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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Libertem-se-me as palavras

Libertem-se-me as palavras
Desfaçam-se no amor que te sinto
E te envolvam a alma
E neste pouco que te oferto
Sou toda eu
E tens-me por inteiro
Mas se vier o dia negro e triste
Da última palavra não dita
Do terno e doce olhar finito
Se os músculos se tumeficarem 
E enegrecerem como a alma
Antes da partida  
Do virar de costas absoluto
Deixar-te-ei ir
Sem palavra que te impeça
Sem que a dor que me trespassa a alma
Se torne visível
Nesse brevíssimo momento indefinível
De rigidez tortuosa e belígera
Ainda assim terei a mesma alma quente e doce
Sob a capa de gelo que se cristalizou no instante
Ainda serei eu e as palavras não ditas
Recolhidas em mim
Tesouro não desperdiçado!

sábado, 16 de novembro de 2019

Narciso

- O que vai ser de nós?
Pergunta o belo Narciso
De borco sobre a água
A contemplar a sua imagem
Só assim se sacia de amor
Satisfaz a paixão que o consome
Por momentos
A distância e o afago impossível 
Quase parecem reais
- O que vai ser nós?
Se não posso sair da fonte
Se hora que te não vejo
Mutila a minha alma?
Se amor é o meu reflexo
Tenha garras para me extirpar
Possa sair de meu corpo
Ser outra carne e a mim contemplar
Ser outra vida e a mim abraçar
Ah! Estás louco, meu Narciso!
Quis gritar Eco, num aviso:
No dia em que em ti te fundires
Será o dia da escuridão brutal
Definharão o corpo e a alma
Não sabes que o amor não brota 
Se é unilateral?

Crónica de Maus Costumes 156


Leituras e conversas

Há dias nefastos para a escrita. Hoje é um deles. As ideias pairam e sobrevoam, mas nenhuma se concretiza de forma acertada e consistente e, assim, a minha alma vagueia dispersa e móbil, sem se consubstanciar em matéria.
Quando tal acontece, talvez seja sinal de ser preferível o silêncio, porém, a filhota vai atirando para o ar: “ó mamã, escreve sobre nós!” E as palavras teimam em dançar à minha volta e fugir-me. Não me abraçam e fazem-se tão difíceis quanto uma mulher caprichosa.
Neste impasse e na incerteza do que possa dizer, opto pelo seguro: falar de livros e do que eles nos proporcionam e talvez assim as ideias comecem a surgir. Enquanto ajudava o meu mais velho a preparar a leitura de O Cavaleiro da Dinamarca, sou surpreendida pela sua interrogação. O meu filho é capaz de fazer as observações mais brilhantes, mas também as mais idiotas, em pequenos momentos em que parece ausentar-se do mundo e de nós. O pai estrebucha por tudo quanto é lado e suspira, acrescentando que bastava uma cá em casa dessa espécie. Calo-me, porque há coisas do meu filho que são tão minhas que seria falta de pudor desmentir. Exceto a idiotice, porque essa fica toda com os homens como todas as mulheres concordarão. Depois de aprender quem foi Dante Alighieri e da fantástica viagem que este fez à morte ainda em vida, perguntou-me:
- Por que motivo estava escrito à entrada do inferno: “Vós que entrais abandonai toda a esperança?”
Respondi que era o aviso de que as almas condenadas ao sofrimento eterno não poderiam ter esperança de ter dias sem dor.
- E quem vai para lá?
- Os que tiveram uma conduta deplorável e fizeram muito mal a outras pessoas.
- Mas Deus não perdoa todos?
- Sim, mas é preciso que se tenham arrependido verdadeiramente.
- Ah! Achas que o Bin Laden está no inferno?
- A haver inferno, naturalmente, será o seu lugar. – Respondi.
Ficou admirado com o purgatório e as almas que por lá passam e voltou a questionar:
- E para aqui quem é que vai?
- Aqueles que erram, mas cujas ações não são assim tão prejudiciais.
- Para pessoas como eu e tu? Insistiu.
- Talvez. Respondi.
- Mas podem chegar ao céu…
- Podem.
- Olha, ó mãe, e Dante será que foi para o paraíso?
- Com certeza. Dante era poeta e esses têm o paraíso ganho. Sentenciei. Esperava algo de volta, mas nada disse. Parece-me ter concordado com a ideia.
Sorri de satisfação, porque o livro tinha cumprido a sua missão. Inquietou o espírito do meu filho de doze anos que se diz ateu e que gosta pouco de ler, mas confessou ter gostado da história.
Querendo provar-lhe as vantagens da leitura disse-lhe não haver motivo para não ler, pois como verificou até tinha gostado e deveria fazê-lo mais vezes.
- Ó mãe, eu gostei da história, mas não gostei de a ler…
Quase como quem diz que se lha tivesse contado, continuaria a gostar dela e tê-lo-ia poupado à tarefa!
Ainda não compreendes, meu filho, mas se ta tivesse contado, talvez não tivesses tido o tempo necessário para te inquietares. Talvez um dia consigas compreender a importância dos livros e os universos que nos abrem e o que hoje é sacrifício, amanhã, será prazer imenso inadiável. Necessidade básica de sobrevivência e a garantia de fuga à imbecilidade!
Como tua mãe posso conceber que sejas um pouco distraído a momentos, mas não um adulto profundamente estúpido. Sabes, a estupidez é deveras insuportável e a melhor prevenção para tal dano ainda é a leitura.

