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quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Ciúme

Se é por ciúme, amor,
O manifesto desagrado
saibas que quando surge
É amor que em si urge
E se sente relegado
Se não é racional
É infundado tal sentir
Insegurança tão letal
Sem motivo para existir
Mas se existe a razão
Que a ciumeira desperta
Leia-se bem os sinais
Dessa narrativa incerta
Se eles forem concretos 
Verdades do coração
Também não valerá a pena
Sofrer por quimera, ilusão
Ah! Mas se forem deturpados
Pela cegueira do ser
Então, amor, os teus cuidados
Só te farão aborrecer...





Sob o olhar do carrasco

Sob o olhar do carrasco
Com a foice que a anuncia
Vem a morte por arrasto
Nos seus olhos principia
Chega grave, solene e rígida
A alma exige levar
Mas quer fugir essa vida
Com vida por completar
Na colheita agreste e precoce
Sem remorso nem solução
Sobejam escombros de gente
Em pedaços desfeito, o coração
Não há tempo que o cure
Ou saiba limar a saudade
Resta só a inquietude
Não consola a piedade
Quando uma vida se perde
Se apaga na iniquidade
Nem a bondade do mundo serve
Falta a humana tranquilidade

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Lampião

No imóvel silêncio da rua
Um clarão triste e só
Abandonado à sorte que é sua
Pede que dele tenham dó
Numa prece muda e crua
Para que se desfaça o nó
São lágrimas os feixes de luz
Encandeiam o transeunte que passa
Terá histórias para contar
Memórias da sua desgraça...
Desnudos ficam os que ilumina
Refugiam-se na sombra escura
Guardam segredos insondáveis
Recolhem à concha pura
Que diz o vento que te fustiga,
Lampião da boa hora?
Anuncia tristeza contida
Ou alegria vida fora?
Isolado em solidão
É a sua triste ventura
Houvesse quem lhe desse a mão
Não abandona a sua fé
Ilumina quem o procura!

sábado, 25 de janeiro de 2020

Majestático

Caminha majestosa
Como quem pisa pétalas
E se sabe amada
Do amor impoluto 
Advém a sua força 
Rejeita o trivial
Nunca a mulher de arte
Se subjuga ao mortal
Nunca a mulher de fogo
Poderá ser subserviente
Sempre terá asas coloridas
Com que desenhará no céu azul
O arco-íris das almas perdidas
Caminha majestosa e sem pressa
Como quem sabe o caminho
De retorno ao lar do amor
Sem pressa. Devagarinho.




