Se sou o que precisas
Tão livre e tão solta
Que pousa ao de leve
Nesta vida tão breve...
Pergunto-me
Se sou o que precisas
(Responde a flor à borboleta)
Eu assim... Tão firme
Tão terrena e tão plantada
Nesta dor angustiada
No chão do amor...
Leon Trotsky
Acabou esta terça-feira a excelente
série da RTP2, que me acompanhou ao longo de sete semanas e que retratou a vida
do revolucionário judeu Liev Davidovich Bronstein, mais conhecido por Leon
Trotsky, nome adotado do seu carcereiro.
Como um bom livro, o final da série
deixa um misto de satisfação e de lamento. O fim da série seria tão inevitável
quanto o fim do homem, mas a excelente performance dos atores, a sua excelente
caracterização e os diálogos improváveis e brilhantes fazem com que sinta pena
pelo término. Espantou-me sobremaneira a semelhança física com os atores da
vida real, conferindo verosimilhança à ficção.
Conheci um Trotsky inteligentíssimo,
manipulador, narcisista e absolutamente cruel e tirano. Um Lenine estratega,
polido, igualmente inteligente, mas que cedeu à violência e a adotou em nome da
vaidade, da vitória pessoal e de um partido. Um Estaline paciente, tirano,
matreiro e assassino, capaz de aprender a crueldade e de a praticar avulso em
nome do poder. Vi um politburo hipócrita, manipulador, apenas interessado no
poder a qualquer preço e três homens capazes de se atraiçoarem mutuamente em
nome da vaidade pessoal (todos sem exceção), do poder e, no caso de Trotsky, em
nome do que ele consideraria um mundo ideal. Vi uns bastidores políticos sujos
e sem moral, onde todos os meios usados são aceitáveis para se alcançar o que se
pretende: a mentira, o domínio da imprensa e a imposição pelo terror. A
crueldade absoluta e a indiferença pelo sangue dos compatriotas e dos próprios
familiares, considerados meros danos colaterais em busca de um ideal maior.
Porém, esse ideal revelou-se bem pequeno, porquanto impôs a violência
inaceitável, a miséria e a fome em nome de uma igualdade que nunca existiu. Como dizia o professor universitário e filósofo, Illyin, a
revolução bolchevique revelou-se a catástrofe mais terrível da história da Rússia,
o colapso de todo o estado. E se o mundo anterior não era de todo perfeito, o
novo mundo, criação trotskyana, impôs-se pelo medo e pelo terror, à custa de
uma sangria desenfreada da população, votando o povo à miséria, onde sempre
esteve mergulhado. Se o mundo velho não era perfeito, o novo mundo era bem pior
e mais cruel. Como afirmava Gorki, o monstro estava criado e alimentava-se do
sangue dos russos. A batalha estava ganha, mas a besta continuava a necessitar
de sangue. São presos poetas, escritores e filósofos e, mais tarde deportados.
Foi-lhes poupada a vida, apesar da revolução cortar muito facilmente gargantas.
Senhores que dispunham da vida dos compatriotas como o jogador de xadrez dos
seus peões. Sem clemência e sem humanidade, porque acreditava o mentor
sanguinário da revolução, Leon Trotsky, que a nova ordem só poderia ser imposta
pela força e que a grande vantagem em relação ao adversário seria a ausência
completa de complacência e a crueldade total, de forma a subjugar toda a
oposição, através do pânico. Estaline foi um bom aprendiz e continuou a obra de
Leon, ainda que o mentor considerasse que ele era um monstro, porque não lhe
interessava o ideal, mas apenas o seu poder, julgando-se diferente de Estaline.
A verdade é que fosse em nome de um ideal ou de uma vaidade pessoal, o
resultado foi semelhante: carnificina e miséria. O revoltado judeu, que queria
transformar o mundo, conseguiu-o: mudou-o para pior. Quem com ferros mata com
ferros morre. Depois da morte de Lenine (a quem puxou o tapete por diversas
vezes), Leon Trotsky perde o apoio do politburo. São usados contra ele os seus
métodos e, depois de uma campanha insidiosa e difamatória, hoje, vugo fake
news, é julgado por traição à pátria e condenado ao exílio. Termina os seus
dias no México, mas sabia que Estaline preparava o seu desaparecimento, como
fez com tantos outros. É assassinado à picareta, em 1940, pelo espanhol Ramon
Mercader, provavelmente contratado por Estaline. O espanhol nunca o confirmou,
mas após cumprir a pena de 20 anos de prisão, foi recebido na Rússia com honras
de estado.
Revolveu-se o meu estômago várias
vezes. Tremeram as entranhas perante a monstruosidade e a ideia de se querer
uma nova ordem imposta pelo terror. Um novo mundo criado à medida de um
lunático narcisista que se comportava como se fosse o deus Júpiter, senhor do
destino dos seus súbditos. Se a História da Rússia, no tempo do czar é de
pobreza, de injustiça e de desigualdade, a Rússia da revolução é um país
chacinado, mortificado, miserável, absolutamente tirano e cruel. Não vi
qualquer melhoria. Esta é a história da esquerda radical, do socialismo
marxista, vulgo comunismo, que se queria impor ao mundo, quer este quisesse ou não
esse ideal. Vende a ideia de que pretende a justiça e a igualdade e é gerador de
morte, de tortura e de miséria.