Nina M.





















quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O Eco de Narciso

Eis no silêncio abrupto
A voz do vento que passa
Traz consigo o eco distante
Por ver Narciso prostrado
Definha, por si mesmo encantado.
A sua imagem não alcança
Revolve as águas com fúria
Por entre os delicados e alvos dedos
Escorre líquida a desventura
A sua imagem é a guardiã dos seus segredos
E  de sua alma inconformada
Ama-se o filho de Liríope
Atónito, mostra por si encanto
Sabe bem que não é míope!
Põe a amorosa Eco à margem
Que repete os seus ais
Enquanto revolve a água turva
Ao seu toque fugidia
Deram-lhe os deuses esta ironia
De ser sua a voz que repudia!
Por desamar todo aquele que o amou
De dura ordem se fez vaticínio
Pobre Narciso, a si mesmo apenas desejou
Nunca ninguém lhe causou fascínio!
Merecerá tal fado quem procura seu igual?
Por sua exigência foi castigado
Transformado em simples mortal!
Renasce em flor de mesmo nome
Que se curva na fonte para o ver
De si conserva a beleza
A inocência de seu igual
A brancura ou o ouro te contemplam
Eternizam-te em eterno ritual!


sábado, 9 de novembro de 2019

Crónica de Maus Costumes 155


A agonia da escolha

A escolha faz parte da vida e nem sempre é fácil suportar o caminho escolhido, porque o mundo é perigoso, injusto e nem sempre é bonito. Muitas escolhas são também um ato exemplar de coragem e os exemplos são muitos. São eles que nos permitem continuar a ter esperança na humanidade.
Nomes como Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela, Madre Teresa de Calcutá são alguns dos que se destacam pela escolha que fizeram e que exigiu, certamente, uma coragem gigantesca para ultrapassar barreiras. Nada os impediu e considero-os verdadeiramente admiráveis. Seres dignos de profundo respeito, porque tiveram a grandeza de se despirem de si em favor do bem comum. Quando penso neles, a consciência da minha pequenez e da minha insignificância torna-se nítida. Obviamente, nem todos têm esta capacidade, mas o facto de serem homens de carne e osso, atacáveis na sua humanidade, pelo que não estão isentos de mácula, mas donos de um ideal capaz de romper fronteiras e de fazer verdadeiramente a diferença é assinalável. Sei que há muitos outros seres anónimos que diariamente dão de si para tornar a vida de alguém melhor. Essa espécie algo rara, que assume com coragem essa missão de fazer a diferença, permite que eu não perca a fé na humanidade, apesar do enorme pessimismo. Nos tempos que correm, acreditar no Homem é mais um ato de fé do que de inteligência, no entanto, há sempre alguém que se supera.