Crónica de Maus Costumes 165


Preocupação pelo alheio…

                As redes sociais têm as suas vantagens. Reconhece-se a rapidez com que se comunica, a facilidade de encontrar aqueles a quem perdemos o rasto há muito tempo, o acesso à informação, ainda que seja necessário saber separar o trigo do joio… Enfim, reconhecidos benefícios, mas também traz consigo o que o ser humano tem de pior: intolerância, pequenas invejas, má-educação, maledicência e interferência na esfera privada de outros.
            Já me deparei com todas estas situações. Basta abrir o separador dos comentários para perceber que mais rapidamente se destila fel e veneno do que bonomia. Entristece-me que assim seja, porque desacredita o ser humano.
Hoje fiquei estarrecida. Ao que parece, a Judite de Sousa, a jornalista, terá feito uma publicação num cenário belíssimo e alvo, coberto pela neve. No centro da foto, queimava uma pequena vela, a chama do amor. Seria uma forma de continuar a dialogar com o seu único filho que faleceu há alguns anos. A Judite foi vilipendiada e outro senhor da televisão que nem aprecio muito, mas com razão, saiu em sua defesa. Interrogo-me sobre o motivo que espoleta a crueldade vil! A Judite foi acusada de usar o filho morto para se autopromover! Como se ela não fosse já uma figura pública suficientemente conhecida. Criticada, porque o filho não faleceu nas redes sociais, logo não tinha que anunciar ao mundo o seu desgosto. Ofendida, porque pretende atrair atenções e fazer com que os portugueses sintam pena de si! Simplesmente petrifiquei! Nem a dor incurável de uma mãe que perdeu o filho e que lhe sente a ausência diariamente escapa aos ataques torpes e anónimos! As pessoas estão identificadas, pensarão muitos. Pois sim. Atrás de um aparelho. Muitos que destilam esse fel não seriam capazes de o fazer em presença. Trata-se, portanto, de vilania cobarde e maldade pura.
Para outros, o motivo da crítica era a vela. Não seria necessária. É um mero símbolo desprezível e a verdadeira espiritualidade dispensa estas atuações e a sua publicitação nas redes sociais…
Eu, na minha humilde ignorância, interrogo: E que direito temos de violar a privacidade de alguém e de expressar juízos de valor sobre uma vida que não nos diz respeito nem nos causa transtorno?!
O que sabem esses “voyeurs” da dor desta mãe? O que sabem eles das verdadeiras razões que a levaram a fazer a publicação? O que lhes interessa se a Judite é crente ou descrente ou o diabo?! Com que direito querem interferir na esfera privada desta mulher devido a interpretações pessoais e falaciosas acerca do comportamento da comunicadora? Estaria ela, porventura, obrigada a seguir os preceitos e as noções de comportamento que cada cidadão entenda ser adequado?!
Talvez haja quem pense que ao registar esse momento de intimidade, a jornalista abriu portas ao comentário, no entanto, ela é livre de fazer o que quiser e como quiser e não deve satisfações ao mundo. Quando muito poderia dever ao filho e quanto ela gostaria de lhas poder dar!
Os juízos rápidos que se fazem sem conhecer as motivações dos outros, sem saber as circunstâncias e os verdadeiros factos originam, muitas vezes, condenações sumárias e injustas. O mais curioso é a vontade felina de ataque à pessoa sem que se tenha rigorosamente nada a ver com a sua vida!
 Sabes, Judite, as pequenas almas triviais nunca compreenderão, mesmo que lho quisesses explicar (mas, por favor, não o faças, porque não diz respeito a mais ninguém senão a ti), porque já iniciaram o ataque com vontade explícita de ferir e de serem maledicentes e quando a vontade está inquinada “a priori”, os espíritos não se predispõem a ouvir. No entanto, como dita o aforismo, “a palavras loucas ouvidos moucos”! Os ataques infames e cobardes à pessoa são desprezíveis. Não criticaram a Judite jornalista por ter sido má profissional, por ter prejudicado os cidadãos ou colegas ou por qualquer ato criminal. Não. As palavras vis têm origem na mesquinhez do ser humano e quem sabe alguma inveja, por isso, Judite, tais comentários sugerem muito mais sobre quem os pronunciou do que sobre ti.
Continua a fazer como entenderes. Acende as velas que queiras ao teu filho. Que a chama do círio te possa trazer algum conforto e paz à tua alma mutilada. Sei que agora, tal como a Halla, personagem de “Desumanização”, de Valter Hugo Mãe, és a “menos morta” e o teu coração “um trapo com que se limpa o chão” (metáforas que nunca irei esquecer). Quem não sabe respeitar isto nunca será gente!
Nina M.






segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Abandono

Porque tardei? Queres saber?
Demoraste tanto a recolher-te
Abandonaste a concha do silêncio
Deixaste-a vazia
Deveria transbordar
Porque é no dilúvio do silêncio 
que se ouve a imensidão do mar
Surge então nítida a voz
Verdade de ti 
Escondida do alheio
A perfeita intimidade onde te deitas
O desejo ímpio onde te reconheces
Escuta-te e vê-te
Longe do ruído dos dias
Só assim abres o teu peito
Ao acolhimento absoluto
Da palavra de que é feita a poesia

sábado, 18 de janeiro de 2020

Crónica de Maus Costumes 164


Os artistas e a lei do mercado

            No outro dia ouvia a artista Zélia Duncan a recitar a poesia “Vida em Branco”e considerei tão interessante e verdadeiro que partilhei, nesta mesma rede social.
            O poema é uma provocação a quem julga que o artista nada faz e ganha muito. Reproduzo-o na íntegra, por ser tão bom.