Não
reconhecer a génese destas ditaduras (algumas ainda vigoram como bem sabemos) é
branquear a História e comprometer os regimes democráticos. São regimes tão perniciosos
quanto os regimes fascistas de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar.
Ouçamos
Aristóteles, já que é na temperança que reside a virtude e o bem e, sobretudo, fujamos
de falsos profetas. Ninguém tem o direito de julgar saber o que cabe melhor a todos
os outros e de querer moldar o mundo à nossa imagem, principalmente, se ela for
desprezível. De boas intenções anda o inferno cheio.
Nina
M.
Absurdos...
Nada me parece tão absurdo quanto as cerimoniosas instruções fornecidas pelos assistentes de bordo.
Penso sempre o mesmo, quando entro num avião. Não sinto medo de voar, mas há cada vez mais um ligeiro incómodo... Certo é que os funcionários, sempre atenciosos e simpáticos, desfazem-se em gestos a indicar as portas de emergência, duas à frente e duas atrás... Se houvesse problemas, no ar, elas não dariam jeito nenhum... É vê-los a apertar cintos e puxar das máscaras de oxigénio e a informar que em caso de despressurização, primeiro colocam os adultos as máscaras e só depois as crianças. Tem lógica, obviamente... Com as máscaras posso eu bem, mas quando chega o colete, não evito um sorriso sardónico e só me lembro da pergunta do Rodrigo, em certo voo:
- ó mãe, então, não era melhor haver um paraquedas do que um colete? O colete só dá para o caso do avião cair no mar... Respondo-lhe que não se preocupe, que vai tudo correr bem. Ele olha-me sério.
- E se não correr? - pergunta.
Não minto e calmamente respondo que provavelmente morreríamos todos, mas que não pense nisso...
E cismo que, de facto, todas aquelas instruções serviriam de pouco e que gosto da ideia do paraquedas, ainda que não soubesse utilizá-lo. Enfio os olhos e a mente no Saramago, que me desvenda segredos do Luís Vaz, o nosso Camões, e também eu o vejo a acrescentar a dedicatória aos Lusíadas, a escrever na sua casa de Lisboa, enquanto aguarda o reconhecimento e o beneplácito régio. Tudo política e equilíbrio de forças, como lhe explica Damião de Góis, para granjear a simpatia de el-rei e o assentimento da Inquisição. Um país que apodrece no desgoverno e que não reconhece a genialidade do poeta. O Saramago sentiria o mesmo, séculos mais tarde, e sem Inquisição.
Serve a viagem a leitura e o conhecimento. Decorre tranquilamente, tal como é necessário. Volta-se à terra e de pés bem assentes no chão, inicia-se a descoberta.
Nina M.
O marialva
Em
jeito de brincadeira, por estes dias, usei o adjetivo marialva, bem português,
aliás, com o sentido pejorativo que lhe é associado. Dito assim, é referente ao
homem sedutor, aquele que gosta de namoriscar com mais do que uma mulher (não
vou ser politicamente correta nem inclusiva. Essa novilíngua deixa-me louca!) O
epíteto marialva refere-se ao homem (ser que exibe protuberância genital externa)
que gosta de mulheres e que por ter um coração gigantesco, gosta de várias em
simultâneo.
Ora,
eis que me pus a cismar na palavra, que é usada em múltiplos contextos. Desde
logo, Marialva é uma das aldeias históricas de Portugal, localizada, no
concelho de Mêda. Foi habitada por romanos e árabes. Há quem diga que o seu
nome remonta à época da Reconquista Cristã, em que Fernando Magno a toma aos
Mouros e, em honra a Nossa senhora, (Maria Alba), batiza-a assim. Mais tarde,
D. Afonso Henriques incentivará o seu repovoamento, concedendo-lhe Carta de
Foral, D. Sancho I reabilita-lhe o castelo e D. Afonso II confirma-lhe o Foral.
Ao longo dos séculos, do alto do seu castelo altaneiro, Marialva contempla os
diversos tempos difíceis. Toma partido do Mestre de Avis, na crise de 1383-85,
mas é na Guerra da Restauração, após a Batalha da Linha de Elvas, que o nome da
povoação passa a ser carregado por D. António Luís de Meneses, conde de
Cantanhede, agraciado mais tarde, como Marquês da Vila de Marialva, pelos
préstimos nesta batalha. O Marquês tinha tido também participação ativa no
movimento dos quarenta conjurados, que conduziria à Restauração da
Independência Portuguesa. Mais tarde, venceria a Batalha de Montes Claros. Desta
forma, o título passa a ser associado ao nobre cavaleiro, figura da mais
ilustre nobreza portuguesa, com um papel decisivo na arte equestre, em Portugal,
apelidada de arte de Marialva.