O tema horripilante da semana comprova a desumanidade galopante. Uma mãe abandona o neófito à morte num caixote do lixo. Um arrepio percorre-me o corpo. Sou mãe! Como não me horrorizar?! Não conheço os contornos da história, desconheço as dificuldades ou situação da jovem mãe. Não me atrevo a tecer considerações sobre os motivos que a terão levado a tal comportamento nem quero tecer uma condenação em praça pública. Será provavelmente alguém a precisar de ajuda, porém, uma coisa a minha consciência me diz: não se abandona um ser como se fosse lixo, talvez ainda menos acondicionado do que as sobras do jantar. Posso compreender a decisão de não querer o bebé. Criar um filho é um projeto de vida. Independentemente da idade, ele será sempre fonte de preocupação para os progenitores. Será talvez a grande desvantagem da maternidade. Como me disse uma colega que na altura já era mãe, quando eu tinha apenas os meus 25 anos (a maternidade, para mim, era uma ideia longínqua ainda): “Todos falam nos benefícios da maternidade, mas ninguém alerta para os prejuízos que também existem.” Na época, terei julgado a crueza das palavras, porém, verdadeiras. Ser mãe não é fácil e não comporta só aspetos positivos. É um amor imenso que exige cuidado contínuo e abnegação. Essa é a verdade. O amor dedicado é incondicional, mas exigente. Muitas vezes suga todas as nossas energias e obriga-nos a esquecermo-nos de quem somos em benefício dos filhos. É amor, mas nem sempre é fácil. A sociedade impõe que a mulher se realize no projeto da maternidade, todavia, nem sempre é assim. Desta forma, a mulher tem o direito de não querer ser mãe. Consigo entender perfeitamente a opção. O que me causa náuseas no caso referido nem é o abandono do bebé em si. Se não o quer, é melhor que não o tenha do que o negligencie. Porém, forma como se descarta um ser acabado de romper das entranhas, absolutamente desprotegido e se entrega  à morte como se fosse lixo, é demasiado cruel. Foi uma questão de escolha e esta nem sempre é fácil, no entanto, há opções mais aceitáveis do que outras. Haveria certamente outros lugares onde deixar a criança: hospital, igreja, à porta de casa de alguém, etc… Não foi a melhor escolha nem a mais humana e o problema da decisão é o facto de termos de viver com as consequências que dela advêm.
Ainda assim, talvez seja preferível viver com as escolhas que fazemos do que com as que os outros nos possam imputar. Esta mãe terá de viver o resto da sua vida com a sua.
Nina M.





sábado, 2 de novembro de 2019

Definição

Sou poeta
Bebo das palavras e elas são o meu cálice
Cristalinas, opacas e obscuras
Como a alma de quem as pensa e as projeta
Ora se abrem e beijam e abraçam
Ora se fecham e isolam e imolam
O poeta não precisa da compreensão alheia
De olhares suaves e sorrisos complacentes
Apenas do silêncio profundo
Para nele poder ouvir os sons do mundo
E é deles de que enche a alma azedada
Filha do demónio em dia de trovoada
O canto do poeta nem sempre é belo e límpido
Às vezes é o canto triste do cisne
Sabe a veneno letal que traz a morte
Mas não é para Sócrates o canto mais belo?
O do cisne que sabe o seu destino e o aceita placidamente?
Canta, belo cisne, e enfeita a terra
Fecunda os ouvidos do Homem
Prepara-os para uma beleza maior
E depois da tarefa feita
Podes abrir o teu peito à maleita
E sucumbir com prazer e dor
Porque ninguém é tão sonhador