Então me devolve os momentos bons./ Os versos roubados de nós./As cores do seu caminho./ Arranca o rádio do seu carro, destrói a caixa de som./ Joga fora os instrumentos e todos aqueles quadros, deixa as paredes em branco, assim como a sua cabeça./Seu cérebro cimento, silêncio, cheio de ódio./ Armas para dormir, nenhuma canção de ninar, e suas crianças em guarda, esperando a hora incerta para mandar ou receber rajadas/ Você não precisa de artistas?/ Então fecha os olhos, mora no breu./ Esquece o que a arte te deu, finge que não te deu nada./ Nenhum som, nenhuma cor, nenhuma flor na sua blusa./ Nem Van Gogh, nem Tom Jobim, nem Gonzaga, nem Diadorim/ Você vai rimar com números./ Vai dormir com raiva, e acordar sem sonhos, sem nada./ E esse vazio no seu peito não tem refrão para dar jeito, não tem balé para bailar/ Você não precisa de artistas?/ Então nos perca de vista./ Nos deixe de fora desse seu mundo perverso, sem graça, sem alma./ Bom dia para quem tem alma.

            Infelizmente, há quem não compreenda a importância da arte e do artista para a alma humana, no entanto, todos andamos com versos roubados que não nos pertencem, mas que abrigamos em nós. Todos contemos melodias alheias que trauteamos como nossas e que deturpamos com acréscimos ou cortes de partes de que não recordamos. Todos nos rimos com as rábulas inventadas por outros e aqueles que têm mais jeito para a representação vão fazendo imitações caseiras do que viram para se poderem rir até às lágrimas. Todos já retivemos uma imagem que não foi desenhada nem pintada e nem esculpida por nós, mas que não largamos da retina. Todos já rimos ou chorámos com um filme ou um bom livro! Vivemos plenos das recriações alheias, mas há quem julgue poder viver sem elas! Como?! Se depois do amor, a arte é a única coisa que nos pode preencher e dar cor?!Fazer com que os nossos dias ganhem sentido! Duncan tem razão. Sem as mais variadas expressões artísticas, a vida do Homem seria em branco. Assim, o artista é um tratador de almas! Como lhes sou grata pelo seu trabalho!
            Há algumas semanas, houve muita gente incomodada pelo salário que o Ricardo Araújo Pereira vai ganhar para o novo canal que o contratou. O argumento usado era o de que num país pobre, haver um salário de cinquenta mil euros mensais seria uma ofensa! Ganhar tanto para dizer meia-dúzia de parvoíces, alegava-se. Naturalmente, não faltou gente a aplaudir. Ora, interrogo-me se o Ricardo será o único a auferir um salário milionário num canal privado, logo, à partida, não financiado pelos contribuintes? Há outros comunicadores que ganham bem mais com um trabalho menos meritório, na minha opinião. Fico perplexa com a inveja mesquinha dirigida ao Ricardo e interrogo-me o motivo que leva a não haver tal agastamento com os jogadores de futebol, por exemplo!
            Se o canal televisivo está disposto a investir no talento do humorista é porque sabe que vai ter retorno com as audiências! Significa que o artista desempenha bem o papel para o qual foi contratado! Estamos numa economia de mercado, logo, se lhe surge esta oportunidade, é legítimo que não a desperdice!
No mundo ideal, as diferenças entre o salário deste artista e o vulgar cidadão não seriam tão desagradavelmente acentuadas e todos viveriam melhor, no entanto, o mundo é feito de assimetrias injustas e, certamente, não será o Ricardo que deverá pagar a fatura!
            Sou, como já se deve ter percebido, apreciadora do trabalho do humorista. É um homem inteligente, bastante culto, capaz de produzir um humor assertivo, sagaz e absolutamente brilhante! O Ricardo tem piada sem cair na brejeirice. Apresenta um trabalho que o obriga a devorar livros, a estar sempre a aprender, a manter-se sempre atento à atualidade e ainda precisa de saber refletir, pensar bem e ser capaz de falar de coisas sérias com graça! O Ricardo é um artista completo e, certamente, as rábulas de cinco ou dez minutos apresentadas ter-lhe-ão custado imenso trabalho!
            Quando se vai aprender a respeitar o trabalho intelectual? Obviamente, o trabalho físico não é menos meritório e nem menos importante, mas é bom que se entenda que o que os artistas fazem também é trabalho! Não são eles que ganham demasiado, mas antes o vulgar cidadão que ganha pouquíssimo. A lógica deverá ser invertida: lutemos por melhores salários de quem ganha poucochinho!
            Para os que consideram que o Ricardo tem uma profissão fácil e que ganha demasiado, sugiro que se sentem e tentem fazer um programa com um alinhamento semelhante! Criem os textos, as personagens, imprimam-lhes vida e uma personalidade, as suas idiossincrasias e criem um contexto com objetivo satírico. Se forem bem-sucedidos, desde já os meus parabéns. Enviem-me o texto, que o lerei com deleite e prometo não desdenhar. Se concluírem que afinal não será assim tão simples, então, reconheçam a injustiça e sentem-se tranquilos. Encham os vossos espíritos com o humor de Araújo Pereira e sobretudo reflitam bastante sobre a sátira apresentada, sempre muito oportuna.
            Deixem o Ricardo usar a sua criatividade e aproveitem…
 Não é que além de inteligente, culto, bom comunicador, dono de um sentido de humor extraordinário, o rapaz ainda tem um “je ne sais quoi”?! De facto, a riqueza anda mal distribuída!
Nina M.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Serena, coração cansado