Hoje,
no dicionário Priberam, encontramos a
definição de marialva como: relativo
às regras de cavalgar à gineta; feito segundo o modo de trajar do marquês de
Marialva; Sedutor; conquistador de mulheres; aquele que, sendo de boa família,
só convivia com fadistas e outra gente considerada desprezível.
Não sei se os Marqueses de Marialva
faziam jus à fama de sedutores, mas que deixaram o epíteto aos vindouros, isso
é inegável. O que não falta por aí são marialvas de pé de chinelo, sem
aristocracia nem ginete, mas que gostam de pendurar o cântaro em tudo quanto é
galho a ver se alguém os recolhe. Não os censuro, se a dona do cântaro o
decidir recolher é porque assim quis, mas talvez valesse a pena clarificar se o
cântaro é apenas um empréstimo ou uma dádiva… Poupar-se-iam alguns desgostos e
aborrecimentos. No mínimo, ó marialvas contemporâneos, se não sois
absolutamente esclarecedores nas vossas reais intenções, sob pena do cântaro se
partir, fazei uma coisa: antes de vos acomodardes em leito alheio, como viestes
ao mundo, não vos esqueçais da meiazita… Um marialva de meia… Huuuumm… É algo
que me custa a imaginar… Brancas e puxadas até ao meio da perna, conforme se
veem nos jovens, muito menos!
Que
os deuses poupem as mulheres sedentas de água dessa visão!
Nina
M.
A perda da inocência
- Come, Sónia! Não vês tantos meninos
em África a passarem tanta fome e tu nunca queres comer?!
- Podes dar-lhes a minha comida,
então. Eu não me importo. – respondia invariavelmente, muito séria, como se
enviar um prato de batata cozida esmagada com ovo e peixe (que ainda hoje não
aprecio e nem doente confeciono) fosse simples de enviar para os meninos
esfomeados… Porém, talvez acreditasse que fosse mesmo possível fazê-lo.
Enquanto não comia, a minha avó Matilde subornava-me com o copo de refresco de
vinho (água pintalgada de vinho branco e açúcar) que só obtinha autorização
para beber no fim de engolir a pasta amarelada disposta nos prato dos
leõezinhos, aquele que levava água quente no depósito para evitar que a comida
arrefecesse com a espera… E vejo-te, Glória, com esse mesmo prato na mão, na
bouça em frente da minha casa, no penedo grande, junto à poça, onde sempre
havia girinos, pacientemente, a dizer-me:
- Anda, Sonita, abre lá a boca, mais
uma colher…
E o
mesmo argumento te saía, o dos meninos que querem e não têm comida… E eu abria
lentamente (dentro de uma saia de peito, de bombazina azul marinho com dois
patinhos brancos a segurar as alças…) devagar, como quem gosta de mastigar bem,
mas afinal era só falta de apetite. Nunca sentia fome, na minha infância, e
também não recordo o momento em que o prazer do alimento surgiu…
Certo
é que a fome do mundo e as guerras nos são ensinadas cedo. Talvez, por isso, a
sua existência não espante. Não. Queria lembrar o momento exato em que pela
primeira vez nos quebram o coração, a nós, seres amados e protegidos pelos pais
e pela família, que desconhecem a dor! Só assim perdemos o olhar virginal e vamos
aprendendo a dor de viver. Não me lembro das maldadezitas de catraios. Julgo
terem sido insignificantes, dado o apurado sentido de justiça que sempre tive.
Nem lembro do momento exato em que a inocência se perdeu e alguns outros
passaram a ser desilusão. Não que fossem eles os responsáveis, porque os
iludidos somos sempre nós. Os outros não podem nem devem moldar-se às nossas
necessidades. Devem ser quem são. É o que se lhes exige, portanto, o erro é
nosso. Porém, é nessa dialética difícil com o outro que aprendemos a mágoa e o
pessimismo. A alegria também, é certo. Talvez tenha sido um processo
progressivo, misturado de saber empírico e do saber dos livros que narram
outras vidas. Estes deixam tudo a nu: as pequenas misérias morais pessoais e
também as grandes misérias do mundo. Queria lembrar e não sou capaz. Sei, porém,
que aos vinte e cinco apanhei a síndrome de desencanto do meu aniversário, por culpa
do Mário Sá-Carneiro e, por ironia, celebro-o por arrastamento do meu pequeno. É
sempre dele, nunca meu. Especialmente, se a festividade é desfasada da verdadeira
data de nascimento…
Tenho
a mania de que até o meu nascimento só a mim diz respeito. Prefiro as saudações
à distância, do que a exaltação próxima. Há um pudor inexplicável incomodativo,
como se a idade já não o justificasse. Sei o momento deste desencanto, mas não sei
precisar a da perda da inocência, mas sei que com ela, de algum modo, nasceu em
mim a poesia.
Nina M.