Crónica de Maus Costumes 154


Os desmandos da lucidez ou da loucura…

                As notícias sobre a (des)educação têm feito estragos durante esta semana, nas redes sociais. O possível fim das retenções até ao final do terceiro ciclo tem indignado muitos colegas. Neste momento, a mim, já só me causa indiferença. Já senti repulsa visceral em aceitar tal ideia. Aliás, olho bem lá para trás, no início da minha carreira, e quase me apetece pedir desculpa aos ex-alunos pelo nível de exigência imputado!
Meus caros, não o faço porque, antes de mais, não tenho como chegar até vós. Esta modernidade do facebook é relativamente recente e eu já conto com uns modestos 20 anos de serviço docente, pelo que nenhum de vós figura como meu amigo facebookiano. Depois, as coisas são o que são e naquele tempo era assim. No entanto, dá-me uma enorme vontade de rir porque a minha mãe, que era professora primária (no seu tempo era esta a designação) já deitava as mãos à cabeça por ver os textos fabulosos, em português escorreito, dos meus alunos. Não acreditava! Nenhuma professora que se dignasse deixaria um aluno transitar com tamanhas lacunas a Português! Há vinte anos era isto. De lá para cá não sinto grandes melhorias, apesar da enorme evolução que querem fazer crer…
Na verdade, caros colegas, vejamos… No ano transato retiveram muitos alunos?! Eu julgo que tive a maior taxa de sucesso de sempre! Irei repetir-vos o que me disseram numa pseudoformação, quando tinha apenas os meus 25 anitos e ainda tinha sonhos grandiosos: “chumbar um aluno não resolve o problema na essência. Desmotiva-o e não faz com que ele aprenda o que não sabe, para além de que custa um balúrdio ao país!” Estávamos no ano letivo de 2000/2001. Eu sorria e atrevidota respondi-lhe que viesse para a minha aula de sétimo ano ensinar uma menina com Necessidades Educativas Especiais a ler, porque eu não era capaz de o fazer nem tinha formação para tal, tendo também a meu cargo mais dezanove alunos, nessa turma. Julgo que o senhor cujo nome não me lembro não terá ficado com boa recordação minha. Não faz mal, porque foi recíproco. Porém, hoje, reconheço-lhe razão, em parte. Obviamente, a punição do chumbo por si só não resolve a questão, porque efetivamente os alunos não melhoram as aprendizagens apenas com a punição. Nenhum professor gosta de reter alunos, olhar para uma pauta e ver insucesso, porém, doem-lhes as entranhas e o brio profissional quando têm de os deixar progredir sem as aprendizagens efetuadas. Depois, em torno destas questões, surge uma panóplia de estudos a aconselhar os melhores placebos.
Há pilares que são fundamentais para podermos melhorar as aprendizagens: disciplina na sala de aula, consolidação, aplicação e verificação das aprendizagens de forma sistemática, apoio efetivo para os alunos que apresentam lacunas e exigência parental no que concerne os resultados escolares. Sem isto, podem chamar-lhe o que quiserem, porque continuaremos a falsear e a branquear resultados.
Assim sendo, quanto a mim, se o Ministério que nos tutela decidir pôr termo às retenções até ao final do 9º, desde que se mantenham os níveis que os discentes verdadeiramente merecem na pauta, para que os seus progenitores saibam que em alguns casos se trata de uma passagem meramente administrativa, esteja à vontade. É mais honesto do que a horrível legislação que está em vigor e que não impõe qualquer limite de níveis inferiores a três para a progressão do aluno, deixando a decisão para o Conselho de Turma. A maioria das escolas, através do Conselho Pedagógico, estabeleceu critérios internos, mas que não se sobrepõem à lei, o que na prática significa que se o Conselho de Turma quiser invocar o espírito da lei e usar de futurologia, dizendo que as dificuldades do aluno não o impedem de atingir as competências previstas para o final de ciclo, pode transitá-lo, mesmo que este apresente uma quantidade avassaladora de níveis inferiores a três. O que se faz para evitar cair no descrédito? Os níveis inferiores a três não aparecem na pauta, mas todos nós sabemos como são fabricados e se operam verdadeiros milagres de última hora, com votações de notas, agastamentos e lamúrias à mistura.
Desta forma, se as coisas forem transparentes e os Encarregados de Educação alertados para o facto de que o menino transitará sempre independentemente das notas até ao nono, mas que a avaliação justa será a que consta da pauta, tudo certo, para mim. Se o Encarregado de Educação considerar que as bases adquiridas no básico não são importantes para depois fazerem o Ensino Secundário com aproveitamento e deixar o menino andar à sua vontade, então, boa sorte, porque eu já estou cansadinha de que transformem os professores em tapetes onde qualquer um limpa os pés. Depois, só não se admirem por verem as assimetrias sociais cada vez mais intensificadas. Estas só poderão ser resolvidas pela educação na escola pública, mas se esta se preocupa mais com falsas taxas de sucesso e números bonitos para a OCDE, então os mesmos das classes mais favorecidas continuarão a serem os melhores e os que não têm em casa gente capaz, sempre correrão atrás do prejuízo, porém, na maioria das vezes, não o conseguem recuperar… Começo a ficar verdadeiramente fartinha destas discussões inócuas. Será a velhice, talvez…
Seria maquiavélico, mas possivelmente a melhor forma de perpetuar as hierarquias sociais existentes será perpetuar a ignorância. Quem ainda acredita nas boas intenções dos nossos políticos?

Nina M.