Serena, coração cansado!
Deixa as tuas penas ao lado
Que o sol lá do alto irradia
Ilumina o teu ser e o teu dia
Não se quer a lassa escuridão!
Sossega a alma angustiada
Abandona o nevoeiro matinal
Que traz o cinza mortal
Olha o céu que te sorri
Rouba-lhe o arco-íris sem dor
Faz dele o teu pincel
Usa a tela com mestria
Veste a vida em tons pastel
Exibe cor e alegria!
Caia! Caia a tristeza letal!
Fonte pura de teu mal
Vive por inteiro a vida
Antes que a sombra que passa
A vislumbre perdida
E a queira em pó!

sábado, 11 de janeiro de 2020

Crónica de Maus Costumes 163


A Criação de Torga

Quem me conhece sabe que gosto imenso do trabalho de Miguel Torga. Já tenho referido imensas vezes que continua a ser um escritor menos apreciado e menos valorizado do que o que deveria.
Sempre que falo de Torga com alguém, eu refiro o livro que para mim é a sua obra-prima: “A Criação do mundo”. Trata-se da sua autobiografia romanceada e que é uma verdadeira delícia! Sinto-me feliz por ter convertido mais alguém que se rendeu ao romance. Talvez os académicos prefiram os dezasseis volumes da diarística torguiana, onde podemos encontrar no meio das reflexões diárias, poemas abandonados, como se tivessem sido feitos à pressa, entre consultas, e não merecessem inclusão nas suas coletâneas de poesia. No entanto, a narrativa onde se expõe menino, jovem e adulto prende-nos desde o início até ao seu final. É uma autobiografia, logo estará pejada de subjetividade, dirão. É verdade, mas não minimiza o valor literário. A sua capacidade única de expor a sincera rudeza transmontana. Aprendi a admirar o homem por detrás do escritor. Talvez seja um dos motivos do meu apreço. Torga não tinha uma personalidade fácil. Não se vergava à facilidade das conveniências. Era íntegro e pouco ou nada maleável. Imagino que tais características lhe possam ter originado epítetos menos agradáveis. Havia nele um profundo sentido do dever, a responsabilidade acrescida de quem foi obrigado a maturar-se rapidamente. A pobreza em que viveu, a dureza do espírito arreigado à terra que o viu nascer é notória. A planta que escolheu para pseudónimo (torga) explica-o. As suas raízes fundas permitem que se agarre à terra com a força da esperança na sobrevivência. Assim foi com o homem, agarrado à determinação de vencer na vida. A vontade férrea de evoluir, não se vergando à probabilidade do fracasso, não deixando que o espaço geográfico e a descrença derrubassem o desejo de ser quem quis. Foi criado de servir no Porto, partiu cedo para o Brasil. Demasiado cedo. Criança ainda. No Douro sulcado de vinha não havia tempo para devaneios e ou havia dinheiro e os meninos podiam estudar ou se trabalhava na lavoura, como todos os outros, sem grandes ambições ou sonhos. Pareciam nascer já com a resignação sábia de quem aceita o seu destino, com a crença de que não precisavam mais do que o seu quinhão de terra e a imensidão das montanhas para poderem viver. Torga contrariou a ideia. Teimoso, não aceitava placidamente a marca da miséria. Sabia-se e conhecia o seu potencial, refutava a desigualdade. O filho do lavrador merecia a mesma oportunidade que o filho do Senhor doutor. Acreditou desde sempre no mérito e no esforço pessoal. Foi com ambos que venceu e se superou. Quem conhece a sua história, não permanece indiferente e dificilmente olha para si sem vergonha. Um exemplo de persistência, de resiliência e de superação. Depois de uma leitura destas ficamos sem ar e sem desculpa. Percebemos o quão burgueses somos e se é verdade que é benéfico ninguém precisar de passar pelo mesmo, também não é menos verdadeiro que desconhecemos o significado real das dificuldades e da pobreza. Percebemos que a miséria faz a resiliência. Miguel Torga precisou de duas coisas para singrar: a vontade e a inteligência. A montanha curva-se diante do seu nome e da sua vida enorme!


