovens.
Resta-me concluir que a grande maioria dos professores deseja voltar ao ensino presencial. Eu já regressei em maio e oxalá em setembro o possamos fazer! É na sala de aula, em contacto direto com os alunos, que a escola faz sentido e ganha sabor, mas que isso não ponha em causa a saúde de um país!
Reconheço que o João Miguel disse “muitos professores” e não “todos”. Há-os mauzinhos, assim como jornalistas, engenheiros, carpinteiros, padeiros ou médicos… Mas desta vez, João Miguel Tavares, essas palavras são de uma injustiça atroz!
Convido-o a passar uma semana na minha sala de aula e na minha sala de professores (julgo que a direção da minha escola não se oporia), talvez percebesse melhor o bom trabalho que os professores da escola pública desenvolvem com os seus alunos e que os fraquinhos (que também existem) serão uma minoria e que não podem pôr em causa uma classe inteira! Não sei a má experiência pela qual passou, mas sei que não nos representa. Se tudo correu bem? Não, obviamente. Há reflexões a fazer e aspetos a melhorar, mas dadas as circunstâncias, fez-se o melhor possível e, na maioria dos casos, isso foi muito e fez toda a diferença!

Nina M.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Recusa

Não pisarei os teus sonhos
Os que me depões sob os pés
Delicados e pequenos
Outra hora já engelhados de velhos
Prefiro os pontos dourados do céu
Estrelas fulgentes e inalcançáveis
Longínquas como as almas peregrinas
E só talvez quando Hades 
Ordenar que me busquem
E Perséfone me convidar e puser a mesa
Lá, no submundo, eu os possa recordar
Os sonhos... Imaculados e puros 
Sem sombra que os corrompa
E lembrarei os astros que com delicadeza
Me oferecias para me ornar
E no submundo, já morta, viverei