sábado, 4 de janeiro de 2020

Crónica de Maus Costumes 162


Venha 2020 !

                Em cada novo ano que se inicia (ainda que não seja novo ano em toda a parte do Planeta), as pessoas gostam de expressar a esperança e desejo num mundo melhor. Normalmente, seguem os bordões da paz, saúde, prosperidade e felicidade. Não gosto de todos os estribilhos. Aprecio uns e outros, apenas os considero vazios e inócuos.
                Obviamente, também gostaria que a paz reinasse, no entanto, sei que não acontecerá. Há guerra desde que o Homem se conhece e não é o facto de 2020 ser um número redondo e giro que a situação se alterará. Eu sei. É o meu cinismo (faceta que também albergo) a falar, mas absolutamente racional e realista. Posso expressar esse desejo, nada me impede, fica sempre bem e é politicamente correto, mas na verdade, é profundamente ingénuo acreditar que será possível. Não há mudanças drásticas no mundo. Depois, relativamente à saúde… A verdade é que todos a desejamos para nós e para os que nos são próximos, mas nem sempre é possível. Serão muitos os que adoecerão gravemente e morrerão ao longo do ano que acaba de iniciar. É a vida. Não há nada a fazer. Não depende da nossa vontade. Finalmente, a prosperidade bafejará, em princípio, os que trabalham para a alcançar. Quem esperar um euromilhões vale mais que se sente para não se cansar. De modo que estas três vontades, abundantemente propaladas, não são estúpidas, mas são vazias, dada a dificuldade ou quase impossibilidade da sua realização ou pelo facto de não estarem diretamente dependentes da querença do ser humano. Desta forma, prefiro expressar votos de uma ação menos grandiosa, porém mais à dimensão humana e mais exequível.
                Que cada ser saiba olhar para dentro e se procure conhecer. O confronto connosco é difícil, porque nos expõe à miséria e à fraqueza de que é feito o Homem. Todavia, depois de reconhecidas as falhas, reunimos as condições para começarmos a tarefa hercúlea de nos melhorarmos. Não acredito em soluções rápidas e fáceis para o mundo, mas acredito que se cada ser se empenhar em ser melhor, o mundo não ficará perfeito, já que o Homem é feito de imperfeição, mas será um lugar mais aprazível e acolhedor. A renovação não deverá ser feita de fora para dentro mas antes de dentro para fora.
Assim, de facto, (e este bordão aprecio) não é o mundo que tem de mudar, mas cada um de nós, para que o ano possa ser melhor do que o anterior. Haverá variáveis que não controlaremos e teremos de aprender a viver com elas. Talvez assim se chegue à almejada felicidade. Será o que tentarei fazer, certamente com muito tropeção, erros e cansaços, mas com o objetivo de me tornar uma versão melhor em mente. Se cada ser conseguisse ser menos egoísta, menos orgulhoso, menos azedo, menos intolerante e de juízos fáceis…  Se cada ser pudesse operar essa mudança e deixar-se contaminar pela bonomia e pela alegria, o ano estaria bem encaminhado. Tentarei cumprir o meu papel. Também sei que falharei algumas ou até muitas vezes, mas que possa reconhecer o erro e, tal como Sísifo, recomeçar dia após dia, ainda que “veja o logro da aventura”, como diz Torga. Que importa se eu faço e o outro não? Que importa que o Homem falhe a sua humanidade? Que essa pequenez não me retire a consciência e a vontade de evoluir nem a necessidade de apresentar um contributo positivo aos que me rodeiam!
Deixo o meu voto de bom ano, expresso em boa poesia de Miguel Torga. Palavras que não me pertencem, mas que me agigantam a alma e me emocionam.

Nina M.

  
Recomeça....

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheça...
                                
                                   Miguel Torga